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Coleção

ALÉM DO CÂNONE
O mais importante, porém, é perceber como Este livro reúne textos de Lucie Varga Celso Castro Este livro reúne textos de uma autora quase Celso Castro

LUCIE VARGA
eles podem ser alinhavados pelo olhar analí- (1904-1941), uma autora praticamente Dirceu Marroquim desconhecida não apenas no Brasil, mas no Dirceu Marroquim
tico e rigoroso de Lucie. É possível observar desconhecida no Brasil e no mundo. Sua mundo todo. Lucie Varga nasceu na Áustria,
(orgs.) (orgs.)
o esmaecer das fronteiras disciplinares, com vida curta foi marcada pela ascensão do em 1904, e morreu em 1941 na França do-
uma atenção precisa às fontes utilizadas e nazismo e pela guerra, em um contexto minada pelos alemães, aos 36 anos. Ela foi
aos métodos a que recorreu. Trata-se de no qual ser judia, imigrante e antifascista praticamente esquecida desde então.
uma consciência radical de que o passado representava, por si só, um ato de
Não é difícil entender os motivos e a natu-
está prenhe do presente e vice-versa; e de resistência. Sua obra foi esquecida, apesar
reza desse esquecimento. Basta mencionar
que o amanhã e o depois de amanhã estão, de ter sido a primeira mulher a publicar
a conjunção entre alguns elementos biográ-
em alguma medida, ligados ao anteontem. regularmente na revista Annales, marco
ficos e o contexto histórico em que Lucie
da historiografia francesa. Seus textos
Por que publicar Lucie Varga após esse Varga viveu. Ela morreu jovem, em meio a
transcenderam fronteiras disciplinares,
longo esquecimento? Pela potência de seu uma guerra mundial; era mulher, judia, imi-
oscilando entre a história e a etnografia.
olhar sobre a realidade social e pelo muito grante e antifascista. Para ela, viver naquela
Os textos aqui selecionados retratam o
que podemos apreender com ele. época era muito perigoso.
percurso de uma pesquisadora que se
preocupava com as questões centrais do Lucie Varga trabalhou na edição da revista

Celso Castro . Dirceu Marroquim


Celso Castro é doutor em antropologia social momento em que vivia, com uma radical Annales, criada em 1929 por Lucie Febvre

LUCIE
(UFRJ/ Museu Nacional) e professor da Escola consciência do presente na construção das e Marc Bloch, um marco da “Nova História”
de Ciências Sociais FGV CPDOC. Organizou narrativas sobre o passado. Sua abordagem francesa, tendo sido a primeira mulher a
analítica e rigorosa revela um olhar aguçado

LUCIE VARGA
Além do cânone: para ampliar e diversificar as publicar, regularmente, na revista. Ela é uma
ciências sociais (FGV Editora, 2022).

Dirceu Marroquim é doutor em história social


sobre seus campos de pesquisa, que nos
convida, incessantemente, à reflexão.
pesquisadora difícil de se classificar em ter-
mos de fronteiras disciplinares. Sem dúvida VARGA
era uma historiadora, disciplina na qual se
(USP) e atualmente está como professor na Entre as mentalidades e o tempo presente formou. Alguns de seus textos, contudo,
Entre as mentalidades e
Universidade Federal de Pernambuco, no o tempo presente

(orgs.)
ISBN 978-65-5652-274-6
especialmente dois aqui reunidos, podem,
Departamento de Fundamentos Sócio-Filosó-
também, ser lidos como escritos de uma
ficos da Educação. É sócio efetivo do Instituto Rua Jornalista Orlando Dantas, 9
etnógrafa. CEP 22.231-010 | Rio de Janeiro | RJ
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernam- Tel.: (21) 3799-4427
9 786556 522746
editora@fgv.br | www.editora.fgv.br
bucano. www.editora.fgv.br
Celso Castro
Dirceu Marroquim
(orgs.)

LUCIE VARGA
Entre as mentalidades e o tempo presente
Copyright © 2024 Celso Castro e Dirceu Marroquim

Direitos desta edição reservados à


FGV EDITORA
Rua Jornalista Orlando Dantas, 9
22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil
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o
todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei n 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor.

1a edição: 2024

Preparação de originais: Angela Vianna


Projeto gráfico de miolo e diagramação: Ilustrarte Design
Revisão: Michele Mitie Sudoh
Capa: Estúdio 513
Foto da capa: Derstandard.at

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Lucie Varga : entre as mentalidades e o tempo presente / Celso Castro, Dirceu


Marroquim (organizadores). - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2024.
128 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5652-273-9

1. Historiografia. 2. Varga, Lucie, 1904-1941. I. Castro, Celso, 1963-. II.


Marroquim, Dirceu. III. Fundação Getulio Vargas.

CDD – 907.2

Elaborada por Mariane Pantana Alabarce – CRB-7/6992


Sumário

Apresentação 7

No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 25


A gênese do nacional-socialismo: notas de análise
social (1937) 55
Um problema de método em história religiosa:
o catarismo (1936) 85
Peire Cardinal era herege? (1938) 99
Apresentação

Este livro reúne quatro textos de uma autora quase desconheci-


da não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Lucie Varga nas-
ceu na Áustria, em 1904, e morreu em 1941 na França domina-
da pelos alemães, aos 36 anos. Ela foi praticamente esquecida
desde então, até ser “descoberta”, em 1991, pelo historiador ale-
mão Peter Schöttler, que publicou o livro Les Autorités invisi-
bles: une historienne autrichienne aux “Annales”1 Seu primeiro
(e único) texto publicado em português apareceu em 2022, em
um capítulo de Além do cânone, aqui republicado.2 Uma pes-
quisa na internet resulta em apenas uma única foto dela.
Por que publicar Lucie Varga após esse longo esquecimen-
to? Respondamos em uma frase: pela potência de seu olhar
sobre a realidade social e pelo muito que podemos apreender
com ele. Esperamos que a disseminação de seus textos gere em
outros leitores o mesmo encantamento que nos marcou.
Não se trata, aqui, de investigar a fundo os motivos e a na-
tureza desse esquecimento. Basta mencionar a conjunção en-
tre alguns elementos biográficos e o contexto histórico em que
Lucie Varga viveu. Ela morreu jovem, em meio a uma guerra
mundial; era mulher, judia, imigrante, antifascista e diabética.

1
Ver Lucie Varga. Les Autorités invisibles: une historienne autrichienne aux “An-
nales”. Paris: Le Cerf, 1991. Coleção Bibliothèque Franco-Allemande.
2
Ver Celso Castro (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências
sociais. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2022, cap. 8.
8 Lucie Varga

Para ela, viver naquela época era muito perigoso. Além disso,
Lucie foi uma pesquisadora difícil de se classificar em termos
de fronteiras disciplinares. Sem dúvida era uma historiadora,
disciplina na qual se formou. Seus textos, contudo, especial-
mente os dois primeiros aqui reunidos, podem, também, ser
lidos como escritos de uma etnógrafa. O mais importante, po-
rém, é perceber como eles podem ser alinhavados pelo olhar
analítico e rigoroso de Lucie. É possível observar o esmaecer
das fronteiras disciplinares, com uma atenção precisa às fon-
tes utilizadas e aos métodos a que recorreu. Trata-se de uma
consciência radical de que o passado está prenhe do presente e
vice-versa; e de que o amanhã e o depois de amanhã estão, em
alguma medida, ligados ao anteontem.
Antes de abordarmos cada um dos textos aqui reunidos e
suas respectivas contribuições, façamos uma rápida passagem
sobre a sua breve vida e sobre o contexto intelectual no qual
Lucie estava inserida. Esse sobrevoo nos ajudará a entender al-
gumas das formulações conceituais feitas pela autora, as apro-
ximações e os distanciamentos em relação às geografias físicas e
disciplinares por onde transitou.3

3
A principal fonte para as informações biográficas de Lucie Varga é o livro
de Peter Schöttler, acima mencionado. Foi útil também o capítulo de Ronald
Stade, “‘In the Immediate Vicinity a World Has Come to an End’. Lucie Varga
as an Ethnographer of National Socialism: A Retrospective Essay”, in: Richard
Handler (org.). Excluded Ancestors, Inventible Traditions: Essays Toward a More
Inclusive History of Anthropology (Madison: WI, University of Wisconsin Press,
2000, p. 265-283). No Brasil, há o texto de Jougi Guimarães Yamashita, “Lucie
Varga: a ‘desconhecida’ historiadora dos Annales” (Café História, 3 jul. 2017;
disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales/>).
Apresentação 9

Lucie nasceu em 21 de junho de 1904 em Baden, próximo a


Viena, com o nome de Rosa Stern, em uma família judaica de
classe alta originária da Hungria. Ainda jovem, decidiu adotar
o nome de Lucie. O sobrenome Varga veio do casamento, em
1923, com o médico húngaro Josef Varga. Nesse mesmo ano,
concluiu o ensino médio. Em julho de 1925 nasceu sua única fi-
lha, Berta. No ano seguinte ingressou na Universidade de Vie-
na, dedicando-se ao estudo de história medieval e moderna e,
secundariamente, à história da arte. Concluiu o curso em 1931,
com a tese Das Schlagwort vom “finsteren Mittelalter [O bordão
da Idade das Trevas] sobre a origem do uso da expressão “Idade
das Trevas”, para se referir à Idade Média. Seu orientador foi
Alphons Dopsch (1868-1953), um importante professor de his-
tória e amigo de dois historiadores franceses que se tornariam
muito famosos: Marc Bloch e Lucien Febvre.
O casal Varga se separou em 1932. No ano seguinte, Lucie
casou-se com Franz Borkenau (1900-1957), historiador e mili-
tante de esquerda que tinha uma bolsa de pesquisa no Instituto
de Pesquisas Sociais de Frankfurt (a “Escola de Frankfurt”).
Juntos, deixaram a Áustria em 1934, diante da crescente onda
de antissemitismo e do avanço do nazismo em amplos seto-
res da sociedade. Ela foi para Paris, interessada em pesquisar,
nos arquivos e bibliotecas franceses, a religião dos cátaros; já
Borkenau seguiu em 1935 para Londres, onde trabalhou com
o famoso antropólogo polonês Bronisław Malinowski. Com a
distância, em pouco tempo o casamento terminou.
Em Paris, Lucie trabalhou na edição da revista Annales,
criada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. A revista é um
marco da “Nova História” francesa, da qual os dois editores são
considerados “pais fundadores”. A partir de uma recomendação
de Dopsch, em 1935, Febvre contratou Lucie como assistente.
Ela viria a ser a primeira mulher a publicar, regularmente, nos
10 Lucie Varga

Annales, com um total de três artigos e seis resenhas. De assis-


tente, Lucie logo passou a autora independente e colaboradora
de Febvre. Além disso, tornaram-se amantes. Juntos, fizeram o
projeto de escrever um livro. Isso não se concretizou, talvez por-
que, no início de 1937, Febvre rompeu o relacionamento após sua
mulher, Suzanne, obrigá-lo a tomar uma decisão. Febvre optou
pela família e fez, em seguida, uma longa viagem de três meses
ao Uruguai e à Argentina. Quando estava retornando à França,
seu navio fez uma escala no porto de Santos, onde embarcou o
jovem historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), que se
tornaria não apenas um grande amigo, como também seu her-
deiro intelectual. Braudel havia chegado a São Paulo em 1935,
para lecionar na recém-criada Universidade de São Paulo (USP).
Para Lucie, o rompimento com Febvre foi devastador. Ela
perdeu o amante e o emprego; logo depois, em março de 1938,
ocorreu o Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha na-
zista, o que impôs a suspensão do apoio financeiro que a mãe
de Lucie lhe dava, essencial à sua sobrevivência. Lucie teve, en-
tão, que trabalhar para sustentar a si e à filha: primeiro como
vendedora; depois como operária. Em 1938, fez um casamento
de conveniência para adquirir cidadania francesa — uma for-
ma de escapar das leis cada vez mais restritivas em relação aos
emigrantes.
Em 1940, Lucie e a filha Berta estão na pequena vila de Pri-
bac, próxima a Toulouse. Vivem miseravelmente: Lucie dá aulas
particulares de alemão para um único aluno e fabrica conser-
vas de espinafre. Diabética desde a juventude, lidava com uma
doença então difícil de ser tratada. Com a guerra, sua doença
se agravou, pois a disponibilidade de insulina diminuiu. Lucie
morreu em um hospital de Toulouse em 26 de abril de 1941, aos
36 anos. Seu pai e sua avó conseguiram fazer com que Berta
fosse para a Hungria; ambos morreriam no Holocausto, mas
Apresentação 11

Berta sobreviveu à guerra e ao genocídio e se tornou médica


neurologista em Budapeste, onde viveu até sua morte em 2013.

Lucie Varga, como vimos, teve sua formação acadêmica na


Áustria, sob a orientação de Alphons Dopsch. Chegada à Fran-
ça, em 1934, passou a trabalhar com Febvre e, a partir daí,
desenvolveu uma pesquisa sobre os cátaros no século XII, a
respeito dos quais nos deteremos mais adiante. Ao cruzar o
rio Reno, aos 30 anos, diante do turbilhão de transformações
políticas daquele momento, ela trazia consigo as marcas de
seu processo formativo, das tradições acadêmicas do mundo
germânico, sobretudo do historicismo alemão tão debatido ao
longo do século XIX. Ao mesmo tempo, deslocava-se para o
epicentro das transformações na disciplina de história, que se
consolidava na França e que tinha Lucien Febvre e Marc Bloch
como seus principais propagadores.
As trocas acadêmicas entre esses dois polos, o mundo ger-
mânico e o francês, eram constantes e longevas. Além do
amplo diálogo com teóricos da sociologia, da psicologia e da
geografia, havia uma tentativa de aproximar os próprios pes-
quisadores do campo da história do que estava sendo produ-
zido e pensado pelos franceses. Os congressos internacionais
eram exemplos desses esforços, como o de 1928, em Oslo, onde
Bloch conheceu pessoalmente Alphons Dopsch e a respeito do
qual escreveu algumas linhas na primeira edição dos Annales,
em 1929. Essas reuniões permitiam a circulação de ideias que
intercambiavam interesses de pesquisa. Foi o caso do encontro
com o próprio Dopsch, que é mencionado nas correspondên-
cias entre Bloch e Febvre já em 1928. O historiador alemão foi
criticado por ambos, sobretudo por Bloch, por escrever textos
12 Lucie Varga

com “pobreza de análise”.4 Nas missivas, o historiador francês


aponta que: “Dopsch e seus alunos teriam uma formação defi-
citária nas questões jurídicas”.5 Essa crítica poderia ser amplia-
da para outros pesquisadores do mundo germânico.
Herdeiro do historicismo alemão (Historicismus), ou in-
fluenciado pelas ideias que o circundavam, Dopsch, como
observa Peter Shöttler, “rejeitou o uso de conceitos teóricos
modernos no estudo dos fenômenos medievais”.6 Outro exem-
plo semelhante pode ser verificado no livro do historiador vie-
nense Otto Brunner, que, ao analisar o contexto da Áustria,
apontava o fato de que as pesquisas anteriores “impuseram as
categorias modernas à realidade medieval”.7 Ou seja, tratava-
-se de um problema teórico-metodológico. Na França, o debate
seguia outro curso. A proposta daquilo que viria a ser conhe-
cido como Escola dos Annales, sobretudo nessa primeira fase
de consolidação institucional, centrava-se muito na promoção
da história das mentalidades, embora esse nome só se firmas-
se posteriormente: a análise das crenças, valores e atitudes de
grandes coletividades ao longo do tempo.
Mesmo que noções distintas sejam mobilizadas para ex-
pressar a ideia de mentalidade, Lucien Febvre já afirmava, em
1938, que “as grandes descobertas têm lugar nas próprias fron-

4
Ver Sabrina Magalhães Rocha. Lucien Febvre, Marc Bloch e as ciências históri-
cas alemães (1928-1944). Ouro Preto: Edufop/PPGHIS, 2012, p. 93.
5
Ibidem, p. 94.
6
Ver Peter Shöttler. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autrichie-
nne aux “Annales” dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991, p. 102.
7
Ver Otto Brunner. Land and Lordship: Structure of Governance in Medieval
Austria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1984, p. xx. Sobre o his-
toricismo e as variadas apreensões do seu significado há o interessante texto de
Georg G Iggers, “Historicism: The History and Meaning of the Term” (Journal of
the History of Ideas, v. 56, n. 1, jan. 1995, p. 129-152).
Apresentação 13

teiras das ciências”.8 Ele se referia, precisamente, à interlocu-


ção entre a história e a psicologia, entendendo que esta deveria
interpor um percurso necessário à interpretação do passado:

[…] inventariar, primeiro em pormenor, depois reconstituir em


relação à época estudada o material mental de que dispunham os
homens dessa época; por um poderoso esforço de erudição, mas
também de imaginação, reconstituir o universo, todo o universo
físico, intelectual, moral no meio do qual se moveu cada uma das
gerações que o precederam.9

O argumento centrava-se na percepção de que a história


não deveria ser limitada à narrativa encadeada de eventos e da-
tas, mas mergulhar nas percepções e mentalidades das pessoas
do passado.
Quando Lucie Varga chegou a Paris, essas perspectivas já se
mostravam consolidadas. A revista Annales havia se firmado na
construção do que posteriormente seria entendida como uma
Escola. Pode-se asseverar, nesse sentido, que os textos reunidos
nesta coletânea refletem, precisamente, o tempo no qual foram
escritos e a transformação de uma pesquisadora que passava
a lidar com outras perspectivas de seu ofício, que se somavam
às suas formações prévias. Arguta observadora das práticas de
investigação, Lucie se situa nesse debate metodológico mobili-
zando ideias análogas ao que seriam as mentalidades, mas ao
mesmo tempo apresentando reflexões pertinentes sobre como
a construção do conhecimento está atravessada por temporali-
dades presentes e passadas.

8
Ver Lucien Febvre. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989,
p. 205.
9
Idem, p. 215.
14 Lucie Varga

Essa radical preocupação com o presente, de alguém que


trazia consigo a inquietude de manter sempre os ouvidos e
olhos atentos aos contextos de produção do conhecimento, nos
coloca diante da sua singularidade como pesquisadora. É uma
investigadora que mostra a sua potência nas dezenas de rese-
nhas de livros que escreveu, algumas delas a pedido de Lucien
Febvre e publicadas em periódicos franceses.10 Este é, precisa-
mente, o caso de uma resenha crítica feita pela autora, intitu-
lada “La Recherche historique et l’opposition catholique en Al-
lemagne”,11 que aborda a questão da “objetividade” da história,
de como o presente lança questões incontornáveis para o pas-
sado. Ela situa os autores e o quanto os seus aportes metodo-
lógicos apresentam problemas para o tempo no qual escrevem,
percebendo como os posicionamentos políticos interferiam nas
miradas sobre o passado.
Assim, Lucie Varga estava entre a velha tradição historicista
do mundo germânico e os novos empreendimentos metodoló-
gicos praticados na França dos anos 1930. Uma pesquisadora
que construía seus próprios caminhos de interpretação históri-
ca com inteligência e sofisticação nas suas análises. É o tipo de
produção que ensina o ofício, que generosamente oferece olha-
res singulares e que contribui para repensar as nossas próprias
práticas de pesquisa.

*
10
Em uma carta escrita por Febvre a Bloch, esta dimensão fica evidente: “Acabo
de enviar para impressão uma resenha (uma nota) sobre um bizarro volume
de filosofia nazista a respeito da Autarkie, que a sra. Varga escreveu sob mi-
nha orientação. […] Penso que é tolice não empregar esta ‘mão de obra’ dos
emigrados, canalizando-a e regulamentando-a”. O trecho foi citado por Sabrina
Magalhães Rocha (op. cit., p. 98).
11
Ver Lucie Varga. “La Recherche historique et l’opposition catholique en Alle-
magne”. Revue de Synthése, t. XIII, fev. 1937.
Apresentação 15

Os artigos que aqui selecionamos podem ser agrupados em


dois blocos. O primeiro é composto pelos textos “No vale
de Vorarlberg: de anteontem até hoje” (1936) e “A gênese do
nacional-socialismo: notas de análise social (1937)”. O se-
gundo traz os textos: “Um problema de método em história
religiosa: o catarismo” (1936) e “Peire Cardinal era herege?”
(1938). Escritos em um momento muito profícuo da trajetória
da autora, apesar de todas as adversidades pessoais, refletem
contribuições significativas para as ciências sociais como um
todo. Além do conteúdo tratado em cada um dos artigos, eles
nos oferecem um farto material para reflexões metodológicas.
Sobre os dois primeiros há pouca informação a respeito dos
seus processos de produção, mas alguns indícios tornam pos-
sível apontar caminhos nesse sentido. Entre os anos de 1935 e
1936, durante as férias de verão, Lucie Varga fez viagens pe-
los Alpes. Em algumas delas estava acompanhada de sua filha
Berta, que a essa altura tinha cerca de dez anos, além de Henri
Febvre, filho do historiador francês, alguns anos mais velho
que Berta.12 Foi a partir dessa experiência que escreveu o pri-
meiro texto aqui incluído, e que viria a ser o primeiro artigo que
publicou nos Annales. Também é o mais etnográfico de seus es-
critos, influenciado por Malinowski. Lucie conheceu o já então
famoso antropólogo por meio do marido, Franz Borkenau. Na
primeira nota do artigo, Lucie agradece a Malinowski “pelas
sugestões úteis que me deu para o estabelecimento do próprio
plano desta pesquisa”. Henri Febvre, em uma carta escrita aos
seus pais, deixou pistas sobre quando um desses diálogos en-
tre Lucie e o antropólogo ocorreu, em Zurique, em setembro

12
Ver Peter Schöttler. “Lucie Varga and her Alpine Studies”. In: Elisabeth Tau-
ber e Dorothy L. Zinn (orgs.). Malinowski and the Alps: Anthropological and
Historical Perspectives. Bolzano: Bolzano University Press, 2023.
16 Lucie Varga

de 1935: “O sr. e a sra. Borkenau partiram para Zurique, onde


iriam se encontrar com um certo Malinowski, um etnólogo
do qual o sr. Borkenau falava muito bem”.13 É relevante saber
que Malinowski tinha, desde 1923, uma villa em Oberbozen,
no Tirol italiano (Soprabolzano, em italiano), onde, até 1938,
passava férias de verão. Além de um gosto pessoal pela região,
Malinowski interessou-se pelo fenômeno do nazismo, tanto in-
telectualmente quanto na condição de seu opositor político.14
Peter Shöttler ressalta o quanto a circulação geográfica de
Lucie Varga pode dizer sobre o seu percurso investigativo:

Seu passaporte austríaco foi preservado em uma coleção privada,


o que nos permite saber que ela viajou com frequência de Paris
para Inglaterra, Alemanha, Áustria, Hungria, Suíça e Itália. No
entanto, os carimbos de controle de fronteira nem sempre forne-
cem informações detalhadas. Por exemplo, há poucas evidências
de seus movimentos no verão de 1935, enquanto em 1936 os ca-
rimbos indicam que Varga viajou várias vezes de Gries am Bren-
ner para o Tirol do Sul com as duas crianças. No ano seguinte, ela
cruzou a fronteira italiana novamente por três semanas.15

Além disso, uma carta escrita pela própria Berta Varga a


Shöttler, ao lembrar das experiências com a mãe no verão de
1935, informava que “ela [Lucie] sempre encontrava alguém

13
Ibidem, p. 107.
14
Ver Elisabeth Tauber e Dorothy Zinn. “Back on the Verandah and off Again:
Malinowski in South Tyrol and his Ethnographic Legacy”. Anuac, v. 7, n. 2, dez.
2018, p. 9-25, ISSN: 2239-625X-DOI: 10.7340/anuac2239-625X-3518. Para a
visão de Malinowski sobre o nazismo, ver o artigo de Dan Stone, “Nazism as
Modern Magic: Bronislaw Malinowski’s Political Anthropology” (History and
Anthropology, v. 14, n. 3, 2003, p. 203-218).
15
Ver Peter Shöttler. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autri-
chienne aux Annales dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991, p. 105.
Apresentação 17

com quem falar”,16 era uma pesquisadora que estava em cam-


po, registrando experiências das pessoas e construindo inter-
pretações sistemáticas sobre a relação entre presente e passado.
No primeiro artigo desta coletânea, “No vale de Vorarlberg:
de anteontem até hoje”, Lucie investiga o processo de transfor-
mação dessa região fronteiriça situada na Áustria, desde o co-
meço do século XX até a emergência do nacional-socialismo na-
quelas paragens. Ela consegue conectar uma série de elementos
complexos, como a ascensão do fluxo turístico local no período
posterior à Primeira Guerra Mundial, o desenvolvimento de
uma pequena indústria local e as mudanças operadas no interior
dos agrupamentos sociais que diziam respeito aos costumes, às
crenças e aos rituais. Estes, por sua vez, segundo a autora, fo-
ram fundamentais para a penetração do nazismo na região, en-
tendido como uma “religião política” que proporciona aos seus
adeptos discursos salvacionistas e de redenção pelo progresso.
O percurso feito por Lucie mostra uma autora capaz de identi-
ficar as nuances conceituais do seu campo de investigação, com
plena consciência das categorias que mobiliza, para narrar o seu
argumento.
O segundo texto, “A gênese do nacional-socialismo: notas de
análise social”, foi escrito no final de 1936 e publicado em 1937
em um “número alemão” dos Annales dedicado inteiramente
ao que se passava na Alemanha. O interesse era compreender o
vertiginoso crescimento do nacional-socialismo, conectando-o
a diferentes aspectos da realidade social e histórica alemã. Além
do texto de Lucie, há nessa edição artigos de Maurice Halbwachs,
Henri Brunschwig, Marc Bloch e Lucien Febvre, entre outros.
Em “A gênese do nacional-socialismo”, percebemos uma
abordagem semelhante à do artigo anterior, centrada em uma

16
Idem.
18 Lucie Varga

“antropologia histórica” que procura entender as conexões


processuais do presente com o passado. O mais surpreenden-
te é que ele foi escrito por uma jovem de 32 anos, apenas três
anos após a ascensão de Hitler ao poder (1933). O texto é, ao
mesmo tempo, uma densa etnografia do movimento nazista e
uma peça exemplar de “história do tempo presente”. Lucie fez
algumas viagens curtas à Alemanha, apesar dos riscos pessoais
que isso envolvia. Nessas incursões, observava as vertiginosas
transformações que ocorriam e conversava muito com pessoas
comuns, sem revelar que era uma pesquisadora. A partir dessa
experiência, ela sugere para os profissionais da história os se-
guintes questionamentos:

O historiador não pode observar a história ao vivo, enquanto ela


acontece? E obter inúmeros e fiéis documentos? E ir a campo, se
quiser, para investigar, entrevistar, melhor ainda: morar no pró-
prio país que está estudando, para compreendê-lo em seus hábitos
de pensamento, no mecanismo de suas reações?17

Ela responde que sim: é possível e é fundamental para as


pessoas que trabalham com história interpretar seu próprio
tempo. Diferentemente de outros analistas do mesmo período,
que escreviam no “calor da hora”, ela já apontava que o sur-
gimento do nacional-socialismo não poderia ser interpretado
de um único prisma. Por se tratar de um fenômeno complexo,
Lucie afirma que havia algo inteiramente novo acontecendo
naquele momento. Ela mergulha nos processos de “conversão”
dos ingressantes no partido e aderentes à ideologia nazista,
percebendo a construção dos dualismos que passavam a ser
socialmente aceitos, que ia do “amigo-inimigo; camarada de

17
Ver p. 55 neste volume.
Apresentação 19

combate-adversário; força ou fraqueza, você ou eu, caçador ou


caça”.18
Ao colocar-se como historiadora da religião, ela consegue
lançar olhares atentos às relações de crença que emergem da-
quele momento. Com isso, opõe “à religião política totalitária
do nacional-socialismo, uma religião totalitária divina” do
cristianismo. Nesses termos, ao estabelecer tais assimetrias
religiosas, ela mobiliza, segundo Shöttler,19 conceitos caros a
Erich Voeglin e seu conceito de religião política, também pen-
sado no “calor daquele momento”. No entanto, em vez de es-
tabelecer uma perspectiva mais filosófica e teórica, como fez
Voeglin, Lucie conseguiu relacionar aspectos interpretativos
importantes a uma expressiva quantidade de fontes.
Nesses termos, os dois textos já mencionados, além de uma
análise da ascensão do nacional-socialismo na Europa, propõem
lições metodológicas relevantes sintetizadas pela própria auto-
ra no texto sobre Vorarlberg:

O método do etnólogo tem dois princípios de que o historiador se


beneficiaria em usar. O primeiro é a crença de que nada é natural
e óbvio, nada é “desnecessário dizer”. […] O segundo princípio
é o escrúpulo e a reserva com que o etnólogo, ao registrar o que
pode aprender, evita, simplesmente, substituir suas noções pelas
dos “objetos” que estuda. […] Precaução salutar que pouparia ao
historiador muitos anacronismos.20

Ao fazer isso, Lucie observa o quanto seu fazer investigativo


está atravessado por múltiplos olhares de produção do conhe-
cimento. É difícil, nessa avaliação retrospectiva, esboçar qual-
18
Ver p. 65 neste volume.
19
Peter Schöttler. “Lucie Varga and her Alpine Studies”, p. 105.
20
Ver p. 26 neste volume.
20 Lucie Varga

quer classificação estanque da autora, mas é possível perceber o


esforço de interpretar o presente/passado a partir de uma aten-
ção redobrada às fontes e aos múltiplos aspectos que elas evo-
cam. Seja como categorias de análise úteis à investigação, seja
em uma compreensão de elementos que estão, aparentemente,
desconectados, mas que se congregam diante do olhar de quem
está no campo. Esse mesmo exercício foi feito pela autora ao
investigar os cátaros do século XII.

A segunda parte apresenta dois textos sobre os cátaros. Neles


podemos entrever uma Lucie Varga lidando com outras fontes
e suportes documentais, mas com algumas das mesmas preo-
cupações já mencionadas, sobretudo aquelas voltadas para a
busca do presente no passado.
O primeiro artigo, “Um problema de método em história re-
ligiosa: o catarismo”, foi publicado na Revue de Synthèse, perió-
dico criado por Henri Beer em 1900. Naquelas páginas, a socio-
logia — sobretudo a já consolidada “escola” durkheiminiana —,
a psicologia social, que também ganhava força naquele momen-
to, e a filosofia, entre outros campos do conhecimento, passavam
a dividir muito além dos sumários: elas engendravam ideias,
compartilhavam métodos, horizontes possíveis. Peter Burke, ao
escrever sobre a importância de Henri Beer e sua cruzada inter-
disciplinar para alcançar uma “psicologia histórica”, afirma que
este teve um profundo impacto nas trajetórias de jovens pesqui-
sadores e pesquisadoras daquele momento.21
Os cátaros foram membros de uma seita cristã dualista que
surgiu na Europa Ocidental durante a Idade Média, principal-

21
Ver Peter Burke. A Escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia
(1929-1989). São Paulo: Editora da Unesp, 2010, p. 22-23.
Apresentação 21

mente nos séculos XII e XIII, e que representou o maior movi-


mento herético do período. Os seguidores do catarismo acredi-
tavam em um dualismo radical, em um Deus bom, que cuidava
das coisas espirituais, e o seu oposto, associado ao mundo ma-
terial, terreno. Rejeitavam os sacramentos da Igreja Católica,
possuíam sua própria hierarquia religiosa e enfrentaram perse-
guição brutal por parte das autoridades católicas de seu tempo.
Nesses termos, o catarismo representou uma heresia religiosa
na Europa Medieval, sobretudo no sul da França.
“Um problema de método em história religiosa” é o primei-
ro escrito de Varga sobre o catarismo que veio a público, fru-
to das suas primeiras incursões no tema, pelo qual já havia se
interessado desde a produção de sua tese de doutorado. É um
texto que procura lançar questões centrais de método, em lugar
de aferir respostas imediatistas para o problema investigado.
Naquele princípio da década de 1930, a existência dos cátaros
nos séculos XII e XIII estava imersa em uma certa aura miste-
riosa, de reapropriações contemporâneas e de disputas inter-
pretativas que diziam mais sobre o contexto de investigação do
que propriamente sobre a Idade Média.
Assim, em seu artigo, Lucie faz uma crítica ao trabalho do
historiador católico Jean Guiraud, que havia sido publicado em
1935, procurando traçar uma abordagem atenta às fontes dis-
poníveis sobre o assunto. Com isso, busca evitar anacronismos
ao aproximar o catolicismo da década de 1930 ao do século
XII, percebendo o quanto o debate é cercado de nuances meto-
dológicas. Peter Schöttler diz que esse texto, além de incorrer,
eventualmente, em um ou outro juízo de valor por parte da au-
tora, “refletiu suas tentativas iniciais de navegar pelo campo de
pesquisa ainda incerto do catarismo […], e não consistiu ape-
nas em especulações, mas também apresentou questões para
22 Lucie Varga

futuras pesquisas”.22 É um escrito que, apesar de apresentar um


caráter introdutório, aponta questões metodológicas relevantes
sobre o equilíbrio entre as problemáticas interpretativas da his-
toriografia e o campo de investigação.
No último artigo aqui incluído, “Peire Cardinal era he-
rege?”, publicado na prestigiosa Revue de L’Histoire des Re-
ligions, já aparece uma Varga imersa definitivamente na sua
temática de pesquisa. Em uma primeira análise, é possível
afirmar que ela trata, basicamente, dos rebatimentos da tra-
dição cátara nas canções do famoso trovador Peire Cardinal
(c. 1180-c. 1278). No entanto, além desse objetivo, pode-se
perceber a argúcia de uma pesquisadora que busca driblar a
falta de fontes sobre os cátaros a partir de uma análise crítica
da poesia trovadoresca. Com isso, Lucie seguia o seu próprio
conselho em relação ao trabalho dos etnólogos: estar aberto
ao campo e tomar nota de todos os elementos que surgem nos
materiais de trabalho. Ao fazer assim, produz um artigo que
é interpretado contemporaneamente como uma contribuição
fundamental para os estudos sobre os cátaros, uma vez que
conecta o contexto cultural às pautas religiosas das seitas he-
réticas e às nuances que surgem a partir daí. Até aquele mo-
mento, isso não havia sido feito. Lucie abria então um novo
campo de possibilidades para o estudo relacionado àqueles
agrupamentos religiosos do sul da França no século XII.23

Ao percorrermos os quatro textos desta coletânea, é possível


perceber que as dimensões religiosas e de crenças atravessavam
22
Ver Peter Shöttler. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autri-
chienne aux “Annales” dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991, p. 94.
23
Ibidem, p. 96.
Apresentação 23

todos eles. Esta era uma preocupação constante de Lucie Varga.


É possível que ela enxergasse, nos dualismos do nacional-so-
cialismo, uma certa semelhança ao universo dos cátaros, com
os quais estava tão envolvida no mesmo período. Com respon-
sabilidade, ela mergulha nas experiências humanas no tempo,
buscando entender o quanto a dimensão religiosa se apresenta
como um elemento central das suas preocupações, indepen-
dentemente da temporalidade à qual se dedica.
Nesses termos, Lucie sistematiza questões que, apesar de es-
tarem presentes naquela primeira geração dos Annales, são pos-
tas em evidência pela autora. A mais importante talvez seja o
que posteriormente iria ganhar protagonismo como uma histó-
ria do tempo presente. Na análise de François Dosse, os Annales
foram pródigos em “reintroduzir a história no presente”, pon-
tuando maior consciência em relação ao tempo no qual viviam
e o quanto isso interferia nas suas produções historiográficas.24
Lucie Varga vai além disso. Mais que entender o quanto as inter-
pretações atribuídas ao passado estavam embebidas nas tramas
contextuais de suas produções, ela procura entender-se como
uma pesquisadora que analisa a contemporaneidade, o tempo
de agora, abrindo conexões pouco comuns em textos correlatos.
Por fim, com este livro, pretendemos trazer para o público
brasileiro os escritos originais de uma pesquisadora prejudicada
pelo “silêncio patriarcal do passado”, como escreveu Natalie Ze-
mon Davis.25 E, a partir daí, lançar olhares futuros para as ciên-
cias sociais, como uma provocação para evanescer as fronteiras
disciplinares, reforçando o exercício de estarmos sempre com os
sentidos abertos aos nossos próprios campos de investigação.

24
Ver François Dosse. “História do tempo presente e historiografia”. Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, jan/jun. 2012, p. 8.
25
Ver Natalie Z. Davis. “Women and the World of the Annales”. History Wor-
kshop Journal, v. 33, 1992.
Figura 1. Currículo de Lucie Varga,
escrito por ela própria.
No vale de Vorarlberg:
de anteontem até hoje1
(1936)

Fazemos muitas perguntas à história. Ela nem sempre pode


respondê-las. Teríamos todo o gosto em pedir-lhe que nos in-
formasse sobre as relações da economia, da vida social e das
ideias. Nós gostaríamos de saber dela como se dá o contato en-
tre culturas inferiores e culturas mais desenvolvidas. Grandes
questões entre muitas outras. A história do passado geralmente
não nos fornece os meios de elucidá-las. Por que não usar a his-
tória do presente? Observar por certo tempo, com os métodos
familiares ao etnólogo, a vida de um grupo limitado e relativa-
mente simples de homens em nossa sociedade contemporânea
pode nos fornecer material útil para as investigações aprofun-
dadas cuja necessidade acabamos de mencionar.2

1
Publicado originalmente em Annales d’Histoire Économique et Sociale, ano
8, 1936, p. 1-20. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Cel-
so Castro, Dirceu Marroquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas
dos organizadores estão indicadas como [N. do Org.].
2
Permita-me agradecer ao professor B. Malinowski (London School of Eco-
nomics) pelas sugestões úteis que me deu para o estabelecimento do próprio
plano desta pesquisa.
26 Lucie Varga

O método do etnólogo tem dois princípios de que o histo-


riador se beneficiaria em usar. O primeiro é a crença de que
nada é natural e óbvio, que nada é “desnecessário dizer”. Tudo
deve ser anotado e registrado: a estrutura da família, assim
como o modo de educação dos filhos; as categorias de pensa-
mento, assim como as modalidades de fé; as ideias sobre o luxo
e a miséria, assim como o ritmo de trabalho e dos lazeres…
O segundo princípio é o escrúpulo e a reserva com que o
etnólogo, ao registrar o que pode aprender, evita simplesmente
substituir suas noções pelas dos “objetos” que estuda, mesmo
que encontre expressões em sua linguagem que pareçam cor-
responder às ideias deles. Ele não traduz; ele descreve. Precau-
ção salutar que pouparia ao historiador muitos anacronismos.3
É um conjunto de vilas austríacas — de vilas alpinas — que
gostaríamos de tentar descrever. Este, nos últimos anos, sofreu
uma aguda crise econômica. Teve que procurar e encontrar novas
saídas. Experimentou profundas transformações de mentalidade
e da estrutura social. Novas elites ali foram formadas. As velhas
autoridades viram-se suplantadas por outras. Alguns elementos
de origem urbana foram integrados em um ambiente até então ru-
ral. Tantos assuntos para estudo e reflexão. Vamos tentar.

II

O vale em questão está situado em Vorarlberg, essa pequena


região austríaca que faz fronteira com a Suíça, a Alemanha e

3
Para o passado, podemos apenas interrogar os documentos e interpretar os
textos. Por outro lado, o bom etnólogo que trabalha no campo, dotado de intui-
ção psicológica, jamais se limitará às observações e aos dados imediatos forne-
cidos por seus objetos de estudo. Ele notará o sotaque, o gesto que acompanha a
palavra — e as palavras, às vezes, serão, de todos os elementos do conhecimento,
os menos importantes. Em vez de questionar diretamente, ele viverá com sua
“tribo” e penetrará seus modos de ser…
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 27

o Tirol. Ela sobe de 750 a 1.600 metros em uma extensão de


10 quilômetros. Tem várias aldeias, uma com 1.200 habitantes,
outra com 300, outra com 190 habitantes. No verão e no Natal,
um ônibus agora liga o vale a uma pequena linha ferroviária
que data do final do século XIX.
Esse “moedor de café” leva em meia hora à linha principal:
Innsbruck-Bludenz-Zurich. As aldeias estão a 200 quilômetros
de Innsbruck, a 22 quilômetros de Bludenz (sede do Bezir-
khauptmannschaft [administração distrital]), a 70 quilômetros
de Bregenz (onde estão o Landeshauptmannschaft [administra-
ção provincial] e os quartéis) e a 50 quilômetros, finalmente, de
Feldkirch (onde se encontra o hospital). Em Innsbruck estão as
universidades para quem quer estudar, fazer cursos na escola
politécnica ou tornar-se artista. As mercadorias são trazidas da
região industrial entre Bludenz, Dornbirn e Bregenz: há cer-
vejarias, fábricas de queijo, fábricas de conservas, fábricas de
chocolate, tecelagem e fiação, fábricas de faiança e porcelana,
relógios, móveis etc. Temos famílias que aí se instalaram entre
1890 e 1905, época na qual essas empresas foram fundadas.
As já mencionadas cidades, pequenas e médias —, todos no
vale as conhecem. Todo mundo já esteve lá pelo menos uma vez.
Quanto às capitais, Viena já não tem atrativos; a cidade grande
que visitamos é Zurique. Notemos, de passagem — voltaremos
a isso —, que, se a distância em quilômetros desses centros ao
vale não muda, a distância entre eles não deixa de variar; às ve-
zes é mais, às vezes menos, dependendo das mudanças econô-
micas e ideológicas que estão ocorrendo. Tal cidade se aproxi-
ma, tal cidade se afasta, e não são, em última análise, os meios
de transporte os responsáveis por tais flutuações.
Nosso vale é um vale de montanha. O que significa: sem
trigo. As propriedades são pequenas; apenas o suficiente para
fornecer feno para o gado que cada um possui: de três a catorze
28 Lucie Varga

cabeças, normalmente. Na parte baixa do vale ainda crescem


macieiras, com frutos duros e verdes. Os camponeses fazem
cidra doce com eles, ou os cortam em fatias e os secam: uma
grande iguaria para as crianças no inverno. Há, também, pe-
quenas hortas com batatas, algumas couves, alfaces, ervilhas,
feijões. Famílias relativamente abastadas também possuem um
ou dois porcos e algumas galinhas.
Essa distribuição de posses de terra não mudou ou quase
não mudou nos últimos anos. No entanto, a aldeia foi trans-
formada de cima para baixo. Os próprios camponeses estão
perfeitamente cientes disso. Não há conversa sem que eles
comparem o tempo passado e o tempo atual, das Früher und
das Jetzt [“O antes e o agora”], sublinhando as revoluções que
o vale sofreu. Esse “senso histórico”, ou melhor, esse senso de
épocas é marcante: facilmente se acreditaria que, ele próprio, é
uma consequência das profundas mudanças que ali ocorrem.

O tempo que os camponeses designam como “antes” abran-


ge três períodos diferentes, que eles próprios distinguem com
muita clareza. Primeiramente, o Früher é a geração dos avós
— e de todos os séculos que se passaram antes. Esse tempo for-
nece sobretudo anedotas. É a idade dos trajes, dos velhos costu-
mes, do folclore. E, para o povo do vale, ele parece pré-história:
é passado absoluto.4

4
O atual governo pode fazer tentativas de reviver velhos costumes; ele não
consegue, as pessoas fogem. Nas exibições de trajes antigos, elas assistem como
a um espetáculo estrangeiro. Ouvi recentemente um noivo ser repreendido por
não ter vestido a roupa para a cerimônia; ele respondeu: “Ei! Você acha que
estou aqui para bancar o tolo na sua frente?” (Glaubt ihr ich bin da euch den
Narren abzugeben?).
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 29

O Früher, em segundo lugar, é o tempo antes da guerra. Um


tempo que, desta vez, é do passado vivo, da história. É o tempo
dos pais; tempo “normal”, digamos assim, do bem-estar, basea-
do em dois elementos: a posse da terra e do gado, por um lado,
o trabalho assalariado, por outro. A renda de um camponês
consistia, primeiro, em renda em espécie: leite, queijo, mantei-
ga, toucinho, gordura e carne de porcos alimentados em casa;
ovos, galinhas; algumas batatas e vegetais; nas partes mais bai-
xas, cidra. Incluíam, então, rendimentos em dinheiro, prove-
nientes em primeiro lugar da venda de gado no grande mer-
cado em setembro — a raça do vale era afamada e procurada.
Mas ainda se somavam os salários que os homens ganhavam
durante o verão, ou seja, de maio a setembro, indo para a Fran-
ça, Bélgica, Alemanha, Hungria etc. como carpinteiros, estuca-
dores ou Krautschneider [preparadores de chucrute]. Os livros
de geografia austríacos geralmente lamentavam o triste desti-
no daqueles “ausentes” que, por salários miseráveis, aceitavam
trabalhar duro no exterior. Na realidade, o vale viveu assim o
seu período heroico. Para os montanhistas, que com certeza
voltam para casa no outono, era uma aventura e, ao mesmo
tempo, garantia de bem-estar para a família. Era o contato com
o estranho; era a luta, o privilégio dos homens — e foi a vitória:
ainda hoje se veem os seus troféus em forma de cartões-postais
de Nyon, Tours, Marselha, Ulm, Budapeste, Kecskemét, fixa-
dos nos cantos das paredes em antigas casas.
O que tínhamos visto no exterior? Países sem montanhas,
coisa prodigiosa. Uma comida completamente diferente. Bebi-
das desconhecidas no vale — tipos de vinhos desconhecidos:
vinhos franceses, vinhos húngaros. Moralidades e tempera-
mentos diferentes entre mulheres e meninas: a julgar pelo pis-
car de olhos de homens entre cinquenta e sessenta anos, eram
cavaleiros e trovadores muito valentes.
30 Lucie Varga

O que foi trazido do exterior, dinheiro à parte? O que


“aprendemos” no exterior? Absolutamente nada! Eles conti-
nuaram no vale, sem mudança, as velhas tradições; nem um
emigrante temporário que tenha trazido uma garota estrangei-
ra para sua terra natal; apenas dois se casaram na França; e,
tendo saído como estucador, um deles é dono de uma grande
construtora em Paris.5
Portanto, voltamos na época do outono, na véspera do gran-
de mercado. Tínhamos no bolso metade do salário ganho; o
outro foi gasto na compra de roupas, no custo de voltar para
casa, nas despesas de pousadas e cabarés, em “diversões”. A casa,
os animais, os prados eram, porém, cuidados pela mulher, ou,
sob a sua direção, pelos filhos que ficavam em casa: uma es-
pécie de matriarcado de verão cujas consequências ainda hoje
medimos; por exemplo, a família recebe principalmente os pais
da mulher; são eles que ajudam, de preferência, em caso de in-
fortúnio.
Bom tempo de economia estável. Bons tempos em que o di-
nheiro ressoava nos bolsos, tempos abençoados em que Deus
dava o necessário — e o luxo. O que era esse “luxo”? Primeiro,
roupas bonitas. Para os homens, roupas feitas de tecidos fortes
e duráveis. Para as mulheres, trajes com ricos bordados e aven-
tais de seda. Além disso, sapatos como eram usados na cidade,
jaquetas de lã, blusas. Vamos adicionar lindas panelas para a
cozinha, baldes, Zuber para cozinhar o queijo.
Na maioria das famílias, o dinheiro era suficiente não só
para a conveniência de todas essas compras de luxo, mas tam-
bém para a constituição de novas famílias. Com a morte do

5
Durante muito tempo, empregaram-se apenas trabalhadores do seu vale… A
não renovação das suas carteiras de trabalho obriga-os a regressar um dia destes
a Vorarlberg. Naturalmente, ele será um dos grandes homens do vale, uma de
suas figuras mais populares.
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 31

pai, tradicionalmente, quem assume a casa paterna é, de fato,


o filho mais velho; com o dinheiro que ganhou nos últimos
anos, ou que pode ter certeza de ganhar nos próximos, ele
paga aos irmãos e irmãs a parte destes na herança. Os outros
filhos, quando pensam em se casar, compram um terreno e
ali constroem sua casa. Porque “casar” significa ter casa pró-
pria. Casar-se e morar com os pais ou sogros é inconcebível
para o povo do vale, hoje como já antes da guerra. As relações
íntimas sem casamento — digam o que disserem os padres
— eram e são consideradas muito menos “imorais” do que
um casamento sem “recursos”, um casamento de miséria. As
meninas eram escolhidas nas aldeias do vale. Na época de que
falamos, o que se considerava na escolha da esposa eram, so-
bretudo, suas qualidades de trabalho e a posição social de sua
família.

Não apenas o vale, mas todo o Vorarlberg floresceu então. Era a


época da fundação das fábricas. Esse foi o auge do famoso bor-
dado Vorarlberg (Vorarlberger Stickerei industrie), com Lustenau
perto de Bregenz como seu centro. Ali faziam-se bordados que
eram vendidos até na América, na China, em Marrocos, mas
também na Áustria e na Alemanha. E dizia o ditado: “Orgulho-
so como um jovem de Lustenau”; ou: “Ela tem o porte de uma
jovem de Lustenau”.
Todo o Vorarlberg participou do desenvolvimento dessa
indústria; todo o Vorarlberg invejava seus primeiros sucessos.
Os camponeses de Lustenau, Gotzis, Hohenems compraram
máquinas de bordar! Elas foram confiadas às filhas da famí-
lia; somente quando não houvesse filhas contratavam-se tra-
balhadoras.
32 Lucie Varga

O bordado teve seus altos e baixos mesmo antes da guer-


ra; foi muito pior depois, entre 1920 e 1927. Toda a província
foi abalada. Em oito anos, essa indústria foi completamente
arruinada. Pergunte o motivo do declínio, e a resposta irá va-
riar, dependendo da idade do entrevistado. Os jovens dirão:
“É a crise”, uma palavra mágica que parece explicar tudo. Os
idosos têm sua própria teoria; teoria moral, na qual a traição
e a ganância desempenham um grande papel. No declínio de
sua indústria, eles veem uma espécie de punição para a con-
cupiscência humana. Alguns homens de Vorarlberg, ansiosos
por ganhar ainda mais, traíram o segredo das máquinas de
bordar e as venderam até mesmo na América… Desnecessário
dizer que esse mito não é sobre uma América real — mas sobre
uma América simbólica, a encarnação do “negócio”, da gran-
de indústria, das forças capitalistas brutais e irresponsáveis…
Porém, de posse das máquinas vorarlbergianas — máquinas
simples, deve-se dizer (?), e que traem seus segredos à primeira
vista —, a América produz, ela mesma, os bordados vorarlber-
gianos e, assim, recebe o dobro do lucro…
A América imoral e traiçoeira: mito da mesma ordem, exa-
tamente, e da mesma linhagem dos outros mitos “anticapitalis-
tas”, ou das teorias antissemitas…

Do ponto de vista político, a região (exceto Bludenz, centro


ferroviário e, como tal, social-democrata) era christlich-social
[cristão-social].6 Os Christlichsocialen, aqui, formavam o par-

6
A presença do Partido Social Cristão na Áustria era marcante, sendo um dos
mais importantes vetores políticos do país. No momento posterior à Primeira
Guerra Mundial, houve maior aproximação com grupos sociais mais afastados
da capital, em direção às regiões interioranas, representadas pelos proprietários
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 33

tido dos abastados, felizes com o progresso econômico, mas,


fora isso, tradicionalistas e dotados de fortes convicções con-
servadoras.
Mas as ideias da aldeia não foram organizadas em torno
de teorias ou partidos públicos. Em vez disso, seu centro era
a “religião” — o catolicismo em sua forma camponesa, cujo
representante era o pároco. Sua habitação, o Pfarrhof [presbi-
tério], era, ao lado da igreja, o edifício mais proeminente da al-
deia. Na maior parte das vezes, também compreendia a escola.
A cozinheira do padre procurava ervas dotadas de inúmeras
virtudes. Era a ela que as mulheres da aldeia recorriam em caso
de febre, parto difícil ou acidente, para obter um chá de ervas
medicinais ou curativos calmantes. O padre em geral era um
homem jovial e indulgente com as fraquezas humanas; pedia
apenas uma coisa, que lhe era concedida sem discussão: o re-
conhecimento dos poderes, de certa forma mágicos, da Igreja
— poderes dos quais ele era o soberano detentor.
Era o padre que se chamava quando as vacas adoeciam; ele
invocava os padroeiros do gado: são Martinho, são Guandelino
(Vendelino) e são Fridolino. Abençoava o estábulo. Abençoa-
va as pastagens da montanha quando as vacas e os bois eram
trazidos na primavera. Abençoava as casas recém-construídas,
e sua bênção as protegia contra desastres e avalanches. Ele
abençoou aqueles que partiram para trabalhos perigosos — ou
aqueles que foram para o exterior: pois sua bênção lhes garan-
tia trabalho e bons salários. Íamos à missa pelo menos todos
os domingos; nós nos confessávamos uma vez por mês — pelo

de terra. Ver Helmut Wohnout. “Middle-Class Governmental Party and the Se-
cular Arm of the Catholic Church: The Christian Socials in Austria”. In: Wol-
fram Kaiser e Helmut Wohnout (orgs.). Political Catholicism in Europe, 1918-45.
Londres/Nova York: Routledge, 2004, p. 172. [N. do Org.]
34 Lucie Varga

menos no inverno. As mulheres comungavam a cada 15 dias.


Mas, no verão, os homens não iam à igreja.
O padre morava na aldeia. Normalmente não há tensão entre
ele e seus paroquianos, pois falava a língua deles. Na maioria das
vezes, era filho de um camponês de uma das aldeias do vale vi-
zinho. Materialmente, também mantinha contato próximo com
sua aldeia. Recebia o seu salário todos os meses, mas sua mesa e
sua adega eram abastecidas pelos fiéis: 800 ovos por ano, 14 qui-
los de manteiga, 700 litros de leite, 30 queijos — isso é o que uma
aldeia de 180 habitantes era obrigada a fornecer, e ainda fornece
hoje. O pároco também tem o direito de fazer reparos e instala-
ções em sua casa às custas da paróquia.
Ao lado da casa do padre estava a pousada, que aos poucos
foi ganhando importância social. Antes de seu advento, o la-
zer de inverno era em casa ou na casa do vizinho. Jogávamos
cartas, Jazzen, um jogo inteligente e complicado que pressupõe
um cálculo rápido das próprias possibilidades e uma estimativa
segura das chances do adversário. Namorávamos as moças da
aldeia, tocávamos um pouco de violão e acordeão, às vezes dan-
çávamos danças camponesas nos quartos espaçosos; também
conversávamos, falávamos um pouco de política, um pouco de
economia, contávamos lendas e contos antigos. Na primavera
e no outono, às vezes íamos às montanhas, especialmente para
procurar edelvais. Poucas pousadas, então. As meninas nunca
iam ali. Lugares suspeitos, muitas vezes bem longe da aldeia —
e ninguém tinha bicicleta.

III

Tem-se a sensação de que, no dia seguinte à guerra, a vida na


aldeia recomeçou mais ou menos como antes. A guerra, para
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 35

os velhos que dela participaram, é sobretudo uma recordação


de grande cansaço e nostalgia. Eles lutaram contra a Itália e
contra a França; alguns na Polônia; mas não tinham ódio ativo,
exceto contra a Itália. Os italianos eram “traidores”. No mo-
mento, em Vorarlberg, há um interesse febril pela questão da
Abissínia,7 e a simpatia vai para o negus…
Assim, parece que, no campo, a guerra não mudou nada de
imediato; e verifica-se mais uma vez que “depois da guerra” é
sobretudo uma maneira conveniente de falar. Só algum tem-
po depois, por volta de 1920, novos elementos passaram a ser
incorporados à vida da vila; cada vez mais elementos começa-
ram a dissolver as velhas categorias de pensamento, já abaladas
pelos acontecimentos de 1914 a 1920. Esses novos elementos
foram os turistas alemães.
Primeiro eles não vinham para longas estadas. Passavam
apenas algumas noites nos poucos albergues do país — tem-
po suficiente para escalar alguns picos dos Alpes. Mas falavam
muito, contavam muito; afirmavam-se muito orgulhosos do
seu país, davam o exemplo, faziam constantemente propos-
tas de reorganização e transformação da aldeia; além disso,
flertavam com as moças e não iam à missa aos domingos…
Ainda hoje, o turista alemão tem, na região, a fama de turis-
ta ideal. Insensível ao conforto dos quartos e à delicadeza dos
cardápios, pede poucas comodidades. Ele só precisa de duas
coisas: porções abundantes e vários jornais. Assim, ao buscar
as alegrias da natureza, trouxe para o campo a atmosfera das
cidades. Ele urbanizou a aldeia. Contava histórias, gabava-se
de sua ascensão; e agora a ascensão dos jovens camponeses se

7
Trata-se de uma referência ao conflito bélico entre a Itália e a Abissínia (Etió-
pia) a partir de 1935, cujo resultado foi a ocupação do país africano entre os
anos 1936 e 1941. O termo negus é um sinônimo de rei, posto à época ocupado
por Hailé Selassié (Rás Tafari). [N. do Org.]
36 Lucie Varga

multiplicou. O esqui, já praticado durante a guerra, voltou a ser


importado, aos poucos, pelos citadinos de férias. Os próprios
jovens da aldeia talharam-se ao esqui.
Faltavam hotéis. Os mais empreendedores da aldeia, os aven-
tureiros, os até então considerados moderados os fundaram.
Ser hoteleiro: uma nova forma de subir na sociedade campone-
sa. As pousadas prosperaram. Seus chefes começaram a falar
alto nos conselhos. A pousada, melhorada, atrai também os
turistas, convidando-os a voltar. Perde-se seu caráter de lugar
ruim. Além disso, não somos hostis aos estrangeiros. Eles tra-
zem dinheiro, um dinheiro adquirido com muito mais facili-
dade do que qualquer dinheiro antes ganho. Estamos prontos
para ouvi-lo, para aprender com ele. E o alemão está muito an-
sioso para ensinar. O médico alemão chega. Ele zomba dos chás
de ervas da empregada do padre; dá outros remédios — e essa
nova magia é tão bem-sucedida quanto a antiga. O veterinário
alemão passa; ele zomba de são Martinho. Passa receitas eru-
ditas para vacas doentes — e os camponeses, a partir de agora,
administram ao seu gado os dois exorcismos: o do padre e o do
médico. Às vezes as vacas se recuperam…
Devemos derivar disso uma lei? E dizer que os ritos mági-
cos nunca são abalados porque não têm resultados satisfató-
rios? Que, nesse caso, nos contentamos em duplicar os ritos?
Por outro lado, uma magia dá lugar a outra quando o novo
mago aparece com todos os atributos do maior poder: dinhei-
ro, conhecimento, capacidade de ensinar, auréola de sucesso —
tudo isso criando confiança na eficácia da nova magia.
Se os turistas a lotam, a pousada contrata gente: duas em-
pregadas domésticas, às vezes uma cozinheira. Ela está ficando
maior. Também, para isso, são necessários trabalhadores tem-
porários. O consumo de produtos agrícolas da aldeia aumenta;
o leite pode ser vendido no local. Não somos mais obrigados a
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 37

consumi-lo nós mesmos, nem a manteiga, nem o creme. Se o


albergue estiver cheio, o turista alemão fica na casa do campo-
nês, só fazendo as refeições no hotel. O dinheiro está fluindo.
Compramos terra, uma vaca extra, um porco. Comemos mais
carne. Compramos Maisäss, chalés de verão localizados no
alto da montanha para onde emigra, em maio, parte da famí-
lia com parte do gado… Podemos prever nosso ganho; pode-se
emprestar dinheiro ou comprar a crédito.
Quem empresta? Raramente recorremos aos bancos, ao Reif
kassen; é antes o vizinho que adianta o dinheiro, o vizinho que,
no momento, tem dinheiro e não tem planos. Os montantes em
causa, aliás, são muito reduzidos.
O que marca, portanto, os anos antes da inflação é o ad-
vento do turismo e suas consequências. Esporte de verão e de-
pois esporte de inverno: isso significa uma reorganização dos
lazeres, mas, acima de tudo, com consequências muito maio-
res, uma transformação da sociedade da aldeia, a formação de
uma nova elite, a dos espíritos empreendedores do tipo dono
de estalagem ou hoteleiro. Na aldeia reina uma forte atividade
econômica, um apetite pelo ganho. As relações com a cidade
estão cada vez mais estreitas. É necessário ir até lá encomendar
as provisões dos armazéns, a alimentação da pousada, a ins-
talação dos quartos etc. O camponês procura, assim, a cidade.
Mas a cidade, acima de tudo, está atacando a aldeia.

Depois, veio a inflação. As perdas, de fato, não foram grandes.


Só os já perdidos foram surpreendidos pela inflação, quando
suas economias ainda não davam para comprar terrenos e ca-
sas. Perdeu, aliás, quem havia emprestado dinheiro aos vizi-
nhos. Contudo, a inflação trouxe uma febre de negócios, uma
38 Lucie Varga

espécie de excitação pelo ganho, um estado de espírito já bem


preparado pelo período do turismo nos seus primórdios.
Uma nova possibilidade de lucro se abriu pela primeira vez no
vale, um vale fronteiriço entre a Suíça, a Alemanha e a Áustria:
o contrabando de cidade em cidade. Aplicava-se a bens impor-
tantes: máquinas, metais etc. Os contrabandistas arrecadaram
grandes somas. O seu contato com a cidade afirmava-se: para
ela derivava o ganho, tão facilmente realizado na aldeia. Com
esse dinheiro não se adquire nem terreno nem casa. Compramos
relógios de ouro em Innsbruck, roupas da cidade, sapatos finos,
gramofones. O dinheiro é desperdiçado sem qualquer sentido.
Nada ou quase nada para as mulheres, para a família. Tudo se
dissipa na cidade, com “mulheres” da cidade.
Outra prática que serve para fortalecer o contato com a
cidade, a dos julgamentos, que ultrapassavam os limites da
aldeia: julgamentos dos antigos ricos contra seus sucessores;
ações judiciais por água, estradas, pelo direito de passagem etc.
Pela luz também — é então que se instala a eletricidade na re-
gião. A velha hierarquia camponesa só recua, passo a passo,
diante dos hoteleiros e dos estalajadeiros. Seguem-se os pro-
cessos de dívida. No total, uma verdadeira avalanche que vem
assolar advogados e juízes do Kreisgericht [tribunal distrital] de
Bludenz. Eles quase sucumbem sob a carga.
O padre, durante este período, vê sua influência diminuir
claramente. Ele deixa de ser “um da aldeia”; torna-se alguém
à parte. A crítica está aí, embora raramente formulada. Se ele
se opõe a inovações e convulsões, julga-se que o padre vive em
outro plano, de acordo com leis que não mais regem este mun-
do. Os muitos conventos e alguns padres tentam participar de
novos desenvolvimentos e apoderar-se de terrenos ou casas a
baixo preço; os fiéis reprovam sua vida demasiado secular, sua
preocupação com o bem-estar terreno, sua falta de espirituali-
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 39

dade: fantasmas da Reforma que nunca foi capaz de vencer nes-


te país. As velhas estruturas ideológicas estão desmoronando.
A indiferença substitui a religiosidade da prática. Além disso, a
vida se orienta cada vez mais para a cidade; e, para os assuntos
urbanos, o padre da aldeia é impotente.
Por outro lado, vem da cidade para a aldeia uma nova noção
semirreligiosa, uma noção dinâmica com possibilidades revo-
lucionárias: a noção de progresso. Progresso significa novos
hotéis, turismo, esporte, dinheiro; o progresso é a civilização
urbana: roupas compradas em lojas de rua, gramofone, danças
modernas, cinema. O progresso é assimilar a cidade. Muitas
vezes ouvimos naquela época e ainda hoje: “A cidade está cem
anos à frente de nós — como a Europa está cem anos à frente
dos bárbaros”. Progresso significava fazer parte da Europa — e
a Europa, para a nossa região, é essencialmente a Alemanha, e
até a Suíça; em grau muito menor, a Áustria: a Viena Vermelha
nunca seduziu Vorarlberg, refratário ao socialismo — e a visão
da Viena imperial havia desaparecido, já que essa Viena não
existia mais.
Por conseguinte, os trajes camponeses foram desaparecen-
do cada vez mais. Às vezes surgem situações bizarras: as espo-
sas e filhas dos turistas se vestem como camponesas, enquanto
os jovens camponeses adotam a moda da cidade. O estrangei-
ro está cada vez mais decepcionado com suas esperanças de
folclorista. Se questionarmos as mulheres, elas imediatamente
desenvolvem toda uma lista de argumentos para explicar as
mudanças: as roupas da cidade são mais higiênicas; são menos
duráveis, mas também menos caras; não representam um ca-
pital real: o traje de uma camponesa do vale custa cerca de 600
xelins, ou seja, 1.600 francos.
No entanto, as verdadeiras razões são ainda mais profun-
das. Desde que a cidade explodiu na aldeia, os jovens come-
40 Lucie Varga

çaram a se afastar cada vez mais das jovens do vale. A empre-


gada estrangeira da estalagem, a empregada dos turistas, tem
muito mais sucesso. A jovem do vale só é estimada quando viu
“o mundo” e provou que sabe se dar bem no exterior. Quando
volta, depois de alguns anos de serviço na cidade ou em outro
vale, e abandona seu traje, ela se adapta aos desejos dos jovens
que não querem mais a camponesa, porém a jovem da cidade.

Com a inflação, vieram outros turistas que não os alemães,


atraídos pelos preços baixos: suíços acima de tudo. Vieram pas-
sar o verão no vale, elogiando a paisagem — e, com o gesto de
um grande senhor, compraram terrenos e construíram man-
sões. Eles também criaram pequenos Burschaften — pequenas
empresas camponesas semelhantes às do país; mas instalaram
ali camponeses pobres e deram-lhes, além de um salário men-
sal, um litro de leite por dia, por pessoa; quanto aos produtos
da exploração, ficou entendido que faríamos contas…. A ex-
periência desses suíços, ainda estrangeiros na aldeia após 20
anos de presença, permite-nos vislumbrar uma coisa curiosa: o
mecanismo de fusão do vilarejo.
É um fato: em Vorarlberg, os suíços não encontraram o ca-
minho para os corações. Eles são Fremde. Chefes. Muito cor-
retos, certamente: nada se pode censurá-los. “Es ist nichts zu
klagen” [“Nada a reclamar”]. Eles são protestantes, sem dúvida,
mas esse motivo pouco conta. Os habitantes da aldeia não sa-
bem formular os motivos de sua frieza com essas pessoas de
fora. Mas, para o observador, não é difícil perceber que esses
suíços, vindos da cidade, irrepreensíveis no sentido jurídico da
palavra, permanecem estrangeiros porque não se submetem à
moral não codificada da aldeia — à moral, inabalável em meio
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 41

a todas as mudanças, que rege, hoje como no passado, as rela-


ções entre vizinhos e toda a vida social da aldeia: eu a chama-
ria, sem muitas objeções, de moral da vizinhança.
Em que consiste essa moral? Hoje, como antes, o vizinho
é fiador do vizinho endividado; hoje, como em qualquer outra
época, o vizinho empresta ao vizinho em caso de emergência.
Ele lhe dá horas de trabalho, se necessário, para construir sua
casa, colher seu feno; ele lhe empresta seu touro. A mesma coi-
sa no mundo das mulheres: uma quantia há tempos guardada
para alguma compra de luxo muito desejada é sacrificada sem
hesitação pelas fraldas da irmã ou pelas roupas dos sobrinhos
e sobrinhas; vizinhos doentes são atendidos com dedicação
exemplar. Moral social, e não moral individual: caridade cris-
tã? Também não. A ajuda dada ao próximo não tem o caráter
de esmola dada a estranhos; já vi vagabundos desempregados
despedidos com duas colheres de sopa de leite e modos grossei-
ros. A ajuda que prestamos ao vizinho é uma espécie de seguro
caso precisemos ser ajudados. O que você faz a um homem na
aldeia alguém na aldeia fará por você quando chegar o dia. Esta
não é uma esperança cristã, é uma realidade econômica.
A confederação dos vizinhos: é isso que constitui a aldeia.
Quem não está lá moralmente não pertence à aldeia, ainda que
nas listas administrativas conste como Standesbürger cidadãos
de classe, originários. Por outro lado, podem-se admitir turis-
tas de passagem, desde que compreendam o significado dessa
federação e demonstrem vontade de participar: trazem plantas
medicinais a uma velha que se queixa de já não poder procurá-
-las; escrevem cartas ou insistem em ser convidados para um
casamento; levam chocolate a uma criança doente e lhe dão
conselhos etc. Uma vez admitido, uma vez adotado, você pode
ter certeza de que todos os homens da aldeia estão prontos a
ajudá-lo com todas as suas forças. Se exigir, como estrangeiro,
42 Lucie Varga

trabalho remunerado, este regularmente será malfeito e muito


lentamente. Solicite esse mesmo trabalho ao seu próximo como
um serviço, e ele será feito imediatamente e da maneira mais
conscienciosa.

IV

Assim, se quisermos apontar as características da vida aldeã


às vésperas da crise e da revolução nacional-socialista na Ale-
manha (que, na concepção dos camponeses, marca uma nova
era), nós encontramos o seguinte: bem-estar material, estreitas
relações com a cidade, surdo choque com a tradição e as velhas
atitudes de vida. Tendências para um Anschluss [uma anexa-
ção] com a cidade; novas noções dela importadas, sobretudo
a noção de progresso e outras, bem “século XVIII”: sem dis-
cussão, sem ódio contra o clero; apenas uma indiferença, uma
frouxidão nas práticas religiosas, na confissão etc. Interesses,
em parte opostos ao catolicismo, absorvem cada vez mais as
energias do vilarejo.
A crise e a propaganda nazista vieram quase ao mesmo tem-
po. As velhas formas, abaladas inicialmente pela prosperidade
material e suas consequências de todos os tipos, foram nova-
mente abaladas por dificuldades econômicas. Pelo fato, primei-
ro, de que os preços agrícolas estão despencando; pelo fato de
haver menos saídas para o trabalho assalariado; finalmente, o
turismo diminui de forma visível. Com o fechamento das fron-
teiras alemãs, o turismo vindo desse país desaparece por com-
pleto, de um dia para o outro.
Poder-se-ia, então, dizer: qualquer choque econômico age
sobre a cabeça das pessoas; qualquer mudança econômica,
para o bem ou para o mal, prepara as mentes das pessoas para
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 43

a adoção de novas ideias — que, inicialmente, são bem-vindas


por parte das elites sociais nascidas durante as transformações
econômicas. Mas a teoria da base econômica e da superestru-
tura ideológica não cria, de fato, um curto-circuito histórico?
Entre a base e a superestrutura, ela negligencia os estágios in-
termediários — aqueles por onde circula a corrente da história
viva.
Então, a crise recai sobre nosso vale; ela trabalha as men-
tes. Quais serão suas consequências ideológicas? Um retorno
ao catolicismo? Conversões? O renascimento das antigas au-
toridades, mais uma vez monopolizando a direção das almas?
O arrependimento de ter-se deixado seduzir pelas novidades?
Podemos ver isso, pelo menos em parte, em alguns vales
do Tirol: “Retornemos à religião, à tradição. Não discutamos
as autoridades que nos são impostas. Com religião, com au-
toridade, redescobriremos os bons velhos tempos. Temos sido
desobedientes; de volta à obediência; Deus e as autoridades nos
recompensarão”.8
Obedecer é a essência do catolicismo no Tirol. Tanto quan-
to se pode constatar, ali se manifestou pouca experiência reli-
giosa pessoal no fundo do renascimento do catolicismo. Re-
nascimento sustentado pelo atual governo, que dá trabalho e
benefícios a quem “obedece”. Mas, nos vales tiroleses “recon-
quistados” ao catolicismo e à ideia de um renascimento austría-
co econômico, social e ideológico, a tradição austríaca era for-
te. Isso falta em Vorarlberg; sempre houve laços mais estreitos
com a Alemanha e a Suíça do que com a Áustria; o Tirol sempre
foi invejado por lá; [o vale] sentiu-se desprezado pela Áustria,
que construía estradas para o Tirol e o ajudava com todas as
suas forças, sem nada fazer por Vorarlberg, sempre disposto,
8
Por exemplo, no Stubaital e no Oetztal; enquanto Pongau, Pinzgau e Paznaun
produziram reações opostas.
44 Lucie Varga

consequentemente, a ouvir o que os alemães dizem e a se deixar


influenciar por eles. Principalmente o terreno, aqui e ali, não
era o mesmo, quero dizer, a estrutura social.

No Tirol, como em Vorarlberg, foram os “desclassificados” que


se converteram ao nacional-socialismo. Não os pobres, os de-
samparados; estes vegetam, absortos na luta por sua existência
material. Por desclassificados queremos dizer aqueles cuja es-
trutura social foi rompida. É, por exemplo, na aldeia tirolesa, o
dono da pousada ou do hotel (o que é ele, um camponês ou um
empresário?); o comerciante da aldeia e seu empregado; final-
mente, os “intelectuais” da aldeia: o médico, o veterinário, o
dentista, o tabelião etc.
A esses homens, o nacional-socialismo veio dar o que qual-
quer religião deve oferecer: a revelação do verdadeiro caminho
da salvação, o sentimento de ser iniciado, de fazer parte de uma
comunidade social, de atingir uma moralidade superior; a es-
perança de uma vitória próxima; finalmente, uma materializa-
ção das forças inimigas, e impalpáveis, das forças que impedem
o pequeno comerciante de triunfar, o empregado de tornar-se
empresário, o médico do campo de não permanecer mais no
meio camponês. A propaganda nacional-socialista revelou a
seus seguidores a causa de todas essas derrotas: é o judeu.
Esses aldeões rebaixados, fazendo propaganda por conta
própria, rapidamente encorajaram alguns dos jovens campone-
ses a segui-los. Porque o nacional-socialismo é um movimento
de jovens e, na aldeia austríaca, um movimento de revolta, de
desobediência. Eles se sentem pioneiros do progresso; no Tirol
também são anticlericais, mas seu anticlericalismo não tem o
mesmo sotaque feroz do vale de Vorarlberg.
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 45

O nacional-socialismo no Tirol — e isso se deve à diferen-


ça no terreno social — afetou sobretudo os elementos urba-
nizados das grandes aldeias e uma parte dos jovens campone-
ses de situação modesta. Os demais, toda a massa de campone-
ses abastados, que sempre se mantiveram mais ou menos
alheios aos movimentos das últimas décadas, permaneceram
social-cristãos, facilmente conquistados pelo programa nacio-
nal, autoritário e católico do atual governo. Sendo a urbani-
zação muito mais profunda em Vorarlberg, não foi o antisse-
mitismo, mas o anticlericalismo que esteve, desde o início, na
vanguarda da propaganda nacional-socialista. As primeiras
conversões ao nacional-socialismo foram conversões ao anti-
clericalismo; os primeiros apóstolos, também aqui, foram cam-
poneses pobres, estranhos à aldeia.

Pude acompanhar a história de vários deles. Um dos primeiros


era órfão. Seus pais, camponeses de um vale vizinho, persegui-
dos pelo infortúnio, morreram na miséria. A casa e as terras fo-
ram vendidas em leilão, e o menino, colocado aos cuidados do
padre. Foi tratado com severidade: muito trabalho e nenhuma
alegria, a sensação perpétua de ser um fardo, palavras de ódio
contra os pais e muita moralidade autoritária administrada
sem caridade. Daí, nele, um profundo mal-estar. Ou se adap-
tava, mas sem esperança de sucesso, ou então se revoltava, mas
sem a possibilidade de vitória. Ao seu mal-estar faltava uma
fórmula; à sua revolta, um programa. Um domingo, fugindo
da casa do padre após a missa, ele tentou uma escalada e en-
controu um turista alemão. Era um escritor sobre montanhis-
mo que se estabeleceu no vale atraído pela coroa de picos que
cercam nossa aldeia. Por suas inegáveis​qualidades de monta-
46 Lucie Varga

nhista, tornou-se o ídolo do menino. O mais velho começou a


conversar com o mais novo. Ele “abriu seus olhos”. “De repente,
as escamas caíram dos meus olhos”, diz o pequeno camponês.
“Eu vi como fui abusado até agora e qual foi a utilidade da mo-
ral que me foi ensinada até hoje…”. “Eu reconheci qual era o
meu lugar…”. Fraseologia de conversão — tanto da conversão
católica quanto da luterana, da marxista, mas também da na-
cional-socialista.
Assim, para o neófito, o mundo voltou a ter sentido. Ele não
era mais um pária, ele reencontrou seu lugar em uma comuni-
dade social… Fictícia a longo prazo, mas acolhedora no início.
Não se tratava mais da paróquia, da aldeia, da moral católica,
do serviço sem chance de sucesso: o novo convertido pertencia
ao grande povo alemão; ele era senhor pelo próprio fato de par-
ticipar dessa comunidade; era superior à maioria dos habitan-
tes da aldeia, era o escolhido, o iniciado; por meio do trabalho
político, a face do mundo mudaria. E aqui está o nosso jovem
que vai pregar na aldeia. Primeiro, com alguns amigos, ele fala
sobre seu mestre. As reuniões clandestinas eram realizadas em
sua casa. O entusiasmo do neófito, os sentimentos que sabe ins-
pirar (ele é um bom orador quando o ódio o pressiona) logo
lhe conferem uma situação social invejável. O padre o afasta.
Amigos lhe emprestam dinheiro. Hoje ele tem uma hospeda-
ria, uma casa muito bonita com todos os confortos modernos,
terra, vacas — e clientes que compartilham suas convicções
políticas. Sua esposa era cozinheira de uma família nobre da
Alemanha.9

9
Entre os frequentadores do mestre, havia outro, filho de família numerosa.
Ferido em um acidente ferroviário, perdera seu cargo; ele era então caçador em
caçadas particulares, mas ameaçado o tempo todo pelo desemprego. Um ter-
ceiro foi o arquiteto dos refúgios da região: preocupado, inteligente, não estava
satisfeito com o que a aldeia podia lhe oferecer.
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 47

Outras conversões são mais difíceis de rastrear. Mas, de to-


dos os lados, surgem novas ideias: do professor, dos alunos, dos
camponeses que visitam os pais na cidade, ou destes que vêm
à aldeia. Assim, o nacional-socialismo na aldeia é mais uma
etapa na urbanização do campo.

Nas aldeias de Vorarlberg, onde a influência da cidade começou


a se fazer sentir mais tarde, embora de maneira mais precipita-
da, mais violenta e profundamente penetrante do que no Tirol,
a resistência ao nacional-socialismo foi quase nula. O país foi
invadido. Cada chamada despertava múltiplos ecos. Criou-se
um clima de expectativa, de sonho milenar.
1933: a revolução alemã. As fronteiras estão fechando; o tu-
rista alemão não vem mais. A crise piora; não há mais saídas
para gado, leite, manteiga. Todo o sistema econômico do vale,
apoiado na base tríplice de produção agrícola, trabalho assala-
riado e turismo, é, mais uma vez, abalado.
Falta dinheiro. O que ganhamos com a agricultura não dá
nem para viver. Aqui está um orçamento para uma família cam-
ponesa média e relativamente próspera em 1934. Pai, mãe, uma
filha, dois filhos; dez vacas, feno suficiente para alimentá-las. A
moça era empregada de um hotel, está desempregada; um dos
filhos trabalhava na França, foi expulso. A família consome o
leite, talvez o dê a vizinhos que não têm, mas eles não pagam em
dinheiro, às vezes pagam em bacon, ou em ovos, ou em traba-
lho. No outono, tentamos vender algumas vacas. Três em dez.
Recebemos de 500 a 600 xelins por animal (1.400 a 1.700 fran-
cos). Digamos, ao todo, 4.500 francos. Você tem que deduzir 900
francos para os impostos principais, 300 para vários royalties,
600 francos para manter as vacas nos Alpes durante o verão.
48 Lucie Varga

Queremos continuar a pagar o seguro, são mais 300 francos


por ano. Restam, para toda a família e para o ano inteiro, 2.400
francos. Com isso, você tem que comprar carne, farinha, todas
as leguminosas, café, açúcar; sapatos, roupas, sabonetes, linho,
lã, pequenos suprimentos diversos, linhas, agulhas etc. Também
seria necessário pagar reparos urgentes, custos de doença, entre-
gas; e luxo: tabaco, pelo menos. Para nossa família, cinco pes-
soas, dez vacas… então, sobram cerca de 160 francos por mês.
E, no entanto, a relação entre o número de filhos e o de vacas é
geralmente a inversa: três vacas, mas dez filhos…
Em nossos relatos, o aquecimento e a luz parecem estar
omitidos; mas a madeira custa praticamente o trabalho de co-
letá-la na montanha e lenhá-la. Cada casa tem o direito de usar
uma quantidade suficiente do Standeswald, sobrevivência do
comunal, o Allmende [bem comum]. Quanto à eletricidade, ela
é fornecida a cada casa por um pequeno distribuidor privado,
instalado durante os anos de bem-estar.
Portanto, é preciso economizar. Quais serão as primeiras
economias que infligimos a nós mesmos? Qual é a hierarquia?
Primeiro, consumimos menos carne: em vez de três vezes por
semana, duas ou até uma vez. Aí a gente não renova mais a rou-
pa. As velhas devem ser suficientes. Passamos, então, ao pão:
impossível comprar farinha. Depois do pão, açúcar. Essas são
grandes privações; mas ainda não é a falência completa. Falên-
cia é quando você fica sem café.
As economias, além disso, diferem de acordo com as gera-
ções. Os velhos não desistem do cachimbo, enquanto os jovens
ficam sem o cigarro com bastante facilidade. As pessoas vão
mais raramente à estalagem; mas mantemos o T.S.F., continua-
mos assinando o jornal.
É um gesto de desespero e angústia quando você deve de-
sistir de pagar seus impostos. Mas, aí, temos uma experiência
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 49

séria: a debilidade do Estado. Ele teria o direito de confiscar


casas e terras; mas há tantos devedores atrasados! E então os
camponeses ameaçam: “Se você tirar nossas casas, sustente
nossos filhos”. E as famílias têm dez, 12, 14 filhos. Carga fa-
tal para os municípios. Conclusão: o Estado, não remunerado,
nada faz; e os habitantes o desprezam, porque ele se mostra
impotente.
No entanto, a cidade se afasta novamente. Nada pode ser
comprado lá; a aldeia é reduzida a uma espécie de autarquia.
Não há mais processos; eles custam muito caro e não temos
mais confiança nos tribunais do governo. Resolvemos as di-
ferenças entre nós. Só que, via T.S.F., a cidade continua bem
próxima, apesar de tudo. O rádio reproduz transmissões de
Zurique, Stuttgard e Innsbruck. Em torno do aparelho perpe-
tua-se o culto da cidade. Ouvimos notícias políticas. Ouvimos
jazz e músicas “modernas”. As fronteiras estão fechadas, mas a
propaganda alemã as atravessa…

O fato de as fronteiras estarem fechadas, aliás, é acusado por


todos como o grande e único responsável pela miséria. “Quan-
do as fronteiras reabrirem” é a fórmula da promessa. Dificul-
dades econômicas e tentativas do governo de trazer a popu-
lação de volta para a Igreja apenas fanatizaram o vale em sua
oposição. Entre os camponeses, nenhum antissemitismo. Mas
não falta o mito das forças inimigas — forças que trabalham
contra o “progresso” em benefício próprio, empregando todos
os artifícios para manter o povo na estupidez, para melhor ex-
plorá-lo, são as forças clericais, die Schwarzen [os vestidos de
preto], apelido que ainda ecoa o Dunkelménner [homens das
trevas] da Reforma. E, espontaneamente, como nos tempos da
50 Lucie Varga

Reforma, nasceu uma nova superstição: encontrar o padre ou


sua cozinheira… é um presságio e causa de infortúnio.
O anticlericalismo é a obsessão da aldeia. O anticlericalis-
mo não como controvérsia religiosa, mas como polêmica social
e política. Basicamente, nosso povo vive de um vago deísmo e
de “biblicismo”. Contudo, não há nenhuma conversa com eles
sem que se multipliquem as alusões zombeteiras à Igreja e ao
padre. Falamos sobre a ganância do padre; conversamos sobre
as aulas que ele dá. “Quanto custa?”, alguém pergunta. Respos-
ta enigmática: “Oh! Ele bem faria isso por uma virgem… Não
entende? Bem, ele faria isso pela Virgem Maria”. Todos riem,
e eu finalmente entendo: a Virgem são as novas moedas de 5
xelins austríacos cunhadas com a efígie da Virgem de Maria-
-Zelle!
E ainda são piadas sobre lendas. Um menino grita para o
outro: “Você não viu ontem na montanha o cervo branco com a
cruz?”. O outro responde: “Ah! Sim, mas com a suástica”. Às ve-
zes essas piadas se transformam em uma farsa sacrílega. Aqui
está uma cena que testemunhei. Alpes, 2.200 metros de altitude;
quatro vacas adoeceram; seus proprietários, ricos camponeses
tradicionalistas, chamaram o padre para recitar o exorcismo
e abençoar o pasto. Então, o padre está lá, no pasto, entre os
proprietários e suas famílias, dando a bênção em nome de são
Fridolinho e são Martinho. Perto dali, na cabana dos pastores,
dois pastores almoçam na companhia de dois visitantes e da
mulher que faz a manutenção do refúgio. A princípio ninguém
presta atenção ao que se passa no pasto. Eles estão comendo.
Logo em seguida, começam a imitar o padre. “Em nome do
Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, você não vai nos dar mais
batatas? Talvez são Fridolinho nos forneça um pouco?”. Ao que
a velha mulher, batendo no peito, responde: “Minha culpa, mi-
nha culpa. Não aguento mais. Será que são Fridolinho pode
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 51

nos dar mais batatas?”. Eles trazem as estatuetas dos santos de


seu canto: “Querido Fridolinho, estamos dando a você o resto
do suco de nossas batatas; traga-nos mais, nós lhe imploramos
do fundo de nossos corações”, e untam as estatuetas com os
restos da refeição. Eu tiro um pouco de chocolate da minha sa-
cola e ofereço a esses senhores da nobre companhia: “Aqui está
o milagre, aqui está o milagre”, exclamam. “Obrigado, são Fri-
dolinho, obrigado, são Martinho, vamos nos aposentar agora,
não se cansem mais”. E eles colocam as estatuetas de volta em
seu canto. Pergunto ao mais novo dos convidados, um menino
bem esperto, de uns 11 anos: “E você, então, também é anticle-
rical?”. O pequeno nazista, sobre quem se poderia pensar que
era antissemita, responde, com o rosto brilhando de orgulho:
“Oh! sim, já sou todo judeu!” (Ich bin schon ein ganzer Jud!).
Em oposição à maioria anticlerical, três famílias (entre 38)
continuam católicas, católicas fervorosas, também fanáticas.
As mulheres confessam-se todos os dias e todos os dias vão à
missa. Essas pessoas também acreditam ter sido escolhidas —
escolhidas entre os desclassificados, seus vizinhos e parentes
nazistas. Eles se afastam da vida na aldeia — não acreditando
na possibilidade de melhorar o mundo. Nunca vão ao albergue,
xingam os estranhos, fecham-se em suas casas, não veem nin-
guém além do padre. Como explicar essa atitude? No caso de
um deles, a filha mais velha foi criada em um convento; perso-
nalidade enérgica; voltou na véspera da propaganda anticleri-
cal, lutou com sucesso em casa; nem seus pais nem seus irmãos
se deixaram seduzir pelas ideias modernas. A segunda famí-
lia está em desacordo e em conflito com a maioria das pessoas
da aldeia desde tempos pré-históricos. Reação compreensível:
sempre se ergueu, quando uma oportunidade se apresentava,
contra as ideias comuns da aldeia. A terceira família é uma fa-
mília de sacerdotes.
52 Lucie Varga

Naturalmente, diante dessa onda de antipatia e ódio, os ti-


pos de padre também mudaram. A seleção já é diferente. Não
é mais o padre jovial, indulgente, gordo e rosado, mas são os
fanáticos magros e pálidos, os Eiferer, que condenam o mundo
e seus pecados e não têm perdão para suas “ovelhas”. E aqueles
que, talvez, sob um padre indulgente, teriam continuado a pro-
fessar um catolicismo bastante indiferente, se afastam dele. Os
confessionários dos fanáticos estão vazios. Os que querem se
confessar fazem uma peregrinação de duas horas ou mais para
encontrar um padre que lhes dê a absolvição com palavras con-
soladoras. “Não, eu não vou ao padre X”, uma boa fofoqueira
me diz, “não, esse não, ele me assusta ainda mais”.

Nos últimos meses, a situação econômica voltou a melhorar


um pouco. Em vez de alemães, turistas franceses, holandeses
ou ingleses vêm visitar nossa região. Por outro lado, os jovens
mais engenhosos da aldeia acumulam profissões, passam no
exame de instrutor de esqui, de guia nas montanhas e são, ao
mesmo tempo, carpinteiros, estucadores, eletricistas, alugam-
-se para a colheita do feno. Com tantas cartas na manga, eles
sempre têm a chance de ganhar alguns centavos.
Aliás, sem querer idealizar a aldeia, notemos que a sua ética
de trabalho é, necessariamente, superior à ética de trabalho na
cidade; é que no campo se procura o melhor operário, e não
aquele que faz os preços mais baixos. As diferenças salariais são
enormes: um bom colhedor de feno ganha 6 xelins (15 francos)
por dia mais a comida; um ruim, 1 ou 2 xelins (2,80 francos a
5,60 francos por dia). E o homem com os 6 xelins encontrará
trabalho com muito mais facilidade que o outro. O feno é “um
No vale de Vorarlberg: de anteontem até hoje (1936) 53

trabalho urgente”. Deve-se aproveitar o bom tempo e não fazer


[o trabalho] a contragosto…
No entanto, se os mais inteligentes da aldeia encontraram
alívio para a miséria comum, a crise continua mesmo assim.
Ela está no processo de perturbar toda a estrutura da aldeia
mais profundamente do que nunca. Até agora, vimos os lazeres
mudarem de aspecto, o ciclo anual mudar, uma religião substi-
tuir a outra, as velhas autoridades foram destituídas, as novas
se afirmaram, a opinião pública recebeu outros dirigentes. Mas
o círculo da vida, infância, casamento, velhice, permaneceu o
mesmo…
Porém, agora, os jovens de hoje não podem e não querem
mais se casar. Os que ganham mal conseguem o suficiente para
a subsistência e seus pequenos prazeres; eles não podem com-
prar um terreno nem construir uma casa — e sem uma casa,
como vimos, o casamento é inconcebível. Desde a crise, o nú-
mero de casamentos diminuiu 70%. E cada vez mais os jovens
estão se afastando das meninas da aldeia. Eles temem ser for-
çados a se casar contra sua vontade, temem processos de pen-
são alimentícia — estes são os únicos processos que continuam
a ser movidos na cidade… O dinheiro é escasso, e o tribunal
obriga os pais de filhos ilegítimos a pagarem até 30 xelins por
mês: isso é mais do que a quantia disponível para uma família
inteira na aldeia hoje.
Com o casamento, toda a estrutura da vida desmorona. E
isso é muito mais grave do que todas as mudanças observadas
nos últimos anos. Também o otimismo progressivo das pessoas
da aldeia, o seu quiliasmo político, a sua coragem desesperada
— tudo isso está sempre pronto a transformar-se, a qualquer
momento, em apatia desgostosa com a vida, em pessimismo
fatalista. Os resultados? Nós notamos; não somos profetas; nós
os veremos em cinco, em dez, em 20 anos.
A gênese do nacional-socialismo:
notas de análise social1
(1937)

Muito perto de nós, um mundo acabou. Um novo mundo surge,


com fenômenos até então desconhecidos. Para compreendê-lo,
não temos tudo? O historiador não pode observar a história
ao vivo, enquanto ela acontece? E obter inúmeros e fiéis do-
cumentos? E ir a campo, se quiser, para investigar, entrevistar,
melhor ainda: morar no próprio país que está estudando, para
compreendê-lo em seus hábitos de pensamento, no mecanismo
de suas reações? Quantas dificuldades, porém, para interpretar
bem o presente! E, por exemplo, quantas variedades de explica-
ção que nada explicam sobre a Alemanha nacional-socialista!
É que muitas vezes somos prisioneiros de metáforas antigas ou
preconceitos teóricos. E as chaves antigas não funcionam bem
nas novas fechaduras.

1
Publicado originalmente em Annales d’Histoire Économique et Sociale, v. 9,
n. 48, 1937, p. 529-546. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas
de Celso Castro. As notas da autora estão indicadas como [N. da A.]. As demais
notas são dos organizadores. Agradeço a ajuda de Oliver Stuenkel e Maud Chi-
rio para resolver algumas expressões em alemão e francês.
56 Lucie Varga

Em primeiro lugar, aqui está a chave marxista: a história é feita


do choque de classes com interesses econômicos contraditó-
rios. Mas, então? Deveríamos ver o nacional-socialismo apenas
como uma “pegadinha”, um estratagema de guerra, um arti-
fício fabricado pelos capitalistas e as potências reacionárias,
dos industriais e dos banqueiros aos grandes latifundiários?
Concepção um pouco grosseira, admitimos. Mais nuançada,
esta outra: foi a pequena burguesia que se responsabilizou pe-
las ideias nacional-socialistas, para se alavancar entre as classes
em posse do Estado e para conquistar seu lugar autônomo en-
tre elas. Simplismo novamente, no entanto. Então nós compli-
camos: os promotores do nacional-socialismo foram “desclas-
sificados de todas as classes”: artesãos arruinados, intelectuais
sem futuro, soldados repentinamente privados de seus privi-
légios, pequenos funcionários confinados em suas pequenas
funções etc. Que seja, mas continuamos na ortodoxia ao admi-
tir que os desclassificados, os sem classe, poderiam fazer uma
revolução — uma dessas revoluções que, dizemos, além disso,
só pode ser o ato de uma classe, e por si sós eles são capazes
de reorganizar uma sociedade de alto a baixo? Além disso, os
desclassificados, os detritos sociais em plena atonia —, quem
poderia obter uma unidade de ação?
As chaves não marxistas nos servirão melhor? Além da teo-
ria muito fácil da “psicose em massa”, temos pouco a relatar aqui,
exceto um artigo de Toynbee: “O Estado, esta religião moder-
na”.2 O nacional-socialismo, uma forma de “religião moderna”,
sim; mas que imprecisão e obscuridade na fórmula! Uma reli-

2
Ver Arnold Toynbee. [Survey of] International Affairs. Oxford/Londres: Ox-
ford University Press/Humphrey Milford, 1935. [N. A.]
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 57

gião? Como aconteceram as conversões? Uma religião? Mas em


que base histórica?
Por outro lado, alguns historiadores liberais tentaram ex-
plicar o nacional-socialismo apenas por meio da história: o
programa do nacional-socialismo não era novo, mas um teci-
do de velhas ideias coletadas por toda parte. E traçar para nós,
sobre esta história, uma magnífica árvore de Jessé das ideias
nazistas.3 Apesar de tantos ancestrais ideológicos, buscados e
proclamados pelos próprios nacional-socialistas, o nacional-
-socialismo continua a ser algo novo, fundamentalmente novo
e que decerto não pode ser adotado nem por programa, nem por
jogo de “ideias” apenas. Hitler e seus homens realmente se im-
portavam com Nietzsche, ou Pareto, ou mesmo Chamberlain4
quando eles começaram seu combate? Qual papel a tradição
histórica desempenhou na ascensão do nacional-socialismo —
e era uma tradição de ideias?

Nem as “classes” nem as “ideias” nos fornecem explicações su-


ficientes, o que fazer? Deixemos a sociologia teórica; conside-
remos os fatos, não os gerais e abstratos, mas os individuais
e concretos: diante de nossos olhos, temos toda uma série de
dossiês relativos aos primeiros convertidos ao nacional-socia-
lismo, anos 1922-1932; vamos abri-los.
Aqui está o engenheiro de uma grande empresa, vindo de
uma família provinciana, deutschnational [de nacionalida-
de alemã], criado na fé de que o mundo capitalista era bom,
justo, e quem não tivesse sucesso nele não valeria nada. Boa
3
Árvore de Jessé: motivo artístico frequente na arte cristã medieval, representan-
do uma árvore genealógica de Jesus Cristo a partir de Jessé, pai do rei Davi.
4
Respectivamente: Friedrich Niezsche, Vilfredo Pareto e Neville Chamberlain.
58 Lucie Varga

situação de 1923 a 1927, depois a crise: demissão, desem-


prego, recusa atrás de recusa. Aonde ir? Ao socialismo, ao
comunismo? Nunca. Tradição familiar; orgulho de classe;
solidariedade persistente com as “pessoas de bem”, os ricos
apropriadamente vestidos. E nenhuma memória “de esquer-
da” — enquanto qualquer conversão é explicada, em parte,
por uma transposição de memórias. Uma noite, uma reunião
nazista. Nosso homem entra pela porta: um choque. Eles de-
nunciaram o culpado, o autor responsável por todos os males
do qual sofreu — o ser em que se encarnava esse destino cego
pelo qual, como tantos outros, sentiu-se esmagado, sem poder
identificá-lo. Esse ser era o Judeu.
Que alívio repentino! “Você pensa que está lutando contra
forças misteriosas, secretas e elusivas. E você se desespera:
como resistir ao que não pode ser nomeado? Recomponha-se!
O inimigo tem nome, nós o entregaremos; assim, o inexplicá-
vel será explicado, e o impalpável, materializado. Aquele que
chupa o sangue alemão, aquele que impede o mundo de ser
belo e bom, é o Judeu! Vamos expulsá-lo da Alemanha, nossa
vitória será sua vitória!” A alegria de ter novamente um diabo
para amaldiçoar… Aliviado, libertado, conquistado, o nosso
homem não pensa em nada: “Hitler e os seus nos trarão a sal-
vação!”. Ele diz: “Se alguém pode nos dar a salvação, é ele, e
eu vou ajudá-lo”. O Partido forneceu-lhe camaradas. O Partido
deu-lhe algo para não morrer de fome. Hoje ele é engenheiro-
-chefe de uma fábrica de máquinas na Renânia. No entanto, seu
irmão, voltando do front e chamado por acaso para a Holanda,
lá permaneceu: advogado, consultor financeiro de vários gran-
des bancos de Amsterdã, ele despreza o nacional-socialismo
como a invenção doentia de desesperados…

*
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 59

Outra confissão: “Quantas vezes corri pelas ruas, indefeso, tor-


turado, sem companheiros!”. Os marxistas me odiavam. Meu
pai era um pequeno nobre arruinado. Eu tinha sido “o senhor
barão”, agora não era nada mais do que um caixeiro-viajante.
A vida havia perdido o sentido para mim. Os dois centavos que
ganhei — porque ainda sabia amarrar a gravata —, gastei em
prazeres, em jazz, ou em viver um dia em um palácio, com sau-
dade… Uma noite, para rir, entrei em uma assembleia. Quan-
do eu saí, estava tomado. Eles eram nacional-socialistas, e eis
que de suas bocas haviam saído todas as palavras que eu tinha
ouvido meu pai dizer muito antes: dever, responsabilidade, dis-
ciplina. Diante dos meus olhos, de repente, a visão de uma Ale-
manha vitoriosa — a Alemanha no dia seguinte ao de Sedan5
—, e eu, como meus ancestrais, respondendo ao chamado da
bandeira que tremulava, do tambor que rufava, da corneta que
soava… A comunidade nazista ainda não era muito grande.
Mas lá pisávamos o solo da “nossa” Alemanha.
E, de novo, uma série (série, palavra horrível referindo-se
a pessoas, mas o quê?, é disso mesmo que se trata) —, então,
uma série de monografias biográficas: as de veteranos, os pe-
quenos Schlageter voltando do front e se descobrindo incapa-
zes de reajustar-se à vida burguesa.6 Eles sofreram muito com
a guerra — e seu sacrifício foi ignorado. Eles tinham gosta-
do muito da guerra — eles a tinham em seu sangue e em sua
pele, e foram ordenados a renunciar a ela, a só pensar nela com

5
Batalha de Sedan: travada em 1º de setembro de 1870 na Guerra Franco-Pru-
ssiana, próxima à cidade francesa de Sedan, que terminou com uma decisiva
vitória dos alemães.
6
Referência a Albert Leo Schlageter (1894-1923), soldado alemão que, inconfor-
mado com a derrota de seu país ao final da Primeira Guerra Mundial, integrou-se
a um dos grupos paramilitares de extrema-direita chamados Freikorps [“Corpos
Livres”]. Acabou preso e executado pelos franceses, tornando-se um mártir para
parte da população alemã, em especial para o regime nazista.
60 Lucie Varga

humildade, com a consciência pesada? Muitos entraram nos


Freikorps: Rossbach, Oberlandt, a brigada de ­Ehrardt.7 Nesse
ínterim, fingiram procurar uma situação, mas sem sinceridade.
Quando, em 1921, os grupos insurgentes poloneses apareceram
na Silésia, os “camaradas do Freikorps Oberlandt” foram vistos
largando tudo, a um simples sinal, para se reagruparem. Eles
pularam no trem como estavam, alguns estudantes de Heidel-
berg com seus Mütze [bonés] na cabeça…
Não idealizemos: a aventura pode exigir mais heroísmo,
porém, certamente, menos coragem do que uma vida burguesa
normal em tempos difíceis. Além disso, os Freikorps acabaram
por se dissolver. Em 1923 seu tempo acabou. Eles sobreviveram
na forma de ligas, algumas bastante poderosas. Assumiram uma
atitude muito especial: militaristas, antissocialistas e também
antiburgueses; atitude que eles não sabiam traduzir em fórmu-
las ou programas claros, mas que se baseava em uma experiên-
cia relativamente limitada, a experiência da guerra e o desejo
de prolongá-la em “atividades”. Outro motivo de fraqueza: essas
ligas, sem um programa, limitavam-se a vínculos puramente
pessoais entre chefe e membros. Hitler e a SA8 estavam lá para
sucedê-los quando os chefes das ligas ou dos partidos começa-
ram a duvidar de sua missão.

7
Lucie Varga usa a expressão francesa corps francs, literalmente “corpos livres”;
mas como ela se refere aos Freikorps (vide nota anterior), preferi utilizar aqui, e
em outras passagens do texto, o termo em alemão.
8
SA: abreviação de Sturmabteilung, geralmente traduzido como “Seção de Assal-
to”; o braço paramilitar do Partido Nazista que desempenhou um papel importan-
te na ascensão de Hitler ao poder.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 61

Havia também os muito jovens, os Horst Wessel,9 os Maiakóvs-


ki,10 os que ainda estavam na escola: os impacientes que que-
riam pular as etapas para “chegar lá”; mas o futuro, cada vez
mais, estava bloqueado diante deles. Havia aqueles a quem se
falava de sacrifício, de símbolos pelos quais se devia morrer, de
chefe a seguir, de uniforme a vestir e que os consagraria, por as-
sim dizer, os distinguiria da multidão, faria deles os homens de
suas fardas, impessoais como padres. Eles estavam se tornando
iniciados. Abrimos um campo de ação para eles. Fim das ho-
ras difíceis de uma puberdade interminável; foram admitidos
numa realidade feroz, num jogo que já não era mais “para rir”…
Esporte e política, prazer e dever, aventura e cálculo: de toda essa
mistura emergiu uma sedução demoníaca para esses homens.
Desclassificados, é claro, muitos deles, ou candidatos ao re-
baixamento de classe; muitos, mas não todos, porque ao lado
deles estava o juiz provincial, filho de uma linha interminável
de magistrados que tinham uma boa situação, a qual ninguém
poderia prever que algum dia iria perder. Lá estava o funcio-
nário público, de uma linhagem de funcionários públicos, bem
sentado em seu gabinete. Lá estavam o professor primário e o
Oberlehrer [professor superior], e o gerente da fábrica e o en-
genheiro, membros não da primeira, mas da segunda hora, e
que não foram nem reduzidos à pobreza (aspecto econômico)
nem rejeitados (aspecto social). Mas a desvalorização [da moe-
da] havia consumido suas economias. A situação familiar deles
estava desmoronando. O avô pode ter pensado em comprar um
terreno ou uma casa, em colocar seus filhos na universidade,
9
Horst Ludwig Wessel (1907-1930): líder da SA em Berlim, foi transformado
em mártir nazista após ter sido morto por membros do Partido Comunista da
Alemanha. O hino oficial da SA, cuja letra era de sua autoria, tornou-se, depois
de sua morte, o hino oficial do Partido Nazista.
10
Vladimir Maiakóvski (1893-1930): conhecido como “o poeta da Revolução
Soviética”.
62 Lucie Varga

em dar às suas filhas um bom dote. O pai só tinha podido dei-


xar para o filho o ensino secundário e um dote medíocre para
as filhas. O filho? O que ele poderia tecer para o futuro de seus
filhos? Uma ameaça difusa pairava sobre ele. Quem os prote-
geria? Deveriam ser lançados em um mundo desconhecido que
outros estavam preparando para eles à sua revelia, sem qual-
quer possibilidade de ação pessoal?
Havia, enfim, os pequenos comerciantes e, por trás deles,
ainda mais vasta, a província, ou seja, uma parte daqueles que
se sentiam excluídos da cultura das grandes cidades, dos cen-
tros, que se sentiam ameaçados em suas tradições, seus hábitos,
seus costumes — ameaçados tanto pela grande empresa quanto
pelas novas ideias antiautoritárias da capital. Ameaça econô-
mica e, mais ainda, ameaça social.

Falaremos, de bom grado, em choque “econômico e social”.


Tentemos esclarecer, à luz desses fatos, se é econômico ou so-
cial. Se temos todas essas biografias diante de nossos olhos, não
poderíamos dizer: mais rápido que a miséria econômica, que,
muitas vezes, só leva a um estreitamento, a uma retração de
vidas sobre uma base precária, é a perda da “honra social” que
se transpõe para uma experiência psíquica?
“Honra social”: noção bem conhecida de todos os etnógra-
fos por seu papel e seus efeitos poderosos entre os primitivos.
Devemos lembrar o costume de bootledge,11 das duas tribos que,
para se superarem em presentes, acabam por consumar sua

11
Bootledge: tráfico ilegal de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos, durante a
Lei Seca (1920-1933).
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 63

ruína?12 Mas, em nossas sociedades, o sentimento de “honra


social”13 está ausente? A angústia de perder a posição, o sen-
timento de não mais se destacar, de não poder contar com a
manutenção de seu lugar, o rancor e o ressentimento de ser de-
mais, um excedente, e de se ver cada vez mais dispensado e re-
jeitado, eis o que alimenta o ódio e desperta o rancor. Por que,
em nossas construções históricas, nunca levamos em conta essa
noção? Na verdade, o que importa é muito menos a situação
econômica em si do que a situação social. Entendo, além disso,
que, em uma sociedade burguesa (e somente em uma sociedade
burguesa), essa situação social decorre da situação econômica
propriamente dita. Mas, no primeiro plano de consciência, o
que se projeta é o desejo, a necessidade, a raiva de salvaguardar
uma seleção social, uma influência social, uma posição social
que não pode ser expressa nem em números nem em moeda.
Em qualquer revolução profunda, em toda revolução que gera
uma nova atitude perante a vida, os extremistas mais violentos
não pertencem às classes em ascensão, mas sim às classes em
declínio.14
Esses desclassificados, esses ameaçados formam uma clas-
se? Não. Nem mesmo um grupo de homens conscientemente
ligados entre si. Só nós podemos discernir neles a comunida-
12
Provavelmente uma referência ao potlatch, ritual indígena da Costa Oeste do
Canadá e dos Estados Unidos que envolve uma disputa entre pessoas ou grupos
através da doação em larga escala de bens materiais, chegando mesmo à sua
destruição, numa competição cerimonial por poder, prestígio e status.
13
Os próprios nazistas fazem disso uma palavra de propaganda, der Durchbruch
der sozialen Ehre [“o avanço na honra social”]. [N. A.]
14
Veja a história das Reformas do século XVI, seja na Alemanha, na Suíça, do
calvinismo ou do protestantismo. É verdade para os camponeses de 1525 e para os
cavaleiros em revolta, como para os emigrantes do Mayflower… [nome do navio
que, em 1620, transportou os chamados Peregrinos da Inglaterra para o Novo
Mundo]. As classes em declínio, além disso, tinham apenas uma atitude: se re-
voltar, é verdade; mas também há que se apegar, e petrificá-lo, ao culto teimoso e
feroz de velhos símbolos, antigas tradições, ritos mortos. [N. A.]
64 Lucie Varga

de das antipatias. Só nós podemos dizer: ao reler as biografias


dos primeiros nazistas, podemos perceber sua característica,
comum a todos: a sensação de perder o chão, a angústia, o de-
sespero pré-revolucionário que encontramos tanto na véspera
da Reforma quanto na véspera do nacional-socialismo. Ainda
é apenas uma minoria de homens que mensurou esse tipo de
desespero no qual o historiador das religiões há muito sabe que
se deve buscar a primeira condição de qualquer conversão, de
qualquer nova religião. Um grupo de homens em desespero di-
nâmico, para quem a vida na velha estrutura, na velha escala
de valores, perdeu todo o sentido. No fundo do desespero e da
solidão, a miragem de uma idade de ouro, o desejo de um pa-
raíso perdido. Esse desespero existe em tempos de dissolução e
transformação, está por trás de qualquer convulsão social que
afeta não apenas um grupo da sociedade, mas que postula uma
reorganização social completa.

Para o grande número de desesperados se oferecem muitos


meios de salvação. Uma competição entre religiões é estabele-
cida. E que quantidade, na Alemanha pré-hitleriana, de Bunde,
de Vereine [associações e clubes] e de seitas propriamente ditas,
com reminiscências vagamente budistas ou cristãs, de descen-
dência frederícia ou bismarckiana — sem contar, nos partidos
extremistas, o enxame de grupos e subgrupos, todos sonhan-
do em impor à Alemanha — depois à humanidade — a sua
Verdade! É, portanto, absurdo fazer uma pergunta: em uma
competição desse tipo, qual é, dentre todas as religiões vivas e
antagônicas, aquela que vence?
A mais “alta”, a melhor? Mas, moral e intelectualmente, as
religiões do primeiro século eram realmente inferiores ao cris-
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 65

tianismo? Wesel, Bucer, Zwingli, doutrinariamente falando, es-


tavam se rendendo a Lutero? O futuro não pertence à “melhor”
doutrina, pertence à mais carregada de dinamismo social, à mais
bem equipada para “organizar” uma sociedade que se desinte-
gra; deixe-nos especificar: é a mais eficiente em termos de ener-
gia. Cada revolução é um estreitamento, um recuo e um aperto.
Compare a civilização cristã dos primeiros séculos com a civili-
zação antiga; compare a nudez da Reforma Protestante do sécu-
lo XVI com a magnificência, a exuberância da catedral católica;
compare a pobreza do nazismo com as riquezas intelectuais da
era liberal na Alemanha.
Revolução? Elimine tudo o que não seja imediatamente útil
para o combate e a vitória. Revolução: simplificar e, por toda
parte, o dualismo: amigo-inimigo; camarada de combate-ad-
versário de combate; força ou fraqueza, você ou eu, caçador ou
caça… Para além disso, uma fé cega, uma fé fanática no chefe
e na doutrina, uma doação total para todos os sacrifícios, uma
doação sem reservas de tudo o que somos e o que temos… Para
a pessoa desesperada, que se sente um pouco mais baixa a cada
dia — que salva-vidas e que razão de ser! Controlar a crise: isso
exigia um esforço prodigioso e “qualidades” especiais, aquelas
que, imediatamente, o nacional-socialismo cerca de um culto
profundamente religioso: a atividade, o espírito de ofensiva, a
força e a habilidade, a coragem física e a brutalidade impiedosa
— o heroísmo. Ao mar com o resto: a erudição, a ciência, a inte-
lectualidade em todas as suas formas, o espírito de distinção, a
sutileza e a prudência, identificada com o espírito burguês. Da-
queles que queriam transformá-la, a Alemanha da crise exigia
uma tensão, uma espécie de coragem no esforço cotidiano que
se ia perdendo um pouco mais a cada dia e que, por si só, pode-
ria desencadear novamente as piores agressões, bem como uma
ligação total, absoluta e constante com o chefe. Foi isso que o
66 Lucie Varga

nacional-socialismo conseguiu forjar, com sua fé cega numa


doutrina de simplificação infantil do universo, a embriaguez
do sacrifício do indivíduo por fins que estavam além dele e de
sua escatologia, ao mesmo tempo terrestre e metafísica.

Como já dissemos, o rebaixamento e a inquietude social pro-


duzem os desesperados e preparam os convertidos. Original-
mente, apenas um punhado de homens, um pequeno núcleo
de convertidos, de fanáticos. Um grupo de homens que, antes
de sua conversão, encontravam-se em diferentes meios sociais,
com diferentes condições econômicas. Ligados agora, depois
da conversão, pela experiência do desespero que se revelou
comum, pela experiência comum das novas possibilidades en-
trevistas. Átomos sociais antes da comunidade, agora veículos
revolucionários. Erlebnisgruppen, poderíamos chamá-los em
alemão, um termo intraduzível em francês.15 Em todos os Er-
lebnisgruppen, trata-se de fenômenos psicológicos que o histo-
riador das religiões nos revelou: qualquer conversão religiosa
ou política passa pelas mesmas etapas psicológicas, sem ser
uma questão de religião propriamente dita. Mas, na véspera,
há a sensação de vazio, de desespero mais ou menos agudo, dos
primeiros encontros, da chave do mundo achada: doação de si
mesmo, abandono a novas doutrinas que persuadam os prepa-
rados para além de toda lógica, de todo símbolo, mitos e livro
santo. Os Erlebnisgruppen diferem entre si na intensidade de
sua experiência e no conteúdo de suas respostas, mas, se suas
doutrinas são fortes o suficiente, eles conseguem criar um tipo
15
Erlebnisgruppen: literalmente, “grupos de aventura” ou “grupos de experiên-
cia”. Atualmente, o termo é utilizado para descrever passeios organizados para
jovens, geralmente na natureza, e para fomentar a socialização. [N. A.]
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 67

de homem modelado, inclusive no aspecto físico, à sua ma-


neira de ver a vida.

II

De que dependem as respostas dadas às convulsões econômicas,


às pressões sociais? Elas são livres e indefinidas? Ou, se não como
um programa e doutrina especiais, pelo menos, mais profunda-
mente, como atitude social, não são elas ditadas, determinadas
pela história nacional? Não, as teses do nacional-socialismo não
foram forjadas nas ideias filosóficas do século XIX; mas o nacio-
nal-socialismo nos parece incompreensível se não levarmos em
consideração a história do século XIX. Quais são os fatos histó-
ricos a serem lembrados para explicar seu advento?
Primeiro, a posição relativamente frágil da burguesia alemã
no corpo social do país. Ela nunca teve seu grande estatuto. Nem
seu 1789. Como “Terceiro Estado”, ela nunca teve a vitória. Antes
de 1848, sem dúvida revolução, mas toda “ideológica” e de “puro
espírito”. Marx a descreveu em 1846 nos seguintes termos:

De acordo com informações fornecidas por filósofos alemães (ideó-


logos), a Alemanha passou por uma transformação sem paralelo
nos últimos anos. A desintegração do sistema religioso que come-
ça com Strauss evoluiu para uma fermentação universal na qual
todos os poderes do “passado” foram atacados… Foi uma revolu-
ção diante da qual a Revolução Francesa teria sido apenas um jogo
de criança, uma luta mundial diante da qual as lutas dos Diodoro
parecem mesquinhas.16 Princípios se pressionavam, os laços do

16
Diodoro Sículo: historiador grego do século I a.C., escreveu uma história uni-
versal em quarenta livros.
68 Lucie Varga

pensamento se chocaram com incrível rapidez e, de 1842 a 1845, a


Alemanha mudou mais do que em três séculos comuns.17

Na verdade, as tentativas de libertação política e econômica


fracassaram miseravelmente. Uma revolução abortada não se
recuperaria? Para a Alemanha, o fato foi decisivo; resultou em
uma das características fundamentais da vida social na Alema-
nha: um dualismo social que persiste até os dias atuais. Uma
burguesia, porém mantida na sombra por uma Corte. A hie-
rarquia social no século XIX era baseada em valores diferentes
daqueles que contavam na Europa Ocidental. No primeiro es-
calão de honra social, o nobre, o oficial, depois o funcionário
público; apenas bem depois o industrial, o financista, o comer-
ciante. Nesse clima, o que faltava à maior parte da burguesia
alemã — exceto para alguns chefes — era uma forte autocon-
fiança. Para a burguesia industrial, comercial e média, a fá-
brica, a empresa comercial e o banco não conferiam prestígio
nem glamour se não estivessem entre os primeiros. O contato
com a matéria, o dinheiro, as economias transmitiram-lhe,
pelo contrário, não sei qual sentimento de vergonha. O filho
ou neto, se ele subiu acima do nível social de seus ancestrais,
foi entrando no Exército ou abraçando uma carreira “acadê-
mica”: o espírito, purificado; a universidade era seu templo, os
Herren Professoren [senhores professores], seus sacerdotes; os
alunos, seus iniciados. Uma clivagem secreta dividia a Alema-
nha — para agrupá-la: Gebildete [educado] de um lado, Unge-
bildete [sem educação], do outro: termos intraduzíveis, porque
17
Ver Karl Marx. Deutsche Ideologie [A ideologia alemã], t. V, edição do Institu-
to Marx-Engels, p. 7. [Marx e Engels, nessa passagem escrita em 1845, são irôni-
cos em relação aos “jovens hegelianos”, filósofos como David Friedrich Strauss,
Max Stirner, Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach, para os quais uma grande revo-
lução estaria ocorrendo na Alemanha — mas, para Marx e Engels, ela ocorria
apenas no terreno do pensamento puro, e não na realidade].
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 69

os dois termos franceses correspondentes, “culto–não culto”,


não ressoam profundamente; é uma cultura intelectual forma-
lista manifestada pelo título de Herr Doktor [senhor doutor]
conferido pelas universidades; Gebildete-Ungebildete, iniciados
ou reprovados: veredicto moral e social, pronunciado pela bur-
guesia sobre a burguesia. Continuação dos valores burgueses
em uma Alemanha onde muitos outros eram predominantes.

A Bildung18 na Alemanha tem uma longa história que seria in-


teressante escrever. É uma tradução, um aspecto do protestan-
tismo alemão, na medida em que o progresso industrial cor-
responde ao puritanismo inglês. Além disso, no século XVIII,
tinha mais uma grande função a cumprir: a Alemanha, frag-
mentada em pequenos estados, era uma nação apenas pela Bil-
dung, que, sozinha, parecia uniforme. A Alemanha era apenas
Kulturnation [nação cultural]. Na miséria política e contra a
miséria política surgiu um reino espiritual. No início do século
XIX, a Bildung decorrera, como acabamos de ver, de uma vitó-
ria da burguesia.
Mas a fragilidade da burguesia alemã não pode ser expli-
cada apenas por sua revolução fracassada. Ela também tem
outras causas. Acima de tudo, a velocidade, até mesmo a mag-
nitude, de sua prodigiosa ascensão material durante o último
quarto do século XIX. Ela não só alcançou as burguesias da
Inglaterra e da França: ela as ultrapassou. E a que ritmo, de
repente acelerado! Em 1800, uma Alemanha quase medieval:
78% da população vivendo no campo; 80% trabalhando na

18
Bildung: palavra que não tem tradução exata em português, mas que pode
aqui ser entendida como “formação”, no sentido de “cultivo” do indivíduo.
70 Lucie Varga

agricultura; apenas 17 cidades com mais de 10 mil habitantes.


Nas cidades, as corporações; no campo, a Erbuntertänigkeit,19
prendendo o camponês ao solo, e uma economia em grande
parte autônoma. Uma proliferação de pequenos estados que se
cercavam todos de uma barreira de impostos e taxas com sis-
temas de pesos e medidas específicos para cada um deles. No
entanto, em 1834, 18 deles se aliaram na Zollverein.20 Em 1821,
ocorre o fim da Erbuntertänigkeit e a abolição, em quase todos
os lugares, das corporações. Em 1835, a primeira linha ferro-
viária é inaugurada entre Leipzig e Dresden; em 1845, o com-
primento dos trilhos atingiu 2.300 km, 6 mil em 1850, 20 mil
em 1871 — e 56 mil em 1905. O desenvolvimento da navegação
segue também em ritmo acelerado. E a indústria? Em 1800,
ela ainda trabalhava sem maquinário moderno — e, sozinha,
a indústria do algodão, sob o impulso napoleônico em 1812,
sofria um impulso repentino. Em 1837, as máquinas a vapor
forneciam uma força de 7 mil c.v.; depois de 1850, o vapor fez
sua entrada triunfal. Em 1840, a produção de ferro na Alema-
nha vinha somente atrás da de Inglaterra, França e Bélgica; em
1900, ela tomou a liderança de todos os países europeus. Após
1871 e da afluência de seu ouro, a grande indústria metalúrgica
e a indústria de corantes se estabeleciam. Enfim, foi nessa épo-
ca que a exportação, o “Made in Germany”, foi criada.
Esse rápido crescimento econômico, industrial e técnico
em tal escala requer adaptações sociais rápidas, uma reorga-
nização integral e profunda da vida, na qual, necessariamen-
te, há falta de estabilidade. Desintegração repentina de antigas

19
Erbuntertänigkeit: subserviência hereditária, uma forma especial de depen-
dência econômica e pessoal do camponês em relação ao senhorio, semelhante
à servidão.
20
Zollverein: aliança aduaneira dos estados alemães, que teve como meta a li-
berdade alfandegária.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 71

tradições e convenções; migração em massa e apressada para as


cidades; pequena burguesia provinciana que se torna grande;
a indústria média que, vinda do campo, instala-se na cidade:
tantas convulsões sociais. Resultado: o enfraquecimento do
“espírito burguês” em um país com um rico passado históri-
co, onde não havia muitos sobreviventes de estratos sociais que
haviam florescido antes, e jamais vencidos desde então. Um
enfraquecimento que surge do próprio sucesso, que resulta da
mudança quase milagrosa da indústria alemã para o primeiro
plano da cena mundial: não podemos nos transferir para outro
plano econômico e social sem que as velhas tradições, em que
vivemos, se danifiquem.
Na verdade, a burguesia alemã, cujo esforço criativo foi tão
prodigioso, não soube implantar sua ideologia em seu país. E
esse esforço deixou círculos sociais resistentes à sua influência
— círculos com um prestígio social e uma autoridade políti-
ca superiores à sua, círculos nos quais não era o burguês da
capital, mas o oficial, o senhor, que representavam o ideal so-
cial. Esses círculos reacionários tiveram, no período anterior a
março de 1848, no Vormärz,21 seus principais teóricos: Haller,
Adam Müller, Stahl, Radovitz. Depois de 1848, a reação teve
seus oponentes conservadores como Paul de Lagarde. Na po-
lítica prática, eles eram, em parte, muito poderosos. Não eram
um meio social sem uma força vital. De suas fileiras veio um
Bismarck. Eles tinham seu próprio clima de ideias. E, muitas
vezes, passando pelos anais do século XIX alemão, folheando
memórias, biografias e jornais, nos deparamos com o nacional-
-socialismo! Encontramos as mesmas palavras e fórmulas de
propaganda: estou pensando no tom de partidos antissemitas

21
Vormärz: período que vai da derrota de Napoleão e o estabelecimento da
Confederação Alemã, em 1815, até as Revoluções de Março de 1848.
72 Lucie Varga

como o Preussische Volksverein22 por volta de 1860, e os outros


que foram formados nos anos de 1873 a 1893; estou pensando
no Soziale Reichspartei [Partido Social do Reich], que já em
1880 professava o antissemitismo racial, organizava congres-
sos e publicava brochuras e folhetos. Mais ou menos na mesma
época, o pregador da Corte, Adolf Stöcker,23 e Von Hammers-
tein, deputado do Parlamento, com seu órgão, o Kreuzzeitung,
reuniam em torno de si elementos anticapitalistas ou antes an-
timecânicos, vindos em particular da nobreza e do clero rural:
elementos hostis ao liberalismo econômico e temerosos da gi-
gantesca industrialização da Alemanha. Uma grande parte dos
camponeses seguiu Stöcker, sobretudo em Hesse; eles também,
desde cerca de 1890, conheciam as armadilhas do dinheiro e
abominavam seus credores “impiedosos” com ódio implacá-
vel. Também o seguiram alguns dos artesãos “retardatários”,
preocupados com a abolição, em 1869, dos últimos vestígios da
organização corporativa medieval; seguiram-no funcionários
públicos e estudantes, todos sonhando com uma organização
social evoluída, todos confundindo capitalismo e judaísmo
na mesma desaprovação. Stöcker já conhecia a arte, tão bem
praticada pelos oradores nazistas, de elevar a temperatura de
uma sala de reuniões fazendo-lhe perguntas ressonantes sobre
os judeus. Traduzo: “Dizem que jogamos as pessoas umas contra
as outras, mas quem continua provocando? Quem?”. E o público,
a uma só voz: “Os judeus!”. O orador continua: “Quem, durante
o Kulturkampf,24 continuou colocando lenha na fogueira?”. O

22
Preussische Volksverein: Associação do Povo Prussiano, organização conser-
vadora e antiliberal da Prússia na década de 1860.
23
Adolf Stoecker (1835-1909): político alemão conservador, promotor do an-
tissemitismo e fundador do Partido Social Cristão Alemão.
24
Kulturkampf: literalmente “luta pela cultura”; conflito que ocorreu de 1872 a
1878 entre o governo do reino da Prússia liderado por Otto von Bismarck e a
Igreja Católica Romana liderada pelo papa Pio IX.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 73

público: “Os judeus!”. “Quem incitou as conferências de pasto-


res contra a nossa Igreja, contra todos aqueles que se atrevem
a reivindicar uma Alemanha cristã?”. A sala, batendo com os
pés no chão: “Os judeus, os judeus!”. Daí lutas, daí tumultos.
Mas Stöcker — além de um político com convicções honestas
e talento organizador — atacou Bleichröder, o banqueiro judeu
da Corte: o imperador então pôs fim a essas campanhas tur-
bulentas; Stöcker caiu em desgraça (1892); no entanto, a luta
continuou, em segredo, mais astuta e vingativa.

Sob esse dualismo feudal, sob esse estranho império de ideias


pré-capitalistas, nesse país onde a indústria estava tão desen-
volvida, a própria burguesia parecia disposta, sempre, a aco-
lher as ideias antiburguesas da época. Na virada do século, ela
não trouxera um legado perigoso? E ela não tinha se aliado, em
1813, a ideias inadequadas para fazer uma revolução burguesa?
Toda essa paixão turbulenta e todo o sentimentalismo medío-
cre — este culto panteísta da Natureza, da Juventude, do Senti-
mento, da Onda, do Elã, como se manifesta no Wartburgfest,25
como se incorpora mais tarde, em 1832, no Hambacher Fest,26
toda esta luta contra Napoleão e sua obra, contra a Razão tira-
nizadora — não foi um legado funesto? E quantos pregadores
de uma atitude antiburguesa em relação à vida nas próprias
fileiras da burguesia? Destes, quase desconhecidos na Fran-
ça, com uma notoriedade retumbante na Alemanha, citemos

25
Wartburgfest: festival de espírito nacionalista realizado em 1817 por estudan-
tes universitários no castelo de Wartburg, que serviu de refúgio a Lutero.
26
Hambacher Fest: festival realizado em 1832 no castelo de Hambach, deman-
dando a união nacional.
74 Lucie Varga

apenas Langbehn e seu Rembrandt als Erzieher (1887).27 Rem-


brandt, para o autor, é o típico representante da Baixa Alema-
nha. E a Baixa Alemanha é delicadeza de coração, sentimento
correto, franqueza, alegria; rusticidade, sem dúvida, mas tam-
bém robustez; e Langbehn, para pregar a sobriedade, para fazer
campanha contra o café e o concerto, despejava em seu livro,
no entanto, as ondas turvas de um misticismo racial apoiado
por uma craniologia arianista. No todo, com muitas doutrinas
antidemocráticas, declamações contra os filisteus, reverências
aos nobres.
E, sem dúvida, esse filho de professor primário, esse fra-
casso, em si mesmo não tem importância; importa apenas sua
influência. Mas, e Nietzsche? Nietzsche, o cantor da vida heroi-
ca, da vida sem a segurança do dia seguinte, sempre agressiva
e tensa — não foi Nietzsche, o antifilisteu, que se tornou, no
limiar do século XX, o apóstolo da juventude intelectual em
revolta contra a escola, contra a família, contra a autoridade? E
não deveríamos mencionar aqui as próprias associações dessa
juventude, as ligas de “aves migratórias” nas quais se agrupa-
vam os fugitivos da escola, os insurgentes do lar? Um progra-
ma público, ponto final. Mas de profundas antipatias sociais.
E rancores que geram programas antiescolares. Associaram-se
no culto da simplicidade perdida e da consciência inocente.
Além disso, uma arte folclórica, a ressurreição das Volkslied
[canções populares] e do Laute [alaúde], o desprezo pelas ar-
tificialidades da toalete e pelo refinamento do vestuário. E,
claro, nenhuma unidade nesse movimento; divisões, frações,
nuanças. Mas o número geral é impressionante: em 1913, em
seu auge, as ligas juvenis federadas podiam ter 40 mil mem-

27
Rembrandt als Erzieher (Rembrandt como professor): livro de orientação na-
cionalista de Julius Langbehn (1851-1907).
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 75

bros.28 Inclusive membros da juventude acadêmica pertencen-


tes à nobreza e à classe média alta, que, concluídos os estudos,
ingressariam na alta administração ou ocupariam as profis-
sões liberais. Mesmo esses privilegiados, em seus “Corpos” e
durante seus anos de estudo, afetavam em todos os sentidos
uma atitude antiburguesa e antifilisteia, retomada pelas tradi-
ções dos “Corpos” revolucionários da época do Romantismo.
Esses “Corpos” (a Burschenschaft [fraternidade estudantil] os
imitava em outros lugares) constituíam, como sabemos, uma
escola de disciplina e um instituto de treinamento eficiente, ao
lado das universidades, e que exaltavam outros valores.
Como era tênue, de modo geral, na Alemanha a tradição
democrática e liberal, a tradição burguesa propriamente dita!
O que ela pesava diante desta outra, em que se poderia basear o
nacional-socialismo: uma dupla tradição — de antiliberalismo,
por um lado, com franqueza reacionária e conservadora, com
nostalgia francamente pré-capitalista; e de antiburguesismo,
por outro, induzindo o próprio burguês a devaneios “antimá-
quina”: no campo das letras, eles se expressam por explosões de
neorromantismo — e, no campo da filosofia, pelas “escolas” da
Lebens-philosophie, “filosofia da vida”.

III

Tentemos agora fazer a imagem mais próxima possível da rea-


lidade da Alemanha social de hoje, três anos após o advento do

28
Ver Fritz Jungmann. Autorität und Sexualmoral in der freiburgerlichen Ju-
gendbewegung dans Autorität und Familie (Studien aus dem Institut fü Sozial-
forschung) [Autoridade e moralidade sexual no movimento de Freiburg, com
autoridade e família (estudo do Instituto de Pesquisas Sociais)]. Paris, 1937, p.
669. [N. A.]
76 Lucie Varga

nacional-socialismo. Para tal, devemos nos fazer duas ou três


perguntas, mas perguntas cruciais. De acordo com quais prin-
cípios se agrupam os descontentes e os satisfeitos? Aqueles que,
economicamente falando, ganham e lucram mais são os mais
contentes? E podemos identificar os refratários aos membros
de uma determinada classe ou categoria?
Aqui novamente nos encontramos, na verdade, diante de
uma série de Erlebnisgruppen, com os quais o nacional-socia-
lismo joga com infinita habilidade para tirar-lhes o máximo
possível. Resta um núcleo dos primeiros fanáticos, da primei-
ra geração. Estes puros dentre os puros, o nacional-socialismo
os honra considerando-os membros de uma espécie de ordem
religiosa. Ele lhes deu cargos, não muito importantes, na admi-
nistração; ao mesmo tempo, eles têm uma patente muito eleva-
da na SA. Mas lá se encontram grupos de oposição: grupos de
antigos combatentes da era heroica, que temem perder sua in-
fluência social e, novamente, sua honra social. Ameaça-os o 30
de junho de 1934, a instituição do serviço militar de dois anos,
o aumento crescente do Exército regular. Ameaça-os, acima de
tudo, a palavra do Führer: “A Revolução está liquidada!”. O quê!?
O tempo deles então passou, a hora deles, os “agressores”, os
belicistas, os promotores do movimento? Teria chegado a hora
de organizações, de técnicos, de especialistas, de engenheiros,
da polícia etc.? Bem, não! Admitir que os inimigos internos
estão dominados e a luta acabou? Não! Pôr um ponto final na
experiência de combate e de agressão com “mãos livres”? Não!
Teimosos, ferozes, obstinados, os resmungões da velha guarda
repetem seu slogan: “A revolução continua”…
No entanto, o núcleo dos primeiros fanáticos, o nacional-
-socialismo busca conscienciosamente fortalecê-lo, aumentá-
-lo, perpetuá-lo, reservando para ele, na medida do possível,
os cargos de juízes, diretores e editores de jornais, professores
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 77

e auditores, servidores públicos seniores em geral. A espinha


dorsal dos funcionários do Estado é, portanto, a espinha dor-
sal do regime, uma espécie de “ordem alemã” que, lentamente,
deve se tornar o Estado; toda a educação nacional-socialista na
escola e mais ainda fora da escola, na Juventude Hitlerista, tem
apenas um objetivo: criar fanáticos, cem por cento devotados,
apenas formados e treinados para serem fanáticos nacional-so-
cialistas. A racionalização do fanatismo e sua estabilização tor-
naram-se artes políticas modelares.
Não se imagine, aliás, que fora do governo propriamente
dito esses homens ganhem muito. Eles são pagos sobretudo
com honrarias. É a convicção de estarem no centro, no próprio
coração da nação, que os sustenta, os enche de orgulho e os
enche de satisfação. Ao lado, temos aqueles do segundo círculo
— aqueles que o nacional-socialismo atraiu mais do que des-
pertou, aqueles a quem o regime confia todas as tarefas orga-
nizacionais, grandes ou pequenas. Os especialistas (Fachleute
[profissionais]), os “técnicos” em geral — aliás, de primeira or-
dem, operam com todo o entusiasmo amoroso de verdadeiros
diletantes. Homens novos em sua maioria, bem familiarizados
com seu trabalho, eles mantêm uma engenhosidade de autodi-
datas: essas pessoas engenhosas, de olhos bem abertos para a
realidade, facilmente intoxicadas por cifras e números, repro-
duzem o tipo intelectual do engenheiro americano. Encontra-
mo-los em todos os lugares, em escritórios, no assentamento
rural (Siedlungsgesellachalten), no Reichsnährstand, no Arbeit-
sfront, no Reichakulturkarnmer, no Arbeitsdienst e em outros
lugares.29 Nacional-socialistas afáveis, claro, mas sobretudo
técnicos mestres de sua técnica, especialistas mestres de sua

29
Reichsnährstand, Arbeitsfront, Reichakulturkarnmer, Arbeitsdienst: organis-
mos públicos referentes, respectivamente, a agricultura, trabalho, cultura e ser-
viço voluntário.
78 Lucie Varga

especialidade no domínio que lhes é confiado, são, dentro des-


ses limites, fanáticos por “servir”, apegados ao dever material,
ávidos por querer vencer, obstinados em resolver teimosamen-
te o problema que resiste. Para o resto, para as doutrinas, veja
Rosenberg e Göebbels:30 a cada um, seu trabalho. A terra é lim-
pa, os colonos se estabelecem, as autoestradas se multiplicam,
o desemprego diminui, os fornos são acesos; então, está tudo
bem, a Alemanha está funcionando, a Alemanha está progre-
dindo, é isso que é preciso. E aqueles que a princípio vegetaram
como taxistas ou garçons, aprendizes na fábrica ou manobris-
tas na fazenda — a eles, a Alemanha soube distingui-los, colo-
ca-los em seu verdadeiro lugar: assim acabou o dejeto humano
pré-Hitler; portanto, a Alemanha nacionalista é a verdadeira
Alemanha democrática; não é à toa: não existe ditadura que
não extinga castas e não liberte certos grupos. E, sob qualquer
tirania, “servidores fiéis” podem fazer carreira independente-
mente de seu berço e de suas tradições sociais. Tais são os “con-
fidentes” pessoais do tirano da Antiguidade; tais são, hoje, os
membros aprovados do partido nos regimes fascistas.
Em seguida vêm os nazistas passivos. A massa. Aqueles que,
desde seu nascimento, são apanhados nas engrenagens de uma
admirável máquina distribuidora de maná — máquina que nun-
ca os abandonará até o dia de sua morte. Eles se casam? O par-
tido totalitário lhes dá créditos de casamento. Eles têm filhos?
Eles recebem Kinderbeihilfe [“salário-família”]. Eles viajam?
À sua disposição, cupons e preços reduzidos, excursões com-
binadas, jogos, esportes, espetáculos de todos os tipos. Nós os
treinamos. Nós os apoiamos. Nós os seguimos. Nós lhes damos
trabalho. Com isso, não há nenhum seguro social na Alemanha
que não seja propaganda, nenhum seguro social que não impli-

30
Alfred Rosenberg e Joseph Goebbels.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 79

que um controle… Mas abrir mão de tantas vantagens vitais


(os refratários, é claro, não têm nada), isso exige heroísmo…

O heroísmo… um pequeno grupo de homens na Alemanha o


implanta. Eles são homens de fé divina e espírito religioso.
Em primeiro lugar, e acima de tudo, católicos fervorosos.
Não os tratemos como “classe”. Eles vêm de todas as regiões
católicas da Alemanha, de padres rurais e seus rebanhos de
camponeses a professores universitários e grandes eruditos.
Ao lado, protestantes que se incomodam com a impiedade dos
governantes, com o escárnio das coisas sagradas, com o neo-
paganismo dos nazistas, seu culto anticristão da juventude, da
beleza física, do corpo do homem. Nem todos podem se unir
de corpo e alma ao regime, como o próprio bispo do Reich. Eles
se opõem violentamente à abolição da organização sindical,
presbiteriana, e não querem um Fuhrerprinzip em suas comu-
nidades.31 Saídos das fileiras dos Deutschenthoisten [“entusias-
tas alemães”] antes de se alinharem ao poder, eles formaram a
Bekenntniskirche [Igreja confessional] que, recusando qualquer
pacto com o diabo e seu governo, busca sua salvação em um
biblicismo estreito e rigoroso. Também eles já têm seus márti-
res: tantos pastores presos ou destituídos — vários emigrados,
de grande fama: Karl Barth, Fritz Liepete. Para todos, para to-
dos os membros de muitas seitas espalhadas pela Alemanha,
o problema é o mesmo: opor à religião política totalitária do
nacional-socialismo uma religião totalitária divina.32 Daí o re-

31
Fuhrerprinzip: literalmente “Princípio do Líder”, sistema hierárquico de líde-
res que foi o fundamento jurídico do sistema político nacional-socialista.
32
Cf., sobre este assunto, Lucie Varga. “La Recherche historique et l’opposition
catholique en Allemagne”. Revue de Synthèse, t. XIII, fase 1, fev. 1937. [N. A.]
80 Lucie Varga

nascimento de um fervor religioso que se poderia pensar há


muito extinto.
Ao lado desses homens de fé, os antigos liberais. Eles não
foram mortos. Eles não foram forçados a emigrar. Às vezes
até mesmo permaneceram no mesmo lugar, nas posições que
ocupavam “antes”. Mas a vida a que estão condenados — a
comparação está nos lábios de todos, assim que ganhamos
sua confiança — é uma vida de caracol em sua concha, ou, se
preferir, de cadáver antes da hora. Velhos mestres totalmente
esquecidos (“Ei, ele não morreu?”), antigas celebridades que
agora são um zero à esquerda, miseráveis derrotados para
quem tudo e todos, todos os dias e todas as noites, demonstram
que seu tempo acabou, que são do passado, da era desapareci-
da, colapsada, enterrada — da era do liberalismo democrático
burguês.
Igualmente isolados, os “aproveitadores” e doadores des-
contentes do nacional-socialismo, os junkers33 e os grandes
industriais. O junker recebeu o crédito que lhe foi oferecido.
Não devemos isso à sua dignidade? Mas ele suporta com impa-
ciência o controle desse crédito, as prescrições draconianas que
lhe são impostas quanto ao cultivo e à criação, a perda de seu
prestígio senhorial e a diminuição de seu prestígio social. Clas-
sificado como “reacionário”, ele tem menos influência e menos
estima no Estado do que antigamente, na época da República
de Weimar. E fica, além do mais, com o coração partido ao ver
seus filhos se levantarem contra ele e suas ideias, e, conquis-
tados pela propaganda educativa dos nazistas, juntarem-se ao
movimento, entregando-se de corpo e alma…
A mesma coisa no mundo industrial. As fábricas operam
graças ao crédito do Estado. Mas esse crédito deve igualmente

33
Junker: título honorífico dado à elite latifundiária.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 81

ser pago. Controle preciso, exato e minucioso — insuportável.


A cada dia, uma rede de leis une um pouco mais essas pessoas.
E tudo lhes é ditado, prescrito, ordenado: o que devem comprar
de matéria-prima, como devem fazer os trabalhadores traba-
lharem, quanto devem lhes pagar, a que preço devem vender
(ver o recente conflito com a indústria química) e que lucro
podem reter para si — no máximo 6%, e devem depositar o
resto obrigatoriamente no Golddiskontbank,34 à disposição do
Estado. Se eles não andam em linha reta, são destituídos.
Os junkers e a grande indústria: falta o terceiro dos doa-
dores de fundos, o Reichswehr [as Forças Armadas]. Um alia-
do prudente do regime, claro, mas evidentemente um corpo à
parte. Aliado cheio de reservas e desdenhoso desses autodida-
tas em questões militares. Sim, democratizamos a profissão de
soldado, democratizamos o uniforme. O uniforme, para um
oficial, era também um sinal de sua casta, de sua superioridade,
de sua distinção… A camisa marrom, o uniforme nacional-so-
cialista, tem outra função. Não simboliza distinções sociais em
relação ao nascimento, à educação etc.; pelo contrário, apaga-
-as. E se ela distingue, ou melhor, se ela também distinguia, em
seu tempo, era em outro nível.
Ainda há insatisfeitos entre os camponeses, cuja vida in-
teira foi mudada pelo novo regime, pela estrita organização da
venda de produtos, por toda uma legislação de cujas interpre-
tações se ocupam 1.500 tribunais na Alemanha: descontentes
que rugem baixo, mas, esperando, procuram administrar da
melhor forma possível o novo mundo que foi criado para eles.
Enfim, insatisfeitos entre os trabalhadores. Eles têm empregos,
é verdade — mas os salários são tão miseráveis. Ter um empre-
go de novo, é difícil imaginar o milagre que foi para eles, há
34
Golddiskontbank: banco estatal fundado em 1924 para promover a indústria de
exportação alemã, através do financiamento da importação de matérias-primas.
82 Lucie Varga

tanto tempo condenados ao desemprego. Que choque, porém,


é a realidade! Eles dificilmente têm o suficiente para garantir
uma existência miserável. Um bom metalúrgico ganha cerca
de 30 Reichsmark35 por semana — e só trabalha três em cada
quatro semanas. Na Opel, um estofador ganha 60 pfenning por
hora, um recepcionista, 80 pfenning. Mais economias em cima
deles. Aqueles que possuíam economias geralmente as coloca-
vam nas cooperativas de consumo (Konsumvereine), e agora as
perderam, pois as Vereines foram estranguladas pelo regime.
A comida é cara. O gás aumenta. Seus salários estão sobrecar-
regados com vários impostos. Alguns iluminados, comunistas
em sua maioria, arriscam suas vidas impulsivamente; as mas-
sas vegetam e pensam apenas em subsistir da melhor maneira
possível, em unir-se aos sindicatos e à proteção dos trabalhado-
res, por um lado, e ao desemprego, por outro.
Vamos resumir. Crise? Explicação vaga: ela explica tudo e
nada. A crise é um fato geral, um fato internacional; não é um
fato especificamente alemão. O que é específico são as várias
respostas dadas à crise: respostas em relações estreitas, e neces-
sárias, com as tradições profundas de cada país. O nacional-so-
cialismo: a resposta alemã à crise, claro. Intimamente relacio-
nado à história alemã, que em um ponto parecia se fundir com
a da Europa Ocidental — e que desde então se mostrou voltada
para uma direção diferente.
O nacional-socialismo era mais do que uma mudança de
nome em benefício de uma classe. Nem os doadores de recursos
foram socialmente recompensados, nem os agentes do movi-
mento eram membros de uma classe agindo como tal. Original-
mente, indivíduos desesperados e ameaçados, fundamentalmen-
te hostis à República de Weimar, imbuídos de ódio desdenhoso

35
Reichsmark: moeda oficial na Alemanha de 1924 a 1948.
A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social (1937) 83

contra o liberalismo e a democracia, hostis ao movimento capi-


talista moderno, repletos de nostalgias pré-capitalistas. O apelo
ao sentimento de uma propaganda habilidosa despertou ecos
poderosos em seus corações. E foi somente após sua conversão
ao nacional-socialismo que essas pessoas isoladas formaram um
grupo — um grupo de ataque revolucionário e esclarecido.
Depois de 1933, os sonhos pré-capitalistas tiveram que ser
liquidados. Tratava-se, agora, não de um retrocesso, mas de re-
colocar a Alemanha em seu lugar, na escala econômica interna-
cional, por um esforço de produção, de economia dirigida, de
racionalização e de excessiva centralização. Chega de “socia-
lismo” no nacional-socialismo. Seus propagadores, os irmãos
Strasser, foram eliminados. Um foi assassinado, o outro vive
exilado em Praga.36 E o velho rancor contra o “burguesismo”
é ele próprio posto a serviço de um Estado cada vez mais me-
canizado e industrializado: continuamos a apelar para o herói,
para o “heldischen Menschen” [pessoa heroica], contra o bur-
guês, o Raffer [avarento] e o Bürger [endinheirado]37 do passa-
do. Habilidade suprema: para resolver os problemas econômi-
cos e administrativos inevitavelmente impostos pela conduta
de um Estado moderno, o nacional-socialismo, portanto, usa
descaradamente inúmeras antipatias que datam de muito tem-
po atrás, na Alemanha, contra o liberalismo e a democracia.

36
Irmãos Gregor e Otto Strasser: líderes de uma vertente do Partido Nazista
que se opôs às ideias e práticas mais extremistas de Hitler, propondo uma es-
pécie de anticapitalismo socialista, ainda que de caráter nacionalista. Gregor foi
assassinado em 1934, durante o episódio que ficou conhecido como a “Noite
das Facas Longas”.
37
Bürger: hoje a palavra significa “cidadão”, mas antigamente referia-se aos mo-
radores das cidades, geralmente mais ricos e influentes do que os camponeses
e trabalhadores braçais, porém mais pobres e menos influentes que os nobres.
Um problema de método em
história religiosa: o catarismo1
(1936)

A Igreja criou a Inquisição. Podemos alegar sua inocência, mas,


se nos situarmos no terreno das nossas ideias morais, a súplica
é difícil. Podemos, também, “explicar” essa criação apelando
para um conveniente e hábil relativismo: o antigo método com-
provado. É a ele que Jean Guiraud recorre com talento na sua
recente e importante História da Inquisição na Idade Média.2
Expor as necessidades sociais que condicionaram a Inquisição;
mostrar como a situação particular do sul, por volta de 1200,
determinou a criação do Santo Ofício: esse é o objeto de sua
obra. O trabalho do historiador, mas de um historiador que,
ocasionalmente, sabe atuar com discrição (e muitas vezes, sem
dúvida, de modo inconsciente) como um apologista.

1
Publicado originalmente em Revue de Synthèse, t. XI, 1936, p. 133-146. Tra-
dução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Celso Castro, Dirceu Mar-
roquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas dos organizadores estão
indicadas como [N. do Org.].
2
Ver Jean Guiraud. Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge. Paris: Picard, 1935,
in-8, p. 427.
86 Lucie Varga

As conclusões do sr. Guiraud podem ser resumidas da se-


guinte maneira:
I. A propagação da heresia cátara no sul da França era tal
que sua eliminação deveria aparecer como uma ques-
tão de vida ou morte aos olhos da Igreja.
II. Essa supressão não foi, apenas, no interesse da socie-
dade cristã que a postulava. A condenação pelos cá-
taros do casamento, da vida familiar, da propriedade:
tantas ameaças a qualquer sociedade ordeira.
III. A guerra tornou-se inevitável apenas pela teimosia
e insolência dos hereges. Além disso, o Santo Ofício
nunca empunhou nada além da espada espiritual (p.
41). Os legados limitam-se sempre a pronunciar san-
ções econômicas; eles nunca apelaram para o derra-
mamento de sangue; simplesmente pediram às au-
toridades seculares que reforçassem, com punições
materiais, as punições espirituais que eles estavam
infligindo. E para aqueles que aceitaram essas penas,
a Inquisição admitiu o perdão.

Não pretendemos discutir essas propostas. Nesta rese-


nha, podemos e devemos fazer somente uma pergunta: uma
pergunta de historiador, e não de polemista: o que nos traz o
livro do sr. Guiraud, historiador? Em uma palavra, propor-
ciona-nos conhecer a difusão do catarismo no espaço, em
seus ritos e sua organização, na cosmogonia de seus adep-
tos e em suas doutrinas teológicas, as somas mais amplas e
mais completas do que se poderia desejar — a coleção de fatos
mais abundantes, grandes ou pequenos, que sabemos extrair
hoje, seja de fontes originais ou de obras de segunda mão.
Acrescentemos que as fontes e obras são sempre usadas com
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 87

objetividade.3 Esses elogios certamente não são medíocres. O


monumento é durável.
Apenas, dito isso, o sr. Guiraud, rico em conhecimento de
fontes originais e com abundância de novos detalhes, nos dá
em seu livro, para o conhecimento das religiões do século XII,
mais ou menos o que Charles Schmidt escreveu em seu livro
de 1840 —, além disso, em um espírito bem diferente, já que
o historiador de Estrasburgo viu, nos cátaros, os precursores
da Reforma, da liberdade e progresso intelectual? No máximo,
podemos dizer que, em Schmidt, tivemos uma síntese anacrô-
nica, além dos detalhes — ao passo que, com o sr. Guiraud,
há detalhes históricos abundantes, mas nenhuma síntese (caso
contrário, talvez, e no sentido que mencionamos, uma síntese
apologética?). Como os próprios inquisidores do século XII, o
historiador de 1935 preocupa-se com as diferenças de doutri-
nas, concepções heréticas como tais e por quê; mas quanto a
procurar o que estava por trás dos dogmas, por assim dizer,
como para caracterizar a atitude religiosa, o clima religioso
comparado do catolicismo e do catarismo, quanto a tratar as-

3
No entanto, o uso de fontes exige duas observações. Em primeiro lugar, não
deveríamos fazer uma classificação mais clara por períodos e regiões? Parece
que tal classificação teria permitido apreender melhor não apenas a coordena-
ção de diferentes sistemas cosmológicos, mas ainda um certo desenvolvimento
do catarismo ao longo do tempo. Uma fé que, inicialmente compartilhada ape-
nas por uma seita do século XII, se torna a religião dominante de uma província
tão rica e avançada como o Languedoc de então e que sofreu a derrota material
mais definitiva, não teria evoluído? Em segundo lugar, todos aqueles que, nos
últimos 20 anos, descrevem o catarismo têm utilizado amplamente, tomando-o
como característico, o Rituel cathare, coletado por [Leon] Cléodat [1887], mas
sem antes ter discutido a questão de saber se esse ritual era realmente cátaro e
sem tentar determinar a data precisa de sua redação. É lícito? Observe que esse
ritual, em vários pontos, contradiz claramente o que sabemos, além disso, sobre
o catarismo. Não seria este um documento tardio, datando do tempo em que
uma espécie de sincretismo de seitas ocorria no sul, cem anos depois da grande
derrota? Mas, vamos retomar tudo isso em outro lugar.
88 Lucie Varga

sim os únicos problemas reais que surgem diante do historia-


dor, nada ou pouco. Iremos explicar.

Catolicismo, primeiro. O sr. Guiraud se refere à ficção de um


catolicismo estável, tradicionalista e imutável, idêntico a si
mesmo de século em século, e o mesmo em sua verdade abso-
luta hoje como no século XII? Se não, por que ele não nos diz
o que era o catolicismo do século XII? Por que não nos fornece
o esboço da “nova piedade” de um santo Anselmo, de um são
Bernardo, piedade fundada no sentimento que a criatura deve
experimentar diante de seu criador todo-poderoso, mas justo e
misericordioso? Por que não descreve o otimismo religioso do
século XII católico, para quem o medo de não ser salvo é um
pecado em si, e que sustenta que Deus enviou seu filho à terra
por uma necessidade da lógica divina?4 Otimismo que alimen-
tou, para além disso, a confiança do crente em seu poder de
penetrar os dogmas, de entender tudo em que ele acreditava
porque acreditava?
Catolicismo de uma elite, catolicismo de uma camada res-
trita de teólogos. Mas o sr. Guiraud compartilharia a ficção de
um catolicismo idêntico a si mesmo, no século XII, em todos os
estratos de uma determinada sociedade? E o catolicismo não é
capaz de engendrar, simultaneamente, por um lado, nos teólo-
gos de elite, o ascetismo espiritual mais desvinculado da maté-
ria; por outro, no leigo do comum, um sentimento de pecado
que o leva a um sacramentalismo e a um tipo de “mágica” de
práticas e ritos que podem ser descritos como grosseiros?

4
Ver o Cur Deus Meus [Por que Deus foi feito homem?] de santo Anselmo.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 89

Notemos, precisamente, o fato engraçado de que, dessas


duas tendências do “catolicismo”, os cátaros parecem conhecer
apenas a segunda. É contra o sacramentalismo, o ritual e as
práticas que eles polemizam; isso é o que eles chamam em sua
língua de materialismo eclesiástico, ou “superstições romanas”.
Por que eles ignoram a primeira corrente? Talvez porque fosse
inacessível para eles: restrito a uma fina camada de teólogos,
aquela ascese espiritual exigia uma longa e severa formação.
Seja como for, libertemo-nos de preocupações com detalhes
teológicos e perguntemo-nos globalmente: como o catolicismo
dos teólogos era diferente do catarismo no século XII?

O que encontramos no próprio coração do catolicismo? O que


caracteriza, essencialmente, o “mito católico” do século XII?
Constitui-se em torno de um Deus todo-poderoso e sua cria-
tura, por um lado; Jesus Cristo, Homem-Deus, intermediário
entre Deus e o homem, por outro. A criação de Deus é boa. De
tudo o que há de ruim neste mundo, a culpa é do homem, que
se deixou seduzir por Satanás. A alma do homem, dividida en-
tre seus apetites terrestres e suas tendências celestiais, trabalha,
à custa de uma luta incessante travada por seu livre arbítrio,
para se unir com a divindade.
No entanto, todos esses elementos estão faltando no “mito
cátaro” — ou melhor, eles estão aí completamente transfor-
mados. O essencial do mito cátaro, se retirarmos os detalhes,
consiste em um Deus espiritual que criou os anjos e os céus. O
diabo, convivendo com ele, entrou no Céu movido pela inveja.
Ao prometer-lhes esposas, filhos, riqueza, poder, ele seduziu
um terço dos anjos. E estes caíram do céu, seguindo-o, durante
oito dias, como um aguaceiro. Mas os caídos não conseguiam
90 Lucie Varga

esquecer o reino perdido. Portanto, o diabo, para roubar-lhes


toda lembrança das coisas celestiais, confinou-os dentro de um
corpo e criou o mundo.
Deus, vendo seu céu abandonado, se enfurece e se entris-
tece. Primeiro, segue-se uma terrível maldição sobre a terra
miserável, o anjo se tornou homem. Então, Deus pensa em ma-
neiras de retirar o homem de seu esquecimento — devolver-lhe
o desejo de alcançar os céus. Pois é para isso que serve a obra de
saudação para os cátaros — nisso, e apenas nisso.
Deus, portanto, compõe um livro. Depois de 40 anos, ele
pergunta aos anjos que lhe permaneceram fiéis: “Qual de vós
quer ser meu filho, cumprindo tudo o que está escrito nesse
livro?”. O livro contém o relato das misérias terrenas às quais o
anjo, desejando a honra de ser chamado de filho de Deus, terá
que se submeter. Todos os anjos, um após outro, leram o texto
do livro e desistiram. Sozinho, um espírito, chamado João, de-
clara-se pronto para descer ao mundo de Satanás: ambiente tão
estranho, porém, e tão terrível para ele, um espírito celestial.
João permanece um espírito; ele não se torna um homem; sim-
plesmente irá se associar à raça dos homens para trazer-lhes a
verdade cosmológica — e isso já é um martírio para um espí-
rito celestial, uma dor quase intolerável. O nascimento, assim
como a vida e a morte de Cristo, é feito somente na aparência
em um corpo humano; a doutrina dos cátaros é um docetismo
rigoroso.
O que Cristo revela aos homens não é uma moral, é um
mito e um culto. Ele os lembra de seu passado celestial. Ele os
ensina que, no céu, Deus atribuiu a cada anjo caído um para-
cleto que se unirá a ele no momento de seu despertar para a
verdade. Ele os ensina que, no céu, sua “túnica” os espera, isto
é, um corpo espiritual de beleza inexprimível. Que o mundo é
ruim, a matéria é abjeta por natureza. Para se salvar, devemos
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 91

nos livrar dela. A salvação é o retorno ao reino celeste. A con-


denação é uma metempsicose ininterrupta de corpo a corpo.
Veja os textos anteriormente publicados por Döllinger.5
Sendo a criação do diabo, o homem só pode ser condena-
do. Ele não tem livre arbítrio nem arrependimento. É apenas o
produto da luta entre Deus e o diabo. Deus quer salvá-lo para
encher seu Céu; Jesus-João não tem pena dele, simplesmente
aspira à honra celestial de ser filho de Deus, de ocupar esse pos-
to eminente na hierarquia espiritual. O homem é somente uma
bola no jogo das forças superiores. Nenhum caminho gradual
para Deus: nós “sabemos” ou não sabemos. Se você vive neste
mundo, não tem como não ser um pecador nem ter qualquer
gradação. O homem que possui, pouco importa que se entre-
gue à usura ou distribua esmolas; o homem que consente em
viver com uma mulher, não importa se é uma esposa legítima
ou sua mãe. Casamento, geração: coisas malditas; eles não aju-
dam o diabo a prolongar seu reinado?

Assim, doutrinas perigosas para a própria existência da socie-


dade? Doutrinas que arruínam a família, a vida econômica, as
instituições mais necessárias e fundamentais? Vamos pensar.
O próprio sr. Guiraud nos conta: a difusão da religião cáta-
ra no sul da França foi geral. Sabemos, sem dúvida, que a socie-
dade do sul era uma sociedade gananciosa e ávida, participan-
do de um comércio extenso e cheio de riscos, na atmosfera de
um “capitalismo pré-capitalista”, se é possível dizer, anárquico,

5
Ignaz von Döllinger (1799-1890): historiador e teólogo católico alemão. [N.
do Org.]
92 Lucie Varga

desorganizado, baseado em crédito desenfreado,6 em usura


igualmente desenfreada; um crédito baseado em promessas
muito complicadas.7 Por todas essas práticas, por todos esses
meios de obter lucro, associada aos estratos urbanos, há uma
nobreza ambiciosa, anárquica, sem autoridade ou segurança e
que, além disso, ainda manteve suas prerrogativas de nobreza
fundiária.8
É possível que os principais grupos sociais dirigentes, ativos
no centro de uma civilização em contínuo progresso material,
tenham professado doutrinas que os levariam à queda? É pro-
vável que eles tenham rejeitado uma fé, a fé católica, que não
se prestava a todas as possibilidades econômicas e sociais, em
proveito de uma religião cuja função teria sido destruir, antes de
tudo, a própria sociedade de seu Languedoc? Isso é implausível;
isso é contra qualquer lógica social: a religião dos estratos sociais
dominantes não tende, essencialmente, a manter o seu poder
para fortalecer sua organização, para facilitar seus negócios?
Mas não é exatamente isso que o catarismo parece fazer
bem? Como sabemos, a sociedade cátara era dividida em cre-
dentes e perfecti. Os credentes viviam neste mundo, dedican-
do-se ao comércio, aos negócios; eles eram conhecidos como
agiotas implacáveis. A nobreza cátara desfrutou, no mundo dos
trovadores, de uma civilização secular refinada, de luxo ini-
gualável e orgulho rebelde. Nobres e comerciantes viviam neste
mundo material, onde tudo era ruim, mas não havia pecado.

6
Proibido pelo Conselho de Toulouse, em 1189, de penhorar os túmulos da
família e os utensílios dos artesãos (cartulário de Toulouse).
7
Ver os testamentos da burguesia de Toulouse.
8
O sr. Guiraud parece negligenciar a participação na seita desses estratos urba-
nos — os comerciantes militantes, a nobreza comercial da cidade —, à qual a alta
nobreza rural só mais tarde aderiu, depois de ter feito as pazes com as cidades
em contínua revolta. O coração da seita é a cidade em revolta. Em vez disso, o sr.
Guiraud aponta, sobretudo, minuciosamente, a nobreza fundiária.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 93

Para serem salvos sem renunciar a nada bastava que, na véspe-


ra de sua morte, chamassem um cátaro “perfeito” que pronun-
ciasse sobre eles a fórmula da bênção cátara e impusesse sobre
a cabeça do moribundo sua mão e o Evangelho de são João. Da
parte dos moribundos, nenhuma exigência de arrependimen-
to; ele agira de acordo com seu “conhecimento”. Uma fórmula,
um gesto, um rito. Sem adoração material, mas o catarismo
não foi menos “mágico”, se quisermos — não menos “supersti-
cioso”, para falar a linguagem do século XII. Porque o credens
permaneceu meramente passivo, infinitamente mais passivo
do que o mais passivo dos católicos. Para o cátaro, a salvação
foi transferida, pura e simplesmente, por seu padre, ou melhor,
por seu mágico. E apenas esse padre — o cátaro perfeito — foi
obrigado a viver em um rigoroso plano de ascese. Ele não ti-
nha propriedade. O que tinha, devia dar a seus amigos e pais.
Os jejuns mais severos foram prescritos para ele, e a proibição
absoluta de qualquer relacionamento com mulheres. Quan-
do era ordenado perfeito, seu paracleto se unia a ele; poderia,
portanto, transferir a salvação, desde que não transgredisse os
mandamentos do ascetismo.9 Ele também conhecia, em decor-

9
Que diferença ainda existe entre o ascetismo cátaro e o ascetismo católico?
Os polemistas católicos sentiram isso e o formularam em sua linguagem. Eles
escreveram contra o ascetismo “supersticioso”, contra o fato de que os cátaros
perfeitos não deveriam comer carne, leite, queijo, ovos, nada que fosse produto
da união entre macho e fêmea. Acrescento a polêmica de são Bernardo (Opera,
11; Migne, 1, 183, col. 1096s): “Porque na verdade estes se abstêm… dos alimen-
tos que Deus criou… E assim se provam hereges, não sem motivo, por que se
abstêm, mas sim porque se abstêm rigidamente. Pois eu também, às vezes, me
abstenho; mas a minha abstinência é satisfação pelos pecados, não superstição
por impureza. […] Abstive-me do vinho, pois nele há luxúria; ou, se estou fraco,
uso-o moderadamente, conforme o conselho de Paulo. Abster-me-ei das carnes,
para que, ao nutrir em excesso a carne, não nutram, também, vícios da carne.
Procurarei consumir o próprio pão com moderação, para que não fique enfa-
dado de rezar com o estômago sobrecarregado […], mas não me acostumarei
sequer a beber água pura, para que a distensão do ventre não chegue ao prurido
94 Lucie Varga

rência de sua ordenação, o passado — isto é, a série de vidas


anteriores de seus fiéis; ele entendia a linguagem dos animais;
era frequentemente requisitado como médico e como árbitro.
Tudo era perfeito assim, do ponto de vista da ascese, o bode
expiatório da empresa pela qual ele trabalhava. Ele colocava
sua pureza, que lhe dava maior poder e força superiores, por
assim dizer, em benefício de seus crentes.

Outra pergunta que se deve fazer o historiador — quando não


o apologista, feliz por ter mostrado a heresia dos inimigos da
Igreja: sabemos realmente tudo sobre as doutrinas do cataris-
mo? A lógica intrínseca do sistema não exige ensinamentos adi-
cionais?

da luxúria. O herege é diferente. Pois ele abomina o leite e tudo o que dele é
feito: enfim, tudo o que é concebido por meio do ato sexual, corretamente e de
maneira cristã, não por causa do ato sexual em si, mas para não incitar ao desejo
sexual”. Não menos precisa, ainda, a característica dada por Ranierus Sachonus
(século XIII) ao ascetismo cátaro (Thesaurus Anecdotum, V; Martène-Durand
(org.), col. 1764s): “Agora, é necessário falar se os cátaros realizam suas obras
como satisfação pelos pecados que cometeram antes de professarem a heresia.
A isso eu digo que não, embora para os ignorantes possa parecer algo surpreen-
dente. Pois com frequência eles oram, jejuam e se abstêm de carne, ovos e queijo
durante todo o tempo. Mas existem três erros neles que fazem com que essas
obras não sejam satisfatórias. O primeiro é que afirmam que os pecados e a pu-
nição são totalmente perdoados por meio da imposição de suas próprias mãos
e orações. […] O segundo é que eles negam totalmente a existência de qualquer
punição purgatória infligida por Deus, assim como negam a punição temporal
que acreditam imposta pelo diabo nesta vida. Portanto, é preciso também dizer
que tais obras não lhes são impostas quando os cátaros estão em penitência,
ou seja, para o perdão de seus pecados. O terceiro é que cada um é obrigado a
realizar essas obras como preceitos de Deus. Assim, uma criança de dez anos,
que nunca cometeu nenhum pecado mortal antes de se tornar cátaro (ou seja,
perfeito), é obrigada a realizar essas obras da mesma forma que um idoso que
nunca cessou de pecar”.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 95

Bernard Gui, o grande teórico da Inquisição, autor de a


Practica, dá aos inquisidores o conselho de não pedir demais
dos acusados: que eles se limitem a perguntas estereotipadas
para evitar uma variedade muito grande de respostas. Para ele,
tratava-se não de reconhecer uma heresia, mas hereges. Nós,
historiadores, nos submeteríamos às mesmas restrições?
Pensamos em uma questão intimamente ligada ao papel da
fé cátara na sociedade do sul: a questão do satanismo cátaro.
Os cronistas da Idade Média atestam esse satanismo.10 Mas os
inquisidores se calam sobre esse assunto. E os historiadores
modernos negam: os protestantes, porque o satanismo e a luta
contra os “abusos” da Igreja Romana se casam mal; os católi-
cos, porque hesitam em formular a queixa, confiando apenas
em fontes muito incertas.
Um fato, atestado por uma tradição incerta e documentos
pouco confiáveis, é verdade ou não? Como decidir? Mas plau-
sível ou não é outro problema. De fato, o sistema cátaro parece
postular certa “magia negra”. Porque contém a simetria perfeita
de um dualismo absoluto. Aqui, o bom Deus; ali, o mau. Aqui,
a boa criação, ali, a má. Sete tipos de bons espíritos, sete tipos
de maus; Cristo, João e Jesus, o impostor etc. Nada “bom” sem
uma correspondência de “mau”. Ou, aos olhos dos católicos, os
“bons espíritos” têm o poder de ajudar nos empreendimentos
terrenos e sua ajuda é solicitada. Quem quer, por outro lado,
cometer atos pecaminosos, ou obter poderes ilícitos, ou satisfa-
zer um amor criminoso tem o recurso de falsificar e abusar das
coisas sagradas, praticar feitiçaria com a Eucaristia, com água
benta etc. A sociedade cátara do sul não tem esses “recursos”.
Tudo que toca neste mundo vem, realmente, do diabo, e o culto
cátaro, que prescinde dos objetos materiais, não pode dar lugar

10
Alanus de Insulis [Alain de Lille], por exemplo.
96 Lucie Varga

a abusos como os que acabamos de mencionar. Que assim seja,


mas parece difícil pensar que esses cátaros — de quem Marco
Polo dizia, por meio de um provérbio, “supersticiosos como um
patarin” (era o nome dos cátaros da Lombardia); que esses cá-
taros que viviam no mundo do diabo, engajados em uma mul-
tidão de empreendimentos dos quais o diabo era o senhor; que
esses cátaros, enfim, estranhos à alta religião de um são Ber-
nardo — tenham se abstido de práticas satânicas. E isso em um
ambiente que, mesmo ortodoxo, era tão impregnado de demo-
nismo quanto o ambiente do Languedoc e da Provença: se você
olhar para as esculturas de Saint-Gilles, de Arles e de Moissac,
as abadias de Montmajour, de Elne ou os poucos monumentos
seculares, provavelmente de origem cátara, que sobreviveram
à Cruzada; o palácio de Burlats, ou algumas esculturas de ori-
gem incerta nos museus de Augustins, em Toulouse, ou Car-
cassonne? As crônicas, aliás, são unânimes em repeti-lo para
nós; os cátaros, para conquistar crentes, prometiam-lhes ouro
e prata. Mas quem, de acordo com suas crenças, poderia distri-
buir riqueza e poder se não o diabo? Dito isso, vejamos que não
sabemos nada sobre o detalhe da adoração satânica.11

Vamos concluir. O historiador do século XII não deve colocar-


-se no plano do catolicismo. Por outro lado, se quiser evitar cair
no anacronismo, é forçado a se colocar no plano religioso da
época. Uma vez ali estabelecido, ele pode, e até deve, fazer jul-
gamentos, estabelecer valores. Ora, se nos perguntarmos, desse
ponto de vista, qual das duas crenças era superior — o cata-
11
Além disso, para os templários, cuja heresia (o fato hoje parece certo) estava
muito próxima das crenças cátaras, a adoração do ídolo de um demônio aparece
nos registros do julgamento publicados até hoje.
Um problema de método em história religiosa: o catarismo (1936) 97

rismo ou o catolicismo do século XII —, não hesitaremos em


responder: a religião católica. Sua fé era mais flexível. Ao ho-
mem — pelo sentimento que ele tinha de um Criador todo-po-
deroso, pelo sentimento da própria pequenez, pelo sentimento
de seu pecado — ela deu a possibilidade de subir às maiores
alturas religiosas. E, pela ternura que sentiu por um Cristo in-
termediário entre Deus e ele próprio, descer às profundezas
mais comoventes do misticismo; dois elementos constitutivos
da religião cristã, dos quais o catarismo manteve apenas a for-
ma externa.
E ainda: o catolicismo tinha uma cosmogonia, uma teolo-
gia, uma moral, uma magia. O catarismo tinha apenas uma
cosmogonia e magia. Nem moralidade, nem teologia. Sobre
apologistas, é a nossa vez? Não, mas como historiador das reli-
giões medievais — e livre, nós esperamos, de todo preconceito.
Peire Cardinal era herege?1
(1938)

A questão da ortodoxia de alguns dos trovadores já havia sido


sugerida várias vezes durante o século XIX na França. Fauriel2
em particular relata brevemente as ideias vagamente cátaras
em um dos maiores entre os trovadores, Peire Cardinal. Na
Alemanha, o historiador protestante Reuter,3 estudando Car-
dinal e outros, sugere que eles seriam heterodoxos; para ele, são
simplesmente precursores do protestantismo. Esses historiado-
res tinham a fantasia e a confiança em seus instintos acadêmi-
cos. No século XX, eram menos intrépidos. A tese do trovador
herege é abandonada pelos estudiosos.4 Karl Vossler5 defende

1
Publicado originalmente em Revue de l’Histoire des Religions, v. 117, 1938, p.
205-231. Tradução de Pedrita Mynssen, revisão técnica e notas de Celso Castro,
Dirceu Marroquim, Gabri Kucuruza e Mariane Amaral. As notas dos organiza-
dores estão indicadas como [N. do Org.]. Suprimimos algumas poucas citações
de fontes em provençal antigo ou em latim, porém sem prejuízo para a com-
preensão do texto.
2
Ver Claude Fauriel. Histoire de la poésie provençale. Paris, 1845, II, p. 184.
3
Ver Hermann Reuter. Geschichte der religiosen Aufklarung Im Mittelalter Vom
Ende Des Achten Jahrhunderts Bis Zum Anfange Des Vierzehnten [História do
iluminismo religioso na Idade Média, do final do século VII ao início do século
XIV]. Berlim, 1875-1879.
4
Com exceção de Joséphin Péladan (Le Secret des troubadours, Paris, 1906) e de
Otto Rahn (Kreuzzug wider den Graal [Cruzada contra o Graal], Berlim, 1934).
5
Ver Karl Vossler. “Peire Cardenal, ein Satiriker aus dem Zeitalter der Albi-
genserkriege” [Peire Cardinal, um satírico na época das guerras albigenses].
Sitzungsberiche der Akademie der Wissenschaften. Heidelberg, 1916.
100 Lucie Varga

esse mesmo Peire Cardinal contra qualquer suspeita de heresia:


segundo ele, Cardinal é um bom cristão, simpatizando no má-
ximo com as correntes que tendiam a reformar a Igreja e levá-
-la de volta à simplicidade do cristianismo primitivo.6 Mas os
historiadores da religião, antigos e modernos, quando tratam
do catarismo, embora reclamem da escassez de fontes origi-
nais, não pensaram em desnudar os poemas dos trovadores e
analisá-los do ponto de vista de suas possíveis afinidades com
a heresia. Não se mencionam as publicações clássicas de Sch-
midt, Douais ou Molinier,7 nem as mais recentes, de Broeckx8
ou Guiraud.9
Retomemos o problema mais uma vez, levando em conta
condições sociais e psicológicas gerais e analisando mais de
perto alguns documentos.
À primeira vista, não é mais do que provável que a maioria
dos trovadores fosse herege? Eles se moviam em uma atmosfe-
ra impregnada de heresia. Os castelos de Foix, Mirepoix, Fan-
jeaux e Saissac foram, no final do século XII, antros de hereges.
No entanto, os senhores desses castelos eram os patronos dos
trovadores. Era a esses senhores heréticos que os trovadores
serviam. Dependiam deles; eram a eles que queriam agradar.
Alguns desses trovadores eram da mesma classe social. Ou-
tros eram descendentes de classe baixa, embora, mesmo assim,
fossem admitidos na intimidade dos barões. Eram recebidos
como amigos queridos nas casas dos grandes. Isso era apenas
a recompensa de seu talento? O elo, em muitos casos, não se

6
Ibidem, p. 46s.
7
Wilheim Schimidt, Célestin Douais e Guilem Molinier. [N. do Org.]
8
Ver Edmond Broeckx. Le Catharisme: étude sur les doctrines, la vie religieuse
et morale, morale, l’activité littéraire et tes vicissitudes de la secle cathare. Hogs-
traten, 1916.
9
Ver Jean Guiraud. Histoire de l’Inquisition au Moyen Age. Paris, 1935.
Peire Cardinal era herege? (1938) 101

veria reforçado por uma crença em comum? Somos tentados a


acreditar nisso.
A heresia dogmática dos trovadores é que é duvidosa. Seu
anticlericalismo é bem conhecido. “Nem o milão10 nem o abu-
tre cheiram a carniça fedorenta melhor que clérigos, e os pre-
gadores cheiram a morada dos ricos”, canta Peire Cardinal em
um sirvente11 muito popular nos círculos heréticos. Em outro
poema igualmente difundido, ele insulta os clérigos que se tor-
nam pastores como Isengrin,12 e traem e engolem as ovelhas.13
Os poemas anticlericais tiveram o maior sucesso nos círculos
heréticos. Um novo sirvente contra o clero, se bem-sucedido,
certamente agradaria ao público.
Após o massacre de Avignonet (1246),14 escutou-se um he-
rege perguntar a seu camarada se ele queria ouvir “bonas co-
blas vel unum bonum sirventes”.15 Assim, a aliança foi feita, no
sul da França, entre o anticlericalismo e a heresia. Eles estavam
bem perto um do outro. Os missionários heréticos tinham a
tática de primeiro depreciar o clero e atacar a Igreja Romana
para testar o terreno e prepará-lo para sua semeadura. Por mui-
to tempo o anticlericalismo não foi processado nem punido.

10
Milão: ave de rapina [N. do Org.]
11
Sirvente ou “servente”: gênero medieval de caráter satírico praticado por tro-
vadores surgido no século XII, na Provença. [N. do Org.]
12
Isengrim, o Lobo: personagem das fábulas de “Renard, o raposo”, da literatu-
ra medieval do noroeste europeu, datadas do século XII. [N. do Org.]
13
Ver [André Berry (org., pref. e trad.)]. Florilège des troubadours. Paris, 1930,
p. 370 e 473; 384-385.
14
Massacre de Avignonet: massacre dos inquisidores na comuna francesa de
Avignonet, em 1242, perpetrado por cátaros, como vingança pela condenação à
fogueira de alguns dos seus. [N. do Org.]
15
Ver Bib. Nat. Coll. Doat, v. XXII, fl. 11. Comparar também: Alfred Joanrey,
La Poésie lyrique des troubadours (Toulouse/Paris, 1934, 11), p. 225. [Tradução
livre: “servindo boas pedras ou uma boa”. Falar em língua vernácula era conside-
rado evidência de possível heresia para a Inquisição. N. do Org.]
102 Lucie Varga

Certamente a imagem de um clero ganancioso por dinheiro


e poder, hipócrita e luxuoso, é internacional.16 Ela acompanha
a Querela das Investiduras17. Segue as correntes católicas re-
formadoras na Inglaterra sob João de Salisbury,18 bem como
as tentativas de renovação católica na Alemanha, na Borgonha
e na Lorena. Todos os críticos católicos do clero e da Igreja
Romana reclamavam do declínio da antiga pureza e exigiam
ruidosamente uma mudança. Em si, a crítica à Igreja está, por-
tanto, longe de ser um sintoma seguro de heterodoxia. Pelo
contrário, pode ser a pista da própria vitalidade do catolicismo,
sinal de uma forte reação, marca de um esforço de readaptação
a uma nova situação econômica, social e moral.
Mas, e no sul? É a própria vitalidade do catolicismo meri-
dional que parece faltar. Este catolicismo carece de fanáticos.
Quando se tratava de combater a heresia, era preciso recorrer
ao exterior,19 a são Bernardo, a são Domingos.20 O catolicismo
do Languedoc assume contornos arcaicos e pré-gregorianos.21
A arquidiocese de Narbonne era tão extensa que qualquer ten-
tativa de monitorar de perto os fiéis tornava-se impossível.
Quando, em 1203, Bérenger II, arcebispo de Narbonne, foi
deposto pelos legados, o papa teve de censurá-lo, entre outras
coisas, por não ter visitado sua diocese nenhuma vez durante

16
Ver Lucie Varga. Das Schlagwart vom finstern Millelatter. Wien-Leipzig, 1932,
p. 12ss.
17
Querela das Investiduras: conflito que opôs o papado ao Sacro Império Ro-
mano-Germânico entre 1075 e 1122. [N. do Org.]
18
João de Salisbury (c. 1120-1180): teólogo e clérigo católico, autor de diversas
obras. [N. do Org.]
19
Ver Mon. Germ. Libelli de Lille, III, p. 697.
20
Ver Paul Meyer (org.). Le Débat d’Izarn [Nogent-le-Retrou: Daupeley-Gou-
verneur], p. 275.
21
Referência a uma série de mudanças na Igreja Católica operadas pelo papa
Gregório VII (1073-1085). [N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 103

13 anos.22 Os arcebispos, como os bispos, eram recrutados na


alta nobreza. Eles dependiam dos barões seculares, seus pais e
seus senhores, que os instituíam livremente.23
O Eigenkirchenwesen, ou seja, o estatuto eclesiástico pelo
qual o senhor era dono de uma igreja, recebia os seus rendi-
mentos e nomeava o padre, ainda estava em vigor no sul.24 Na-
quela época, não havia catolicismo reformador e romano. Se,
portanto, não é verdade que em toda parte e em todos os tem-
pos o anticlericalismo é um forte sinal de heresia, o mesmo não
vale para o sul da França no século XII.
Conventos? Eles existiam: Grandselve, por exemplo, e Bel-
leporche eram ambos cistercienses. Saint-Sernin, em Toulouse,
e o convento de Castres estão no centro da heresia. Mas não
sabemos nada sobre a sua vida interior, embora seja certo que
nenhum deles se tornou o centro de uma efervescência católica
no Languedoc.
O papel desempenhado pelo catolicismo na vida cotidiana
do povo também nos escapa. Quem ia à missa ou à confissão?
Quais orações eram recitadas e em quais horários? Que co-
nhecimento se tinha dos Evangelhos, da oração dominical? A
população recorria ao padre católico nas suas misérias e espe-
ranças, ou voltava-se inteiramente para as “práticas mágicas”?
Ainda era o padre ou antes os quiromantes, os adivinhos e os
feiticeiros quem se consultava para se pôr em contato com po-

22
Ver Gallia Christiana VI, p. 59. Os legados papais eram emissários que ti-
nham anuência do papa para tomar as decisões em missões com fim definido.
[N. do Org.]
23
Ver Paul Meyer, Le Débat d’Izarn. Adicione-se a carta de Henri de Clairvaux
sobre a heresia albigense (Patr. Lat., 204, col. 234ss) e aquela do legado Pierre
Chrysogone (patr. lat., 199, col. 1120ss).
24
Ver dom Claude Devic e dom Joseph Vaissète. Histoire [générale] de Langue-
doc, v. V. Toulouse: [J.-B. Paya, 1875], p. 341, 342, 346, 361, 384 etc., 884, 994,
1.098 etc.
104 Lucie Varga

deres sobrenaturais? Os vestígios sobreviventes de uma magia


quase pagã são, em todo caso, muito frequentes.25
Ao lado das práticas, ao lado do anticlericalismo ferrenho
e mesmo antes disso, encontramos nos trovadores uma certa
indiferença religiosa, uma forma um pouco cínica de tocar nas
coisas sagradas, uma irreverência, por vezes chocante, em mis-
turar a missa, os santos, Jesus Cristo e até Deus na sua poe-
sia amorosa e mundana.26 Quem não conhece os protestos de
Deus contra as mulheres e seu abuso com a maquiagem? Quem
não leu o apelo irônico que o monge de Montaidon fez em favor
de suas clientes? Rumo a uma elegância refinada e uma gros-
seria total que fere ainda hoje nossos sentimentos de decência
religiosa.27
Mas no Languedoc, assim que, no século XII e no início do
século XIII, saímos dessa indiferença religiosa mais ou menos
afetada, assim que ouvimos falar de ascetismo e percebemos
um impulso para uma moral austera, podemos estar confiantes
de que andamos em terreno herético.
A heresia dos trovadores moralizadores, particularmente a
de Peire Cardinal, à primeira vista parece-nos, de fato, prová-
vel. As condições históricas, as condições sociais e as condições
psicológicas a favorecem. A certeza é mais difícil de adquirir.
Assim que enfrentamos os documentos, não avançamos além
da suspeita. Essa dificuldade se deve a vários motivos. Em pri-

25
Ver Hermann Suchier. Provençalische Beichtformeln. Romanische Forschun-
gen [Fórmulas tradicionais da Provença: pesquisa românica], t. 23, 1907, p. 247.
Nós lemos nas fórmulas de confissões no século XII: “De primo precepto. Pre-
mieramens en aquel comandamen que dis Non adorabis Deum alienum” [“So-
bre o primeiro mandamento. O primeiro e mais importante é o mandamento
que diz: Não adorarás um outro Deus”. N. do Org.]
26
Ver Alain Jeanroy. Anthologie des troubadours. Paris, 1928, no 9, estrofe III; no
10, estrofe III; no 13, estrofe IV etc.
27
Ibidem, no 8, estrofes 26 e 27.
Peire Cardinal era herege? (1938) 105

meiro lugar, os hereges foram forçados, sob pena de escândalo


— no momento de seu apogeu — e sob pena de morte — no
momento da perseguição feroz —, a se esconder e a falar ape-
nas com ambiguidade. Mas a maior dificuldade que se opõe
à identificação segura de um texto como cátaro baseia-se na
própria posição do catarismo em relação ao cristianismo e aos
seus textos sagrados.
Embora seja tradicional chamar os cátaros de neomani-
queístas, podem-se ver, em uma inspeção mais próxima acerca
da semelhança superficial entre dualistas maniqueístas e dua-
listas cátaros, as profundas diferenças entre os dois climas re-
ligiosos. Devemos nos recusar a lidar com eles aqui. Mas entre
maniqueístas e neomaniqueístas faltam até as relações mais
óbvias do culto ou da língua litúrgica.28
Os cátaros nada têm em comum com os antigos discípulos
de Mani. Em vez disso, encontramos neles traços comuns aos
muitos clãs de gnósticos cristãos,29 sem que seja possível identifi-
cá-los mais a fundo. Os próprios cátaros não se autodenominam
neomaniqueístas. Eles se autodenominam os verdadeiros su-
cessores dos apóstolos. Querem ser bons cristãos e nada mais.
Aceitam o Novo Testamento, o Credo e o Pai-Nosso. Recebem
todas as fórmulas católicas. Eles apenas as interpretam de manei-
28
Entre os cátaros, não há nenhum vestígio de um culto a Mani, que estava
no centro do culto maniqueísta. Nenhum vestígio das festas maniqueístas que
conhecemos em detalhe agora. Nenhum vestígio dos termos técnicos do antigo
maniqueísmo, do homem primitivo, do Direito, do Chamado nem de seu gran-
dioso simbolismo, nem de seu jogo de cifras e números, que hoje nos parece
bastante mesquinho. Para comparar, ver: curso do sr. Henri-Charles Puech na
Escola de Altos Estudos, Paris, 1936-1937 (Henri-Charles Puech. Der Begriff der
Erlösung im Manichäismus [O conceito de redenção no maniqueísmo], Zurique,
1937, p. 227ss; Erich Schäder. “Manichäismus und spätantike Religion” [Mani-
queísmo e a religião antiga tardia]. Zeitschrift für Missionskunde und Religions-
wissenschaft, ano 50, caderno 3, p. 80).
29
Jean Guiraud apontou curiosas conexões entre o culto cátaro e o culto do
cristianismo primitivo (op. cit., p. 191-196).
106 Lucie Varga

ra dualista. Além disso, os inquisidores muitas vezes se sentiam


constrangidos, pois os hereges também acreditavam sincera-
mente na Trindade, no Filho do Homem, na Santíssima Virgem,
na penitência e na ressurreição. Mas estes são termos técnicos
da linguagem secreta cátara, abreviaturas de suas doutrinas que,
para eles, têm um conteúdo completamente diferente.

Credunt ut sit Pater qui alium in bonum convertit; qui convertitur,


filius; id per quod convertit et in quo convertitur, Spiritus Sanctus:
et hoc intelligunt, quando dicunt se credere in Patrem et Filium et
Spiritum Sanctum; et Christum conceptum, natum et passum […],
ut in symbolo continetur.30

Quilibet bonus homo sit Dei filius.31

Aqui estão algumas amostras de sua linguagem secreta. Há


outras. A Santíssima Virgem, para eles, é a sua Igreja:

Idem beatam Mariam Virginem negant fuisse veram matrem Jhesu


Christi, nec fuisse mulierem carnalem, sed sectam suam et ordi-
nem suum dicunt esse Mariam Virginem, id est veram penitentiam
castam et virginem qui generat filios Dei, quando recipiuntur ad
eandem sectam et ordinem.32

30
Ver Lecoy de La Marche (org.). Étienne de Bourbon, p. 299. [Há aqui uma
afirmação na crença da Trindade cristã: Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo.
Tradução livre: “Eles acreditam que é o Pai quem transforma o outro em bem;
quem se converte é o Filho; aquilo pelo qual Ele se converteu e no qual é conver-
tido, o Espírito Santo: e isso eles entendem quando dizem que acreditam no Pai,
no Filho e no Espírito Santo; Cristo foi concebido, nasceu e sofreu […], como
consta no símbolo”. N. do Org.]
31
Ibidem, p. 298. [“Que todo homem bom seja filho de Deus”. N. do Org.]
32
Ver Bernard Gui. In: Gui de Mollat (org. e trad.). Manuel de l’inquisiteur.
Paris, s. d., p. 14-15. [Tradução livre: “Negam que a mesma bem-aventurada
Virgem Maria tenha sido a verdadeira mãe de Jesus Cristo, e que tenha sido uma
Peire Cardinal era herege? (1938) 107

Este simbolismo é ainda atestado por outros documentos,33


mas as interpretações simbólicas variavam, como os detalhes
do mito, segundo os grupos que se formavam em torno dos
grandes pregadores cátaros. Havia tantas variações quantos
pregadores.
Para evitar que os cátaros pronunciassem as fórmulas de
abjuração, com uma reserva mental herética, os inquisidores
tomaram a precaução de explicar todos os termos da profissão
de fé no sentido católico. […] Porque, para os cátaros, a “verda-
deira penitência” está apenas dentro de sua seita e o verdadeiro
perdão só pode ser dado por seus “perfeitos”.34
Agora, tripla é a dificuldade que se opõe à identificação se-
gura de um texto como ortodoxo ou cátaro. Para se esconder,
para evitar um escândalo e pela própria natureza de sua fé, eles
usaram fórmulas ortodoxas; consequentemente, fórmulas ca-
tólicas vagas em um autor não são, de maneira alguma, prova
em favor de sua ortodoxia. Pode-se até dizer que, se o autor
fosse verdadeiramente católico, teria o cuidado de especificar
as suas palavras e eliminar qualquer ambiguidade.
Pelo contrário, os termos técnicos cátaros serão decisivos
para a identificação do seu autor; pois, sendo o perigo ameaça-
dor, e a disseminação da seita, geral, eles não foram pronuncia-
dos aleatoriamente. Mas, infelizmente, apenas algumas miga-
lhas dos textos originais chegaram até nós através dos volumes
de fontes polêmicas.

mulher carnal, mas dizem que a sua seita e a sua ordem é a Virgem Maria, ou
seja, a verdadeira penitente, casta e virgem que gera os filhos de Deus quando
são aceitos na mesma seita e ordem”. N. do Org.]
33
Ver Ignaz von Döllinger. Beiträge zur Sekte Geschichte im Mittelalter [Contri-
buição para a história da seita na Idade Média]. [Darmstadt: Wissenschaftiiche
Buchgeselischaft], p. 184 e 286.
34
Ibidem, II, p. 25, 28, 31.
108 Lucie Varga

Caso se trate de confrontar os textos suspeitos dos trovado-


res com a fraseologia cátara, surgem novas dificuldades. Quase
todas as fontes cátaras são de segunda mão. Quais escolher?
Os polemistas católicos35 nos servirão mal — não que tenham
falsificado conscientemente a verdade, mas com eles a diver-
sidade das doutrinas cátaras passou pelo crivo da lógica dos
teólogos. Deixaram-nos abstrações, esquemas, um sistema rí-
gido e uniformemente nivelado, uma codificação que indicava
apenas duas ou três variações, quando na realidade tudo parece
flexível e multiforme.36
De boa-fé, os teólogos destacaram tudo o que distinguia as
doutrinas cátaras do dogma católico, tudo o que poderia fazê-
-los passar por anticristãos. Naturalmente, eles não tiveram o
cuidado de apontar as aspirações, tão caras aos cátaros, a um
catolicismo primitivo. O que as somas nos dão é um superca-
tarismo, verdadeiro do ponto de vista jurídico, mas existente
apenas na lógica dos inquisidores. Parece-nos que estaríamos
mais próximos da realidade cátara nos atendo aos depoimentos
e confissões dos acusados da Inquisição. O “catarismo”, então,
parece estar ligado a tantos círculos quantos foram os grandes
pregadores cátaros. Quase se poderia falar de um catarismo de
Pierre Mauran e de um catarismo de Pierre Authier.37
Com exceção do dogma fundamental do dualismo cátaro —
um deus “estranho” criou tudo o que nasce, cresce e morre38 —,
encontramos uma grande variedade de detalhes mitológicos e
a mesma diversidade na prática diária da moralidade religiosa.
Muitas vezes a lógica cátara parece sacrificada. Não lemos que

35
Bibliografia em Jean Guiraud, op. cit., p. xvi-xviii.
36
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 208; II, p. 213. […]
37
O que nos coloca além de 1200. Os depoimentos, assim como as grandes
somas, não datam do século XII, e este é outro defeito das fontes cátaras.
38
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 213.
Peire Cardinal era herege? (1938) 109

o catarismo nega o valor das boas obras e das esmolas? E isso


não é bastante lógico em um sistema que não valoriza a feli-
cidade desse mundo, nem as misérias materiais e seu alívio?
Como pode um Deus espiritual aceitar o que lhe é oferecido no
plano terreno? Também notamos nas somas39 que os cátaros
negaram o escalonamento de penalidades e recompensas.
Condenado quem vive no mundo do diabo; salvo quem es-
colhe o mundo espiritual. Mas parece que o cátaro médio não
queria desistir de sentenças sem gradações e recompensas esca-
lonadas. Então, encontramos um argumento como o seguinte:

Bonum erat facere elemosynam hospitalibus, quia hospitalia facie-


bant bonum omnibus supervenientibus, sed indulgentiæ datæ: per
prtaelatos pro necessitatibus vel operibus ecclesiarum nihil vale-
bant… Item audivit a dicto heretico, quod bonum opus erat, facere
elemosynam cuicumque, in tantum etiam, quod, si homo faceret
elemosynam diabolo propter Deum, Deus dictam elemosynam re-
numeraret, sed dicebat, quod maior elemosyna erat, facere bonum
hæreticis quam aliis.40

39
Moneta de Cremona, Rainer Sachoni, Alain de Lille.
40
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 198. [A citação direta do texto: “Era bom fazer
caridade aos hospitais, porque os hospitais faziam o bem a todos os que a ele
vinham, mas as indulgências dadas pelos prelados em prol das necessidades ou
obras das igrejas não tinham valor algum […]. Da mesma forma, ele ouviu do
herege que fazer caridade a qualquer pessoa era uma boa ação, a ponto de que,
se alguém fizesse caridade ao diabo por Deus, Deus recompensaria essa carida-
de, mas ele dizia que era uma caridade maior fazer o bem aos hereges do que aos
outros”. N. do Org.]. Ou este outro depoimento, do mesmo meio (ibidem, II, p.
197): “Nulla res terrena umquam ascenderet ad coelum, licet Deus renumeraret in
cœlo animam, quœ fecisset elemosynam terrenam; e sic dicebat eleemosynam ter-
renam ascendere in cœlum, quia merces in cœlo reddebatur pro terra eleemosyna”
[“Nada terreno jamais ascenderia ao céu, embora Deus recompensasse no céu a
alma que tivesse feito caridade na Terra; e assim ele dizia que a caridade terrena
ascenderia ao céu, porque a recompensa no céu era dada em troca da caridade
na Terra. N. do Org.].
110 Lucie Varga

Por outro lado, em cada soma polêmica podemos ler que os


cátaros professavam um docetismo rigoroso, ou seja, ensina-
vam que Jesus Cristo só se formava na aparência, que ele não
comia nem bebia, que não sofria e não morreu na cruz.
O docetismo que nos é revelado pelos depoimentos tem
outro aspecto. Primeiro, de acordo com essas últimas fontes,
Jesus Cristo sofre. Ele sofre como um espírito que se mistura
com os horrores do mundo.41 Para os cátaros, Cristo também
foi martirizado.42 Quando o leproso cuspiu no rosto de Jesus
Cristo, os cátaros admitem que ele disse a Deus: “Vejo que sou
teu filho, pois tu me predisseste, enviando-me à terra que “als
orrores dels men saria fasti”.43 Colocaram-no na cruz e fizeram-
-no sofrer mil tormentos: ignomínias de que Jesus padeceu não
na aparência, mas na realidade, não como corpo humano, mas
como espírito.
Para as somas polêmicas, a necessidade de agregar, de ge-
neralizar, de resumir é fundamental: elas simplificam cada vez
mais. Enquanto para os cátaros a necessidade de harmonizar
suas doutrinas com a Bíblia, de aderir ao Evangelho, os obri-
gava a se qualificar, a explicar, a se sofisticar cada vez mais.
Podemos ler em todas as somas que Deus nunca assumiu a
carne humana.44 […] Por toda parte, lendo atentamente o que
os cátaros contaram diante dos inquisidores, aprendemos que
eles faziam diferença entre “carne humana” e “carne humana
terrestre”. Lemos, por exemplo:

41
Ver Lucie Varga. “Le Catharisme”. Revue de Synthèse, jun. 1936, p. 136ss.
42
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 161.
43
Ibidem, p. 162. [Tradução livre: “Os horrores de outros homens seriam rá-
pidos”. N. do Org.]
44
Ver Carl A. F. Mahn. Die Werke der Troubadours in provenzalischer Sprache
[As obras dos trovadores na Provença]. Berlim, 1885, II, p. 208.
Peire Cardinal era herege? (1938) 111

Item credebat, quod, quamvis Deus bonus, Pater cœlestis, nun-


quam descenderit de cœlo, nec acceperit corpus humanum ter-
renum, tamen in se in cœlo existens habebat corpus humanum
cœleste, non terrenum, consimile in forma et figura corpori huma-
no terreno.45

Certamente, não ousaremos afirmar que Peire Cardinal fez


a mesma distinção. Basta-nos apenas apontar as possibilidades
que usavam de aparente fraseologia ortodoxa dando-lhe um
significado herético.
Vamos, portanto, lançar mão dos depoimentos acima de
tudo para confrontar os textos suspeitos de heresia com as dou-
trinas cátaras. Comecemos com um poema de Peire Cardinal
que nos parece mais característico. Anuncia-se, nas primeiras
linhas, de forma um tanto misteriosa:

Al nom del Seingnor dreiturier,


Dieus, qu’es senhers de tot quant es,
E nuills, mais el, senhers non es,
Ai cor de far vers vertadier…
Car nuill cantar non tanh si appelatz
Vers, si non es vertadier ves totz latz.46

O autor, portanto, se propõe a fazer “versos verdadeiros”


e, continuando esse jogo de palavras, nenhum verso pode ser
chamado de “verso” se não for verdadeiro de todos os pontos de

45
Ver Ignaz von Döllinger, II, p. 199. [Tradução livre: “Além disso, ele acredi-
tava que, embora Deus fosse bom, o Pai celestial, nunca descesse do céu, nem
assumisse um corpo humano terreno, no entanto, enquanto estava no céu, Ele
possuía um corpo humano celestial, não terreno, semelhante em forma e figura
ao corpo humano terreno”. N. do Org.]
46
Ver François J. M. Raynouard. Lexique roman, I. [Paris: Silvestre, 1838], p. 460.
112 Lucie Varga

vista. O poema termina com a necessidade de esconder, de não


dizer muito, mas de dizer bastante:

Car so qu’ieu die entend cascuns e ve,


Ε s’ieu dic plus serai per els blasmatz
Ε si m’en lais non serai plus honratz

A poesia, infelizmente, é incompleta. As três últimas linhas


contêm uma oração:

Segner Dieus vers, sobre vos non ha re,


Et en aissi com es vers hieu e cre,
Da mi poder qu’eu ame so que amatz…

Nessa poesia religiosa, que, a meu ver, revela com bastante


clareza o seu significado oculto (mas permanecendo na fraseo-
logia ortodoxa para aqueles a quem a linguagem da seita cátara
não é muito familiar), podemos encontrar termos técnicos he-
réticos?
Acreditamos poder responder afirmativamente. O primei-
ro desses termos não é “Seigneur Dreiturier”?
Não é esse o nome do Bom Deus, tal como nos é transmiti-
do pela única oração cátara que chegou até nós?
“Payre sant, dieu dreyturier de bons sperits, qui hanc no fal-
hist, ni mentist, ni errest, ni duptest per paor de mort a pendre
al mon de dieu estranh…”. O “deus estranho” é o deus mau,
na religião cátara,47 enquanto na antiga gnose esse nome era
reservado ao princípio bom.48 A morte não é a morte do corpo,

47
Os cátaros se referem ao Êxodo, 13-14.
48
Ver Hans von Jonas. Gnosis und spätantiker Geist [Gnose e espírito antigo
tardio]. Gôttingen, 1934, cap. “Der fremde Gott” [O Deus estrangeiro].
Peire Cardinal era herege? (1938) 113

mas as torturas de um espírito luminoso no mundo material


de seu adversário,49 “car nos no em del mon ni l mon non es de
nos, e dona nos a conoscere so que tu conoyshes e amar so que
tu amas”.50
“Deus leal de bons espíritos”, a oração nos diz. Porque, de
acordo com os cátaros, o Bom Deus era apenas o criador de
uma criação espiritual invisível; ele era o Senhor das almas, isto
é, dos bons espíritos que o diabo havia seduzido e encerrado
em um corpo. A nossa poesia diz: “Dieus qu’es senhers de tot
quant es”. Mas o que “é”, só é boa criação espiritual: o resto, a
matéria, é “nada”. “Omnia visibilia nihil erant”,51 é o próprio
fundamento da doutrina herege. E o versículo do Evangelho de
São João, “sine ipso factum est nihil”,52 é sempre interpretado
nesse sentido dualista.53 Acabamos de ver em um texto orto-
doxo como um católico teria especificado a sua fé romana. Esse
“tudo o que é” ainda parece um termo técnico para nós. Ainda
existem outros? Vejamos a oração final. Nas linhas “Senhor,
verdadeiro Deus”, esse “verdadeiro” é mais um termo técnico
para a polêmica dos cátaros contra a Igreja Romana. São eles,
os cátaros, que formam a “vera Ecclesia”. Todas as doutrinas
falsas da Igreja Romana têm sua “verdadeira” correspondência
no ensino cátaro.
Tudo o que é material na religião católica tem seu sinônimo
“verdadeiro” na doutrina da religião espiritual. Existe o “ver-
dadeiro Deus”, mas também o “verdadeiro” casamento entre a
alma e Deus; a penitência “verdadeira”, quando alguém entra
na seita; o “verdadeiro” milagre, quando uma alma se converte
49
Lucie Varga, “Le Catharisme”, p. 133ss. O mito cátaro é contado em detalhes.
50
Ignaz von Dölinger, op. cit., p. 177.
51
Ibidem, II, p. 34. [Tradução livre: “Tudo o que era visível não era nada”. N.
do Org.]
52
Tradução livre: “Sem ele nada foi feito” [N. do Org.]
53
Moneta de Cremona. Summa contra Kataros et Valdenses, Roma, 1743 p. 89.
114 Lucie Varga

à sua doutrina; o “verdadeiro Cristo”, o evangelista João, anjo


do céu, não é, de forma alguma, aquele que foi crucificado; a
“verdadeira Virgem”, da qual já falamos, é a Igreja Cátara. “Ver-
dadeiro” é sinônimo de “bom”, “verdadeiro” e “bom” são ex-
pressões polêmicas, que têm seu equivalente, “falso” ou “mau”,
no mundo material. “Verdadeiro Deus, eu acredito em você
como é verdadeiro e bom…”. Aqui está outro dos subterfúgios
mais famosos dos cátaros. Quando o inquisidor lhes pergun-
tou se acreditavam nas doutrinas católicas, responderam com
a fórmula: “Eu acredito em tudo em que é bom crer”.54
Mas a linha mais surpreendente é a última: “Dá-me o poder
de amar o que você ama”, porque ela não repete exatamente as
palavras da oração “e dá-nos… amar o que você ama”?
Em termos de ideias cátaras, essa oração significa: “Bom
Deus, verdadeiro Senhor de uma criação verdadeira, incorrup-
tível e estável, conduza-nos, ensine-nos a amar, não este mundo
que é a criação enganosa do diabo, mas o seu mundo espiritual,
que é o seu reino”.
Outro sirvente de Peire Cardinal é a súplica que o autor fará
no dia do Juízo Final, se Deus quiser mandá-lo para o inferno. O
tom é muito sério. Não pode ser uma piada, como se supunha.

Tota sa cortz farai meravilhar,


Quant auziran lo lo mieu plaideyamen;
Qu’ieu dic qu’el fay ves los sieus fallimen,
S’il los cuia delir ni enfernar;
Quar qui pert so que guazanhar poiria,
Per bon dreg a de viutat carestia;
Qu’el deu esser dous e multiplicans

54
Bernard Gui, op. cit.; Rainer Sachoni, op. cit., col. Ignaz von Döllinger, op.
cit., II, p. 170.
Peire Cardinal era herege? (1938) 115

De retener sas armas trespassans.55

Ja sa porta non si degra vedar,


Ε sans Peires pren hi gran aunimen,
Quar n’es portiers, mas que y intres rizen
Quascun arma que lai volgues intrar,
Quar nulha cortz non er ja ben complia
Que l’uns en plor e que l’autres en ria,
Ε sitot s’es sobeirans reys poyssans,
So no ns obre, sera li-n faitz demans.56

Novamente, isso está em harmonia com as doutrinas cáta-


ras que ensinam que toda alma — ou seja, todo anjo caído —
será salva.57 Um protocolo da Inquisição nos diz que ouvimos
o acusado dizer: “Se eu soubesse que Deus não nos salvaria a
todos, eu o despedaçaria”.58 “Não há impiedade ou pecado, por
mais mortal que seja, cujo autor, seja ele quem for, não possa

55
Para a expressão “suas almas”, comp. a “súmula”, in Duais (org.), op. cit., p.
118. No último dia, Jesus Cristo virá para julgamento “in quo die illas Dominus
Jhesu Christus suas animas a diabolo deceptas… vocabit ad regnum” [Tradução
livre: no dia em que o Senhor Jesus Cristo chamará essas almas enganadas pelo
diabo… para o reino. N. do Org.]
56
Antologia, pp. 398-399; Vossler, op. cit., p. 46. Tradução: “Vou surpreender
todos os seus tribunais quando ouvirem meu argumento. Eu digo que ele erra
por conta própria se ele pensa em destruí-los e condená-los, pois quem perder o
que poderia ganhar por direito sofre pobreza em abundância. Ele deve ser cheio
de bondade e mantém com você mais e mais de suas almas moribundas. Já sua
porta não deve se fechar sem que são Pedro se envergonhe muito, pois ele é o seu
porteiro, mas deixe que qualquer alma desejosa de entrar nela entre sorrindo.
Porque se nunca corra efeito não será perfeito se um chorar enquanto o outro
ri. Ele pode ser um rei muito grande e poderoso; se ele não nos deixar entrar,
vamos responsabilizá-lo”.
57
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., I, p. 154.
58
Ibidem, II, p. 71.
116 Lucie Varga

ser salvo se vier a nós.”59 O final da oração que já citamos está


em perfeita concordância com as falas dos sirventes: “Farisiens
enganadors, que estat a la porta del regne e vedayts aquels, qui
intrar voldrian e vos autres no y volets, per que prec al payre sant
de bons sperits, que a poder de salvar las animas”.60 O sirvente
lança um desafio irônico ao Deus que não destruiria o diabo se
ele tivesse o poder. Já a sua porta não deve fechar sem que são
Pedro se envergonhe muito, pois ele é o seu porteiro, mas qual-
quer alma que queira entrar deve entrar sorrindo. Porque nun-
ca o tribunal, de fato, ficará sem culpa se um chorar enquanto
o outro ri. Ele pode ser um rei muito grande e poderoso, se não
abrir para nós, nós o responsabilizaremos.

Los diables degra dezeretar


El agra en mais armas pus soven,
E-l dezeret plagra a tota gent
Et el mezeis pogra s’o perdonar.
Tot per mon grat, totz los destruira,
Pus tug sabem qu’absolver s’en poiria;
Bel senher dieus, siatz desheretans
Dels enemicx enoios et pezans.61

Amarga ironia em relação a um Deus católico, cuja onipo-


tência é impotente para destruir o diabo e erradicar o mal. A
controvérsia dos cátaros contra um Deus e sua criação é sempre

59
Ver Paul Meyer, “Le Débat d’Izarn et de Sicarl de Figueiras”. Annuaire-Bulle-
tin de la Société de l’Histoire de la Frace, 1879, p. 49ss; Boneca., II, p. 11.
60
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 177.
61
Tradução: “Ele deveria despojar os demônios de seu poder, e não há mais
almas para ele; deserdação agradaria a todos, e ele poderia muito bem perdoar
a si mesmo. Com toda a minha vontade que ele destrua todos eles, todos nós
sabemos que ele poderia ser absolvido. Belo Senhor Deus, portanto, tire esses
inimigos importunos e prejudiciais”.
Peire Cardinal era herege? (1938) 117

baseada nos mesmos argumentos. “Deus ista visibilia fecit, aut


ea incoruptibilia facere potuit aut non; si non potuit, impotens
fuit; si potuit et noluit invidus fuit”.62 Contra a existência de um
demônio abaixo de um Deus todo-poderoso, eles usam a mes-
ma lógica. Encontramo-nos aqui exatamente na mesma cor-
rente de ideias religiosas. A estrofe que vem a seguir também
não contradiz as doutrinas cátaras.

Jeu no mi vuelh de vos dezesperar,


Ans ai en vos mon bon esperamen;
Per que devetz m’arma e mon cors salvar,
Ε que-m valhatz a mon trespassamen;
Ε far vos ai una bella partia,
Que-m tornetz lai don muec lo premer dia,63

O que-m siatz de mos tortz perdonans;


Qu’ieu no-ls feira si no fos natz enans.64

Esta é, em nossa opinião, uma polêmica cátara em verso


elegante. O que o autor propõe a Deus?65 “Coloque-me de volta
no lugar de onde vim ou me absolva dos erros que eu não teria
cometido se não tivesse nascido.” Ou seja, dentro da estrutura

62
Ver Alanus de Insulis [Alain de Lille], patr. lat., p. 205, col. 309. [Tradução
livre: “Deus fez estas coisas visíveis, ou Ele poderia tê-las feito incorruptíveis
ou não; se Ele não pudesse, Ele foi impotente; se Ele pudesse e não quis, Ele foi
invejoso”. N. do Org.]
63
Ver Izarn in Paul Mayer, op. cit., p. 26. “E tu dizes d’aquels que trobaran salut,
que tornaran en gloria lai don foron mogut!”.
64
Ver Florilège, p. 401.
65
Ver Moneta de Cremona, op. cit., pág. 4. Rituel cathare recolhido por Cléo-
dat, Paris, 1888, p. ix: “Pois muitos são os nossos pecados, com os quais ofende-
mos a Deus a cada dia. Noite e dia, em palavra e ação, e em pensamento, com
vontade e sem vontade, mais por nossa vontade do que os espíritos malignos nos
trazem a carne que vestimos.”
118 Lucie Varga

das ideias cátaras: “Devolva-me ao estado de bem-aventurança


em que eu estava antes que o diabo tivesse seduzido os espíritos
e os encerrado em um corpo material e neste mundo de dege-
neração e morte. Se você tinha o poder, por que não impediu o
diabo de fazer sua obra maligna? E, se não tem poder, perdoa-
-me dos pecados que não pude evitar, estando sob o domínio e
a força da matéria má”.
Segundo as doutrinas cátaras, na hora da morte, o Espírito
Santo se reúne à alma que recebeu o consolamentum, o sacra-
mento cátaro. A alma é salva, retorna ao céu, liberta do círcu-
lo da metempsicose, e encontra seu corpo luminoso no reino
espiritual. “Não quero me desesperar de você, pelo contrário,
baseio minha esperança em você, porque você deve salvar mi-
nha alma, meu corpo e me ajudar na minha morte.” A poesia
termina novamente com uma oração:

Per merce-us prec, dona sancta Maria,


Qu’ab vostre filh nos siatz bona guia,
Si que prendatz los paires e-ls enfans
E-ls metatz lay on esta santis Joans.66

Uma oração para Santa Maria não é surpreendente. Vimos


a interpretação cátara, e os depoimentos dos acusados de he-
resia também nos ensinam que os cátaros rezavam “Deum et
sanctam Mariam pro illis, qui remanebant in hoc século”.67 Não
conheço um paralelo católico para as duas últimas linhas. São
João, para os cátaros, era o evangelista mais puro, menos “mis-
turado”. Era com o Evangelho de são João que operavam to-

66
Tradução: “Pela graça, rogo-lhe, Santa Maria, seja uma boa guia para nós
com seu filho. Acolha pais e filhos e coloque-os lá onde está são João”.
67
Ignaz von Döllinger, op. cit., p. 181. [Tradução livre: “Deus e Santa Maria por
aqueles que permanecem neste mundo”. N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 119

dos os seus sacramentos e era ele quem desempenhava o papel


principal em todos os seus ritos.
Seria fácil multiplicar textos suspeitos. Mas examinemos
agora exemplares de outro gênero, que obviamente foram
escritos em sentido polêmico e podem ser interpretados seja
como católicos dirigidos contra os cátaros, seja como cátaros
dirigidos aos católicos. Levando em conta os versículos cita-
dos acima e tendo consciência do feroz anticlericalismo dos
sirventes que vamos mencionar, estamos bastante dispostos a
classificá-los como hereges. A última das trinta e três estrofes,
que compõem os mais odiosos sirventes contra o clero, começa
com estes versos:

Deus verais, plens de doussor,


Senher, sias nos guiren,
Cardatz d’enfernal dolor
Peccadors e de tormen.68

Talvez se objete que esses versos são os mais católicos. Po-


demos até nos lembrar das linhas de um sermão católico, edi-
tado por P. Meyer:69

E pel ten nom mirable


Defen me de diable,
D’efern e del torment

68
Ver Florilège, p. 386-387. [Tradução livre: “Deus verdadeiro e misericordioso,
Senhor, seja nosso protetor, afaste as dores do inferno dos pecadores.” N. do
Org.]
69
Ver Paul Meyer. Anciennes poésies religieuses en Langue d’Oc. Toulouse, 1860,
p. 14, n. 1. [Tradução livre: “Com este nome admirável, Defende-me do diabo,
Do inferno e do tormento.” N. do Org.]
120 Lucie Varga

Então, a seguinte objeção nos será feita: “Os cátaros não


negaram o inferno?”. Sobre essa última réplica é necessário
qualificar as suas doutrinas de acordo com as diferentes fontes.
Segundo as somas, que “sistematizaram” suas doutrinas, eles o
negaram. Segundo os depoimentos, apenas negaram o inferno
católico. Por outro lado, eles têm uma mitologia muito desenvol-
vida quanto aos sofrimentos e fardos que após a morte aguar-
dam os homens não heréticos. Os espíritos malignos que preen-
chem o ar avançam sobre eles e os forçam a reencarnar para
se defender de seus ataques.70 Mesmo transmitida de segunda
mão, a história desse “inferno” cátaro é bastante angustiante:

Quando anima exivit de corpore eius vel de corpore bestiæ, quousque


in alio corpore fuerit incarnata, non potest habere requiem, quia ig-
nis sathanæ vel dei extranei eam totam comburit, sed quando est in
corpore incarnata, requies cit et non patitur dolorem a dicto igne…71

Ora, os tormentos que aguardam os pecadores após a morte


podem derivar tanto do catarismo quanto da crença católica.
Mas aqui estão as últimas linhas da nossa poesia:

Ε solvetz los del peccat


En que son près e liat,
Ε faitz lor verai perdo
Ab verai confessio.72

70
Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 207.
71
Ibid., II, p. 216. [Tradução livre: “Quando a alma sai do corpo dela ou do
corpo de uma besta, enquanto estiver encarnada em outro corpo, ela não pode
encontrar descanso, porque o fogo de Satanás ou de deuses estrangeiros a quei-
ma por completo. Mas quando ela está encarnada em um corpo, o descanso é
imediato e ela não sofre dor do mencionado fogo”. N. do Org.]
72
Tradução livre: “E salva-os do pecado em que foram apanhados e amarrados,
e concede-lhes o verdadeiro perdão por confissão verdadeira”. [N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 121

Ao ler apenas esses versos seria possível atribuir o texto a


um autor católico ou a um autor cátaro. A “confissão verdadei-
ra” pode muito bem ser a confissão católica, oposta à confissão
cátara — o consolamentum —, assim como também pode ser
a confissão cátara oposta à católica. Não acreditamos que haja
uma terceira possibilidade.
Se relermos agora todos os sirventes, cujas estrofes anterio-
res apenas exalam um ódio implacável contra o clero romano,
a solução cátara não se impõe?
Mas resta uma terceira categoria de textos religiosos na
obra de Peire Cardinal, aquela que sempre levou os estudiosos
a abandonarem a tese da heresia: textos que, à primeira vis-
ta, não são nem suspeitos nem controversos. Apenas o “clima
religioso” difere do que conhecemos da poesia genuinamente
ortodoxa. Não é permitido comparar apenas documentos, mas
também climas?73
[…]
Não esqueçamos que o pedido de paz é a oração cátara por
excelência. Sair da luta travada entre o Bom Deus e o Deus Es-
trangeiro, atravessar o abismo entre as criaturas e o Deus dos
justos, reencontrar a paz com o Deus verdadeiro, este é, segun-
do os cátaros, o objetivo da história sagrada e de toda história
individual. Se Deus enviou Jesus Cristo à terra foi porque teve
pena da humanidade e quis recebê-lo na sua paz e harmonia.74
As fontes católicas do Languedoc que estão à nossa disposi-
ção para fazer a comparação de “atmosferas” são bastante raras.75

73
Ver Carl A. F. Mahn, op. cit., II, p. 199.
74
“Ε recebre lui a patz e en la sua concordia”. Rituel cathare, op. cit., p. XIV.
Ignaz von Döllinger, op. cit., passim sobre o “beijo da paz”.
75
Ver Camille Chabaneau, op. cit.; Paul Meyer. Anciennes poésies religieuses
en langue d’Oc, Toulouse, 1860; Hermann Suchier, Mariengebele, Halle, 1877.
122 Lucie Varga

O que nos parece caracterizar as orações católicas dirigidas


à Virgem na língua d’Oc é uma exuberância de detalhes len-
dários, de tradição ortodoxa. Os incidentes da lenda de Santa
Ana e da natividade da Virgem são frequentemente repetidos.76
A atmosfera, de alguma forma, é mais idílica, mais humana. É
Santa Maria, Mãe de Deus Homem, que é adorada, Santa Maria
com todos os seus atributos humanos.
Tomemos, para ilustrar isso, algumas linhas de uma oração
recolhida por Suchier77 […]. A diferença entre as duas orações,
a de Peire Cardinal e a católica, é muito perceptível. E, de toda a
sua obra, não podemos imaginar Peire Cardinal dirigindo-se à
Virgem de modo católico, de modo tão “material”, tão humano
e tão próximo.
Mas, temos uma exposição de Peire Cardinal que data do
tempo dos processos e da guerra, e que alude a todos os even-
tos da natividade de Cristo, ao batismo e à instituição de Roma
como árbitro da verdade. Como explicar isso? Apenas as pala-
vras permanecem mortas. Que atenção ele deu a elas? Com que
gestos as acompanhava? A exposição foi recitada, cantada. Tan-
tas oportunidades para revelar ironia, insinuações e sarcasmo.
Aqui está o texto, impresso muitas vezes em outros lugares:78

Un estribot farai que er mot maistratz


De motz novels e d’art e divinitatz,
Qu’ieu ai en Dieu crezensa, que fon de maire natz,
D’una santa pieusela, per que l mons es salvatz;
Et es paire e filhs e santa trinitatz,
Et es en tres personas et una unitatz;

76
Chabaneau, op. cit., p. 9 e 25.
77
Ver Hermann Suchier, op. cit., p. 44. Sem data, provavelmente do início do
século XIII.
78
Ver Florilège, p. 388.
Peire Cardinal era herege? (1938) 123

E cre que l cels e l tros ne fos per et traucatz,


Ε n trabuquet los angels, can los trobet dampnatz.
Ε crey que Sans Joans lo tenc entre sos bratz
Εl bateget en l’aigua el flum, can fo propchatz.
Ε conosc be la senha abanchas que fos natz,
El ventre de sa maire que s vols al destre latz;
E cre Rom e Sant Peire, a cuy fon comandatz
Iutje de penedensa, de sen e de foldatz.

Mas ele se recusa a acreditar em um clero enganador que


manda seu rebanho fazer tudo o que ele mesmo não faz. O final
retoma o tema do início:

Mon estribol fenisc, que es tot cotnpassatz,


C’ai trag de grammatica e de divinitatz,
E si mal o ai dig, que m sia perdonatz
Que ieu o die per Dieu, qu’en sia plus amatz,
E per mal estribatz clergues.79

Ele apostatou? Queria criar um álibi? Queria se passar por


católico para escapar da acusação? Não cabe a nós decidir. É a
esse estratagema que os cátaros recorreram, sem nenhum re-

79
Idem; tradução: “Farei uma poesia que será muito sábia, em novas palavras,
de arte e teologia. Eu creio em Deus, que nasceu de mãe, de uma donzela sa-
grada, por quem o mundo é salvo, e como pai e filho da Santa Trindade, em
três pessoas que são uma; e eu acredito que o céu não era traspassado por ele, e
que expulsou os anjos, quando os encontrou condenados. E eu acredito que são
João o segurou nos braços e o batizou na água do rio quando ele apareceu. E eu
conheço o sinal bem antes de ele nascer, no lado direito do peito de sua mãe.
E creio que, em Roma e são Pedro, foi ordenado o julgamento da penitência
do que faz sentido e do que é loucura […]. Acaba minha poesia, que é bem
elaborada e que se baseou em literatura e teologia, e se eu disse errado, faça-me
ser perdoado, eu disse isso para que Deus fosse mais amado, e o clero, menos
estimado” (p. 389).
124 Lucie Varga

morso. Eles não iam à igreja católica, dizendo que ali se podia
rezar para Deus como em qualquer outro lugar?80 Não fingiam
observar domingos e dias de festa?81 Fizeram até o sinal da cruz
“para espantar as moscas que te incomodam. É um gesto que
vale outro”.82 Da mesma forma, tiveram seus mortos sepulta-
dos pela Igreja Católica. E os próprios hereges abençoaram os
túmulos com água como os católicos fazem: “Non est magnum,
si homo sustinet tres vel quattor guttas aquæ qui plures homo
sustinet, quando vadit per viam, et propter hoc homo non di-
mittat viam”.83
Vamos resumir. A teoria de que Peire Cardinal (e outros
que não são objeto deste estudo) era herético não surpreende.
Ao examinar mais de perto os textos “suspeitos”, comparan-
do-os não com concepções um tanto esquemáticas de somas
polêmicas, mas com fontes que parecem mais próximas da rea-
lidade cátara, a suspeita torna-se quase uma certeza. O estudo
dos poemas de Peire Cardinal, em relação a um catolicismo
mal definido no tempo e no espaço, nos levaria a falsas con-
clusões quanto à sua ortodoxia. Mas, em comparação com o
catolicismo do Languedoc dos séculos XII e XIII, eles diferem
fundamentalmente em tom e atitude.
Atrevemo-nos a ir mais longe? Ou seja, partir da convicção
de um herético Peire Cardinal e usar sua obra como uma fonte
cátara de primeira mão, que poderia nos trazer novas luzes e
preencher muitas lacunas que permanecem no próprio campo
das doutrinas cátaras?

80
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 171.
81
Ibidem, II, p. 169.
82
Idem.
83
Ibidem, II, p. 170. [Tradução livre: “Não é muito se uma pessoa carrega três
ou quatro gotas de água, mas quando alguém carrega mais água ao ir por um
caminho, por isso, não deveria abandonar a estrada”. N. do Org.]
Peire Cardinal era herege? (1938) 125

Aqui, por exemplo, há um espaço em branco no que chegou


até nós do ensinamento cátaro: os hereges opunham o batis-
mo material — que eles odiavam — ao seu batismo, o conso-
lamentum; à ressurreição católica da carne, sua ressurreição
“espiritual”. Eles tinham a sua igreja, a sua confissão, a sua
penitência.84 […] Tudo o que era católico tinha seu equivalen-
te “verdadeiro”, o seu equivalente cátaro. No entanto, sabemos
que os cátaros odiavam a cruz de madeira, a cruz material,85 e
que a expuseram a todas as ignomínias. Mas, de toda a estru-
tura da fé cátara, é extremamente improvável que eles tenham
deixado a cruz material sem um equivalente cátaro. As fontes
que são aceitas como documentos cátaros omitem por comple-
to esse assunto. Mas é de Peire Cardinal que chegou até nós um
Hino à cruz. Parece-nos distante da tradição católica. Reprodu-
zimo-lo em parte.86

Dels quatre caps que a la cros


Τen l’us sus ves lo firmamen
L’autre ves abis qu’es dejos
Ε l’autre ten ves Orien
Ε l’autre ten ves Occiden,
Ε per aital entresenha
Que Christo a tot en poder.
La crotz es lo dreg gofainos
Del rey cui tot quant es apen,
Qu’om deu seguir to tas sazos
Las suas voluntatz fazen;

84
Ver Jean Guiraud, op. cit., cap.VI.
85
A que é conhecida como “cruz cátara” possui os braços em igual compri-
mento e é frequentemente entrelaçada ou sobreposta por um círculo nas suas
representações mais usuais. [N. do Org.]
86
Florilège, p. 402-4.
126 Lucie Varga

Quar qui mais y fai, mais y pren;


Ε totz hom qu’ab lui se tenha
Segurs es de bon luec aver.
Criszt mori en la crotz per nos
Ε destruis noslra mort moren.
Et en crotz venquet l’orgulhos
Et linh on venia venir la gent.
Et en crotz obret salvamen
Et en crotz renhet e renha
Et en crotz nos vole rezemer.
Aquest faitz fo meravilhos
Qu’el linh, on rnortz près naissamen,
Nos nasquet vida e perdos
Ε repaus en luec de turmen.87

Daí, prossegue o poema, veio o descanso que sucederia os


nossos tormentos. Na verdade, qualquer homem pode encon-
trar na cruz o fruto da Árvore do Conhecimento, desde que
esteja disposto a ali procurá-lo.
Todos somos convidados a colher esse fruto com amor. O
fruto é todo lindo e todo delicioso; aquele que souber colhê-lo
bem, este, ainda vivo, terá uma nova vida. Não devemos hesi-

87
Tradução: “Das quatro pontas da cruz, a de cima olha para o firma-
mento, a outra aponta para os abismos a baixo, e a outra aponta para o les-
te, e o outro está voltado para o oeste. E isso mostra que Cristo tem tudo em
seu poder. A cruz é o verdadeiro estandarte do rei, ao qual pertence tudo o
que existe, que o homem deve seguir em todas as estações fazendo sua
vontade. Porque quanto mais nos exercitamos, mais ganhamos. E qual-
quer homem, que está com ele, pode ter certeza estar em um bom lugar.
Cristo morreu por nós na cruz e, ao morrer, destruiu a morte. Na cruz, ele ven-
ceu, orgulhoso, neste bosque para o qual a multidão se apressou. Na cruz ele fez
nossa salvação, e na cruz ele reinou e reina. Na cruz ele quer nos redimir. Foi
uma coisa milagrosa, que na madeira da morte nasceu para nascermos com vida
e perdão e descansamos neste lugar de tormenta”.
Peire Cardinal era herege? (1938) 127

tar em colhê-lo enquanto temos tempo e oportunidade.88 E as


últimas linhas:

Los doug frug cuelh qui la crotz pren


Ε sec Christ on que tenha,
Que Cristz es lo frugz de saber.89

Estes últimos versículos, em que Cristo é descrito como


“fruto do Conhecimento”, não concordam maravilhosamente
com o que sabemos sobre o papel de Cristo no catarismo? Um
Cristo que é antes de tudo o mestre, o anunciador da verdade, o
revelador do verdadeiro mito (“Dei Filius venit in mundum, ut
ostenderet viam illis spiritibus qui descenderunt de cœlo, quo ipsi
vocabant populum Isræl, quæ possent reverti ad cœlum, unde ce-
ciderant”90). O verdadeiro fruto do conhecimento, oposto por
esta mesma metáfora ao fruto do paraíso e do Gênesis?
Mas o que a cruz alegórica poderia significar para os cáta-
ros? Poderia ser essa a Verdadeira Doutrina, que inclui tudo,
pela qual Cristo morreu, pela qual os fiéis são salvos?
Teorias livres? Hipóteses? Talvez. Mas uma sugestão para
pesquisas futuras.

88
Tradução de André Berry, op. cit., p. 403.
89
Tradução: “Quem toma a cruz colhe o doce fruto, e seguindo Cristo aonde se
deve: Cristo é o fruto do Conhecimento”.
90
Ver Ignaz von Döllinger, op. cit., II, p. 227. [Tradução livre: “O filho de Deus
veio ao mundo para mostrar aos espíritos que desceram do céu o caminho, pelo
qual eles próprios chamaram o povo de Israel a fim de que voltassem ao céu, de
onde haviam caído”. N. do Org.]

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