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c o n e c t a d o s do t er ce ir o mil ên io
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Os novos mundos altamente
c o n e c t a d o s d o t e rc ei r o m i l ên i o
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Os novos mundos altamente
c o n e c t a d o s d o t e rc ei r o m i l ên i o
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HIGHLY CONNECTED WORLDS Os novos mundos altamente conectados do terceiro
milênio
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
72 p. A4 – (Escola de Redes; 8)
http://escoladeredes.net
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Sumário
Introdução | 9
Inumeráveis interworlds | 11
Interworlds | 17
Pessoa já é rede | 23
Gholas sociais | 27
Deformando a rede-mãe | 38
Destruidores de mundos | 49
7
A construção de “membranas sociais” | 60
Notas e referências | 65
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Introdução
E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade,
cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados.
Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam
relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores.
Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas
nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades.
Como um gigantesco desdobramento dentro dele,
ele via nessa revelação o que ela devia ser:
uma janela para as partes invisíveis da sociedade.
Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela.
Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo.
Começou a perscrutar as janelas, como um voyeur cósmico.
9
– um para muitos – é, obviamente, centralização, quer dizer, hierarquia.
Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as agências de notícias,
talvez o cinema e não sobrará mais um só mundo. Sem o broadcasting já
teremos múltiplos mundos: cada qual configurado pelas nossas conexões.
Com a internet esses mundos se multiplicam velozmente, mas não por
difusão e sim por interconexão. Desse ponto de vista, interconnected
networks (internet) é, na verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento
que varre esses inumeráveis interworlds (*).
No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz for
do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos serão os
novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio (**).
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Inumeráveis interworlds
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não é uma função do número de seus elementos (pessoas e aglomerados
de pessoas) e sim dos seus graus de distribuição e conectividade.
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Highly Connected Worlds
Isso, é claro, se você for de fato o Steven Strogatz. Mas, de certo modo, se
você é o motorista que se relaciona (ou que se relaciona com quem se
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relaciona, ou que se relaciona com quem se relaciona com quem se
relaciona) com Steven Strogatz, sobretudo se ele (ou quem se relaciona
com ele) está na sua timeline e você (ou quem se relaciona com você) na
dele, você será um pouco Steven Strogatz (na medida inversa do seu grau
de separação dele): eis o ponto! Tal mudança vai muito além do que
imaginávamos porque você está fazendo parte de um organismo capaz de
inteligência e, quem sabe, de outros atributos ou qualidades que sequer
conseguimos imaginar.
O indivíduo social está nascendo agora. Mas ele já estava presente, como
prefiguração, desde o início, quando se constituíram os primeiros seres
humanos. Para lembrar a bela Canción Tonta de García Lorca (1924), nós,
os humanos, só o éramos enquanto estávamos “bordados en la
almohada” da rede-mãe (1).
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Fluzz não podia passar. Mas fluzz é empowerfulness. Se fluzz não pode
soprar o corpo não se vivifica.
O Facebook tem 800 milhões de usuários? É ruim. Seria melhor ter 800 mil
plataformas com mil usuários cada uma, conversando entre si... Tudo que
não precisamos agora é reeditar a ilusão hierárquica de um mundo único.
Uma sociedade em rede é uma configuração de miríades de Highly
Connected Worlds interagentes. Essa é a única mudança verdadeiramente
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sustentável: tudo que é sustentável tem o padrão de rede porque rede é
redundância de processos e abundância (diversidade) de caminhos.
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Interworlds
Que se dane se você não terá mais uma grande narrativa, um esquema
explicativo geral. Não havendo um mundo (único), para que precisamos
disso? Por certo, você fica incomodado com a fragmentação desses
inumeráveis mundos que se fazem e liquefazem. Mas esse seu mal-estar
baumaniano (de Zygmunt Bauman) é pura falta de Pó de Flu (aquele “Floo
Powder” inventado por Ignatia Wildsmith, da série Harry Potter de J. K.
Rowling, usado para conexão à Rede do Flu); ou seja, é falta de
interworlds. Trata-se de referenciar o bem-estar na (fluição da) relação,
não na (solidez da) coisa.
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Ainda existem vários obstáculos à uma comunicação, por assim dizer,
“isotropicamente distribuída” (capaz de manter as mesmas propriedades
em todas as direções): a centralização da rede em servidores, provedores,
roteadores, cabos, satélites, torres, mainframes transceptores de ondas
eletromagnéticas, geradores de energia, resfriadores, protocolos de
reconhecimento, trânsito e integração de mensagens; a variedade de
línguas e a falta de tradutores-transdutores universais móveis que operem
em tempo real; a falta de programas de busca inteligente e de criação de
ambientes favoráveis à emergência de conteúdo novo por combinação
não-humana (polinização mútua) de mensagens; a separação entre os
dispositivos tecnológicos e o corpo humano; e a insuficiente interação
entre pessoas e não-pessoas (desde a comunicação com outros seres
sencientes ou coletivamente inteligentes, animados e inanimados, até a
parceria simbiótica com uma variedade de seres vivos).
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Mas, em termos sociais, não há nenhum problema com a tecnologia. O
problema é com a tecnologia que introduz artificialmente escassez
centralizando a rede social e ensejando o controle.
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separações: desde aquelas impostas pela barreira da língua (que separa
pessoas que falam idiomas diferentes), passando pela busca burra (que
separa quem procura de quem gera conhecimento), pelos dispositivos
tecnológicos interativos separados do corpo humano e, inclusive, no
limite, pela separação entre pessoas e não-pessoas.
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A solução para Babel é a rede social distribuída. No entanto, o problema
da remanescência de várias línguas, entendidas como idiomas, como
códigos que podem ser traduzidos, tem solução tecnológica. Dispositivos
móveis com programas de tradução simultânea, capazes de receber e
emitir dados e voz, são partes (por aproximação, assimilação ou simbiose)
dessas interfaces complexas que chamamos de interworlds.
Pode-se argumentar que não temos como saber se, no longo prazo, tudo
isso prejudicará a saúde. Mas também não temos como atestar isso em
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relação à maioria dos medicamentos que tomamos ou das intervenções
médicas que realizamos. Todas essas substâncias e procedimentos, em
certa medida, provocam doenças ou desencadeiam novos padrões de
saúde ou ensejam novos reequilíbrios saúde-doença. Sim, saúde não é
ausência de doenças, mas a estabilidade relativa de um sistema que, se
estiver vivo, estará necessariamente afastado do equilíbrio, convivendo,
portanto, com alterações que convencionamos chamar de doenças (e que
só são chamadas assim do ponto de vista de um padrão de saúde,
baseado em indicadores cujos parâmetros de normalidade são variáveis
com época, lugar, cultura, conhecimento). Só seres inanimados estão
livres de doenças (ainda que as infestações de vírus em seres cibernéticos
também possam vir, coerentemente, a ser encaradas como doenças).
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Pessoa já é rede
Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos.
John Guare em "Six degrees of separation" Peça na Broadway (1990)
23
NOS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS do terceiro milênio,
vida humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os
“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos.
Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas sociais”.
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cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e
conscientemente tais escolhas. Adotamos princípios, escolhemos
carreiras, compramos produtos e priorizamos atividades em função do
que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a
nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem
conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos).
Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela
convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão
direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da
nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no
limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que
deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à
nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e
sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente
diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa
que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única,
desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos
fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos).
O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura
dos novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um
organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas
vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de
multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse
superorganismo humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso
imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que
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isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa
e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas,
computadores ou alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que
experimentamos em todos os milênios pretéritos.
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Gholas sociais
27
Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente
humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres
que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento.
De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da
reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como
indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que com-
vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja,
“gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal
condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos
(enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser
humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu,
“uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”.
Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é
tão importante dizer isso?
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“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.
Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.
Resistir é inútil”.
Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura
fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico
absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível
sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a
Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O
objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular
sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é
“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.
Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não
é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no
dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a
seguinte:
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A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras
configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no
espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de
humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são
feitas de todas as outras pessoas.
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Pessoas são portas
“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos”
Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das
potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A
partir de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer,
superorganismos humanos.
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porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (6). E as pessoas
que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de
interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma
estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos
dispositivos móveis interativos, seja com implantes bioeletrônicos ou
cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que
centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais.
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São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer
um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo.
Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de
segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à
comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre
para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda
de si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios
econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem
alcançou tal condição).
Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal,
como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não
podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como
consequência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida
pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por déficit de
interatividade.
Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor
caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma
medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de
querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não
importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões
de followers nas mídias sociais mais frequentadas ou se seu blog tem
milhares ou milhões de pageviews).
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em seu mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a
ser mais-do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds,
navegar, ser nômade, fluzz.
“Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (7). Nos novos
mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma
porta para outros mundos)
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Anisotropias no campo social
NÃO HÁ NADA A FAZER. DEIXEM FLUZZ SOPRAR para ver o que acontece.
(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de dizer,
pois fluzz já é o sopro).
Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar,
para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que
corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para
que Estado?
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Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como
remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será, afinal, o
que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores que “rodam”
na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.
Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz
votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos
anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto
ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela
viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e
agora sabes o que significam Ítacas” (9).
Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver
em processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.
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corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força,
ou seja, para impor caminhos.
A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há
nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é
preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a
força. Fluzz é o curso.
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Deformando a rede-mãe
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sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)
redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos
transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (11).
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A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva
deve ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para
guerrear e a convivência fica ameaçada.
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da rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo
simples motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o
que precisa ser explicado é o processo de centralização, não o estado de
distribuição. São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam
ser justificados, não a convivência.
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Fig. 1 | Diagramas de Paul Baran
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Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a
escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando
outros caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso
que a primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra
suméria Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.
Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?
Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz
soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para
que nação, para que Estado?
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Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também
seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na
condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de
perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O
movimento do homeschooling já começou e avançará para o
communityschooling (na linha do unschooling). Comunidades de
aprendizagem em rede tendem a florescer e se multiplicar nos Highly
Connected Worlds substituindo as atuais burocracias do ensinamento
(chamadas de escolas).
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Perturbações no campo social
A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente
digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de
perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas
perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social
foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por
exemplo, basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa
para constatar com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos
chefes modifica a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos
fluxos). Os fluxos se abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros,
engolidouros, alçapões de fluxos.
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Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do
campo social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders
externos da organização, transbordando para seu entorno. É por isso que
uma grande empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual
não existam outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se
acreditava – impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina
o capital social local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem
exemplos à farta.
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Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que
se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a
daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do
campo social sob o domínio da sombra de Dario (17). O regime
monstruoso não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes
vantagens militares. Os persas foram rechaçados pelos irreverentes,
insolentes e mais livres atenienses e seus aliados na planície de Maratona
(em 490). Sim, mas o que é realmente monstruoso é que tal programa
(que poderia ser chamado, em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de
Dario) – instalado quase três milênios antes de Dario – continue a rodar...
quase três milênios depois!
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Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas
quais o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não
se faz necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau
de distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele
detecta distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois
acaba metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias
no espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que
chamamos de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar
os motivos dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa
está errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou
mesmo um troll, nas mídias sociais).
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Destruidores de mundos
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É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar
pessoas.
50
das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não
participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a
visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então
como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está
na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não
conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe
entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não
querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos
termos estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios
termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são
interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque
continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas.
51
determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus
esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as
relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes...
52
sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar
a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses
privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de
se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando
satisfeitos.
53
Hifas por toda parte
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ENQUANTO ISSO, PORÉM, CRESCEM SUBTERRANEAMENTE AS HIFAS, por
toda parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo
corroídos e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro,
vão agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e
vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas vão
tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em miríades
de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes. E outras
identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio.
Não se decepcione: provavelmente você não vai ver nada mesmo! As hifas
crescem, em geral, abaixo do solo. Os esporos espalham-se pelo ar, mas
são tão pequenos que a gente nem percebe.
Nos Highly Connected Worlds não há como fechar nada. Trancar, chavear,
cerrar as fronteiras, isolar por meio de paredes opacas não é a solução
para manter a identidade ou preservar a integridade de nenhum
aglomerado. Quando os fluxos aumentam de intensidade, os muros não
conseguem mais contê-los.
Parece que a vida “sabia” disso: tanto é assim que não encerrou seu
“átomo” (a célula) em nenhuma estrutura fechada, separando-o do meio
com paredes opacas: antes, construiu membranas – uma interface de
55
sustentabilidade, um convite à conexão. Um convite ao sexo, já que
estamos agora explorando um paralelo biológico: nos fungos – que são
“organismos realmente fractais”, como percebeu a bióloga Lynn Margulis
(1998) – o ato sexual (chamado de conjugação) é uma conexão (19).
56
A perfuração dos muros
57
mensagens e comunicação instantânea ou pelos sites de relacionamento
na Internet.
58
inovações ou seus funcionários, não conseguirá, da noite para o dia, fazer
uma reengenharia de suas, por assim dizer, boundary conditions.
59
A construção de “membranas sociais”
60
célula usa para captar os elementos do meio exterior que são necessários
ao seu metabolismo e para liberar as substâncias que a célula produz e
que devem ser enviadas para o exterior (excreções que devem ser
libertadas e secreções que ativam várias funções de seus, por assim dizer,
“stakeholders externos”).
61
como são) porque os meios que elas conectam são o que são (e como
são). Mas tais meios são, eles próprios, constituídos pela interação, quer
dizer, não se constituem como tais antes da interação. A membrana é um
sistema complexo porque é, simultaneamente, uma interseção de
conjuntos, uma zona de transição entre um ser e os outros seres nos quais
se insere (ou, mais genericamente, com os quais interage), uma forma de
ligação ou uma espécie de conjunção.
Sabemos também que as interfaces devem ser sociais stricto sensu e não
organizacionais (em termos das teorias da administração baseadas em
comando-e-controle). Ou seja, devem ser baseadas na livre conversação
entre pessoas e na sua espontânea clusterização e não na designação, ex
ante à interação, de caixinhas departamentais para alocar essas pessoas.
Simples assim? É, mas a conversação é algo bem mais complexo do que
parece. E os novos procedimentos e mecanismos, os novos processos de
netweaving e as novas tecnologias interativas que inventamos para
viabilizar e potencializar a conversação, alteram completamente o
multiverso das interações que chamamos de social.
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“Membranas sociais” são interworlds. Ao constituí-las multiplicamos os
mundos, dando origem – se quisermos fazer uma comparação
quantitativa para efeitos ilustrativos – a bilhões de organizações (em vez
de milhões que existem atualmente). Uma mesma pessoa participará de
muitas organizações, comporá numerosas empresas, entidades,
movimentos, enfim, redes – pois tudo isso é válido, claro, na medida em
que tudo for rede. Para tanto, não será necessário fazer quase nada
adicionalmente ao que já se faz hoje. Bastará não proibir a conexão, não
querer disciplinar a interação.
Não é bem como disse Andi Warhol (1968) – “no futuro todo mundo será
famoso por quinze minutos” – mas é parecido (23). Não é bem como ele
disse porque ninguém será muito famoso, no sentido de visto por todo
mundo, porque não haverá mais o mundo único forjado pelo
broadcasting. Mas é parecido porque no futuro (um conceito que também
será aposentado, de vez que não haverá mais um futuro único, um mesmo
63
futuro para todos), as organizações serão sempre transitórias, estarão
sempre fluindo para configurarem outras organizações e uma mesma
configuração não poderá perdurar por muito tempo.
Onde e quando tudo isso vai acontecer? Vai acontecer nos Highly
Connected Worlds do terceiro milênio. Para aqueles mundos que já estão
no terceiro milênio.
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Notas e referências
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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(2) BARROS, Manoel (1993). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
(3) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:
15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p.
5-3). O texto está disponível em:
<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-
neuronios>
(4) Cf. FRANCO, Augusto (1998). O Complexo Darth Vader. Slideshare [469
views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-complexo-darth-vader>
66
(7) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam
inveniam” cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de
SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em:
<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>
<http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca>
<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>
<http://www.org2.com.br/kavafis.htm>
(11) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
67
(14) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion
years of microbial evolution. Los Angeles: University of California Press,
1997.
(15) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare
[1893 views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-
2a-versao>
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para advertir aos persas que jamais movam novamente uma guerra aos
gregos. Depois de dar adeus aos anciãos e de recomendar que, mesmo
“em meio a desgraças, alegrem-se na fruição do mundo... a Sombra de
Dario esfuma-se no túmulo”.
(19) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorion (1998). O que é vida? Rio de
Janeiro: Zahar, 2002.
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não poderiam mesmo estar em rede. E não há explicação plausível para a
manutenção de intranets, sobretudo em uma época em que já existe a
Internet.
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>
<http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame>
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Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor. É o criador e um
dos netweavers da Escola-de-Redes – uma rede de pessoas dedicadas à
investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias
de netweaving. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre
desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais.
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