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Como funciona a ficção

- James Wood
PLANO DA APRESENTAÇÃO

Capítulo II “Flaubert e a narrativa moderna”;

Capítulo III “Flaubert e o surgimento do flâneur”;

(Reflexões sobre o flâneur e sobre a importância da cidade


para a literatura moderna);

Propostas de criação;
DE FLAUBERT
FLAUBERT E A NARRATIVA MODERNA

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à


primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de
Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende
como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase
invisível. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realça
o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepção
visual; que mantém uma compostura não sentimental e que se abstém, qual bom
criado, de comentários supérfluos; que é neutra ao julgar o bem e o mal; que
procura a verdade, mesmo que seja sórdida; e que traz em si as marcas do
autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver.
Encontramos algumas dessas características em Defoe, Austen ou Balzac, mas todas
juntas só em Flaubert” (WOOD, 2012, p.43)
EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (1869)

“Percorria, ao acaso, o Quartier Latin, habitualmente cheio de tumulto, mas


deserto naquela época, com os estudantes em férias. As altas paredes dos colégios,
que o silêncio parecia tornar mais extensas, tinham um aspecto ainda mais triste;
ouvia-se um sem-número de ruídos pacíficos, bater de asas nas gaiolas, a vibração
de um torno, o martelo de um sapateiro; e os vendedores de roupas, no meio da
rua, interrogavam inutilmente com os olhos todas as janelas. No fundo dos cafés
solitários, a dama do balcão bocejava entre as garrafas cheias; os jornais
permaneciam em ordem na mesa dos gabinetes de leitura; na casa das
engomadeiras, a roupa branca estremecia ao sopro do vento morno. De vez em
quando, detinha-se diante do tabuleiro de um alfarrabista; um ônibus que descia,
rente ao passeio, fazia-o voltar-se; e, chegando em frente ao Luxemburgo, não ia
mais longe”.
O moderno em Flaubert

Narrador que observa as ruas com indiferença, como uma câmera;


Importância dos detalhes notados e não notados;
Desejo de colocar o leitor diante da “parede lisa de prosa”; projeto de anular-se
do texto: “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em
toda parte e visível em parte nenhuma” (FLAUBERT em carta de 1852);

"Eu não coloco nada de meus sentimentos ou de minha existência lá [em Madame Bovary]. A ilusão (se ela
existe) vem, ao contrário, da impessoalidade da obra. Um dos meus princípios é que não se deve
escrever-se. O artista deve estar em sua obra como Deus na criação, invisível e todo-poderoso; que se sente
em toda parte, mas não se pode vê-lo” (FLAUBERT em carta de 1857)

« Je n’y ai rien mis ni de mes sentiments ni de mon existence. L’illusion (s’il y en a une) vient, au contraire,
de l’impersonnalité de l’œuvre. C’est un de mes principes qu’il ne faut pas s’écrire. L’artiste doit être dans
son œuvre comme Dieu dans la création, invisible et tout-puissant ; qu’on le sente partout, mais qu’on ne le
voie pas »
O moderno em Flaubert

Aperfeiçoamento de uma técnica essencial à narração realista: mistura do detalhe


habitual do detalhe dinâmico;

Sugestão de que os detalhes são importantes e insignificantes;

Junção de acontecimento de curta e longa duração;

Afirmação de uma impossibilidade temporal (não invenção de Flaubert);

Influência em grande parte do relato moderno (reportagem de guerra, por


exemplo);

“Parece a vida real – de um modo belamente artificial” (WOOD, 2014, .45)


“Disparava-se de todas as janelas da praça; as balas assobiavam; a água da
fonte rebentada misturava-se ao sangue, fazia poças no chão; escorregava-se,
na lama, sobre peças de vestuário, capacetes, armas: Frédéric sentiu debaixo
do pé uma coisa mole; era a mão de um sargento, de capote cinza, caído no
enxurro, com o rosto para baixo. Novos bandos de populares continuavam
chegando, empurrando os combatentes para a delegacia. O tiroteio tornava-se
mais cerrado. Os armazéns de vinho estavam abertos; ia-se lá, para depois
voltar ao combate. Um cão perdido uivava. Dava vontade de rir”.

Pavoroso e comum notados ao mesmo


tempo e sem diferença; escrita se “momento decisivamente moderno”
recusando a se envolver na emoção de (WOOD, 2014, p. 47)
seu objeto;
VIAGEM SENTIMENTAL (1921)

[...] Segui em frente, viam-se poucos mortos, os feridos


andavam e andavam, e eram na maioria dos nossos;
significava que o inimigo não fora eliminado em lugar
nenhum. E eis que debaixo de um arbusto, bem ao lado da
estrada, havia um morto; estava quieto, e ao lado os
soldados austríacos comiam tranquilamente conservas de
café da manhã, apoiando as patas no cadáver”
(CHKLÓVSKI, 2018, p. 45)
FLAUBERT E O SURGIMENTO
DO FLÂNEUR
Pretérito imperfeito como causas da junção de marcações de tempos
diferentes;
- Imperfeito como grande invenção de Flaubert (Contre Sainte-Beuve,
de Proust);
- “E Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do olhar – o olhar
do autor [narrador] e o olhar do personagem” (WOOD, 2014, p.49)
- Personagem Frederick, de Flaubert: pioneiro do flâneur; (ocioso,
geralmente rapaz, vagueando pela rua sem pressa, olhando, vendo,
refletindo);
- “Conhecemos o tipo” 🡪 Baudelaire, Rilke, Walter Benjamin;
- Flâneur: substituto do autor, explorador permeável; (“ele sai para o
mundo como a pomba de Noé, a fim de trazer um relatório na volta” )
- Jane Austen: romancista rural ; Londres representada como um povoado;

“As heroínas nunca vagueiam ociosas, apenas olhando e pensando: todas as suas
ideias estão intensamente concentradas no problema moral em questão” (WOOD,
2014, p.50)

“O surgimento do explorador permeável está intimamente


ligado ao urbanismo, ao fato de que imensas aglomerações
de seres humanos lançam ao escritor – ou ao substituto
designado para isso – quantidades imensas e atordoantes de
talhes variados” (WOOD, 2014, p.50)

- The Prelude, William Wordswort: aparecimento do flâneur;

- Wordsworth e Flaubert: ajustam o olho a seu bel-prazer;

- Wordsworth: olha pessoalmente para esses aspectos de Londres;


- Inovação de Flaubert: fundir o autor [narrador] e o flâneur, elevando
Frédéric ao nível estilístico de Flaubert [narrador de Flaubert];

- Flaubert: realista , um estilista, um repórter e um poeta manqué.

“O romancista também quer registrar detalhes assim, mas é mais


difícil se comportar como poeta lírico no romance porque é
preciso escrever através de outras pessoas, e então voltamos à
tensão básica do romance: quem está notando essas coisas: o
romancista ou o personagem?” (WOOD, 2014, p.52)

- Larousse: “Flaner, errer sans bout, en s’arrêtant pour regarder”; (vagar a esmo, parando
de vez em quando para olhar)
O pintor da vida moderna
(Charles Baudelaire)
“A multidão é o seu domínio, como o ar é o do pássaro, como a
água, o peixe. Sua paixão e sua profissão consistem em esposar
a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador
apaixonado, constitui um grande prazer fixar domicílio no
número, no inconstante, no movimento, no fugidio e no
infinito. Estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em
toda parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar
escondido do mundo, esses são só alguns dos pequenos prazeres
desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a
língua não pode definir senão canhestramente. O observador é
um príncipe que usufrui, em toda parte, de sua condição de
incógnito” (BAUDELAIRE, 2010, p. 30).
Walter Benjamin – Sobre alguns aspectos em
Baudelaire

A rua transforma-se na casa do flâneur, que se sente em casa entre as


fachadas dos prédios, como o burguês entre as suas quatro paredes. Para ele, as
tabuletas esmaltadas e brilhantes das firmas são adornos murais tão bons
ou melhores que os quadros a óleo no salão burguês/ as paredes são a
secretária sobre a qual apoia o bloco de notas; os quiosques de jornais são
as suas bibliotecas, e as esplanadas as varandas de onde, acabado o
trabalho, ele observa a azáfama da casa. A vida em toda sua diversidade, na
sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolve entre as paredes
cinzentas da calçada e contra o pano de fundo cinzento do despotismo: esse é o
pensamento político secreto da forma de escrita a que pertenciam as fisiologias.
(BENJAMIN, 2015, p.39, 40)
PROPOSTAS DE ESCRITA
1) Escrever um texto que traga a figura do flâneur ou da flâneuse, tentando utilizar os procedimentos (ou alguns
deles) identificados por James Wood na literatura de Flaubert, tais como olhar distante impessoal;
coexistência de detalhes importantes e insignificantes, acontecimentos de curta e longa duração;
2) Escrever um texto que trata figura do flâneur ou da flâneuse que não pode caminhar ou que só pode caminhar a
partir de restrições, seja porque não pode sair de casa ou porque só pode sair para lugares muito próximos. Ex.:
um flâneur em uma pandemia que está respeitando (ou se esforçando para respeitar) o isolamento social.

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