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ALÉM DO CÂNONE
O mais importante, porém, é perceber como Este livro reúne textos de Lucie Varga Celso Castro Este livro reúne textos de uma autora quase Celso Castro
LUCIE VARGA
eles podem ser alinhavados pelo olhar analí- (1904-1941), uma autora praticamente Dirceu Marroquim desconhecida não apenas no Brasil, mas no Dirceu Marroquim
tico e rigoroso de Lucie. É possível observar desconhecida no Brasil e no mundo. Sua mundo todo. Lucie Varga nasceu na Áustria,
(orgs.) (orgs.)
o esmaecer das fronteiras disciplinares, com vida curta foi marcada pela ascensão do em 1904, e morreu em 1941 na França do-
uma atenção precisa às fontes utilizadas e nazismo e pela guerra, em um contexto minada pelos alemães, aos 36 anos. Ela foi
aos métodos a que recorreu. Trata-se de no qual ser judia, imigrante e antifascista praticamente esquecida desde então.
uma consciência radical de que o passado representava, por si só, um ato de
Não é difícil entender os motivos e a natu-
está prenhe do presente e vice-versa; e de resistência. Sua obra foi esquecida, apesar
reza desse esquecimento. Basta mencionar
que o amanhã e o depois de amanhã estão, de ter sido a primeira mulher a publicar
a conjunção entre alguns elementos biográ-
em alguma medida, ligados ao anteontem. regularmente na revista Annales, marco
ficos e o contexto histórico em que Lucie
da historiografia francesa. Seus textos
Por que publicar Lucie Varga após esse Varga viveu. Ela morreu jovem, em meio a
transcenderam fronteiras disciplinares,
longo esquecimento? Pela potência de seu uma guerra mundial; era mulher, judia, imi-
oscilando entre a história e a etnografia.
olhar sobre a realidade social e pelo muito grante e antifascista. Para ela, viver naquela
Os textos aqui selecionados retratam o
que podemos apreender com ele. época era muito perigoso.
percurso de uma pesquisadora que se
preocupava com as questões centrais do Lucie Varga trabalhou na edição da revista
LUCIE
(UFRJ/ Museu Nacional) e professor da Escola consciência do presente na construção das e Marc Bloch, um marco da “Nova História”
de Ciências Sociais FGV CPDOC. Organizou narrativas sobre o passado. Sua abordagem francesa, tendo sido a primeira mulher a
analítica e rigorosa revela um olhar aguçado
LUCIE VARGA
Além do cânone: para ampliar e diversificar as publicar, regularmente, na revista. Ela é uma
ciências sociais (FGV Editora, 2022).
(orgs.)
ISBN 978-65-5652-274-6
especialmente dois aqui reunidos, podem,
Departamento de Fundamentos Sócio-Filosó-
também, ser lidos como escritos de uma
ficos da Educação. É sócio efetivo do Instituto Rua Jornalista Orlando Dantas, 9
etnógrafa. CEP 22.231-010 | Rio de Janeiro | RJ
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernam- Tel.: (21) 3799-4427
9 786556 522746
editora@fgv.br | www.editora.fgv.br
bucano. www.editora.fgv.br
Celso Castro
Dirceu Marroquim
(orgs.)
LUCIE VARGA
Entre as mentalidades e o tempo presente
Copyright © 2024 Celso Castro e Dirceu Marroquim
1a edição: 2024
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5652-273-9
CDD – 907.2
Apresentação 7
1
Ver Lucie Varga. Les Autorités invisibles: une historienne autrichienne aux “An-
nales”. Paris: Le Cerf, 1991. Coleção Bibliothèque Franco-Allemande.
2
Ver Celso Castro (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências
sociais. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2022, cap. 8.
8 Lucie Varga
Para ela, viver naquela época era muito perigoso. Além disso,
Lucie foi uma pesquisadora difícil de se classificar em termos
de fronteiras disciplinares. Sem dúvida era uma historiadora,
disciplina na qual se formou. Seus textos, contudo, especial-
mente os dois primeiros aqui reunidos, podem, também, ser
lidos como escritos de uma etnógrafa. O mais importante, po-
rém, é perceber como eles podem ser alinhavados pelo olhar
analítico e rigoroso de Lucie. É possível observar o esmaecer
das fronteiras disciplinares, com uma atenção precisa às fon-
tes utilizadas e aos métodos a que recorreu. Trata-se de uma
consciência radical de que o passado está prenhe do presente e
vice-versa; e de que o amanhã e o depois de amanhã estão, em
alguma medida, ligados ao anteontem.
Antes de abordarmos cada um dos textos aqui reunidos e
suas respectivas contribuições, façamos uma rápida passagem
sobre a sua breve vida e sobre o contexto intelectual no qual
Lucie estava inserida. Esse sobrevoo nos ajudará a entender al-
gumas das formulações conceituais feitas pela autora, as apro-
ximações e os distanciamentos em relação às geografias físicas e
disciplinares por onde transitou.3
3
A principal fonte para as informações biográficas de Lucie Varga é o livro
de Peter Schöttler, acima mencionado. Foi útil também o capítulo de Ronald
Stade, “‘In the Immediate Vicinity a World Has Come to an End’. Lucie Varga
as an Ethnographer of National Socialism: A Retrospective Essay”, in: Richard
Handler (org.). Excluded Ancestors, Inventible Traditions: Essays Toward a More
Inclusive History of Anthropology (Madison: WI, University of Wisconsin Press,
2000, p. 265-283). No Brasil, há o texto de Jougi Guimarães Yamashita, “Lucie
Varga: a ‘desconhecida’ historiadora dos Annales” (Café História, 3 jul. 2017;
disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales/>).
Apresentação 9
4
Ver Sabrina Magalhães Rocha. Lucien Febvre, Marc Bloch e as ciências históri-
cas alemães (1928-1944). Ouro Preto: Edufop/PPGHIS, 2012, p. 93.
5
Ibidem, p. 94.
6
Ver Peter Shöttler. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autrichie-
nne aux “Annales” dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991, p. 102.
7
Ver Otto Brunner. Land and Lordship: Structure of Governance in Medieval
Austria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1984, p. xx. Sobre o his-
toricismo e as variadas apreensões do seu significado há o interessante texto de
Georg G Iggers, “Historicism: The History and Meaning of the Term” (Journal of
the History of Ideas, v. 56, n. 1, jan. 1995, p. 129-152).
Apresentação 13
8
Ver Lucien Febvre. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989,
p. 205.
9
Idem, p. 215.
14 Lucie Varga
*
10
Em uma carta escrita por Febvre a Bloch, esta dimensão fica evidente: “Acabo
de enviar para impressão uma resenha (uma nota) sobre um bizarro volume
de filosofia nazista a respeito da Autarkie, que a sra. Varga escreveu sob mi-
nha orientação. […] Penso que é tolice não empregar esta ‘mão de obra’ dos
emigrados, canalizando-a e regulamentando-a”. O trecho foi citado por Sabrina
Magalhães Rocha (op. cit., p. 98).
11
Ver Lucie Varga. “La Recherche historique et l’opposition catholique en Alle-
magne”. Revue de Synthése, t. XIII, fev. 1937.
Apresentação 15
12
Ver Peter Schöttler. “Lucie Varga and her Alpine Studies”. In: Elisabeth Tau-
ber e Dorothy L. Zinn (orgs.). Malinowski and the Alps: Anthropological and
Historical Perspectives. Bolzano: Bolzano University Press, 2023.
16 Lucie Varga
13
Ibidem, p. 107.
14
Ver Elisabeth Tauber e Dorothy Zinn. “Back on the Verandah and off Again:
Malinowski in South Tyrol and his Ethnographic Legacy”. Anuac, v. 7, n. 2, dez.
2018, p. 9-25, ISSN: 2239-625X-DOI: 10.7340/anuac2239-625X-3518. Para a
visão de Malinowski sobre o nazismo, ver o artigo de Dan Stone, “Nazism as
Modern Magic: Bronislaw Malinowski’s Political Anthropology” (History and
Anthropology, v. 14, n. 3, 2003, p. 203-218).
15
Ver Peter Shöttler. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autri-
chienne aux Annales dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991, p. 105.
Apresentação 17
16
Idem.
18 Lucie Varga
17
Ver p. 55 neste volume.
Apresentação 19
21
Ver Peter Burke. A Escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia
(1929-1989). São Paulo: Editora da Unesp, 2010, p. 22-23.
Apresentação 21
24
Ver François Dosse. “História do tempo presente e historiografia”. Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, jan/jun. 2012, p. 8.
25
Ver Natalie Z. Davis. “Women and the World of the Annales”. History Wor-
kshop Journal, v. 33, 1992.
Figura 1. Currículo de Lucie Varga,
escrito por ela própria.
No vale de Vorarlberg:
de anteontem até hoje1
(1936)
1
Publicado originalmente em Annales d’Histoire Économique et Sociale, ano
8, 1936, p. 1-20. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Cel-
so Castro, Dirceu Marroquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas
dos organizadores estão indicadas como [N. do Org.].
2
Permita-me agradecer ao professor B. Malinowski (London School of Eco-
nomics) pelas sugestões úteis que me deu para o estabelecimento do próprio
plano desta pesquisa.
26 Lucie Varga
II
3
Para o passado, podemos apenas interrogar os documentos e interpretar os
textos. Por outro lado, o bom etnólogo que trabalha no campo, dotado de intui-
ção psicológica, jamais se limitará às observações e aos dados imediatos forne-
cidos por seus objetos de estudo. Ele notará o sotaque, o gesto que acompanha a
palavra — e as palavras, às vezes, serão, de todos os elementos do conhecimento,
os menos importantes. Em vez de questionar diretamente, ele viverá com sua
“tribo” e penetrará seus modos de ser…
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 27
4
O atual governo pode fazer tentativas de reviver velhos costumes; ele não
consegue, as pessoas fogem. Nas exibições de trajes antigos, elas assistem como
a um espetáculo estrangeiro. Ouvi recentemente um noivo ser repreendido por
não ter vestido a roupa para a cerimônia; ele respondeu: “Ei! Você acha que
estou aqui para bancar o tolo na sua frente?” (Glaubt ihr ich bin da euch den
Narren abzugeben?).
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 29
5
Durante muito tempo, empregaram-se apenas trabalhadores do seu vale… A
não renovação das suas carteiras de trabalho obriga-os a regressar um dia destes
a Vorarlberg. Naturalmente, ele será um dos grandes homens do vale, uma de
suas figuras mais populares.
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 31
6
A presença do Partido Social Cristão na Áustria era marcante, sendo um dos
mais importantes vetores políticos do país. No momento posterior à Primeira
Guerra Mundial, houve maior aproximação com grupos sociais mais afastados
da capital, em direção às regiões interioranas, representadas pelos proprietários
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 33
de terra. Ver Helmut Wohnout. “Middle-Class Governmental Party and the Se-
cular Arm of the Catholic Church: The Christian Socials in Austria”. In: Wol-
fram Kaiser e Helmut Wohnout (orgs.). Political Catholicism in Europe, 1918-45.
Londres/Nova York: Routledge, 2004, p. 172. [N. do Org.]
34 Lucie Varga
III
7
Trata-se de uma referência ao conflito bélico entre a Itália e a Abissínia (Etió-
pia) a partir de 1935, cujo resultado foi a ocupação do país africano entre os
anos 1936 e 1941. O termo negus é um sinônimo de rei, posto à época ocupado
por Hailé Selassié (Rás Tafari). [N. do Org.]
36 Lucie Varga
IV
9
Entre os frequentadores do mestre, havia outro, filho de família numerosa.
Ferido em um acidente ferroviário, perdera seu cargo; ele era então caçador em
caçadas particulares, mas ameaçado o tempo todo pelo desemprego. Um ter-
ceiro foi o arquiteto dos refúgios da região: preocupado, inteligente, não estava
satisfeito com o que a aldeia podia lhe oferecer.
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 47
1
Publicado originalmente em Annales d’Histoire Économique et Sociale, v. 9,
n. 48, 1937, p. 529-546. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas
de Celso Castro. As notas da autora estão indicadas como [N. da A.]. As demais
notas são dos organizadores. Agradeço a ajuda de Oliver Stuenkel e Maud Chi-
rio para resolver algumas expressões em alemão e francês.
56 Lucie Varga
2
Ver Arnold Toynbee. [Survey of] International Affairs. Oxford/Londres: Ox-
ford University Press/Humphrey Milford, 1935. [N. A.]
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 57
*
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 59
5
Batalha de Sedan: travada em 1º de setembro de 1870 na Guerra Franco-Pru-
ssiana, próxima à cidade francesa de Sedan, que terminou com uma decisiva
vitória dos alemães.
6
Referência a Albert Leo Schlageter (1894-1923), soldado alemão que, inconfor-
mado com a derrota de seu país ao final da Primeira Guerra Mundial, integrou-se
a um dos grupos paramilitares de extrema-direita chamados Freikorps [“Corpos
Livres”]. Acabou preso e executado pelos franceses, tornando-se um mártir para
parte da população alemã, em especial para o regime nazista.
60 Lucie Varga
7
Lucie Varga usa a expressão francesa corps francs, literalmente “corpos livres”;
mas como ela se refere aos Freikorps (vide nota anterior), preferi utilizar aqui, e
em outras passagens do texto, o termo em alemão.
8
SA: abreviação de Sturmabteilung, geralmente traduzido como “Seção de Assal-
to”; o braço paramilitar do Partido Nazista que desempenhou um papel importan-
te na ascensão de Hitler ao poder.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 61
11
Bootledge: tráfico ilegal de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos, durante a
Lei Seca (1920-1933).
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 63
II
16
Diodoro Sículo: historiador grego do século I a.C., escreveu uma história uni-
versal em quarenta livros.
68 Lucie Varga
18
Bildung: palavra que não tem tradução exata em português, mas que pode
aqui ser entendida como “formação”, no sentido de “cultivo” do indivíduo.
70 Lucie Varga
19
Erbuntertänigkeit: subserviência hereditária, uma forma especial de depen-
dência econômica e pessoal do camponês em relação ao senhorio, semelhante
à servidão.
20
Zollverein: aliança aduaneira dos estados alemães, que teve como meta a li-
berdade alfandegária.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 71
21
Vormärz: período que vai da derrota de Napoleão e o estabelecimento da
Confederação Alemã, em 1815, até as Revoluções de Março de 1848.
72 Lucie Varga
22
Preussische Volksverein: Associação do Povo Prussiano, organização conser-
vadora e antiliberal da Prússia na década de 1860.
23
Adolf Stoecker (1835-1909): político alemão conservador, promotor do an-
tissemitismo e fundador do Partido Social Cristão Alemão.
24
Kulturkampf: literalmente “luta pela cultura”; conflito que ocorreu de 1872 a
1878 entre o governo do reino da Prússia liderado por Otto von Bismarck e a
Igreja Católica Romana liderada pelo papa Pio IX.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 73
25
Wartburgfest: festival de espírito nacionalista realizado em 1817 por estudan-
tes universitários no castelo de Wartburg, que serviu de refúgio a Lutero.
26
Hambacher Fest: festival realizado em 1832 no castelo de Hambach, deman-
dando a união nacional.
74 Lucie Varga
27
Rembrandt als Erzieher (Rembrandt como professor): livro de orientação na-
cionalista de Julius Langbehn (1851-1907).
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 75
III
28
Ver Fritz Jungmann. Autorität und Sexualmoral in der freiburgerlichen Ju-
gendbewegung dans Autorität und Familie (Studien aus dem Institut fü Sozial-
forschung) [Autoridade e moralidade sexual no movimento de Freiburg, com
autoridade e família (estudo do Instituto de Pesquisas Sociais)]. Paris, 1937, p.
669. [N. A.]
76 Lucie Varga
29
Reichsnährstand, Arbeitsfront, Reichakulturkarnmer, Arbeitsdienst: organis-
mos públicos referentes, respectivamente, a agricultura, trabalho, cultura e ser-
viço voluntário.
78 Lucie Varga
30
Alfred Rosenberg e Joseph Goebbels.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 79
31
Fuhrerprinzip: literalmente “Princípio do Líder”, sistema hierárquico de líde-
res que foi o fundamento jurídico do sistema político nacional-socialista.
32
Cf., sobre este assunto, Lucie Varga. “La Recherche historique et l’opposition
catholique en Allemagne”. Revue de Synthèse, t. XIII, fase 1, fev. 1937. [N. A.]
80 Lucie Varga
33
Junker: título honorífico dado à elite latifundiária.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 81
35
Reichsmark: moeda oficial na Alemanha de 1924 a 1948.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 83
36
Irmãos Gregor e Otto Strasser: líderes de uma vertente do Partido Nazista
que se opôs às ideias e práticas mais extremistas de Hitler, propondo uma es-
pécie de anticapitalismo socialista, ainda que de caráter nacionalista. Gregor foi
assassinado em 1934, durante o episódio que ficou conhecido como a “Noite
das Facas Longas”.
37
Bürger: hoje a palavra significa “cidadão”, mas antigamente referia-se aos mo-
radores das cidades, geralmente mais ricos e influentes do que os camponeses
e trabalhadores braçais, porém mais pobres e menos influentes que os nobres.
Um problema de método em
história religiosa: o catarismo1
(1936)
1
Publicado originalmente em Revue de Synthèse, t. XI, 1936, p. 133-146. Tra-
dução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Celso Castro, Dirceu Mar-
roquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas dos organizadores estão
indicadas como [N. do Org.].
2
Ver Jean Guiraud. Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge. Paris: Picard, 1935,
in-8, p. 427.
86 Lucie Varga
3
No entanto, o uso de fontes exige duas observações. Em primeiro lugar, não
deveríamos fazer uma classificação mais clara por períodos e regiões? Parece
que tal classificação teria permitido apreender melhor não apenas a coordena-
ção de diferentes sistemas cosmológicos, mas ainda um certo desenvolvimento
do catarismo ao longo do tempo. Uma fé que, inicialmente compartilhada ape-
nas por uma seita do século XII, se torna a religião dominante de uma província
tão rica e avançada como o Languedoc de então e que sofreu a derrota material
mais definitiva, não teria evoluído? Em segundo lugar, todos aqueles que, nos
últimos 20 anos, descrevem o catarismo têm utilizado amplamente, tomando-o
como característico, o Rituel cathare, coletado por [Leon] Cléodat [1887], mas
sem antes ter discutido a questão de saber se esse ritual era realmente cátaro e
sem tentar determinar a data precisa de sua redação. É lícito? Observe que esse
ritual, em vários pontos, contradiz claramente o que sabemos, além disso, sobre
o catarismo. Não seria este um documento tardio, datando do tempo em que
uma espécie de sincretismo de seitas ocorria no sul, cem anos depois da grande
derrota? Mas, vamos retomar tudo isso em outro lugar.
88 Lucie Varga
4
Ver o Cur Deus Meus [Por que Deus foi feito homem?] de santo Anselmo.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 89
5
Ignaz von Döllinger (1799-1890): historiador e teólogo católico alemão. [N.
do Org.]
92 Lucie Varga
6
Proibido pelo Conselho de Toulouse, em 1189, de penhorar os túmulos da
família e os utensílios dos artesãos (cartulário de Toulouse).
7
Ver os testamentos da burguesia de Toulouse.
8
O sr. Guiraud parece negligenciar a participação na seita desses estratos urba-
nos — os comerciantes militantes, a nobreza comercial da cidade —, à qual a alta
nobreza rural só mais tarde aderiu, depois de ter feito as pazes com as cidades
em contínua revolta. O coração da seita é a cidade em revolta. Em vez disso, o sr.
Guiraud aponta, sobretudo, minuciosamente, a nobreza fundiária.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 93
9
Que diferença ainda existe entre o ascetismo cátaro e o ascetismo católico?
Os polemistas católicos sentiram isso e o formularam em sua linguagem. Eles
escreveram contra o ascetismo “supersticioso”, contra o fato de que os cátaros
perfeitos não deveriam comer carne, leite, queijo, ovos, nada que fosse produto
da união entre macho e fêmea. Acrescento a polêmica de são Bernardo (Opera,
11; Migne, 1, 183, col. 1096s): “Porque na verdade estes se abstêm… dos alimen-
tos que Deus criou… E assim se provam hereges, não sem motivo, por que se
abstêm, mas sim porque se abstêm rigidamente. Pois eu também, às vezes, me
abstenho; mas a minha abstinência é satisfação pelos pecados, não superstição
por impureza. […] Abstive-me do vinho, pois nele há luxúria; ou, se estou fraco,
uso-o moderadamente, conforme o conselho de Paulo. Abster-me-ei das carnes,
para que, ao nutrir em excesso a carne, não nutram, também, vícios da carne.
Procurarei consumir o próprio pão com moderação, para que não fique enfa-
dado de rezar com o estômago sobrecarregado […], mas não me acostumarei
sequer a beber água pura, para que a distensão do ventre não chegue ao prurido
94 Lucie Varga
da luxúria. O herege é diferente. Pois ele abomina o leite e tudo o que dele é
feito: enfim, tudo o que é concebido por meio do ato sexual, corretamente e de
maneira cristã, não por causa do ato sexual em si, mas para não incitar ao desejo
sexual”. Não menos precisa, ainda, a característica dada por Ranierus Sachonus
(século XIII) ao ascetismo cátaro (Thesaurus Anecdotum, V; Martène-Durand
(org.), col. 1764s): “Agora, é necessário falar se os cátaros realizam suas obras
como satisfação pelos pecados que cometeram antes de professarem a heresia.
A isso eu digo que não, embora para os ignorantes possa parecer algo surpreen-
dente. Pois com frequência eles oram, jejuam e se abstêm de carne, ovos e queijo
durante todo o tempo. Mas existem três erros neles que fazem com que essas
obras não sejam satisfatórias. O primeiro é que afirmam que os pecados e a pu-
nição são totalmente perdoados por meio da imposição de suas próprias mãos
e orações. […] O segundo é que eles negam totalmente a existência de qualquer
punição purgatória infligida por Deus, assim como negam a punição temporal
que acreditam imposta pelo diabo nesta vida. Portanto, é preciso também dizer
que tais obras não lhes são impostas quando os cátaros estão em penitência,
ou seja, para o perdão de seus pecados. O terceiro é que cada um é obrigado a
realizar essas obras como preceitos de Deus. Assim, uma criança de dez anos,
que nunca cometeu nenhum pecado mortal antes de se tornar cátaro (ou seja,
perfeito), é obrigada a realizar essas obras da mesma forma que um idoso que
nunca cessou de pecar”.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 95
10
Alanus de Insulis [Alain de Lille], por exemplo.
96 Lucie Varga
1
Publicado originalmente em Revue de l’Histoire des Religions, v. 117, 1938, p.
205-231. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Celso Castro,
Dirceu Marroquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas dos organiza-
dores estão indicadas como [N. do Org.]. Suprimimos algumas poucas citações
de fontes em provençal antigo ou em latim, porém sem prejuízo para a com-
preensão do texto.
2
Ver Claude Fauriel. Histoire de la poésie provençale. Paris, 1845, II, p. 184.
3
Ver Hermann Reuter. Geschichte der religiosen Aufklarung Im Mittelalter Vom
Ende Des Achten Jahrhunderts Bis Zum Anfange Des Vierzehnten [História do
iluminismo religioso na Idade Média, do final do século VII ao início do século
XIV]. Berlim, 1875-1879.
4
Com exceção de Joséphin Péladan (Le Secret des troubadours, Paris, 1906) e de
Otto Rahn (Kreuzzug wider den Graal [Cruzada contra o Graal], Berlim, 1934).
5
Ver Karl Vossler. “Peire Cardenal, ein Satiriker aus dem Zeitalter der Albi-
genserkriege” [Peire Cardinal, um satírico na época das guerras albigenses].
Sitzungsberiche der Akademie der Wissenschaften. Heidelberg, 1916.
100 Lucie Varga
6
Ibidem, p. 46s.
7
Wilheim Schimidt, Célestin Douais e Guilem Molinier. [N. do Org.]
8
Ver Edmond Broeckx. Le Catharisme: étude sur les doctrines, la vie religieuse
et morale, morale, l’activité littéraire et tes vicissitudes de la secle cathare. Hogs-
traten, 1916.
9
Ver Jean Guiraud. Histoire de l’Inquisition au Moyen Age. Paris, 1935.
Peire Cardinal era herege? (1938) 101
10
Milão: ave de rapina [N. do Org.]
11
Sirvente ou “servente”: gênero medieval de caráter satírico praticado por tro-
vadores surgido no século XII, na Provença. [N. do Org.]
12
Isengrim, o Lobo: personagem das fábulas de “Renard, o raposo”, da literatu-
ra medieval do noroeste europeu, datadas do século XII. [N. do Org.]
13
Ver [André Berry (org., pref. e trad.)]. Florilège des troubadours. Paris, 1930,
p. 370 e 473; 384-385.
14
Massacre de Avignonet: massacre dos inquisidores na comuna francesa de
Avignonet, em 1242, perpetrado por cátaros, como vingança pela condenação à
fogueira de alguns dos seus. [N. do Org.]
15
Ver Bib. Nat. Coll. Doat, v. XXII, fl. 11. Comparar também: Alfred Joanrey,
La Poésie lyrique des troubadours (Toulouse/Paris, 1934, 11), p. 225. [Tradução
livre: “servindo boas pedras ou uma boa”. Falar em língua vernácula era conside-
rado evidência de possível heresia para a Inquisição. N. do Org.]
102 Lucie Varga
16
Ver Lucie Varga. Das Schlagwart vom finstern Millelatter. Wien-Leipzig, 1932,
p. 12ss.
17
Querela das Investiduras: conflito que opôs o papado ao Sacro Império Ro-
mano-Germânico entre 1075 e 1122. [N. do Org.]
18
João de Salisbury (c. 1120-1180): teólogo e clérigo católico, autor de diversas
obras. [N. do Org.]
19
Ver Mon. Germ. Libelli de Lille, III, p. 697.
20
Ver Paul Meyer (org.). Le Débat d’Izarn [Nogent-le-Retrou: Daupeley-Gou-
verneur], p. 275.
21
Referência a uma série de mudanças na Igreja Católica operadas pelo papa
Gregório VII (1073-1085). [N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 103
22
Ver Gallia Christiana VI, p. 59. Os legados papais eram emissários que ti-
nham anuência do papa para tomar as decisões em missões com fim definido.
[N. do Org.]
23
Ver Paul Meyer, Le Débat d’Izarn. Adicione-se a carta de Henri de Clairvaux
sobre a heresia albigense (Patr. Lat., 204, col. 234ss) e aquela do legado Pierre
Chrysogone (patr. lat., 199, col. 1120ss).
24
Ver dom Claude Devic e dom Joseph Vaissète. Histoire [générale] de Langue-
doc, v. V. Toulouse: [J.-B. Paya, 1875], p. 341, 342, 346, 361, 384 etc., 884, 994,
1.098 etc.
104 Lucie Varga
25
Ver Hermann Suchier. Provençalische Beichtformeln. Romanische Forschun-
gen [Fórmulas tradicionais da Provença: pesquisa românica], t. 23, 1907, p. 247.
Nós lemos nas fórmulas de confissões no século XII: “De primo precepto. Pre-
mieramens en aquel comandamen que dis Non adorabis Deum alienum” [“So-
bre o primeiro mandamento. O primeiro e mais importante é o mandamento
que diz: Não adorarás um outro Deus”. N. do Org.]
26
Ver Alain Jeanroy. Anthologie des troubadours. Paris, 1928, no 9, estrofe III; no
10, estrofe III; no 13, estrofe IV etc.
27
Ibidem, no 8, estrofes 26 e 27.
Peire Cardinal era herege? (1938) 105
30
Ver Lecoy de La Marche (org.). Étienne de Bourbon, p. 299. [Há aqui uma
afirmação na crença da Trindade cristã: Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo.
Tradução livre: “Eles acreditam que é o Pai quem transforma o outro em bem;
quem se converte é o Filho; aquilo pelo qual Ele se converteu e no qual é conver-
tido, o Espírito Santo: e isso eles entendem quando dizem que acreditam no Pai,
no Filho e no Espírito Santo; Cristo foi concebido, nasceu e sofreu […], como
consta no símbolo”. N. do Org.]
31
Ibidem, p. 298. [“Que todo homem bom seja filho de Deus”. N. do Org.]
32
Ver Bernard Gui. In: Gui de Mollat (org. e trad.). Manuel de l’inquisiteur.
Paris, s. d., p. 14-15. [Tradução livre: “Negam que a mesma bem-aventurada
Virgem Maria tenha sido a verdadeira mãe de Jesus Cristo, e que tenha sido uma
Peire Cardinal era herege? (1938) 107
mulher carnal, mas dizem que a sua seita e a sua ordem é a Virgem Maria, ou
seja, a verdadeira penitente, casta e virgem que gera os filhos de Deus quando
são aceitos na mesma seita e ordem”. N. do Org.]
33
Ver Ignaz von Döllinger. Beiträge zur Sekte Geschichte im Mittelalter [Contri-
buição para a história da seita na Idade Média]. [Darmstadt: Wissenschaftiiche
Buchgeselischaft], p. 184 e 286.
34
Ibidem, II, p. 25, 28, 31.
108 Lucie Varga
35
Bibliografia em Jean Guiraud, op. cit., p. xvi-xviii.
36
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 208; II, p. 213. […]
37
O que nos coloca além de 1200. Os depoimentos, assim como as grandes
somas, não datam do século XII, e este é outro defeito das fontes cátaras.
38
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 213.
Peire Cardinal era herege? (1938) 109
39
Moneta de Cremona, Rainer Sachoni, Alain de Lille.
40
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 198. [A citação direta do texto: “Era bom fazer
caridade aos hospitais, porque os hospitais faziam o bem a todos os que a ele
vinham, mas as indulgências dadas pelos prelados em prol das necessidades ou
obras das igrejas não tinham valor algum […]. Da mesma forma, ele ouviu do
herege que fazer caridade a qualquer pessoa era uma boa ação, a ponto de que,
se alguém fizesse caridade ao diabo por Deus, Deus recompensaria essa carida-
de, mas ele dizia que era uma caridade maior fazer o bem aos hereges do que aos
outros”. N. do Org.]. Ou este outro depoimento, do mesmo meio (ibidem, II, p.
197): “Nulla res terrena umquam ascenderet ad coelum, licet Deus renumeraret in
cœlo animam, quœ fecisset elemosynam terrenam; e sic dicebat eleemosynam ter-
renam ascendere in cœlum, quia merces in cœlo reddebatur pro terra eleemosyna”
[“Nada terreno jamais ascenderia ao céu, embora Deus recompensasse no céu a
alma que tivesse feito caridade na Terra; e assim ele dizia que a caridade terrena
ascenderia ao céu, porque a recompensa no céu era dada em troca da caridade
na Terra. N. do Org.].
110 Lucie Varga
41
Ver Lucie Varga. “Le Catharisme”. Revue de Synthèse, jun. 1936, p. 136ss.
42
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 161.
43
Ibidem, p. 162. [Tradução livre: “Os horrores de outros homens seriam rá-
pidos”. N. do Org.]
44
Ver Carl A. F. Mahn. Die Werke der Troubadours in provenzalischer Sprache
[As obras dos trovadores na Provença]. Berlim, 1885, II, p. 208.
Peire Cardinal era herege? (1938) 111
45
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 199. [Tradução livre: “Além disso, ele acredi-
tava que, embora Deus fosse bom, o Pai celestial, nunca descesse do céu, nem
assumisse um corpo humano terreno, no entanto, enquanto estava no céu, Ele
possuía um corpo humano celestial, não terreno, semelhante em forma e figura
ao corpo humano terreno”. N. do Org.]
46
Ver François J. M. Raynouard. Lexique roman, I. [Paris: Silvestre, 1838], p. 460.
112 Lucie Varga
47
Os cátaros se referem ao Êxodo, 13-14.
48
Ver Hans von Jonas. Gnosis und spätantiker Geist [Gnose e espírito antigo
tardio]. Gôttingen, 1934, cap. “Der fremde Gott” [O Deus estrangeiro].
Peire Cardinal era herege? (1938) 113
54
Bernard Gui, op. cit.; Rainer Sachoni, op. cit., col. Ignaz von Döllinger, op.
cit., II, p. 170.
Peire Cardinal era herege? (1938) 115
55
Para a expressão “suas almas”, comp. a “súmula”, in Duais (org.), op. cit., p.
118. No último dia, Jesus Cristo virá para julgamento “in quo die illas Dominus
Jhesu Christus suas animas a diabolo deceptas… vocabit ad regnum” [Tradução
livre: no dia em que o Senhor Jesus Cristo chamará essas almas enganadas pelo
diabo… para o reino. N. do Org.]
56
Antologia, pp. 398-399; Vossler, op. cit., p. 46. Tradução: “Vou surpreender
todos os seus tribunais quando ouvirem meu argumento. Eu digo que ele erra
por conta própria se ele pensa em destruí-los e condená-los, pois quem perder o
que poderia ganhar por direito sofre pobreza em abundância. Ele deve ser cheio
de bondade e mantém com você mais e mais de suas almas moribundas. Já sua
porta não deve se fechar sem que são Pedro se envergonhe muito, pois ele é o seu
porteiro, mas deixe que qualquer alma desejosa de entrar nela entre sorrindo.
Porque se nunca corra efeito não será perfeito se um chorar enquanto o outro
ri. Ele pode ser um rei muito grande e poderoso; se ele não nos deixar entrar,
vamos responsabilizá-lo”.
57
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., I, p. 154.
58
Ibidem, II, p. 71.
116 Lucie Varga
59
Ver Paul Meyer, “Le Débat d’Izarn et de Sicarl de Figueiras”. Annuaire-Bulle-
tin de la Société de l’Histoire de la Frace, 1879, p. 49ss; Boneca., II, p. 11.
60
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 177.
61
Tradução: “Ele deveria despojar os demônios de seu poder, e não há mais
almas para ele; deserdação agradaria a todos, e ele poderia muito bem perdoar
a si mesmo. Com toda a minha vontade que ele destrua todos eles, todos nós
sabemos que ele poderia ser absolvido. Belo Senhor Deus, portanto, tire esses
inimigos importunos e prejudiciais”.
Peire Cardinal era herege? (1938) 117
62
Ver Alanus de Insulis [Alain de Lille], patr. lat., p. 205, col. 309. [Tradução
livre: “Deus fez estas coisas visíveis, ou Ele poderia tê-las feito incorruptíveis
ou não; se Ele não pudesse, Ele foi impotente; se Ele pudesse e não quis, Ele foi
invejoso”. N. do Org.]
63
Ver Izarn in Paul Mayer, op. cit., p. 26. “E tu dizes d’aquels que trobaran salut,
que tornaran en gloria lai don foron mogut!”.
64
Ver Florilège, p. 401.
65
Ver Moneta de Cremona, op. cit., pág. 4. Rituel cathare recolhido por Cléo-
dat, Paris, 1888, p. ix: “Pois muitos são os nossos pecados, com os quais ofende-
mos a Deus a cada dia. Noite e dia, em palavra e ação, e em pensamento, com
vontade e sem vontade, mais por nossa vontade do que os espíritos malignos nos
trazem a carne que vestimos.”
118 Lucie Varga
66
Tradução: “Pela graça, rogo-lhe, Santa Maria, seja uma boa guia para nós
com seu filho. Acolha pais e filhos e coloque-os lá onde está são João”.
67
Ignaz von Döllinger, op. cit., p. 181. [Tradução livre: “Deus e Santa Maria por
aqueles que permanecem neste mundo”. N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 119
68
Ver Florilège, p. 386-387. [Tradução livre: “Deus verdadeiro e misericordioso,
Senhor, seja nosso protetor, afaste as dores do inferno dos pecadores.” N. do
Org.]
69
Ver Paul Meyer. Anciennes poésies religieuses en Langue d’Oc. Toulouse, 1860,
p. 14, n. 1. [Tradução livre: “Com este nome admirável, Defende-me do diabo,
Do inferno e do tormento.” N. do Org.]
120 Lucie Varga
70
Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 207.
71
Ibid., II, p. 216. [Tradução livre: “Quando a alma sai do corpo dela ou do
corpo de uma besta, enquanto estiver encarnada em outro corpo, ela não pode
encontrar descanso, porque o fogo de Satanás ou de deuses estrangeiros a quei-
ma por completo. Mas quando ela está encarnada em um corpo, o descanso é
imediato e ela não sofre dor do mencionado fogo”. N. do Org.]
72
Tradução livre: “E salva-os do pecado em que foram apanhados e amarrados,
e concede-lhes o verdadeiro perdão por confissão verdadeira”. [N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 121
73
Ver Carl A. F. Mahn, op. cit., II, p. 199.
74
“Ε recebre lui a patz e en la sua concordia”. Rituel cathare, op. cit., p. XIV.
Ignaz von Döllinger, op. cit., passim sobre o “beijo da paz”.
75
Ver Camille Chabaneau, op. cit.; Paul Meyer. Anciennes poésies religieuses
en langue d’Oc, Toulouse, 1860; Hermann Suchier, Mariengebele, Halle, 1877.
122 Lucie Varga
76
Chabaneau, op. cit., p. 9 e 25.
77
Ver Hermann Suchier, op. cit., p. 44. Sem data, provavelmente do início do
século XIII.
78
Ver Florilège, p. 388.
Peire Cardinal era herege? (1938) 123
79
Idem; tradução: “Farei uma poesia que será muito sábia, em novas palavras,
de arte e teologia. Eu creio em Deus, que nasceu de mãe, de uma donzela sa-
grada, por quem o mundo é salvo, e como pai e filho da Santa Trindade, em
três pessoas que são uma; e eu acredito que o céu não era traspassado por ele, e
que expulsou os anjos, quando os encontrou condenados. E eu acredito que são
João o segurou nos braços e o batizou na água do rio quando ele apareceu. E eu
conheço o sinal bem antes de ele nascer, no lado direito do peito de sua mãe.
E creio que, em Roma e são Pedro, foi ordenado o julgamento da penitência
do que faz sentido e do que é loucura […]. Acaba minha poesia, que é bem
elaborada e que se baseou em literatura e teologia, e se eu disse errado, faça-me
ser perdoado, eu disse isso para que Deus fosse mais amado, e o clero, menos
estimado” (p. 389).
124 Lucie Varga
morso. Eles não iam à igreja católica, dizendo que ali se podia
rezar para Deus como em qualquer outro lugar?80 Não fingiam
observar domingos e dias de festa?81 Fizeram até o sinal da cruz
“para espantar as moscas que te incomodam. É um gesto que
vale outro”.82 Da mesma forma, tiveram seus mortos sepulta-
dos pela Igreja Católica. E os próprios hereges abençoaram os
túmulos com água como os católicos fazem: “Non est magnum,
si homo sustinet tres vel quattor guttas aquæ qui plures homo
sustinet, quando vadit per viam, et propter hoc homo non di-
mittat viam”.83
Vamos resumir. A teoria de que Peire Cardinal (e outros
que não são objeto deste estudo) era herético não surpreende.
Ao examinar mais de perto os textos “suspeitos”, comparan-
do-os não com concepções um tanto esquemáticas de somas
polêmicas, mas com fontes que parecem mais próximas da rea-
lidade cátara, a suspeita torna-se quase uma certeza. O estudo
dos poemas de Peire Cardinal, em relação a um catolicismo
mal definido no tempo e no espaço, nos levaria a falsas con-
clusões quanto à sua ortodoxia. Mas, em comparação com o
catolicismo do Languedoc dos séculos XII e XIII, eles diferem
fundamentalmente em tom e atitude.
Atrevemo-nos a ir mais longe? Ou seja, partir da convicção
de um herético Peire Cardinal e usar sua obra como uma fonte
cátara de primeira mão, que poderia nos trazer novas luzes e
preencher muitas lacunas que permanecem no próprio campo
das doutrinas cátaras?
80
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 171.
81
Ibidem, II, p. 169.
82
Idem.
83
Ibidem, II, p. 170. [Tradução livre: “Não é muito se uma pessoa carrega três
ou quatro gotas de água, mas quando alguém carrega mais água ao ir por um
caminho, por isso, não deveria abandonar a estrada”. N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 125
84
Ver Jean Guiraud, op. cit., cap.VI.
85
A que é conhecida como “cruz cátara” possui os braços em igual compri-
mento e é frequentemente entrelaçada ou sobreposta por um círculo nas suas
representações mais usuais. [N. do Org.]
86
Florilège, p. 402-4.
126 Lucie Varga
87
Tradução: “Das quatro pontas da cruz, a de cima olha para o firma-
mento, a outra aponta para os abismos a baixo, e a outra aponta para o les-
te, e o outro está voltado para o oeste. E isso mostra que Cristo tem tudo em
seu poder. A cruz é o verdadeiro estandarte do rei, ao qual pertence tudo o
que existe, que o homem deve seguir em todas as estações fazendo sua
vontade. Porque quanto mais nos exercitamos, mais ganhamos. E qual-
quer homem, que está com ele, pode ter certeza estar em um bom lugar.
Cristo morreu por nós na cruz e, ao morrer, destruiu a morte. Na cruz, ele ven-
ceu, orgulhoso, neste bosque para o qual a multidão se apressou. Na cruz ele fez
nossa salvação, e na cruz ele reinou e reina. Na cruz ele quer nos redimir. Foi
uma coisa milagrosa, que na madeira da morte nasceu para nascermos com vida
e perdão e descansamos neste lugar de tormenta”.
Peire Cardinal era herege? (1938) 127
88
Tradução de André Berry, op. cit., p. 403.
89
Tradução: “Quem toma a cruz colhe o doce fruto, e seguindo Cristo aonde se
deve: Cristo é o fruto do Conhecimento”.
90
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 227. [Tradução livre: “O filho de Deus
veio ao mundo para mostrar aos espíritos que desceram do céu o caminho, pelo
qual eles próprios chamaram o povo de Israel a fim de que voltassem ao céu, de
onde haviam caído”. N. do Org.]