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N’umbuntu em Revista
nas em sua formação, quanto por
ausência de políticas públicas, que nova edição da N’um-
minimizam a importância das rela- buntu em Revista coloca em evi-
ções étnico-raciais, de gênero e se- dência diferentes espaços onde o
xualidade. debate sobre as relações étnico-ra-
Com isso, os artigos aqui colo-
cados pretendem a partir de dife-
N’umbuntu em Revista ciais pode ser promovido, seja no
ensino, na pesquisa, na extensão,
E­ speramos
Educação das Relações
rentes possibilidades problema- quanto nos movimentos sociais.
que esse número seja Desta forma, são processos que
tizar e desconstruir ideias ainda
cristalizadas em torno dos temas
uma contribuição para dentro e fora contribuem em alimentar o debate
que circulam na vida que, no en-
tanto, ainda parecem distantes do
da academia, impactando na formação dos
profissionais que estarão atuando na educação
Étnico-Raciais em Diferentes acadêmico na perspectiva de atuali-
zar as práticas educativas nos siste-

Contextos Sociais
chão da escola, mesmo com uma mas de ensino.
brasileira e nos países que são parceiros de nossa
legislação que determina estudos e Assim as discussões contribuem
universidade, abrindo caminhos para preparação de

IVAN COSTA LIMA • GISELA MACAMBIRA VILLACORTA (ORGS.)


ações pedagógicas. em tematizar o racismo em diver-
sujeitos que possam exercitar outros vínculos com sos contextos no Brasil,como tam-
Como parte de nosso respeito
a sociedade, superando preconceitos em uma Ivan Costa Lima bém trazem conhecimentos produ-
ancestral trazemos uma breve ho-
menagem a figura de makota Val- sociedade em transformação, que se apre- Gisela Macambira Villacorta zidos sobre o continente africano,
o r g a n i z a d o r e s em especial os países de língua
dina, que ao partir deste mundo, senta em um viés conservador. Boa
deixa um legado importante sobre portuguesa. Também, este número
leitura! amplia a reflexão em torno dos im-
a dimensão da cultura do candom-
blé de angola, como processo civi- pactos trazidos pela discriminação
lizatório significativo para entender e o preconceito sobre outros gru-
nosso pertencimento como descen- pos sociais, em especial quando se
dentes de africanos e africanas no trata de sexualidade nos espaços
Brasil. escolares.
Assim, a revista continua sua tra-
Ivan Costa Lima jetória como um espaço de reflexão
Gisela Macambira Villacorta social e acadêmica acerca das di-
Organizadores nâmicas que impactam os sistemas
educativos, problematizando-se o
trato de questões que os educa-
V. 2 Vol. 2 | n. 5 | Jan./Jun. | 2019 dores(as) ainda têm dificuldades
No 5 ISSN: 2358-9825 em lidar. Tanto por conta de lacu-
N’umbuntu em Revista
Vol. 2 | n. 5 | Jan./Jun. | 2019 | ISSN: 2358-9825

Educação das Relações


Étnico-Raciais em Diferentes
Contextos Sociais
N’UMBUNTU EM REVISTA

Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)/ Instituto de Ciências Hu-


manas – Faculdade de Educação/ Licenciatura em Pedagogia – Marabá/PA. Programa de
pós-graduação interdisciplinar em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDT-
SA).
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB/Ceará.
Instituto de Humanidades – Curso de Pedagogia – Acarape/Ceará

Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Relações Étnico-Raciais Movimentos Sociais e


Educação – N’UMBUNTU

Volume 2 – número 05 – jan./jun. 2019

Fundadores/Editores:
Prof. Dr. Ivan Costa Lima | UNILAB/CE
Profa. Dra. Gisela Villacorta Macambira | Faculdade de Ciências Sociais/UNIFESSPA

Coordenação
Prof. Dr. Ivan Costa Lima | UNILAB/CE
Profa. Dra. Gisela Villacorta Macambira | Faculdade de Ciências Sociais/UNIFESSPA
Prof. Dra. Ana Clédina R. Gomes | Faculdade de Educação/UNIFESSPA
Prof. Me. Janaílson Macedo Luíz | Faculdade de Educação do Campo/História/UNIFESSPA

Conselho Editorial
Dra. Ana Clédina Rodrigues Gomes | UNIFESSPA
Dra. Cícera Nunes | URCA
Dra. Gisela Macambira Villacorta | UFPA
Dr. Henrique Cunha Júnior | UFC
Dra. Idelma Santiago | UNIFESSPA
Dr. Ivan Costa Lima | UNILAB-CE
Me. Janaílson Macedo Luíz | UNIFESSPA
Dra. Joselina da Silva | UFRRJ
Dra. Jurema José de Oliveira | UFES
Dra. Maria Aparecida Silva | UFAL
Dra. Piedade Lino Videira | UFAP
Dra. Rebeca de Alcântara e Silva Meijer | UNILAB-CE

Projeto gráfico e capa | Carlos Alberto A. Dantas – carlosalberto.adantas@gmail.com

Apoio
PROEXT – Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Educacionais – UNIFESSPA
PROPIT – Pró-Reitoria de Pós-graduação, Pesquisa e Inovação Tecnológica/UNIFESSPA
PDTSA – Programa de Pós-graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia
N’BLAC – Núcleo Brasileiro, Latino Americano e Caribenho de Estudos em Relações
Raciais,Gênero e Movimentos Sociais/UFCa-Cariri
NACE- Núcleo de Africanidades Cearenses/UFC
NAFRICAB – Núcleo Africanidades e Brasilidades/UFES
NUDES- Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Diversidade e Educação/UFAL
GRUPO DE PESQUISA ÁFRICA-BRASIL: Produção de Conhecimento, Sociedade Civil,
Desenvolvimento e Cidadania Global/UNILAB-CE
Ivan Costa Lima
Gisela Macambira Villacorta
o r g a ni z a d o r e s

N’umbuntu em Revista
Vol. 2 | n. 5 | Jan./Jun. | 2019 | ISSN: 2358-9825

Educação das Relações


Étnico-Raciais em Diferentes
Contextos Sociais

Fortaleza | 2019
O N’UMBUNTU é núcleo eletivo do curso de pedagogia da FACED/Marabá, criadoem
2011, com o intuito de discutir o pensamento social em torno das relações étnico raciais,
os movimentos sociais e suas interfaces com a educação no Brasil, com parceria do Progra-
ma de Pós-Graduação interdisciplinar em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia
(PDTSA).Atualmente, articula-se com o curso de Pedagogia da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, no Ceará. Seu codinome se referên-
cia no universo de matriz africana conhecido no País como nação Banto, cuja expressão mais
conhecida Ubuntu significa “Eu sou o que sou porque nós somos”. Articula ensino, pesquisa
e extensão em função da legislação educacional, que determina o estudo da história e cul-
tura africana e afro-brasileira, bem como pretende subsidiar educadores/as, estudantes e a
sociedade em geral em torno destas questões.

N’UMBUNTU EM REVISTA
É uma revista semestral, na publicação de estudos e pesquisas em educação e áreas afins,
divulgando a produção acadêmica, projetos de extensão e outras formas de expressão e pro-
dução de conhecimentos sobre educação das relações étnico-raciais e movimentos sociais
com interface com o espaço formal e não formal. Busca-se propiciar a troca de informações
e o debate sobre as principais questões emergentes destas áreas. As opiniões emitidas são de
responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desde
que citada à fonte.

Volume 2 | n. 5 | jan. /jun. | 2019

Contato N’UMBUNTU EM REVISTA (A/C Ivan Costa Lima): Universidade da Integração


Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB – Faculdade de Educação/Colegiado
de Pedagogia
Unidade Acadêmica dos Palmares.
Rodovia CE 060 – Km51
CEP.: 62785-000 – Acarape – CE – Brasil
Fone: (85) 99800-6314
E-mail: numbuntu@gmail.com/dofonosc@gmail.com
Facebook: N’umbuntu Relações étnico-raciais e educação

Ficha Catalográfica

LIMA, Ivan Costa & VILLACORTA, Gisela Macambira.


N’UMBUNTU EM REVISTA: Educação das Relações Étnico-Raciais em diferen-
tes contextos sociais/ Ivan Costa Lima, Gisela Macambira Villacorta –. v. 2, n. 5, jan./
jun. Acarape: Gráfica e Editora Imprece, 2019.
230 p. il.:
Bibliografia
ISSN: 2358-9825
Educação das relações étnico-raciais – 2. EJA– 3. Negros/as 4. Identidade 5.
Teoria quer
Sumário
APRESENTAÇÃO 11 |
Ivan Costa Lima
Gisela Macambira Villacorta

Artigos

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER


DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO 15 |
Rebeca de Alcântara e Silva Meijer
Claudielle dos Santos Paulino
Maria Valêsca Oliveira dos Reis

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS


NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE
REDENÇÃO-CE 35 |
Francisco Vítor Macêdo Pereira
Daniely Cardoso do Nascimento

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA: UMA LINGUAGEM


PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-
BRASILEIRAS 69|
Brena Raquel Gonzaga dos Santos
Maria Patrícia de Souza da Silva
Linconly Jesus Alencar Pereira

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS


PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ 81 |
Eliza Távora de Albuquerque
Afonso José Mendes
Evaldo Ribeiro Oliveira
DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE –
CAMPUS JAGUARIBE 95 |
Eduardo Chaves Dantas
Rafael Souza Cruz
Josefa Nayane da Silva Medeiros
Raquel Campos Nepomuceno de Oliveira
Cristiane Sousa da Silva

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO


|
POLÍTICO-EDUCACIONAL POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS 111
Jacqueline da Silva Costa

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE
APRENDIZAGEM” 141|
Luís Carlos Ferreira
Geranilde Costa e Silva

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM


|
MOÇAMBIQUE 165
Sabino Tobana Intanquê
Carlos Subuhana

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL: O CASAMENTO


TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ
|
BISSAU 183
Yolanda Victor Monteiro Garrafão
Carlos Subuhana

MAIS RESPEITO, POR FAVOR! TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E


HOMOFOBIAS NA ESCOLA 203 |
Joanice S. Conceição
Patrícia da Silva Simões da Cunha
Camila Camargo

NORMAS PARA COLABORAÇÕES PARA“N’UMBUNTU EM REVISTA” | 227


Homenageamos à MakotaValdina (1943-2019), sacerdotisa do Can-
domblé de Angola do Terreiro TanuriJunçara, em Salvador.

EU, MAKOTA E MUZENZA


Valdina Pinto

Que importa o que já vivi


As lições aprendidas
Todos os livros que li?
Tudo isso não tem lugar aqui.
Do lado de cá é outro mundo
Outra lição, outro viver
Outra forma de aprender
Nasci de novo!
Que importa a minha idade?
Sou MAKOTA e MUZENZA
Não Muzenza estrangeira
Mas, Muzenza criança:
Sim, sou criança outra vez
Sentindo o que se passa
Percebendo no vai e vem
A muda lição ensinada:
Observando sem demonstrar
Não vendo o que meu olho vê
Co-agindo quando requisitada
E, ouvindo os mais velhos conversar
As perguntas não formuladas
Vou encontrando um responder.
Vou absorvendo, construindo
No dia a dia vivendo
Vou descobrindo, aprendendo
Vou crescendo.
Neste meu observar
Sem dar mostra de estar a ver
Lá um dia sou chamada
Pra ajudar a algo fazer.
Mais adiante sou mandada
Àquilo preparar
E mais adiante ainda
Nenhuma ordem tendo que esperar
Vou em frente, mas, perguntando
Pois ainda sou criança
Muito tenho que aprender
Uma nova linguagem
Vou pouco a pouco dominando:
Aquele falar rebuscado
Aprendido nas escolas
Que importa? Pra que serve?
Professora? De que?
Aqui sou aprendiz
Dos e com “semi-analfabetos”
Como dizem os “letrados”.
Sou aprendiz, sou criança
Que primeiro balbucia
Que começa falando errado
Que canta e reza repetindo
Sem nem mesmo saber o quê,
Com sotaque “africanês”,
Com todos os vícios de linguagem
A que tem direito;
E, pensando que é só uma,
Fala duas, três palavras de vez
Só pouco a pouco percebendo
As junções que o negro fez.
Vou reaprendendo falares
Que lá fora já não falam mais
E aprendendo um falar de mim tirado
Em negação aos meus ancestrais.
Ser Muzenza é ser criança
É outra vida começar
Lendo no livro da própria vida
Aprendendo a lição ainda não aprendida.
É ser grande com o todo
É ser pequeno com as partes.
É sentir, é perceber, é ouvir
É observar, é repetir, é perguntar
É responder, é falar, é cantar
É também saber calar
E viver, viver, viver...

Disponível em:
https://www.facebook.com/145982285483449/posts/606165839465089/.
Acesso em: junho/2019
APRESENTAÇÃO

A nova edição da N’umbuntu em Revista coloca em evi-


dência diferentes espaços onde o debate sobre as relações étni-
co-raciais pode ser promovido, seja no ensino, na pesquisa, na
extensão, quanto nos movimentos sociais. Desta forma, são pro-
cessos que contribuem em alimentar o debate acadêmico na pers-
pectiva de atualizar as práticas educativas nos sistemas de ensino.
Assim as discussões contribuem em tematizar o racismo em
diversos contextos no Brasil,como também trazem conhecimen-
tos produzidos sobre o continente africano, em especial os países
de língua portuguesa. Também, este número amplia a reflexão em
torno dos impactos trazidos pela discriminação e o preconceito
sobre outros grupos sociais, em especial quando se trata de sexu-
alidade nos espaços escolares.
Assim, a revista continua sua trajetória como um espaço de
reflexão social e acadêmica acerca das dinâmicas que impactam
os sistemas educativos, problematizando-se o trato de questões
que os educadores(as) ainda têm dificuldades em lidar. Tanto
por conta de lacunas em sua formação, quanto por ausência de
políticas públicas, que minimizam a importância das relações ét-
nico-raciais, de gênero e sexualidade.
Com isso, os artigos aqui colocados pretendem a partir de
diferentes possibilidades problematizar e desconstruir ideias ain-
da cristalizadas em torno dos temas que circulam na vida que, no
entanto, ainda parecem distantes do chão da escola, mesmo com
uma legislação que determina estudos e ações pedagógicas.
Como parte de nosso respeito ancestral trazemos uma bre-
9
ve homenagem a figura de makota Valdina, que ao partir deste
mundo, deixa um legado importante sobre a dimensão da cultura
do candomblé de angola, como processo civilizatório significativo
para entender nosso pertencimento como descendentes de africa-
nos e africanas no Brasil.
Abrindo a seção o artigo de Rebeca Meijer, Claudielle Pau-
lino e Maria Valesca dos Reis colocam em evidência a necessida-
de de uma reflexão pedagógica no debate sobre o racismo, de
forma a promover uma desconstrução de seus efeitos na formação
dos professores e professoras que atuarão na educação básica.
Já o estudo trazido por Francisco Victor Pereira e Danie-
le do Nascimento busca problematizar a relação entre bulling e
racismo, a partir da análise de conflitos vivenciados por crianças
negras, onde tais relações podem ser consideradas como manifes-
tações da violência de cunho étnico-racial,
Pensando a prática da ginga como conhecimento neces-
sário à prática educativa o ensaio de Linconly de Jesus, Brena
Santos e Maria Patrícia da Silva reflete acerca da ginga presente
na capoeira e outras manifestações da cultura negra, como uma
dimensão civilizatória onde a linguagem performática vai além de
apenas como movimentação corporal.
Apresentar e discutir práticas educativas em educação das
relações étnico-raciais é o foco do estudo apresentado por Eliza
Albuquerque, Afonso Mendes e Evaldo Oliveira, com escolas que
compõem cidades do maciço do Baturité, região de atuação da
Unilab.
Com foco na desconstrução do racismo, o artigo orientado
pela profa. Cristiane da Silva do Instituto Federal de Educação,
campus Jaguaribe,relata experiências interventiva como forma de
desnaturalizar alguns conceitos que ainda são confundidos como
preconceito, discriminação, identidade, etnia e racismo, a partir
do trabalho com estudantes do ensino médio da região.
Situar o Movimento Negro com sujeito político importante
na sociedade brasileira é a discussão produzida por Jacqueline da
Costa, trazendo a dimensão história desse movimento na cons-
trução e consolidação de um projeto político-educacional que de-
10 semboca na atualidade das políticas de ações afirmativas.
A seção que aborda o continente africano inicia com ao ar-
tigo de Luís Ferreira e Geranilde Costa onde buscar construir um
diálogo sobre a educação moçambicana, tendo sua atenção diri-
gida a Alfabetização e Educação de Adultos (AEA) e sua relação
com as comunidades de aprendizagem como espaços não-formais
de escolarização.
Também tendo como reflexão Moçambique o foco do arti-
go de Sabino Intaquê e Carlos Subuhana analisar o sistema edu-
cativo do país durante a vigência do colonialismo português, indi-
cando os mecanismos utilizados pelos colonizadores no processo
da dominação no país.
Com foco em Guiné Bissau Yolanda Garrafão e Carlos Su-
buhana analisam a partir do olhar das mulheres da etnia papel a
importância do casamento tradicional (k´mari), como parte de um
rito de passagem, mas também como processo educativo na vida
destas mulheres guineenses.
A sexualidade, a partir da teoria queer, encerra o debate da
revista, onde o artigo de O objetivo deste artigo é propor uma re-
flexão acerca dos marcadores heteronormativos, tradicionalmente
ensinados nos espaços escolares. Analisa o cotidiano escolar, as
interações de alunos, quanto às sexualidades e à religião
Esperamos que esse número seja uma contribuição para
dentro e fora da academia, impactando na formação dos profis-
sionais que estarão atuando na educação brasileira e nos países
que são parceiros de nossa universidade, abrindo caminhos para
preparação de sujeitos que possam exercitar outros vínculos com
a sociedade, superando preconceitos em uma sociedade em trans-
formação, que se apresenta em um viés conservador. Boa leitura!

Ivan Costa Lima


Gisela Macambira Villacorta
O r g a n i z a d o r e s

11
Artigos
O RACISMO CONTEMPORÂNEO E
SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO
SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO

Rebeca de Alcântara e Silva Meijer


Doutora em educação brasileira (UFC). Professora do Instituto de Humanida-
des-IH da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira- UNILAB,
atuando no ensino e na pesquisa, principalmente nos seguintes temas: teoria
do ensino/didática, educação para as relações étnico-raciais, descolonização do
currículo e formação de professores.
E-mail: rebeca.ameijer@unilab.edu.br

Claudielle dos Santos Paulino


Estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade da Integra-
ção Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Bolsista BICT/FUN-
CAP da pesquisa “Saberes docentes necessários às exigências do contemporâneo:
uma pesquisa-ação com escolas do Maciço de Baturité-CE”, edital 2018-2019.
E-mail: claudiellesp@gmail.com

Maria Valêsca Oliveira dos Reis


Estudante do curso de Humanidades da Universidade da Integração Interna-
cional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Voluntária da pesquisa BICT/
FUNCAP “Saberes docentes necessários às exigências do contemporâneo: uma
pesquisa-ação com escolas do Maciço de Baturité-CE”, edital BICT/FUNCAP
2018-2019.
E-mail: valescaejesus@gmail.com
RESUMO
O professorar requer saberes especializados, sem os quais, o profissional do
ensino não passaria de um mero reprodutor de conteúdos. A docência requer
ser capaz de estabelecer um nível de aproximação com o aprendente e com o
conteúdo a ponto de gerar a conexão que conhecemos como aprendizagem.
A formação docente deve ser capaz de tornar o professor o sujeito da relação
pedagógica que tem como meta facilitar a aprendizagem do discente. Com
esteio nestes fundamentos estamos desenvolvendo o conceito saber docente
de humanização, um tipo de habilidade/competência importante na tarefa de
facilitar a conexão esperada na relação pedagógica, no que se refere aos
conflitos humanos,humanizantes e desumanizantes do sujeito. Apresentamos
no presente trabalho uma pesquisa realizada na cidade de Baturité (CE), que
nos revelou algumas dimensões relevantes do saber de humanização, entre
as quais destaca-se, a problematização acerca do racismo, do preconceito e
discriminação racial.
Palavras-chave: Saber docente. Humanização. Racismo. Didática.

ABSTRACT
Teaching requires specialized knowledge. Without this previous knowledge,
the professional teacher would be nothing less than someone who only
replicates contents. Teaching requires the ability to establish a level of
approximation with the learner and with the content to the point of creating
the connection that known as learning. Teacher training should be able
to establish the teacher as the subject of the pedagogical relationship that
focuses on facilitating student learning. Aiming at these essentials features,
we are developing the concept of knowing humanization teacher, a type of
skill/competence that facilitates the expected connection in the pedagogical
relationship, regard to humanizing and dehumanizing conflicts of the
subject. We present in this study, a research that was carried out in the city
of Baturité (CE), revealing to us some relevant dimensions of humanization
knowledge, among which, we highlight the problematization of racism,
prejudice, and racial discrimination.
Keywords: Teaching practice. Didactic. Humanization. Racism.
INTRODUÇÃO

S omos três mulheres com experiências de vida distintas, mas


com marcas identitárias que nos aproximaram e motivaram para
a realização deste trabalho de pesquisa. Nascidas no Nordeste do
Brasil, mais precisamente no Ceará, somos mulheres negras ori-
ginárias da classe trabalhadora. Somos mulheres que lutam todos
os dias contra várias formas de violência e intolerância. A uni-
versidade vem sendo em nossas vidas um espaço revolucionário,
onde aprendemos a pensar criticamente, onde nos encontramos
com nossas parceiras de luta, mas também com alguns de nossos
opressores.
Somos defensoras da educação pública, gratuita e de quali-
dade e por isso mesmo combatemos alguns entraves que possam
impedir essa finalidade, como a ideologia do racismo e seus de-
rivados, alguns dos temas do presente trabalho. A realização da
pesquisa em tela se justifica por acreditarmos que não há como
compreender a educação básica contemporânea, seus avanços e
ranços, sem mergulharmos em suas águas, a partir do que pul-
sa, do que ocorre e junto aos seus atores. Compreendemos que
a universidade e a escola são agentes de formação e que para
formar sujeitos críticos e reflexivos a universidade depende da
escola, assim como a escola depende da universidade.
Em tempos de grande turbulência no cenário governamen-
tal do Brasil, onde políticas públicas conquistadas por meio das
lutas populares estão ameaçadas. Em tempos em que a ignorância
está em alta e o pensar certo está ameaçado, para lembrar a perse-
guição que sofre o pensamento de Paulo Freire. Sentimos urgên-
17
cia em nos armar até os dentes de saberes que nos humanizem. A
universidade e a escola precisam, mais do que nunca, motivarem
seus segmentos para não perderem o rumo da história e acaba-
rem tombando, como parece ser o desejo de nossos opressores.

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


Assim justificamos a realização da presente pesquisa, a tentativa
coletiva e produtiva de lutar, estudar, pesquisar, ensinar, frente
ao caos.
O trabalho apresenta alguns resultados e reflexões da pes-
quisa1 “Saberes docentes necessários às exigências do contemporâneo:
uma pesquisa-ação com escolas do Maciço de Baturité-CE”. O campo de
pesquisa foi a escola Municipal de Ensino Fundamental Monse-
nhor Manoel Cândido, localizada no centro da cidade de Baturité.
Participaram dezoito professoras e um professor, além de todos
os alunos e alunas das quatro classes de 4º ano da escola.
No período de março de 2018 a fevereiro de 2019, cumpri-
mos uma agenda de atividades com o objetivo suleador da inves-
tigação: Pesquisar que saberes docentes são necessários para a mobilização
de prática educativas coerentes com as exigências da contemporaneidade.
Entre as principais ações destacamos: 1) aproximação com as/
os docentes da escola investigada; 2) negociação de horários e
atividades com gestão e docentes; 3) Aplicação de questionário
com docentes; 4) restituição de análise de questionário à escola;
5) planejamento e execução de oficinas temáticas com discentes e
docentes; 6) observação in loco.
A pesquisa nos revelou os saberes docentes necessários às
exigências do contemporâneo, os que estão e os que ainda não
estão presentes nas práticas educativas das docentes da escola
investigada. No entanto apresentaremos de forma mais detalhada,
resultados e reflexões referentes ao saber docente de humanização,
segundo a tipologia que vem sendo elaborada por Meijer (2012;
2015), sobretudo elementos acerca da discriminação racial, um dos
temas mais relevantes da pesquisa.

Algumas considerações conceituais sobre o professorar


18
Hoje a profissão docente passa por grande crise. Para o pen-
samento contemporâneo estamos vivendo a era das incertezas. O
1
A presente pesquisa foi contemplada com uma bolsa a partir do edital PROPPG
01/2018 – Seleção de Projetos para o Programa Institucional de Bolsas de Inicia-
ção Científica e Tecnológica – BICT/FUNCAP 2018-2019.

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


MARIA VALÊSCA OLIVEIRA DOS REIS
que antes era verdade incontestável, hoje é apenas uma possibili-
dade de leitura da realidade. A presente argumentação deriva da
teoria da Pós-modernidade, tendo Jean-François Lyotard como
um de seus expoentes, a partir da obra “O Pós-moderno”. Um
reflexo concreto da era das incertezas é a terceira revolução cien-
tífica e tecnológica, de impactos e proporções globais. O mundo
digital ou virtual transforma para sempre a forma de acessar o
conhecimento e, este marco histórico, afeta direta e indiretamente
as formas de ensinar e aprender. Na obra educação escolar: polí-
tica, estrutura e organização, Libâneo, Oliveira e Toschi, refletem:
Segunda metade do século XX. Tem por base, sobretudo
a microeletrônica, a cibernética, a tecnotrônica, a micro-
biologia, a biotecnologia, a engenharia genética, as novas
formams de energia, a robótica, a informática, a química
fina, a produção de sintéticos, as fibras óticas, os chips.
Acelera e aperfeiçoa os meios de transporte e as comuni-
cações (revolução informacional). Aumenta a velocidade
do processo produtivo, da centralidade do capital, da or-
ganização do processo de trabalho e da qualificação dos
trabalhadores. (2003. P. 62).

A revolução científica e tecnológica, como vimos, impac-


ta todos os campos dos saberes, sem sombra de dúvida. Porém
destacamos a revolução no campo da microeletrônica, pois é a
mais percebida e sentida por todos. Nela a maior invenção do
século é o computador. Seu aperfeiçoamento não tem limites até
agora e deixa o usuário sempre em condição de aprendiz. No
que diz respeito a revolução informacional destacamos avanços
inimagináveis no campo das comunicações, sobretudo em função
da invenção da internet. tiete, a super rede de computadores que
nos interliga a qualquer parte do planeta. “Tais avanços tornam
o mundo pequeno e interconectado por vários meios, sugerin- 19
do-nos a idéia de que vivemos em uma aldeia global.” (Ibidem,
2003). As mudanças geram constantes crises no meio educacio-
nal, deixando os professores com a impressão constante de desa-
tualizados, inclusive diante de seus alunos.

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


Ao discutirmos sobre a profissão professor percebemos um
campo minado de diversas realidades e tendências. Nóvoa (1995)
nos adverte da acelerada precarização do trabalho docente e do
fenômeno da desprofissionalização, uma vez que em muitos paí-
ses do mundo, tendo os Estados Unidos como exemplo em des-
taque, não é mais exigida formação de excelência para o exercício
da profissão docente. Aqui no Brasil não é difícil encontrarmos
formação realizada em finais de semana de caráter aligeirado e
precário, nos dando a certeza de seguirmos os mesmos trágicos
rumos estadunidenses. Por outro lado, como afirma Lee Shulman
(1986) numa lição fundamental, para ser professor não basta do-
minar um determinado conhecimento, é preciso compreendê-lo
em todas as suas dimensões. A sólida apropriação de determi-
namos saberes é condição essencial para o egresso de licencia-
tura tornar-se professor(a). Ou seja, a profissão docente requer
saberes especializados que envolvem o ensino e a instrução.
Defendem essa tese, entre outros, Farias et. al. (2008); ­Therrien
(2000); Pimenta (1999); Meijer (2012; 2015). Ensinar é ação de
profunda interação humana orientada por profissional prévia e
constantemente instruído. É atividade capaz de organizar práti-
cas pedagógicas de efetivo poder formativo e reflexivo. Alguns
estudiosos desenham, cada um a partir de suas investigações, ti-
pologias de saberes necessários para o professorar. Para Selma
G. Pimenta (1999), os saberes docentes são: Saberes do conheci-
mento; saberes pedagógicos e saberes de experiência. Demerval
Saviani (1996) define saberes atitudinais, saber crítico-contextu-
al, saber específico, saber pedagógico e saber didático-curricular.
No entanto decidimos trabalhar para fins de estudo e análise, a
tipologia de Rebeca A. Meijer (2015) que, além dos saberes de
experiência, pedagógico e de conhecimentos específicos, acres-
20 centa os saberes de humanização. A seguir algumas pistas para a
compreensão deste conceito.

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


MARIA VALÊSCA OLIVEIRA DOS REIS
Saber docente de humanização

De acordo com o dicionário online de português, humani-


zar é “Atribuir caráter humano a; conceder ou possuir condição humana;
Tornar-se benéfico; fazer com que seja tolerável; humanizar-se”. A condi-
ção humana exige de nós um padrão mínimo de comportamento
que nos coloque num status de destaque em comparação a outras
espécies animais. Entendemos que a humanidade é plural e vive
em conformidade com seu tempo, colada aos eventos históricos.
Somos capazes de matar, torturar, escravizar, humilhar, roubar,
cometer atos de corrupção. Ficamos perplexas (os) com notícias
que circulam todos os dias sobre nossas atitudes covardes, violen-
tas, bárbaras. Nos indignamos cotidianamente com notícias que
revelam o que somos capazes de fazer contra populações intei-
ras e em favor do enriquecimento próprio. Racismo individual e
institucional, LGBTfobia, gordofobia, intolerâncias de toda soma.
Paradoxalmente, amamos, sabemos ser afetivos, prestativos, soli-
dários. Superamos obstáculos inimagináveis, lutamos por direitos
coletivos, salvamos vidas de pessoas que nem se quer conhece-
mos. Enfim, a humanidade é rizomática. Parece que não seguimos
uma escala evolutiva ou linear no percurso da história. Nossa saga
no Planeta Terra testemunha que oscilamos entre dois extremos:
o bem e o mal. A pedagogia de Paulo Freire nos ajuda a desen-
volver a presente reflexão sobre o tema quando ele afirma que
O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre
processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras
reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideo-
lógica etc., que nos estão condenando à desumanização. O
sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem
fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz
e re-faz. (FREIRE, 2001, p. 99). 21
A tarefa de atribuir caráter humano não é simples e nem
óbvia. Nosso inacabamento exige esforço constante no fazer e
re-fazer individual e coletivo em favor de padrões de comporta-
mentos considerados mais ou menos adequados historicamente.

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


A desumanização é também processo. Ela é também devir e de-
pende da dinâmica do nosso fazer e re-fazer sistemáticos e, do
limiar entre uma e outra tendência, é que depende o que consi-
derar ao refletir sobre o caráter humano. A saga da humanidade
no Planeta Terra acontece, segundo o mito da ciência, há cerca de
dois milhões de anos. Fomos o Homo erectus, hominídeo a sair de
África e habitar todo o Planeta. Criamos tecnologias e desenvol-
vemos comportamentos que nos garantiram a sobrevivência. Gra-
ças a capacidade de memorização e raciocínio nossos descenden-
tes armazenaram e fizeram registro de tudo que fomos criando.
Geração a geração a humanidade vem garantindo a perpetuação
do que cria e transforma a partir de um fenômeno que deno-
minou de educação. Desenvolvemos comportamentos educativos
nas mais diversas situações. Seja no exercício da maternidade,
nas brincadeiras infantis, no trabalho, relacionamentos amorosos,
religião, enfim, não perdemos a oportunidade de ensinar e apren-
der. No entanto, inventamos que deveria existir locais e pessoas
especializadas em educação, as instituições de ensino e as (os)
professoras (es). Além do caráter espontâneo do educar, a edu-
cação ganha dimensão institucionalizada e formal. O profissional
do ensino planeja ações educativas, prevê seus objetivos, cria de
que forma irá agir para ensinar, além de organizar o ambiente de
aprendizagem a partir das condições concretas dos aprendentes.
Tudo isso com esteio em ideologias e visões de mundo e de hu-
mano que o momento histórico permite movimentar. A partir de
comportamentos educativos intencionais ou não intencionais hu-
manizamo-nos e desumanizamo-nos. Em se tratando de educação
institucionalizada forjamos um e outro. É obvio que concordamos
que à instituição escolar cabe educar para a humanização. Nessa
interface nos enriquece Bazzara quando reflete:
22
Humanizar é acreditar nas potencialidades dos alunos:
Humanizar é crer, é confiar no ser humano. É estar dis-
posto, permanentemente, engrandecendo em todos e em
cada um de nossos alunos, a globalidade de suas potencia-
lidades, isto é, aumentar neles o potencial de inteligência,

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


MARIA VALÊSCA OLIVEIRA DOS REIS
de sensibilidade, de solidariedade e de ternura que se es-
conde em sua humanidade (2006, p.8).

O exercício de humanização, seja mobilizado de forma in-


tencional ou não pelo sujeito e pelas instituições, é bastante com-
plexo porque diverso e histórico, como já afirmamos. No caso das
instituições educativas passa a fazer parte do perfil formativo, se
tornando macrometa em qualquer nível ou modalidade de ensino.
Tanto que a lei 9394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da
educação brasileira torna explicito que a escola deve exercer um
papel humanizador e socializador. Se é assim, deve a(o) docente
promover ações pedagógicas para desenvolver da humanização
nos estudantes. Salvo outra interpretação, é responsabilidade das
agências de formação de professores formar docentes capazes da
promoção de um tipo de educação que desenvolva a humaniza-
ção dos sujeitos.
A curricularização da humanização se faz, de certo, de ma-
neira transdisciplinar. No entanto queremos destacar a didáti-
ca como uma componente curricular privilegiada para tratar o
tema. Ocorre que é a didática, a teorização sobre o ensino, espaço
formativo em que se trás à reflexão a construção da identidade
profissional docente e a ênfase na certeza de que o professorar
requer saberes especializados. No que diz respeito a teoria sobre
o ensino esse instante pode ser fantástico porque colabora so-
bremaneira com o desenvolvimento da identidade profissional
crítica acerca do ensinar e do aprender e com a construção do
pensamento reflexivo capaz de fazer da prática pedagógica con-
teúdo investigativo e auto-avaliativo. É aqui, um dos momentos
privilegiados em que as agências de formação docente podem
contribuir, se de fato, pretendem formar em favor de humanizar
os sujeitos. Educar desenvolvendo a humanização é ser capaz de 23
humanizar o humano despotencializando a desumanização. Ora,
se as duas capacidades são devires e condicionadas pelas situa-
ções e a história, que saberes devem ser ensinados sistematica-
mente em favor de uma profissão que pretende humanizar?

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


Venho trabalhando, não faz muito tempo, na construção da
base teórica de um tipo de saber docente que pode ser incluindo
na formação de professores e que visa diretamente o combate a
todo fenômeno social e histórico que possa nos desumanizar, “
saberes docentes de humanização”. O(a) professor(a) munido(a)
desse tipo de saber deverá ser capaz de reconhecer os proble-
mas contemporâneos que possam dificultar os processos de en-
sinagem e de aprendizagem e os que possam minar a relação
professor-aluno. Os problemas contemporâneos observados no
espaço escolar estão presentes nas ruas, nos bairros, nas cidades,
no interior das casas e são problemas familiares, inclusive nossos
problemas. Diagnosticá-los não é difícil. A dificuldade que pode
ser encontrada e a ilusão de que professores não enfrentam as
mesmas situações. Sim, não adianta fingirmos que vivemos dis-
tantes da realidade de nossos alunos. Não existe o mundo deles
distante de nós. Todos enfrentamos as mesmas dificuldades. Elas
estão na ordem do dia e ganharam dimensões planetárias. A se-
guir é preciso nos perguntar se temos condições de trabalhar os
problemas identificados a fim de promover ações pedagógicas
promotoras do bem comum, em favor da boa desenvoltura da
ensinagem e da aprendizagem e da relação professor-aluno. Se
identificarmos que temos dificuldade se faz necessário investir
tempo a fim de enriquecer esse repertório de saberes docentes.
Uma outra importante constatação é que, assim como todo os
outros saberes docentes esse também vai sendo alimentado ao
longo de toda a profissão, sem férias.
A seguir apontamos alguns problemas contemporâneos que
exigem do profissional do ensino saberes docentes de humaniza-
ção para o trato das questões. Os temas racismo, preconceito,
discriminação e desigualdade racial são ainda graves proble-
24 mas contemporâneos herdado pela colonização e escravização eu-
ropeia. Tanto que as estatísticas de cor e raça demonstram que o
Brasil está distante de se tornar uma democracia racial. Segundo
o Atlas da violência 2007, dados divulgados pelo Jornal Carta Ca-
pital, constatou que, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil,

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


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71 são negras. Negros possuem chances 23,5% maiores de serem
assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já desconta-
do o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro
de residência.
Segundo destaque para a violência contra a mulher, que
constitui-se, de acordo com o Observatório de Gênero, na princi-
pal violação dos seus direitos humanos. Coloca em risco direitos
à vida, à saúde e à integridade física da mulher. Ela é estruturante
da desigualdade de gênero. A violência contra a mulher pode se
manifestar de várias formas, como define a Convenção de Belém
do Pará (1994): “É qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
tanto no âmbito público como no privado” (Art. 1°). “Além das violações
aos direitos das mulheres e a sua integridade física e psicológica, a violên-
cia impacta também no desenvolvimento social e econômico de um país”.
Terceiro destaque para a desigualdade social, diferença
econômica que existe entre pessoas na mesma sociedade. Segun-
do o jornal Estadão, os dados divulgados pelo Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2017, as
famílias da classe A ganharam 22 vezes a renda das famílias das
classes D/E. No entanto, esse abismo social tem quase o dobro do
tamanho – a diferença entre os extremos da pirâmide é de cerca
de 42 vezes, o que causa o sistemático empobrecimento de uma
massa volumosa da população brasileira.
Muitos outros temas contemporâneos são merecedores de
problematização nas escolas e exigem dos profissionais do ensi-
no saberes docentes de humanização para lidar com a questão.
Mencionaremos ainda a intolerância religiosa, o trabalho infantil,
a violência contra a criança e o adolescente, a LGBTfobia, etc..
Para melhor contextualização da necessidade do saber docente
de humanização, a seguir apresentaremos dados de uma pesquisa 25
onde o tema racismo e suas derivações ganhou destaque.

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


Saberes docentes necessários às exigências do
contemporâneo

Realizamos a pesquisa “Saberes docentes necessários às


exigências do contemporâneo: uma pesquisa-ação com escolas do
Maciço de Baturité-CE” de agosto de 2018 a abril de 2019 na Es-
cola Municipal de Ensino Fundamental Monsenhor Manoel Cân-
dido. Dezenove (19) docentes participaram da investigação res-
pondendo a um questionário, instrumento que teve como meta
compreender quais saberes docentes fazem parte e quais saberes
não fazem parte da prática pedagógica das docentes da escola.
Indagadas sobre o repertório de saberes sólidos em suas
práticas educativas, ganhou principal destaque o saber pedagó-
gico. Senão vejamos: boa comunicação com os discentes, dinamismo e
criatividade no fazer docente, elaboração de planos de aula, organização
pedagógica da aula, analisar a situação dos docentes e a capacidade das
aulas, gestão do tempo pedagógico, habilidade na elaboração de recursos
didáticos utilizando de material reciclável(docentes pesquisadas).Em
segundo lugar, foi informado o saber de tipo acadêmico, ou do
conhecimento, quando mencionaram: Pós-graduação; conhecimen-
tos em LIBRAS, conhecimentos em áreas específicas, teoria de currículo,
educação inclusiva, formação em pedagogia (professoras pesquisadas).
Em terceiro lugar destaque para o saber que vem sendo cate-
gorizado de humanização. As docentes revelaram que possuem
e que mobilizam esse tipo de saber quando declararam ter tole-
rância, fazer um trabalho social com a família dos alunos, Combate ao
preconceito de qualquer ordem, do amor pela profissão, paciência, sensi-
bilidade, dedicação e bom relacionamento com as crianças. (professoras
­pesquisadas).
Perguntadas sobre que temas relevantes para a sociedade
26 contemporânea poderiam ser incluídos no currículo escolar, ape-
nas três docentes responderam: LIBRAS, a família na escola, a vio-
lência. A seguir, apresentamos uma relação de temáticas e pedimos
que as docentes selecionassem os temas que poderiam fazer parte
do currículo escolar. Os mais indicados foram desigualdade so-

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


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cial, violência urbana, diversidade cultural, Intolerância religiosa,
racismo, discriminação, desigualdade e preconceito racial. Os te-
mas foram convertidos em oficinas aplicadas e bastante discutidas
pelos discentes, tendo as docentes como ouvintes atentas.

O racimo seus derivados e os saberes de humanização

Racismo, discriminação, desigualdade e preconceito racial


foram indicados pelas docentes como temas que merecem tra-
to pedagógico na escola. Por essa razão aplicamos intervenções
pedagógicas em quatro classes de 4o ano, em parceria com as
professoras envolvendo tais questões. As oficinas “pequenos es-
critores” tinham o objetivo de estimular a produção plástica e li-
terária das crianças. Em equipes produziram história e desenhos e
em seguida opinaram sobre suas produções. A partir das histórias
e opiniões das crianças criamos uma única narrativa na tentativa
de reunir as ideias e destacar as várias facetas das questões étni-
co-raciais nos dados produzidos:

Hoje acordei pensativa. Sonhei com várias situações que


me fizeram pensar sobre os rumos que a humanidade tomou
frente a grandes problemas ainda não superados pelo tempo.
Sonhei que caminhava pelas ruas da cidade de Baturité, municí-
pio do Ceará, e em uma escola crianças comandavam uma mani-
festação. Duas tinham em punho cartazes onde se lia: “A história
conta que o preconceito está presente em todo o mundo” e “tudo começa
pelo respeito, eu te respeito, me respeite!”.Curiosa aproximei-
-me e indaguei a garota mais velha sobre o cartaz. A menina não
se intimidou. Ao contrário, sentiu-se motivada a fazer o seguinte
comentário: “todosos dia as pessoas sofrem racismo, pois as pessoas
brancas não gostam dos negros e isto já acontece desde muito anos atrás”. 27
“Somos todos iguais com cor de pele diferente”. Resolvi assistir ao ato
público. Um menino pediu atenção e informou ter visto algumas
matérias em jornais e na internetque gostaria de compartilhar
com todos:1) “o racismo em forma de bullying está machucando as

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


pessoas, levando-as a cometer suicídio”.2) “O caso de uma mulher negra
que estava passeando, no prédio em que mora, quando duas mulheres
brancas a mandaram limpar o banheiro, por achar que a mulher negra
seria funcionária do prédio. 3) Dois homens se candidataram a uma
vaga de emprego em uma grande empresa, um homem era negro e o
outro branco. O empresário chamou primeiro o homem branco e o deu
uma vaga de emprego, quando chegou a vez do negro o dono da empresa
disse que havia acabado todas as vagas. As matérias abriram várias
discussões no pátio da escola. Até que uma aluna comentou que
as pessoas na escola também são atingidas por atitudes racistas.
Decidiu-se abrir espaço para relatos de alunos. Uma aluna negra
diz 1) “que uma aluna branca a maltratou a chamando de preta ridí-
cula, a menina negra responde que ridículo é o preconceito dela”.2) “No
intervalo das aulas ano passado, duas meninas, sendo uma negra e a ou-
tra branca, estavam discutindo. A menina branca disse que não gostava
da outra pois era negra e sua cor era feia”. 3) uma aluna chamada Lara
todos os dias sofria bullying na escola por causa de seu cabelo crespo”. 4)
“Ocorre que alguns meninos negros não podem brincar de bola porque os
brancos não deixam”. 5) “Brancos e negros brincam separados na esco-
la”. 6) “Ocorre xingamentos dos brancos para os negros”. 7) “Uma me-
nina estava chorando no corredor da escola porque uma outra menina
branca a chamou de macaca”. O pátio estava repleto de crianças ou-
vindo atentamente os relatos foi quando um menino preto pediu
a palavra e falou: – Todos sabem que meu pai é guineense. Veio
para o Brasil estudar na Unilab. No segundo ano morando em
Baturité conheceu minha mãe. Os dois começaram a namorar.
Minha mãe era [...] “uma moça loira de olhos azuis que se apaixonou
por um rapaz africano, certo dia ela o levou para casa para apresentá-lo
a sua mãe, porém ela o expulsou de sua casa e proibiu a filha de falar
com o namorado. A moça ficou chateada e foia delegacia denunciar sua
28 mãe por cometer racismo. A mãe foi presa por pouco tempo, quando saiu
da prisão não cometeu mais esse crime”. Finalizados os relatos, os
alunos concluíram que “todos esses problemas vividos na atualidade
se arrastam há muito tempo e que a história explica”. Disseram que
estudaram algumas causas desses problemas. Uma razão é que

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


MARIA VALÊSCA OLIVEIRA DOS REIS
há muitos anos os brancos escravizavam os negros no Brasil, mas hoje
o racismo é crime”. Dito isso o menino mostra uma gravura feita
por ele em uma oficina sobre o tema racismo onde desenhou
homens brancos com objeto na mão batendo em negros escra-
vizados. “Além de surras, xingavam os mandava trabalhar”. São três
homens negro, um estava cortando cana, outro levando algo na
cabeça e o terceiro puxava um objeto pesado. Ao corpo docente
da escola restou o papel de observação das ações mobilizadas
pelos discentes. Deixei a escola refletindo sobre o conteúdo ali
exposto pelos alunos e alunas. O que deveria a escola fazer? Por
fim despertei.
A produção e o debate com as crianças revelaram quão es-
tão perto do racismo anti-negro e de seus desdobramentos. Não
temos dúvida de que as crianças são vítimas da ideologia racista e
que sofrem e praticam discriminação e preconceito racial. Não por
menos voltamos a escola e indagamos sobre o que as docentes
pensam acerca do conteúdo produzido nas oficinas, inclusive a
intervenção sobre o racismo e seus desdobramentos:
“Os temas trabalhados trouxeram à tona vivências que
até o momento não tinham sido mostradas por partes dos
educandos; As experiências relatados, os debates e con-
versas sobre os temas contribuiu para a ampliação dos sa-
beres humanos, nos levando a refletir em como podemos
ajudar a criar um mundo mais ético e digno para todos e
que a comunicação é uma ferramenta importante para a
humanização” (professora A e B).

Ficou evidente que esses temas estão distantes do mapa


curricular da escola e das práticas pedagógicas das professoras.
Durante as oficinas nenhuma se mostrou familiarizada com as
questões. Entendemos que se faz necessário ampliar o repertório
dos saberes de humanização, sempre em processo de expansão, 29
incluindo conhecimentos sobre o quefazer frente aos temas em
tela. A seguir algumas sugestões que podem ser utilizadas tanto
na formação inicial, quanto na formação continuada.

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


Propostas pedagógicas para ampliação do saber de humanização
para trabalhar pedagogicamente com o racismo e suas derivações.
Sugestões de objetivos de aprendizagem:
- Resgatar da história de vida, as africanidades brasileiras 2 presentes na
infância.
- Conceituar africanidades brasileiras, racismo, discriminação, preconceito
e desigualdade racial.
- Ampliar o conhecimento acerca do Continente africano.
- Observar a ambiência de aprendizagem a fim de reconhecer episódios
racistas, preconceituosos e discriminatórios.
- Ler obras literárias de autores africanos e afro-brasileiros.
- Conhecer manifestações culturais africana e afro-brasileiras.
Sugestões de procedimentos metodológicos:
- Ambientação pedagógica: A partir de brincadeira que remeta a infância
pedir que os participantes em seguida, façam viagem de volta a infância. Se
esforcem para resgatarem o maior número de momentos possíveis.
- Pedir que selecionem das memórias resgatadas as marcas da cultura afri-
cana.
- Solicitar que escrevam o que conseguiram lembrar para , em momento
posterior, ser utilizado.
- Elaboração de mapa conceitual sobre conceitos fundamentais para o
trato das questões étnico-raciais.
- Leituras, dramatizações e discussões de obras literárias de autores afri-
canos e afro-brasileiros.
- Seminários sobre países africanos que contribuíram com a formação do
Brasil.
- Socialização e debate sobre as memórias resgatadas da infância que re-
metem as africanidades brasileiras.
Sugestões de avaliação da aprendizagem:
- Planejamento, transposição didática e aplicação pedagógica dos conteú-
dos estudados na sala de aula.
- Exposição dos resultados das práticas pedagógicas a partir de fotos, ví-
deos e depoimentos dos aprendentes.

Considerações finais

Se existe uma certeza nos estudos sobre formação de pro-


30
fessores é a de que só se ensina o que se sabe. E aqui não estamos
nos referindo apenas aos conteúdos escolares. A profissão docen-

2
O termo africanidades brasileiras, segundo Silva (2005) são às raízes da cultura
brasileira que têm origem africana.

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


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te exige o constante desenvolvimento de saberes especializados,
sem os quais as consequências são desastrosas. É preciso saber o
conteúdo específico da área de conhecimento. Ora, como ensinar
matemática sem conhecer a matemática? Além do mais há que se
perguntar: para quê estudar matemática? Como convencer crian-
ças e adolescentes da importância dos estudos da sua área de
ensino? Qual a importância da química para o professor de quí-
mica? Dar robustez aos saberes do conhecimento/ acadêmicos é
refletir sobre os mesmos dando a eles sentidos práticos, afetivos,
racionais e pedagógicos.
Desenvolver saberes pedagógicos nos colocam de frente
ao compromisso de criar estratégias metodológicas assertivas e
coerentes com o real para as práticas pedagógicas. De que forma
ensinar sobre a colonização do Brasil? A partir de dramatizações,
exibição de filmes, documentários, realizar questionamentos, pro-
mover jogos? Como utilizar um livro com conteúdos conservado-
res e desenvolver pensamentos críticos? O que fazer com resulta-
dos de aprendizagem ruins? Que importância tem a avaliação do
ensino?
O exercício da profissão docente nos permite, se tivermos
coragem de desenvolvermos saberes de experiência. Esse tipo
de saber se expande se decidirmos fazer da prática um exercício
constante de reflexão, apurando os sentidos do ensinar e utili-
zando para facilitar a aprendizagem dos nossos estudantes. Eles
indicam que os anos de experiência possibilitam aos (as) profes-
sores(as) uma maior flexibilidade com o currículo e familiarida-
de com metodologias diversificadas para atender às necessidades
dos alunos. Quando isso ocorre, sentimos dia após dia o despertar
da maturidade profissional corroborando com o pensar certo, tão
difundido por Paulo Freire
Quanto aos saberes docentes de humanização, temos que 31
admitir que é uma ousadia. Uma possibilidade nova de se pes-
quisar, refletir, analisar a otimização da formação do professor e
da prática educativa em tempos contemporâneos. São sentidos
atribuídos às pesquisas que desenvolvemos em nossa trajetória

O RACISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS DERIVADOS, DIMENSÕES DO SABER DOCENTE DE HUMANIZAÇÃO


profissional e que nos sinalizam para a necessidade de humanizar
o processo de ensino-aprendizagem. São reflexões que estamos
fazendo desde o início da carreira docente e a partir do contato
com os alunos. É resultado do exercício do refletir sobre nossos
erros, nossas cabeçadas, acertos e êxitos. É a ideia de que os sa-
beres docentes de humanização se convertem na capacidade que
deve ter o professor de lidar com fenômenos sociais e históricos
que ameaçam a humanidade, combatendo riscos de desumani-
zação. O que é o racismo, a discriminação, a LGBTfobia, o ma-
chismo, a pobreza, a fome, a ignorância, a violência, a corrupção,
senão elementos promotores da desumanização da humanidade?
E nós, profissionais do ensino, que nos comprometemos a tra-
balhar com o ser humano, esse ser complexo cheio de dilemas e
tendências? O que nos cabe minimamente, além de nos munir de
condições para lidar com essas ameaças?
Por fim, queremos finalizar dizendo que temos tanto pra
fazer. São tantas frente de batalha. Cada um de nós tem uma
responsabilidade tão grandiosa e honrada ao escolher a docência.
Por isso resolvemos oferecer essa minúscula contribuição a partir
da pesquisa, sobre algumas possibilidades em nossas práticas pe-
dagógicas que possam colaborar com a tarefa de humanizar. Es-
peremos ter contribuído, ao menos minimamente. Gratidão pela
leitura.

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34

REBECA DE ALCÂNTARA E SILVA MEIJER • CLAUDIELLE DOS SANTOS PAULINO


MARIA VALÊSCA OLIVEIRA DOS REIS
BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS
ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS
NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE
REDENÇÃO-CE

Francisco Vítor Macêdo Pereira


Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. Professor
de Filosofia dos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu em Humanida-
des da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira/
UNILAB.
E-mail: vitor@unilab.edu.br 35

Daniely Cardoso do Nascimento


Bacharela em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-brasileira/UNILAB.
E-mail: anyzinhacn@gmail.com

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
RESUMO
Sabe-se que o racismo no Brasil se mantém difuso e intenso, com drásticos
efeitos nas relações e nas condições de vida, sobretudo dos grupos
etnicorraciais afro-brasileiros. Percebe-se, ademais, que quando esse racismo
ocorre na escola acaba se confundindo com o bullying, um fenômeno que
ali sempre existiu, mas que ultimamente tem despertado maior preocupação
no(a)s profissionais da educação e na sociedade, em geral. Diante disso, viemos
apresentar um quadro local de alguns conflitos vivenciados por crianças negras,
aparentemente vítimas do bullying, sendo que suas relações conflituosas se
manifestam geralmente em forma de racismo e de discriminação etnicorracial.
Para a obtenção desse objetivo, foi realizado um estudo bibliográfico e de
campo (investigações teóricas, visitas e entrevistas em uma das escolas de
ensino fundamental de Redenção-CE). No primeiro momento, comenta-se
sobre o quadro geral da realidade da educação do(a)s negro(a)s no Brasil,
especificamente em uma análise do antes e do depois da Lei 10.639/03. Em
seguida, busca-se conceituar o racismo escolar como violência que excede o
bullying, trazendo informações desde a individuação desta ideia até as suas
atuais configurações de ódio e perseguição no ambiente escolar. Para finalizar,
expomos os resultados obtidos no campo, através de observações e entrevistas,
realizadas no 6o ano do ensino fundamental da escola em comento.
Palavras-chaves: Lei 10.639/03; Bullying racist; Racismo; Escola de Ensino
Fundamental; Município de Redenção-CE.

ABSTRACT
It is well known that racism in Brazil remains diffuse and intense, with
drastic effects on relations and living conditions, especially concerning Afro-
Brazilian ethno-racial groups. It is also noticed that when this racism occurs
in school, it ends up being confused with bullying, a phenomenon that has
always existed there, but which has recently aroused greater concern of
education professionals and of society in general. Given this, we have come
to present the local picture of some conflicts experienced by black children
victims of bullying, knowing that their conflictual relations are generally
manifested in the form of racism and ethno-racial discrimination. To achieve
this objective, a bibliographic and field study (theoretical investigations,
visits and interviews in one of the elementary schools of the municipality of
Redenção-CE) was carried out. In a first moment, it is commented on the
general educational conditions of black people in Brazil, specifically through
an analysis of before and after Law 10.639/03. Next, we seek to conceptualize
36 school racism as violence that exceeds bullying, bringing information from
the individuation of this idea to its present configurations of hatred and
persecution in the school environment. Finally, we intend to present the
results obtained in the field, through observations and interviews, carried
out in the 6th year of elementary school.
Keywords: Law 10.639/03; Racist Bullying; Racism; Elementary School;
Municipality of Redenção-CE Brazil.

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


INTRODUÇÃO

E ste trabalho assume como objetivo analisar se alguns


conflitos que envolvem as crianças negras de uma escola cor-
respondem a manifestações e expressões do bullying ou pro-
priamente a casos de racismo. Na verdade, muito(a)s aluno(a)s,
ainda no Ensino Fundamental, podem já perceber que o sistema
de escravização do(a)s negro(a)s deixou uma perversa heran-
ça cultural, social e ideológica em nosso presente – que segue
subalternizando, explorando e discriminando todo(a)s o(a)s
brasileiro(a)s que apresentem características as quais anunciem
a sua ascendência negro-africana. O que se percebe é que a in-
visibilizaçãoe a exclusão do(a) negro(a) ou mesmo o racismo em
suas manifestações mais diretas de ofensas e de xingamentos
passam mitigados, ou até despercebidos em ambientes como o
da escola, sendo não raro reduzidos à conta de meras e incon-
sequentes brincadeiras…
Ainda que, no fundo, muito se alimente da crença na exis-
tência de uma democracia racial no Brasil, certamente a realidade
é bem outra, de modo que o(a)s negro(a)s seguem sendo afasta-
do(a)s de boa parte de seus direitos de cidadã(a)os… e permane-
cem lutando para conquistarem espaços os quais, por muito tem-
po, lhes foram/são renegados. Gilberto Freyre (2004) é, talvez,
o autor mais emblemático a defender a ideologia ou o mito da
democracia racial no Brasil. Ele foi um dos primeiros a disseminar
a ideia de que o povo brasileiro é fruto de uma quase espontânea
mistura de raças, e que se desenvolveu preponderantemente de
forma harmoniosa. Entretanto, inúmeros são os indícios de que
37
essa harmonia etnicorracial nunca existiu, porque a verdade é que
a sociedade brasileira – em suas bases desde o início coloniais –
sempre valorizou a descendência europeia, e desvalorizou/desva-
loriza a indígena e a africana.

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
Na busca de evidenciar as práticas e as consequências do
racismo em um contexto educacional local, delineamos, de ma-
neira preliminar, um panorama geral da realidade educacional
– consideravelmente desvantajosa – da população negra do Bra-
sil, na perspectiva de compreender a primazia da inserção, como
política pública de primeira necessidade, de ações para a promo-
ção da diversidade étnico-racial nesse contexto educacional. Para
tanto, faz-se necessária uma reflexão sobre as diretrizes para uma
educação antirracista, a partir do enfoque da Lei 10.630/03, que
altera a LDB n. 9394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Básica), incluindo o ensino da História e da Cultura Afro-Bra-
sileira e Africana nos estabelecimentos de ensino da educação
básica, sejam estes públicos ou privados.
Não restam dúvidas de que essa mudança de perspectivas
antirracistas na Educação corresponde ao resultado histórico das
lutas do Movimento Negro (frentes e grupos compostos pela po-
pulação negra organizada, criados e articulados por ativistas e in-
telectuais negro(a)s para reivindicar os direitos dessa população).
Representando a luta dos povos negros brasileiros contra todas
as formas e expressões de violências racistas e dada a sua indig-
nação ante os efeitos que ainda rescendem dos discursos do mito
da democracia racial1, o Movimento Social Negro conseguiu trazer
o debate sobre a urgência de descolonização das mentes e dos
currículos da educação brasileira, no sentido de, primeiramente,
combater o racismo anti-negro e de, igualmente, contribuir para
a formação da consciência negra como matriz étnico-cultural ma-
joritária do país.
O segundo elemento apresentado no artigo é o da contro-
vérsia a respeito do bullying racial e suas configurações. Nesse
debate, Leão (2010) e Fante (2005) explicam o que é o bullying,
38 como problema escolar, e como se desenvolveram as primeiras

1
Segundo Zubaram e Silva (2012), as representações de discursos sobre o mito
da democracia racial brasileira só serviram para desvalorizar, cada vez mais, o(a)s
negro(a)s – diante de uma sociedade que se considera e que se vê ideologica-
mente como branca e cuja branquitude não é racialmente considerada.

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


pesquisas sobre o tema. Destaca-se quem são o(a)s sujeito(a)s
(vítimas, agressore(a)s e espectadore(a)s), envolvido(a)s em si-
tuações de bullying e de violência no contexto escolar. No que
segue, valendo-nos de Cavalleiro (2001; 2005), apresentamos a
compreensão sobre as implicações da discriminação racial na es-
cola e o pluralismo e as contribuições de uma educação antirra-
cista -merecendo ser destacada também a participação ou a inter-
venção do(a)s profissionais da educação em situações de práticas
de bullying e de racismo no ambiente escolar. Visto que o foco
principal se volta à análise a respeito das agressões e das discri-
minações de caráter racial ou racista no contexto escolar, é válido
igualmente explicar, no contexto específico da investigação, o que
se entende por raça e por racismo. Para isso, buscamos arrimo no
que determinam as DCNs(Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação), que conceituam raça como uma construção social –
segundo a qual, em diversas situações, a diversidade étnico-racial
não é humanamente considerada nem respeitada. Nesse mesmo
sentido, a propósito do racismo, Brandão (2006) nos diz que este
consiste em“discriminações resultantes de construções sociais em
torno da inferiorização de uma raça em relação à(s) outra(s)”
(2006, p.34, grifos nossos).
Como terceiro elemento de análise – e para encerrarmos
-, expomos e comentamos os resultados de um estudo de campo
realizado em uma escola de ensino fundamental do município de
Redenção, na região do Maciço de Baturité, interior do estado do
Ceará – a qual não circunstanciaremos, em virtude da isenção éti-
ca diante da análise qualitativa dos dados obtidos (os quais, toda-
via, denotam ali inequívocas práticas de racismo escolar). Por fim,
à guisa de considerações finais, retomamos Cavalleiro (2005), a
fim de explicitar categoricamente os modos como o racismo –
especificamente anti-negro – é manifestado na escola: no que se 39
segue à apresentação dos resultados e das percepções acerca do
estudo de campo realizado.

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
Educação para a diversidade das Relações Étnico-
raciais, antes e depois da Lei 10.639/03

É inquestionável que às populações não-brancas no Brasil


sempre foram relegadas as posições da discriminação e do racis-
mo, e na escola republicana brasileira de todo o século XX não
poderia ter sido diferente. Após a abolição da escravização, as
populações negras continuaram sendo totalmente desvalorizadas
ante os privilégios dos brancos. De acordo com Zubaram e Sil-
va (2012, p.133), ser branco, desde então, segue corresponden-
do etnicamente à norma padrão da sociedade brasileira e, para
que o(a)s negro(a)s fossem humanamente reconhecido(a)s, te-
riam que assimilar a cultura dos supostamente descendentes de
europeus em nossa sociedade mestiçada. É válido ressaltar que o
que endossa socialmente todo esse racismo se deve em boa parte
a teorias como a da democracia racial, disseminada por autores
como Gilberto Freyre (2004), em sua obra Casa Grande e Senzala
(2004) – na qual é defendida a ideia de que o(a)s brasileiro(a)s
são todo(a)s iguais e cordiais, não importando se são branco(a)
s, negro(a)s ou indígenas. O que importa é que convivem em um
suposto ideal de harmonia racial, capaz de edulcorar todas as suas
diferenças.
No entanto, a sociedade brasileira apresentou no curso de
todo o século XX – e ainda apresenta – uma realidade comple-
tamente diferente de quaisquer concertos harmônicos, notada-
mente no que diz respeito às tensões de suas relações étnico-
-raciais. Grosso modo, essa ideologia de igualdade idílica entre as
raças causou uma desigualdade ainda maior, segundo a qual só
se desvalorizou – e se relegou ainda mais às margens da história
– as populações negras no Brasil. Neste sentido, Zubaram e Silva
40 (2012) afirmam que:
O discurso da democracia racial fez com que muitos ne-
gros se sentissem culpados pela sua suposta incapacidade
de ascender socialmente e contribuiu para a construção
de um sentimento de inferioridade entre os afro-descen-

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


dentes. Contribuiu também para camuflar o desmesurado
racismo e encobrir as desigualdades e os conflitos étnico-
-raciais (sic) (ZUBARAM e SILVA, 2012, p.132).

Segundo Holanda (1997), o discurso da democracia racial,


além de ter mitigado o protagonismo das resistências negras e
minado a autoestima do(a)s seus/suas sujeito(a)s, também ser-
viu para que as manifestações culturais afro-brasileiras fossem
relegadas a uma espécie de cristalização alegórica, encerrada em
um passado distanciado, artificialmente aspectado e sem história
própria – porque atávico à invenção do miscigenado povo brasileiro.
Esses fatos foram determinantes para o apagamento da pertença
e da presença histórica e cultural do(a)s afro-brasileiro(a)s na
formação do país. Com relação aos conteúdos gerais do currí-
culo escolar de História do Brasil, nota-se – especificamente a
propósito da ancestralidade africana e da negritude brasileira –
uma abordagem bastante resumida, superficial e alienada (de re-
ferenciais distantes, acerbamente de meros índices folclóricos e/
ou de expressões lendárias quanto à resistência do(a)s negro(a)s
à escravização). Em contrafação a isso, se confere – sumamente! –
ênfase aos registros da escravização desses mesmos povos negros
africanos, como fosse essa a condição histórica necessária para o
soerguimento e a formação da suposta civilização brasileira.
Essa perspectiva que destaca a história do cativeiro e da opres-
são aos grupos traficados da África revela, ademais, uma grande
carência de informações a respeito da diversidade dos povos e
das culturas africanas aqui advindas, suas origens e legados – de
valores, riquezas e conhecimentos -, contribuindo para a omissão
generalizada acerca da real história social desses povos, e de nós
mesmos – brasileiros – como povo e nação. Quando se trata de
contar ou de estudar a história do Brasil, nos deparamos com um
conteúdo que exalta – portanto – a narrativa da presença e da
41
trajetória civilizacionais do branco europeu colonizador e que esca-
moteia a presença e a condução subalternizadas dos povos ne-
gros e indígenas na construção do país. Sobre a sensação de uma
participação menor ou subalterna dos povos africanos na construção

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da sociedade brasileira, Lima (2010, p.28) destaca que, na escola,
o(a)s aluno(a)s
(...) acabam lendo a história de como portugueses, italia-
nos, alemães, japoneses, entre outros, ajudaram decisiva-
mente na construção do país. No entanto, o negro entra
na história contada no livro na condição de explorado, de
escravizado, de subalternizado, causando, com certeza,
a sensação de não pertencimento à humanidade (LIMA,
2010, p.28).

Em contraposição a isso, a autora ressalta a necessidade


premente do(a)s afrodescendentes conhecerem o seu protago-
nismo na formação e no presente do Brasil, além de terem conhe-
cimento das suas origens e especificidades culturais, históricas,
artísticas, religiosas, sapienciais e sociais africanas e afro-brasilei-
ras. É de suma importância compreender que, durante todo o seu
percurso histórico, as populações negras sempre se insurgiram
e lutaram – enérgica e sistematicamente – contra as injustiças
de desigualdades, explorações e opressões raciais, conservadas
pelas elites brasileiras- antes e após a oficialização da extinção
do trabalho escravizado, no final do século XIX. Do que disso se
infere, os movimentos sociais negros foram as verdadeiras forças
na luta contra todas as formas de atualizações do senhorio branco,
as quais não deixaram nunca de se suceder em nossa realidade,
até o tempo presente.
Notavelmente a partir da segunda metade do século XX,
esses movimentos passaram a reivindicar – com muitas pressões
políticas e com objetivos inadiáveis – ações positivas e afirmativas
contra as discriminações que seguiam/seguem ocorrendo no dia
a dia do(a)s negro(a)s brasileiro(a)s, reivindicando e exigindo
o reconhecimento das matrizes africanas na formação do povo
42 brasileiro e de sua diversidade étnico-racial e cultural. No ano
de 1988, o Brasil estava então em busca de se reestruturar como
Estado democrático de direito. O(a)s brasileiro(a)s exigiam o re-
conhecimento e a efetivação dos seus direitos de cidadã(o)s e de
seres humanos, sem mais quaisquer tipos de distinções raciais.

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


Nesse mesmo ano, houve a promulgação da Constituição Federal,
depois de mais de vinte anos de ditadura militar (de cassação e de
restrição de direitos individuais, sociais e coletivos), a qual pro-
moveu como um de seus princípios fundamentais a absoluta igualda-
de de direitos entre todo(a)s o(a)s brasileiro(a)s, sem quaisquer
tipos de distinção ou de discriminação (BRASIL, CF/88, art. 5,
caput).
No entanto, nem essa nova Constituição tampouco as lutas
do Movimento Social Negro foram suficientes para abolir diversas
posturas e práticas preconceituosas, racistas e discriminatórias –
que a sociedade brasileira apresentava e ainda apresenta contra os
afrodescendentes. Podemos facilmente perceber que essas postu-
ras e práticas seguem causando uma série de transtornos, violên-
cias e desigualdades cotidianas para as populações não-brancas
do Brasil. Segundo Lima (2010): “Observar uma pessoa negra
hoje é, muitas vezes, ainda deparar-se com um contexto repleto
de dúvidas, indignações, discriminações, racismo, falta de autoes-
tima e principalmente de reflexo da depreciação, da negação, da
despersonalização do povo negro” (LIMA, 2010, p.13).
Diante disso, ao longo de praticamente todo o século XX,
o Movimento Social Negro reivindicou e lançou diversas agendas
de lutas, propugnando pela valorização e o reconhecimento da
autodeterminação do(a)s afro-brasileiro(a)s e de sua ancestrali-
dade africana – em seu contexto histórico e cultural de postulação
por igualdade racial. Era necessário se superar a ideia de que
as conquistas do(a)s afro-brasileiro(a)s não tinham sido, até ali,
senão arremedos ou bondosa concessão da humanidade dos brancos.
Entretanto, mesmo diante das irrefutáveis denúncias de injustiças
históricas e de racismos estruturais contra as populações negras,
percebe-se que a sociedade brasileira, mesmo no curso de sua
mais recente história democrática, segue ainda invocando a sua 43
herança colonial de perversidades: rescendente à lógica, segundo
a qual, a desumanização do(a)s negro(a)s se daria em conformi-
dade a supostas distinções essenciais do supremacismo branco.
De fato, após mais de um século e um quarto de abolição da

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escravização, e da incessante luta do(a)s negro(a)s por igualda-
de de oportunidades – também noplano educacional -, percebe-
-se como ainda é sumamente necessário que o Estado promova
políticas públicas: que reconheçam e valorizem a presença e a
participação do(a)s afrodescendentes na formação do que é hoje
a sociedade brasileira – a despeito de todos os racismos, das desi-
gualdades extremas, das violentas e desumanas contradições con-
tra a maioria de sua população.
Depois de tantas lutas, somente no século XXI é que va-
mos, de fato, perceber algumas ações e políticas mais efetivas
de inclusão e de promoção da igualdade étnico-racial; mais em-
penhadas, por parte das autoridades brasileiras, com a dotação
de recursos, com o acesso a bens e serviços, assim como com
a materialização de direitos historicamente negados às popula-
ções negras no país. O Movimento Social Negro, com certeza,
obteve várias conquistas nos últimos vinte anos; e, sem dúvida,
no plano educacional, foi a promulgação da Lei 10.639/03 a
sua maior vitória. Com efeito, em janeiro de 2003, quando o
presidente Lula sancionou a Lei 10.639/03 – que altera a LDB
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), obrigando
a inclusão do ensino dos conteúdos de História e de Cultu-
ra Afro-brasileira e Africana em todos os currículos da Edu-
cação Básica, um grande passo rumo à igualdade étnico-racial
foi dado. Com o aporte das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004) (DCNs), a
luta das comunidades e das lideranças afro-brasileiras, diante
da Lei 10.639/03, alcança, pela primeira vez, um patamar for-
mal de garantia de reconhecimento e de inclusão da ancestrali-
dade africana na formação de crianças e de jovens. Trata-se, por
44 reconhecimento, da valorização e da afirmação de direitos ina-
lienáveis, no que concerne a educação em respeito e em com-
preensão da diversidade, da liberdade e da autodeterminação
de culturas, de indivíduos e de grupos sociais historicamente
marginalizados no Brasil desdesempre.

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


Quando nos referimos a reconhecimento, notamos que a Lei
tem como propósito, além de distinguir e valorizar a formação ne-
gra do povo brasileiro, igualmente buscar a efetivação da justiça
e dos direitos sociais, civis, políticos, culturais e econômicos – os
quais vêm sendo invariavelmente negados às populações negras
ao longo de toda a história republicana brasileira. Compreende-
-se que, diante da efetivação dos dispositivos desta lei, seja pos-
sível mudar os discursos, as práticas e os sentimentos racistas…
bem como o modo de se pensar, de se agir e de se tratar as
pessoas negras e as suas manifestações de vida e de cultura. As
mudanças da lei propõem que o(a)s brasileiro(a)s conheçam, de
fato, a sua própria história e cultura – apresentadas, explicadas
e vivenciadas por vozes, experiências, registros e narrativas até
então marginalizados ou silenciados por diversos expedientes de
racismos e discriminações (institucionais ou não). Possibilita-se,
assim, a desconstrução do mito da democracia racial na sociedade
brasileira, e ainda o reconhecimento de sua própria negritude e
ascendência africana – tornadas recessivas ao longo da história
de humilhação e de exploração de bases racistas, brancocêntricas e
colonialistas em nosso país.
Sabe-se que, para tanto, a educação se constitui como ex-
periência fundamental de transformação da sociedade, e que é
através da escola que se pode propor e atuar mudanças de base
na formação da mentalidade e das atitudes do ser humano. Se-
gundo Silva (2010), “não se pode negar que a educação seja um
processo amplo de construção de saberes culturais e sociais, os
quais fazem parte do próprio sentido humano; por isso tem de se
promover o objetivo maior da escola, como formadora de concei-
tos e responsável pelo trato da diversidade étnico-racial” (SILVA,
2010, p.23). Acredita-se, pois, que, através da implementação des-
sa legislação, as futuras gerações brasileiras saberão respeitar e 45
valorizar a sua diversidade cultural e étnico-racial – de matrizes
preponderantemente afro-brasileiras, e não europeias –, de modo
a que se dê o desmonte definitivo do racismo anti-negro que es-
trutura a nossa formação como povo.

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Todavia, após mais de 15 anos de a lei ter sido promul-
gada e posta em prática, as atenções ora se voltam às bases e às
relações de sua aplicação nas/para além das escolas, bem como
aos desdobramentos de suas disposições políticas – as quais ha-
veriam de se traduzir, no trabalho e na dinâmica educacionais,
como prática diuturna de conscientização e de liberdade. Com
ênfase, relativamente à presença e ao pertencimento afro-bra-
sileiro em nossa sociedade, pouco ou nada adiantaria a mera
aplicação formal da lei… se as mudanças ocorressem somente
dentro das previsões da LDB, sem a materialização de ações para
além dos muros da escola. Referimo-nos a ações as quais garan-
tam a efetividade dos preceitos legais – precisamente no inves-
timento da (trans)formação da realidade social de professore(a)
s, aluno(a)s, mães, pais, comunidade escolar e cidadã(o)s. Certo
é que as intenções da lei não hão de se realizar adequadamente
– no âmbito curricular – sem que sejam internadas concomitan-
temente na compreensão da necessidade de se conhecer e de se
vivenciar as práticas, as experiências e as reflexões de negritu-
des no cotidiano de cada vez mais cidadã(o)s brasileira(o)s. As
questões mais palpitantes na consecução desse objetivo talvez se
deem, por isso, no sentido de se avaliar se o(a)s professore(a)s
estão realmente preparados(a)s para vivenciar – conscienciosa e
criticamente – os conteúdos sobre o assunto. Como ressaltam os
autores Aguiar; Aguiar(2010):
As questões relativas à aplicabilidade da lei 10.639/03 já
foram e ainda são discutidas em diversos eventos cien-
tíficos, envolvendo vários especialistas, resultando em
propostas, posicionamentos, materiais de apoio aos pro-
fessores e outras ações. Entretanto, infelizmente, ainda
encontramos profissionais da educação sem o preparo
46 necessário para trabalhar as questões relativas à História
e à Cultura afro-brasileira e africana (AGUIAR; AGUIAR,
2010, p.94).

Portanto, por mais que muitos materiais didáticos tenham


sido produzidos ao longo da última década e meia, na perspec-

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tiva de abordar aspectos da cultura e da história afro-brasileira e
da África, ainda é preciso melhorar a formação e a qualificação
do(a)s professore(a)s: pois que são/serão ele(a)s o(a)s princi-
pais responsáveis pela disseminação do conhecimento e pelo de-
senvolvimento das possíveis práticas cidadãs – que trabalhem a
importância da diversidade étnica e cultural existente no Brasil.
Visto que a escola é o espaço onde ainda acontecem numerosas
manifestações de racismo e de discriminação, compreende-se que
a Lei 10.639/03 há de ainda muito possibilitar aos/às profissio-
nais da educação a revisão de uma série de atitudes e posicio-
namentos – assumidos a respeito das diversidades étnico-raciais,
culturais e religiosas existentes no contexto educacional. Diga-se
que as agressões físicas, verbais, simbólicas e morais – decorren-
tes dos preconceitos de raça e da intolerância à autodeterminação
religiosa – são, vergonhosamente, ainda bastante recorrentes no
âmbito escolar e que o fenômeno de todas essas violências, as-
sociadas a espectros racistas – contra a ancestralidade, os valores, a
presença e as práticas culturais e religiosas de tradições não-bran-
cas ou não-ocidentais -, é algo inaceitável… que não pode seguir
sendo inconsequentemente confundido com meras brincadeiras ou
aborrecimentos de menor importância. É precisamente disso que fala-
remos em seguida, discutindo se se trata, ou não, de questão a ser
compreendida como prática de bullying racial.
O que nos parece irrefutável é que a formação para a cida-
dania de todas as crianças e jovens brasileiro(a)s passa necessa-
riamente pela compreensão, na escola, de que as motivações racis-
tas das práticas de violências, de injúrias e de desrespeitos contra
o(a)s negro(a)s (a sua presença, as suas manifestações religiosas e
culturais de ascendência africana, a sua corporeidade, os seus ca-
belos) são desumanas, odiosas, doentias e inadmissíveis. Sabe-se,
contudo, que tal compreensão somente se efetiva se for agencia- 47
da conjuntamente à formação e à implementação docente da Lei
10.639/03, cujos princípios e interesses devem estar inteiramente
fundamentados na consciência de cada profissional da educação:
para a agilização de estratégias e de políticas didático-pedagógicas

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em viabilização dos conteúdos e das reflexões de uma educação
verdadeiramente voltada para o reconhecimento e a valorização
da diversidade e da igualdade étnico-racial no Brasil.

A Controvérsia sobre o bullying racista no contexto escolar e algumas de


suas possíveis configurações

O desrespeito, a injúria, a ofensa, a perseguição, em geral,


não são problemas das organizações sociais e do convívio huma-
no apenas na atualidade. Na verdade, diversas formas de ultraje,
menosprezo, insulto, homiziação, acusação e agressão – como pi-
lhérias, injunções físicas ou simbólicas e preconceitos de diversos
tipos (por questões de origem etnicocultural, por convicção ide-
ológica, por condição socioeconômica, por confissão religiosa e,
principalmente, por causa de marcadores corporais) – podem ser
tão antigas quanto as próprias instituições em que muitos e diver-
sos sujeitos têm de conviver no cotidiano, notadamente aescola.
A despeito disso, somente a partir da década de 1970 é que esses
fenômenos começaram a se tornar objeto sistemático de estudo
acadêmico e científico.
Especificamente no âmbito escolar, as investigações a esse
respeito se iniciaram na Suécia, onde, à época, parte da sociedade
já se mostrava preocupada com a crescente violência entre o(a)s
estudantes. Até ali, as escolas praticamente ignoravam as diversas
violências e perseguições entre o(a)s aluno(a)s (na escola e fora
dela), bem como os seus efeitos sociais, políticos, econômicos e
psicológicos – considerando-as como meros episódios (in)disci-
plinares ou fatos corriqueiros entre crianças e adolescentes. De acor-
do com os estudos de Leão (2010), “apenas com a realização de
pesquisas em 1972 e 1973 na Escandinávia, as famílias puderam
48 perceber o grau de complexidade dos problemas gerados pela
violência específica no contexto da escola. Assim, a compreen-
são de tal fenômeno percorreu a Noruega e a Suécia, alastran-
do-se depois por toda a Europa” (LEÃO, 2010,p.121). A autora
ainda afirma que, somente depois de terem acontecido algumas

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tragédias – em que vítimas do bullying2, não suportando mais as
agressões, decidiram investir contra a vida de alguém ou contra
si mesmas -, foi que as autoridades começaram a se preocupar em
entender o problema como uma forma peculiar de violência, e em
promover políticas para combatê-lo especificamente no contexto
escolar (Cf. LEÃO, 2010, p.122).
A prática do bullying pode acontecer por toda a extensão da
escola e durante toda a vida escolar – na sala de aula, nos banhei-
ros, nos corredores, nas bibliotecas, nos pátios, nos laboratórios,
nas secretarias, da educação infantil até o ensino superior – , e
é comum que o(a)s agressore(a)s evitem a presença de adultos
e/ou de pessoas hierarquicamente superiores para praticarem as
suas violências, insultos, injúrias e intimidações, contra aquele(a)
s que são visto(a)s como mais vulneráveis e suscetíveis de inter-
nalizar submissamente as imprecações e investidas violentas de pre-
conceitos, de discriminações e até de explorações físicas e morais
cotidianas. Na prática, o bullying é um ato de violenta agressão,
geralmente bastante covarde, algumas vezes anônimo e mesmo
virtual, em que um indivíduo ou mais, que se considera(m) pri-
vilegiado(s) ou superior(es), intencionalmente persegue(m) e in-
timida(m) outro(s) – com ofensas, lesões e/ou com brincadeiras
desagradáveis, injuriosas, preconceituosas, vexatórias, intimida-
tórias, comumente de base racista e sexista. Os exemplos mais
recorrentes são os de inflição de apelidos ou apodos pejorativos,

2
O termo bullying não corresponde, em português, a uma tradução precisa, daí a
consagração, entre nós, do nome em inglês – para referir-se a uma forma especí-
fica de assédio, que pode ser moral, físico e/ou intelectual. Na verdade, a prática
de bullying corresponde ao emprego de força física, de ameaça e/ou de qualquer
tipo de coerção ou constrangimento, com o intuito de abusar, intimidar ou domi-
nar violentamente alguém, de forma frequente e habitual. Um pré-requisito para
se detectar o bullying é a percepção, pelo intimidador/abusador/assediador ou
por outros, de que há um desequilíbrio de poder ou de força, entre quem pratica 49
e quem sofre o bullying. Esse desequilíbrio seria o que, basicamente, distinguiria
o bullying de outros tipos de conflito e agressão. Conforme veremos, as justifica-
tivas para tal comportamento abusivo e recorrente incluem, às vezes, diferenças
de classe, de raça, de religião, de gênero, de orientação sexual, de aparência, de
comportamento, de linguagem corporal, de personalidade, de reputação, de li-
nhagem, de força, de tamanho e/ou de habilidade (Cf. FANTE, 2005).

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de veiculação de fofocas, calúnias, injúrias, difamações e/ou a elo-
cução de piadas preconceituosas, absolutamente sem nenhuma
graça, ofensivas e de muito mau-gosto.
No Brasil, os primeiros estudos relevantes a esse respeito
foram realizados e divulgados a partir da década de 1990. Cleo
Fante (2005) foi, desde então, uma das principais pesquisadoras
sobre essa problemática, tendo empreendido estudos específicos
– com o propósito de distinguir o bullying de inconsequentes brin-
cadeiras de crianças e adolescentes. Foi concluída à época uma pesqui-
sa (FANTE, 2005), por intermédio da qual foi aplicado um ques-
tionário de 25 perguntas, a um universo de 84.000 estudantes,
de variados níveis e períodos escolares, incluídos 400 professores
e 1000 pais ou responsáveis. Segundo a autora (2005), esses es-
tudos verificaram que a cada grupo de 07 aluno(a)s, 01 estava
envolvido(a) em situações de bullying, sendo agressor(a), especta-
dor(a) ou vítima. Nesse contexto, a autora define o bullying esco-
lar como uma ação ou um conjunto de ações de natureza agressi-
va e continuada, praticada(o) intencional e repetitivamente, mas
sem apresentar motivos plausíveis… de causas que razoavelmente
motivassem aquela(s) violência(s) como reação a qualquer outra
agressão anterior. Podemos compreender essa ideia nas seguintes
palavras da autora, quando diz que o bullying corresponde a
(...) um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e re-
petitivas, que ocorrem sem motivação evidente, adotado por
um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angús-
tia e sofrimento. Insultos, intimidações, apelidos cruéis,
gozações que magoam profundamente, acusações injus-
tas, atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e in-
fernizam a vida de outros alunos, levando-os à exclusão,
além de danos físicos, morais e materiais (FANTE 2005, p.
28,29, grifos nossos).
50
Diga-se que o bullying também pode ser praticado por meio
de violências simbólicas, além de agressões e constrangimentos
físicos. O bullying físico é, contudo, o mais perceptível e, por isso,
mais fácil de ser identificado. Pode ser representado por maus

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tratos ou injunções corporais – como bater, puxar o cabelo, em-
purrar, beliscar e morder. Já o bullying simbólico, que também
pode ser chamado de indireto, está mais caracterizado quando o(a)
s agressore(a)s buscam excluir as suas vítimas do convívio nos
grupos da escola, promovendo-lhes ameaças, maledicências, espa-
lhando boatos a seu respeito... A forma indireta também acontece
por meio dos veículos de comunicação, informáticos e/ou tecno-
lógicos (sobremodo nas atuais redes sociais), identificada como
cyberbullying3. Compreende-se que todos os tipos de bullying têm,
todavia, o propósito e o real potencial de causar danos – muitas
vezes inconsiderados e bastante graves – às suas vítimas, sejam
estes físicos, psíquicos ou emocionais.
Conforme Dan Olweus (1993), apud Fante (2005), não são
todas as brincadeiras que – no entanto – podem ser consideradas
como bullying, pois que, sabidamente, também existem certa nor-
malidade e recorrência de brincadeiras e de chistes os quais podem
parecer mais impetuosos e drásticos entre crianças e adolescentes
– como certas formas de desafio, de rituais de aceitação, de inicia-
ção, de batismos para ingressar em um grupo etc., mas que se apre-
sentam apenas de modo eventual ou esporádico. Daí que, para ser
considerada bullying, é preciso que a brincadeira empregue agres-
sões repetitivas, recorrentemente sobre uma determinada pessoa
ou sobre um grupoespecífico, a respeito de uma característica ou
de um conjunto de características igualmente específicas, além
de sem motivos evidentes ou justificáveis – quase sempre embasáveis

3
O chamado cyber bullying acontece pelas redes sociais, onde em páginas de gru-
pos podem ser veiculadas caricaturas, vídeos, desenhos e/ou fotografias, assim
como calúnias, injúrias e maledicências de diversos tipos, às vezes por meio de
perfis falsos, quase sempre alusivos a situações vexatórias e/ou de ridicularização
de alguém ou de algum grupo, ou ainda que simplesmente condene, discrimine,
insulte, acuse ou persiga a presença de indivíduos ou de grupos específicos no 51
convívio escolar, notáveis por alguma característica ou posição que o(a)s dife-
rencie dos padrões sociais de prestígio – uma deficiência, qualquer desvio da
heteronormatividade, não reprodução dos modelos burgueses de consumo, be-
leza, corpo dissonante das convenções estéticas – de ideais atléticos, erotizados e
branco-ocidentais -, convicções de ideias ou confissões religiosas dissidentes das
damaioria de matriz judaico-cristã etc.

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
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em sentimentos, em representações e em práticas de racismo, de
sexismo, de ódio, de elitismo, de intolerância e/ou dediscrimina-
ção social. É igualmente válido considerar, no sentido do bullying
e de sua configuração, o aspecto da intencionalidade – a se veri-
ficar juntamente com a repetição, já que não é possível uma ação
violenta, vexatória ou intimidatória ser praticada várias vezes,
reiteradamente, com a mesma pessoa ou com o mesmo grupo,
sem que o(s) praticante(s) não tenha(m) a intenção de causar
danos, vexações, dores e/ou prejuízos persistentes à(s)vítima(s).
Há de se observar, por outro lado, que esse tipo de violência
escolar assenta-se, quase sempre, em relações de desequilíbrio
de poder entre os seus protagonistas: agressore(a)s, vítimas e es-
pectadore(a)s – caracterizando-se, no mais das vezes, no abuso
da superioridade física, cultural, econômica, ideológica e/ou de
prestígio social do(a)(s) agressor(a)(es) sobre a(s) sua(s) víti-
ma(s), a qual/as quais tem/têm a sua autoestima quase sempre
reduzida, fulminada e a sua autoconfiança lastimada. Conforme
Leão (2010),
(...) esse desequilíbrio de poder que há entre os protago-
nistas do bullying se dá pelo fato do agressor possuir algu-
mas características tais como, ‘idade superior à da vítima,
estrutura física ou emocional mais equilibrada, ter apoio
dos demais amigos de classe, ser sociável entre os demais
grupos da classe, tamanho superior’; tais atributos fazem
com que a vítima se sinta inferior, não tendo condições
de se defender diante das ofensas, sejam elas verbais ou
físicas (LEÃO, 2010, p.122, ‘grifos daautora’).

Diante disso, fica fácil compreender que as principais ví-


timas de bullying são aquelas crianças e jovens considerada(o)s
diferentes ou destoantes – que, por suas características físicas e/ou
52 psicológicas, ou então pela exteriorização de costumes e/ou práti-
cas e expressões peculiares (por exemplo, de manifestações etni-
coculturais ou expressões religiosas minoritárias), propendem ao
isolamento, aos comportamentos melancólicos, aos quadros de-
pressivos e de desajuste: típicos de quem repetidamente interna

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ou introjeta acusações, inflições, insultos, intimidações, subalter-
nizações, imprecações e reprovações. Via de regra, é muito mais
comum do que se imagina a opressão praticada contra aquele(a)
s que se veem desviantes ou fora das normas de padrão e prestígio
da sociedade capitalista (burguesa, branca, patriarcal, hierárquica,
cristã e ocidentocêntrica), muitas vezes simplesmente por apre-
sentarem características as quais incomodam ou supostamente con-
trariam valores, regras e modelos hegemônicos – reproduzidos
privilegiadamente por seus agressores. As condenações e as per-
seguições morais e físicas são, dessa forma, cominadas a crianças
e jovens que estão acima ou abaixo do peso, aos/às que divergem
do binarismo de gênero (que segrega, em superioridade distin-
tiva, o masculino do feminino), aos/às que transparecem convic-
ções e crenças religiosas de matrizes não judaico-cristãs (princi-
palmente de religiões de matrizes africanas e/ou afro-brasileiras
e aos seus familiares), aos/às que são ateístas ou agnósticos, aos/
às que usam óculos ou aparelhos ortopédicos/ortodônticos, aos/
às que têm estatura fora da média, aos/às que apresentam difi-
culdade de fala, de aprendizagem, ou ainda aos/às deficientes de
qualquer tipo.
Claro que, por último, mas não menos – como não poderia
deixar de ser – praticamente toda a gravidade e vilania, de todas
as práticas e representações de preconceitos e discriminações,recaem inde-
fectível, supinamente sobre aquele(a)s que são tido(a)s ou visto(a)s
como não-branco(a)s: considerado(a)s, simplesmente por sua cor
de pele, por suas diferenças étnico-raciais, como menos inteligentes,
menos bonito(a)s, menos digno(a)s, menos limpo(a)s,menos sadio(a)s e
menos distinto(a)s do que a maioria que, utilitariamente, gosta de se
ver e de se entender como branca: neto(a)s ou descendentes de europeus, a
se reconhecerem na mídia, na revista, na televisão, na rede social,
na peça publicitária, no altar, no livro didático, na empresa, na 53
chefia, no paraíso de uma humanidade branca e universal.
Para o(a)s praticantes do bullying ou das violências e pre-
conceitos em ambiente escolar, o que importa é que a sua posição
ideológica opressora e/ou o seu discurso de distinção para a infe-

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riorização do(a) outro(a) seja assimilado e aceito pela maioria – e,
principalmente, internalizado por suas vítimas: as quais devem ser
submetidas e potencialmente exploradas. A imposição violenta da
superioridade do(a) agressor(a) sobre a sua vítima – intimidando-a
e cooptando-a – permite que as agressões se tornem rotineiras
e mesmo se estabeleçam como uma cultura de submissão, negação,
subalternidade, coação e violência – por isso, o bullying deixa tantas
e dolorosas marcas. Para Silva (2010), as consequências desse
fenômeno são as mais extensas e variadas, e a sua gravidade de-
penderá muito de cada situação, de cada sujeito – de sua expe-
riência, de suas vivências, de seu apoio e da forma e intensidade
das agressões infligidas. Muitas vezes, as vítimas carregam essas
marcas para a vida adulta – fase na qual podem precisar de acom-
panhamento psicológico para superá-las.
Fato é que o fenômeno do bullying, muitas vezes, ainda
passa como algo despercebido ou ignorado por professore(a)s e
responsáveis, sendo visto como simples briguinhas… que envol-
vem apenas ofensas e xingamentos bobos, que vão passar logo…sem
grandes problemas… ao longo do crescimento/desenvolvimento da
criança. Pouco(a)s são o(a)s que percebem que esses comporta-
mentos não podem ser considerados normais tampouco aceitáveis
no âmbito escolar – haja vista a profundidade, a continuidade e
a extensão de seus danos. É importante ainda que se destaque
que o bullying está presente em toda e qualquer escola, apesar da
peculiaridade de cada um dos casos e ocorrências. O fato é que
o fenômeno acontece em escolas de todos os tipos, independen-
temente de serem públicas ou privadas, de sua localização ser no
campo ou na cidade, na periferia ou nos bairros mais centrais.
A presença do fenômeno constitui uma realidade inegável
em nossas escolas, independente do turno escolar, das áre-
54 as de localização, do tamanho das escolas ou das cidades,
de serem as séries iniciais ou finais, de ser a escola pública
ou privada. Isso significa que o bullying acontece em 100%
das nossas escolas. Ele é o responsável pelo estabeleci-
mento de um clima de medo e perplexidade em torno das

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vítimas, bem como dos demais membros da comunidade
educativa que, indiretamente, se envolvem no fenômeno
quase sempre sem saber o que fazer (FANTE, 2005, p.61).

Sabe-se, além disso, que o bullying também ultrapassa o es-


paço escolar, haja vista que as mesmas crianças ou adolescentes
agressore(a)s podem fazer parte da vida social de suas vítimas
e de seus/suas expectadore(a)s em outros ambientes – como,
por exemplo, em igrejas, campos de futebol, praças, clubes, en-
tre outros locais. Segundo Fante (2005), é uma realidade que
já não pode ser negada em nenhuma escola e igualmente para
além de seus espaços. Também podemos perceber os seus des-
dobramentos nas diversas e consequentes formas de perseguição
e de acosso que adentram a vida adulta: no ambiente de traba-
lho, na faculdade, nos grupos religiosos, nas penitenciárias etc.
Há, na verdade, sólidos indícios de que o(a)s que praticam o
bullying na vida infantil e juvenil tendem a se tornar adulto(a)
s com comportamentos igualmente abusivos. Entretanto, nesses
outros ambientes, além da escola, a sequência do que se entende
como o bullying – então praticado por adulto(a)s – passa a assu-
mir proporções bem mais graves de assédio e/ou de coerção pessoal,
nas suas mais diversas tipificações criminosas de violências, agres-
sões e/ou constrangimentos morais, sexuais, laborais, de aliena-
ção etc (Cf. FANTE, 2005). Portanto, as posturas e as tendências
de crianças e jovens, que hoje impelem práticas de discriminação
e de perseguição na escola, poderão ser as mesmas (agravadas)
do(a)s assediadore(a)s e perseguidore(a)s na futura vida adulta.
Por meio dessa inferência, percebe-se que o bullying deixa de ser
um problemaestritamente escolar, devendo ser visto como uma ques-
tão social, que pode vir a ofender e afetar diversos segmentos e
instituições da sociedade.
55

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
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Bullying racial ou racismo? A especificidade da violência
na escola por motivos étnico-raciais e a necessidade de
combatê-la por meio da promoção de uma educação
antirracista

Para que haja uma melhor compreensão acerca deste con-


tundente assunto, é necessário, primeiro, entender o que é o racis-
mo e como este se manifesta no ambiente escolar – a ponto de
também ser considerado, ou não, como uma forma de bullying.
Atualmente, o conceito de racismo enquadra-se precisamente
na perspectiva de anteposição ideológica, política e cultural com
as teorias do evolucionismo do século XIX, as quais defendiam
diferenças essenciais (morais, cognitivas, fisiológicas...) entre as
supostas raças da humanidade – com base em pseudo-teorias gené-
ticas e naturalistas. Tal espectro ideológico de racismo evolucionista
influenciou várias áreas do conhecimento, principalmente as ci-
ências médico-biológicas, sociais e sociais aplicadas. Com ênfase,
esse arcabouço teórico do evolucionismo defendia a ideia de que
entre os seres humanos haveria naturalmente separações distin-
tivas e essenciais – entre a raça branca, hipoteticamente mais evo-
luída e melhorada, e as demais. Ressalta-se, por último, a inferio-
rização mais absoluta dos negros, a ponto de se lhes considerar,
humanamente, como os descendentes mais próximos dos macacos.
Totalmente a contrassenso disso, como testemunho da luta histó-
rica de resistência, de consciência e de superação das inestimáveis
violências do racismo anti-negro, ao caracterizar o que se com-
preende por raça na atualidade, os DCNs (2004) consideram que
(...) é importante destacar que se entende por raça a cons-
trução social forjada nas tensas relações entre brancos e
negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada
56 tendo a ver com o conceito biológico de raça, e que é
espantosamente ainda utilizado com frequência nas rela-
ções sociais brasileiras, para informar como determinadas
características físicas – como cor de pele, tipo de cabelo,
entre outras –, influenciam, interferem e até mesmo deter-

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minam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior
da sociedade brasileira (BRASIL, 2004,p.13).

Nesse sentindo, nota-se que o conceito de raça está – sem-


pre esteve – quase que totalmente relacionado à posição e às
condições histórico-sociais do grupo ou do indivíduo, não pre-
cisamente à sua herança ou ascendência genética. De fato, o ra-
cismo pode ainda hoje ser compreendido como a inferiorização
histórica – física e simbólica – dos dominados e dos explorados
(descendentes mais diretos de escravizados e de colonizados),
por aqueles que recorrentemente detiveram a supremacia dos
poderes, dos privilégios e das governanças institucionais. Trata-
-se de um agenciamento de sistemática inferiorização, o qual se
atualiza por muitas frentes, de uma raça em relação à outra, como
autoridade ou hegemonia a criminosamente legitimar a subalter-
nização de uns sobre os outros. É dessa forma que existiram e ainda
existem – povos que se consideram racistamente superiores a ou-
tros, e que se utilizam da educação como uma arma de domínio
e de formação ideológico-cultural (Cf. BRANDÃO,2006). Disso
se pode inferir que o racismo, como um preconceito histórica
e socialmente forjado – planejado e internalizado na formação
e na mundividência da maioria dos sujeitos -, se exterioriza em
diversas e diuturnas formas de discriminação e de violência: a se
manifestarem muito comumente em quaisquer ambientes da vida
social, e, por óbvio, também na escola. Assim como o bullying,
portanto, o racismo também pode ser compreendido como uma
espécie recorrente de violência, que esteve e que está sendo es-
trutural e invariavelmente vivenciada pel(o)as aluno(a)s em seus
cotidianos escolares.
Portanto, não é de agora que existem preconceitos raciais,
ou inegáveis expressões e manifestações de racismos, também
dentro das nossas escolas. O que, contudo, não pode continuar
57
despercebido é o fato de que, muitas vezes, esses fenômenos não
sejam considerados – por parte de gestore(a)s, educadore(a)s,
mães, pais e mesmo por aluno(a)s – como algo sério ou como gra-
ves agressões. A propósito disso, Rosvari e Bose (2010) destacam:

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A escola é um espaço público de convivência social e, por-
tanto, alvo das mais diversas influências discriminatórias,
inclusive raciais. Para quem agride, uma brincadeira, um
termo pejorativo, um apelido nem sempre é motivo para
uma briga, mas para quem é alvo da brincadeira, da “go-
zação”, pode ser ou se tornar um fato grave, com muitas
complicações (ROSVARI e BOSE, 2010, p. 06, “grifo dos
autores”).

É válido destacar que, nesse contexto, o(a)s que especifica-


mente agridem são visto(a)s – muitas vezes – como bons/boas estu-
dantes em suas escolas, e que as suas ofensas e injúrias racistas não
passam de peraltices da infância. São aluno(a)s, mas também são
professore(a)s, gestore(a)s e funcionário(a)s em geral... que, não
raro, reproduzem no dia a dia, discriminatória e inconsequente-
mente, o seu racismo, a sua misoginia, a sua LGBTfobia, a sua ig-
norância, o seu ódio, a sua desumanidade... Apesar de existirem leis
que criminalizam e que combatem as expressões e as manifesta-
ções de racismos e de preconceitos raciais – diretamente também
nos ambientes escolares -, mesmo assim, parece que seguem pre-
valecendo a indiferença, a banalização e/ou mesmo a ignorância
ante a potencialidade ofensiva e lesiva desses atos criminosos…
muitas vezes disseminados e/ou acobertados por parte do(a)s
próprio(a)s educadore(a)s. Em denúncia disso, Cavalleiro (2001;
2005) é talvez a autora que melhor tem demonstrado que, ainda
hoje, o racismo segue ocorrendo – direta ou veladamente – por
parte também do(a)s próprio(a)s educadore(a)s no ambiente es-
colar. A pesquisadora afirma que muito(a)s professore(a)s não
deixam de se referir aos/às seus/suas aluno(a)s por suas caracte-
rísticas ou por seus marcadores raciais.
O fato de as professoras basearem-se na cor da pele e/ou
58 nas características raciais de seus alunos para diferenciá-
-los – “a moreninha”, “a branquinha”, “aquela de cor”, “a
japonesinha” – constitui um aspecto que merece atenção.
Não podemos esquecer que essa diferenciação representa
um problema, pois vigora no país uma hierarquia racial.
Além do mais, cabe considerar que esses comentários fei-

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tos na presença das crianças podem ser por elas interiori-
zados e reproduzidos nos demais espaços da sociedade.
São tratamentos que denotam desrespeito e que podem
constranger as crianças (CAVALLEIRO, 2001, p.145, “gri-
fos da autora”).

Veja que a autora não deixa de ressaltar que são o(a)s ne-
gro(a)s (“moreninho(a)s”) o(a)s que primeiro recebem trata-
mento diferenciado, algo que certamente lhes causa – ao longo de
toda a vida – diversos sentimentos de exclusão e de inadequação.
Trata-se, na verdade, da evidenciação de uma sistemática exclu-
são racista, a qual se dá desde o início da vida escolar – acarre-
tando-lhes a mitigação de diversas oportunidades educacionais,
profissionais e sociais. É, por certo, em decorrência disso que o(a)
s estudantes negro(a)s, sejam crianças ou adolescentes, detêm as
piores taxas de analfabetismo, de fracasso e de evasão escolar
(BRASIL, 2004, p.98).
(...) o racismo é, na verdade, ingrediente básico das dinâ-
micas e das relações interpessoais entre profissionais da
educação e crianças, e a operação dele no cotidiano escolar
permite uma nítida separação de alunos em sala de aula,
de acordo com o seu pertencimento racial. Tal procedi-
mento pode ser percebido também pelas crianças, todavia
há conivência e/ou negligência dos adultos com relação
a isso. Daí pressupor-se que esses atos se difundem por
todo o sistema de ensino, o que, por sua vez, desemboca
na sociedade como um todo (CAVALLEIRO, 2005, p.82).

A autora ainda destaca que, muitas vezes, o(a)s profissio-


nais da educação, além de banalizarem as situações de racismo
entre o(a)s aluno(a)s, agem como se nada tivesse acontecido.
Essa indiferença ou ausência de atitude por parte do(a)s profes-
sore(a)s é compreendida entre o(a)s aluno(a)s como um sinal 59
claro de que não há nada a se fazer contra o racismo – além de às
suas injunções e coerções tacitamente se sujeitar. Nisso, a criança
discriminada e/ou vítima de preconceito vai entendendo que, toda
vez que for alvo de ofensas, agressões e/ou injúrias raciais, não

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pode contar com o apoio de ninguém, tendo de assumir sozinha
– como um problema seu (em si, de sua inadequação, de sua inferiori-
dade, de sua inépcia) – todos os efeitos dos tratamentos racistas
sofridos. Como se as causasdo racismo não adviessem do ódio,
da desumanidade, do opróbrio e/ou da ignorância do(a)s que
movem as injustiças, violências e desvirtuamentos de preconcei-
tos e discriminações raciais. Em prol de mudar essa realidade, o
Movimento Negro, desde sempre, promoveu a luta por uma edu-
cação antirracista. A população negra do país, na verdade, nunca
esteve satisfeita com a História de escravidão e desigualdade racial
apresentada pelos livros e propostas didático-curriculares. Essa
insatisfação, em forma de luta e ativismo incessantes, teve como
maior resultado político – conforme já dissemos – a promulgação
da Lei 10.639/03. Compreende-se que essa legislação preceituou,
como principal objetivo, reconhecer e valorizar a diversidade et-
nicorracial e cultural de toda a sociedade brasileira, promovendo,
incluindo e contemplando as matrizes africanas de nosso povo.
De fato, a lei pretende – conforme também já vimos – com-
bater o racismo e melhorar a autoestima da(o)s cidadã(o)s ne-
gro(a)s brasileiro(a)s: conferindo-lhes, por meio da educação, a
consciência histórica necessária à postulação de seus direitos. O
que ora destacamos, sempre como resultado direto da luta e da
resistência do Movimento Negro, é que uma das primeiras ações
efetivadas pelo Ministério da Educação (MEC), foi, nesse sentido,
a reformulação dos livros didáticos: de toda a sua remissão à es-
cravatura do(a)s negro(a)s, ao etnocentrismo branco e europeu e
ao afro-pessimismo – em transição ao reconhecimento e à valori-
zação da diversidade histórico-cultural africana e afro-brasileira.
A partir das mudanças nos currículos escolares e nos livros didá-
ticos, a perspectiva é a de que as crianças negras – a médio e a
60 longo prazo – resgatem a consciência e a compreensão histórica
de sua ancestralidade, assim como a dos valores e importância de
seus marcadores de negritude e afro-brasilidade… reconhecendo
a sua identidade étnica… estimando as suas características físi-
cas (etnicorraciais) e culturais: os seus cabelos, os seus corpos,

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


a religiosidade, os saberes e os costumes de seus ancestrais, (re)
construindo a sua autoestima e deixando de crer que sejam, por
qualquer motivo, inferiores ou descendentes deescravos.

Bullying e racismo na escola – abordagem e análise de


um contexto local

Nesta última parte, apresentamos o estudo de campo re-


alizado com os aluno(a)s e a professora da escola observada. O
objetivo é o de confirmar a hipótese do bullying racial – como
especificidade do fenômeno bullying ou propriamente como racis-
mo, ocacionado pelos preconceitos existentes também em nossa
realidade local – município de Redenção/CE4. Como dissemos,
durante a realização deste trabalho, foi desenvolvida uma pesqui-
sa de campo em uma escola de ensino fundamental do município.
Trata-se da observação e da realização de uma pesquisa quali-
tativa, cujos dados decorreram da aplicação de um questionário
semiestruturado aos/às aluno(a)s e a uma professora do 6. ano
do ensino fundamental – o que contribuiu para a constatação e
a compreensão da incidência de alguns aspectos de racismo nas
relações do ambiente escolar. O procedimento concebido foi exe-
cutado no decurso de três visitas à turma, durante as suas aulas
de História, entre os dias 06 e 20 de março de 2017. A turma

4
O município de Redenção, localizado na região do Maciço de Baturité, interior
do Ceará, tem como marco histórico a concessão de cartas de alforria a todo(a)
s (a)os negro(a)s cativo(a)s, em 25 de março de 1883, portanto 05 (cinco) anos
antes da assinatura da Lei Áurea. Oficialmente por este motivo, a cidade foi
escolhida para sediar a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira – UNILAB -, instituição pública federal de ensino superior. Mais
do que uma universidade federal, trata-se a UNILAB de um projeto de interna-
cionalização e interiorização do ensino público superior de qualidade, mediado
pela parceria solidária entre o Brasil e os demais países membros da CPLP – Co- 61
munidade dos Países de Língua Portuguesa, notadamente dos PALOPs – Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Atualmente, a universidade, ainda em
fase de instalação na pequena cidade do interior cearense, conta com 5.876 estu-
dantes, entre brasileiro(a)s, guineenses, caboverdiano(a)s, são-tomeenses, ango-
lano(a)s, moçambicano(a)s e timorenses (Cf. www.unilab.edu.br/como-surgiu/,
acessado em Out. 2018).

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
era composta por 23 aluno(a)s, com idade entre 09 e 13 anos.
Pode-se perceber que entre o(a)s aluno(a)s havia crianças e pré-
-adolescentes. A presença de características físicas afro-brasilei-
ras entre esse(a)s estudantes era inegável, pelo menos para uma
maioria estimada entre 80 e 85% do total. De 23, pelo menos 18
estudantes apresentavam fenotipicamente alguma descendência
africana ouafro-indígena. Nas duas primeiras visitas, foi realizada
apenas a observação quanto às relações interpessoais, tanto entre
professora e aluno(a)s, quanto deste(a)s entre si. No terceiro e
último dia de visita, o(a)s aluno(a)s responderam as seguintes
perguntas, tendo sido obtidas as seguintes respostas:

Quadro 1 – Resumo do questionário aplicado aos/às estudantes


e de suas respostas. Fonte: Elaborado pelos autores (2018)
1. Você se considera negro(a)? 09 14
2. Você sabe o que é racismo? 23 0
3. Você já presenciou ou passou por uma situação 05 18
racista?
4. Você se considera, de algum modo, racista? 0 23
5. Você sabe o que é bullying? 23 0
6. Você já praticou bullying com alguém? 04 19
7. Você já sofreu ou conhece alguém que sofreu bullying? 12 11
8. Você sabe o que é agressão ou ofensa por um motivo 05 18
racista?
9. Você já sofreu ou já praticou alguma ofensa, agressão 03 20
ou injúria por motivos raciais?

Neste questionário respondido pelo(a)s aluno(a)s, desta-


cam-se algumas perguntas que geraram polêmicas e contradições
nas respostas, tanto quanto disparidade com relação às ações ob-
62 servadas durante as duas primeiras visitas (perguntas 3, 4 e 9).
Nota-se, igualmente, que é ainda um desafio para as crianças e
o(a)s pré-adolescentes – ou ao menos um desconforto – se reco-
nhecerem como negro(a)s. Mais difícil, ainda, se reconhecerem
como vítimas de racismo e/ou como portadore(a)s de atitudes e

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


de preconceitos racistas. Analisando o registro dessas respostas,
é possível também observar que algumas das crianças e pré-ado-
lescentes demonstram constrangimento ao discutirem questões
étnico-raciais. Alguns/algumas, no entanto, fizeram questão de se
auto afirmar como negro(a)s, declarando isso até verbalmente,
mesmo que apresentassem poucas ou menos características de
ancestralidade africana ou afro-indígena do que outra(o)s – que
preferiram negar a sua negritude. Nenhum(a) do(a)s aluno(a)s
assumiu ser racista, mas quando responderam a primeira pergun-
ta, alguns/algumas chegaram a apontar um(a)ou outro(a) colega
– referindo-o(a) com termos racistamente pejorativos “Ei, fula-
no(a), tu é negro(a) também. Olha a tua cor, parece um carvão!”.
“Essa ali, olha Tia, tem o cabelo duro, e ainda quer ser branca...”.
No que toca as questões sobre o bullying, também percebe-
mos algumas contradições. É perceptível que algumas responderam
com o intuito de mascarar a sua posição e/ou entendimento sobre
o assunto, porque sabem dos malefícios que o bullying causa na
vida de suas vítimas, não querendo ser reconhecidas como alguém
que está incurso(a) em uma atitude reprovável. No entanto, quando
lhes é perguntado “Você já praticou bullying?”, 04 reconheceram
que sim. Isso em uma situação em que alguns/algumas seguiam
apontando uns/umas para o(a)s outro(a)s… dando a entender
que todo(a)s ali estavam, de algum modo, envolvido(a)s com o
bullying. Por meio dessas falas, é possível, de certo modo, compre-
ender que o(a)s aluno(a)s banalizam o fenômeno das agressões e
das violências no espaço escolar. Uma das crianças, que não admi-
tiu praticar bullying,apresentou o seguinte argumento – “Não faço
bullying com ninguém, porque sei respeitar as diferenças do outro.
Ninguém tem culpa de nascer gordo igual uma baleia, ser quatro-olhos
ou então ser um negro burro”. Diante de tudo isso, infere-se que
o(a)s estudantes têm, ao menos, relativa consciência de que o ra- 63
cismo é uma grave ofensa e de que o bullying é um problema com
diversas consequências em sua realidade. No entanto, nenhum(a)
quis se reconhecer como racista ou como praticante de bullying –
estando, portanto, evidenciadas as suas contradições.

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
No decorrer das duas primeiras visitas – as quais foram
apenas de observação -, houve momentos em que a professora
também mostrou um comportamento diferenciado e incompatível
com as suas atribuições, ocasionando verdadeiro constrangimen-
to a uma das alunas. A menina em questão estava irrequieta, não
queria permanecer em seu lugar. E quando a professora foi lhe
chamar a atenção, pediu – mais uma vez – que ficasse sentada na
cadeira. A menina desobedeceu a ordem, foi quando a professora
se irritou, e lhe disse “Só podia mesmo ser filha de borracheiro,
por isso é que é repetente”. Do que, enfim, se constata das visitas
de observação e dos dados colhidos com a aplicação do questio-
nário, torna-se imprescindível que a escola esteja em constante
combate ao bullying, ao racismo e aos preconceitos e violências
de todo o tipo – motivados por quaisquer causas que sejam: que
remetam injuriosa ou vexatoriamente a(s) vítima(s) à sua origem
étnico-racial, à sua identidade de gênero, à sua condição ou classe
sócio-econômica, à sua convicção ou confissão ideológico-religio-
sa, às suas características corporais etc. É dessa forma, porque
as nossas crianças e jovens precisam conhecer, compreender e
principalmente respeitar as diferenças individuais, bem como a
diversidade e a pluralidade do(a)s colegas, de suas comunidades,
de suas culturas e de toda a sociedade.
Como esta pesquisa tem o seu foco principal na problemá-
tica do bullying e, especificamente, do racismo no contexto es-
colar local, finalizamos ressaltando a importância da valorização
imprescindível de uma educação antirracista. Nesse sentido, é de
suma importância o papel do(a) professor(a) bem formado(a) e
atualizado(a) dentro da instituição de ensino. É necessário que
o(a)s profissionais da educação promovam atividades que efeti-
vamente valorizem a diversidade racial, social, política, de gênero
64 e cultural – existente na escola: estimulando o (re)conhecimento
do(a)s estudantes, de maneira positiva, a respeito de sua própria
identidade, origem e afro-descendência.

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Considerações finais

A sociedade brasileira e o seu sistema educacional seguem,


de fato, reproduzindo imagens, padrões e valores os quais pro-
movem – mais do que combatem – a discriminação, a inferioriza-
ção e a subalternização do(a)s negro(a)s: desqualificando as suas
identidades, conhecimentos, sabedorias, ancestralidade, valores,
culturas e visões de mundo. O resultado histórico de tanto ra-
cismo anti-negro tem sido a violência, a indiferença e mesmo a
perseguição contra o(a)s afrodescendentes(a)s, fulminando-lhes
a autoestima, a autonomia e fazendo com que o(a)s próprio(a)
s negro(a)s internalizem, individual e coletivamente, sentimen-
tos de inferioridade, frustração, angústia e revolta – os quais têm, ao
longo de toda a história brasileira, destruído as nossas relações
comunitárias, as nossas reais oportunidades de desenvolvimento
humano e social.
Somente após muitos anos de lutas, empreendidas pelos
diversos segmentos do Movimento Negro, o Estado brasileiro ad-
mitiu a necessidade de implementar políticas para a promoção
de uma educação antirracista, que valorize a diversidade étnico-
-racial e cultural do povo brasileiro e que afirme positivamente
as suas matrizes africanas. O coroamento dessas lutas é, como
vimos, a promulgação da Lei 10.639/03. Do que especificamente
se evidencia como resultado de nossa pesquisa, é notável que essa
conquista educacional, em prol da cidadania do(a)s negro(a)s – e
de todo(a)s o(a)s brasileiro(a)s -, ainda está em curso: pois que
ainda é comum que haja situações em que alguém é menospre-
zado(a) ou desrespeitado(a) pelo simples fato de ser negro(a).
Isso segue ocorrendo, tanto na escola, como em qualquer outro
ambiente social.
Dentro do cotidiano escolar, percebe-se, com ênfase, a ne-
65
cessidade de uma constante luta contra a discriminação e o racismo
anti-negro. Desgraçadamente, é ali onde encontramos ainda vários
casos e episódios de manifestações racistas. Ocorrências as quais,
muitas vezes, o(a)s próprio(a)s profissionais da educação prefe-

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
rem banalizar, tratar com parcimônia... porque não sabem como
resolver os conflitos que surgem entre o(a)saluno(a)s e deste(a)s
com a instituição (Cf. CAVALLEIRO, 2001). Há ainda casos sobre
os quais esses/essas mesmo(a)s profissionais preferem dizer não se
tratar de racismo, mas de bullying comum. Com isso, percebemos que
o bullying pode ser invocado para camuflar ou mitigar o racismo
manifestado no ambiente escolar. Trata-se de um duplo equívo-
co, porque esse tipo de postura tanto deixa de individuar o que
corresponde à tipificação do que é um crime (injúria e/ou ofensa
racista), quanto diminui o potencial ofensivo do bullying a um mero
contratempo ou chiste corriqueiro no ambiente da escola.
Diante dessa percepção, o objetivo principal deste artigo
foi o de identificar como os conflitos que envolvem as crianças
negras – de uma turma do ensino fundamental de uma escola pú-
blica de Redenção/CE – podem se manifestar não apenas em for-
ma de bullying,mas de efetivo racismo no ambiente escolar. Para
tanto, fez-se necessário contextualizar o tema, com base na impor-
tância da discussão sobre a diversidade das relações etnicorraciais
na escola, conforme a perspectiva de uma educação antirracista
– preconizada pela Lei 10.639/03. Já como subsídio à discussão
sobre o bullying, foi proposta uma pequena incursão sobre a sua
problemática, em seus mais diversos aspectos e consequências de
violências. Compreendemos que existem várias maneiras de se
praticar e de se sofrer o bullying, por diversos motivos. Porém,
não é qualquer agressão, ofensa, acusação ou intimidação – verbal
ou física -, praticada por estudantes, que pode ser considerada
bullying. Para se configurar o bullying, é necessário que se veri-
fique a repetição das ações violentas, coercitivas e/ou constran-
gedoras – com a(s) mesma(s) vítima(s) -, e que haja, ademais,
evidente dolo na inflição dos maus tratos e perseguições, além de
66 não se detectarem os motivos aparentes do assédio. Do que disso
se segue, é evidente que o racismo pode se manifestar também
por meio da prática do bullying, ainda que – não necessariamen-
te – um fenômeno conflua no outro. O racismo, na verdade, não
subsome no bullying, posto que o contrário seja possível.

FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


Cabe ressaltar que a discriminação e o preconceito raciais –
mesmo existentes nas escolas – são exteriorizados, além de sua per-
versidade, como práticas as quais podem ser imputadas como cri-
me, especificamente àquele(a)s que são profissionais da educação.
O potencial ofensivo – mesmo destruidor – do racismo escolar à
formação da cidadania de crianças e de jovens é algo incomparável,
provocando uma influência profundamente negativa em seu ima-
ginário social, na composição e representação de suas identidades,
comprometendo o devir de suas carreiras e mesmo de suas perso-
nalidades, reforçando ainda outras práticas e dispositivos racistas
– estabelecidos com muita opressão também fora da instituição
escolar. Finalizamos, portanto, na perspectiva de termos apresenta-
do uma reflexão que contribuísse minimamente para a atualização
dos debates sobre a educação antirracista no Brasil, ou ideada à
promoção da diversidade étnico-racial no contexto escolar.

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BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
CAVALLEIRO, Eliane. Educação anti-racista: compromisso in-
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FRANCISCO VÍTOR MACÊDO PEREIRA • DANIELY CARDOSO DO NASCIMENTO


A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR
CAPOEIRA: UMA LINGUAGEM
PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-
BRASILEIRAS

Brena Raquel Gonzaga dos Santos


Estudante graduada pela Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) do Curso de Bacharelado em
Humanidades, cursando atualmente Licenciatura em Pedagogia pela
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (Unilab).

Maria Patrícia de Souza da Silva


Estudante graduada pela Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) do Curso de Bacharelado em
Humanidades, cursando atualmente Licenciatura em Pedagogia pela
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (Unilab).

Linconly Jesus Alencar Pereira 69


Professor doutor em Educação (UFC). Professor adjunto do Curso
de Bacharelado em Humanidades, Curso de Licenciatura em Pe-
dagogia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (Unilab).
E-mail: linconly@unilab.edu.br

BULLYING OU RACISMO? PROBLEMAS ENFRENTADOS PELAS CRIANÇAS NEGRAS EM UMA TURMA DE ENSINO
FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO-CE
RESUMO
O ensaio apresentado tem como objetivo central promover uma breve reflexão
sobre a ginga como linguagem performática presente na capoeira e nas demais
manifestações culturais africanas e afro-brasileiras, ultrapassando a simples
ideia do gingar como movimentação corporal. Nesse contexto, dialogamos
com os autores Eduardo Oliveira (2007), Sandra Petit (2015) e Zeca Ligiéro
(2011), e, na perspectiva de compreendermos melhor o ato de gingar, que
é presente na capoeira, com a perspectiva de maturarmos a linguagem da
ginga, visto que, em algumas perspectivas, essa não é exemplificada como a
linguagem do corpo, mas simplesmente como uma movimentação corporal
básica, em que é introduzido um conjunto de movimentos que oferece à
capoeira uma aparência de dança/luta. Sendo assim, o artigo ampliará o
olhar do leitor ao apresentar uma relação entrelaçada entre ginga e capoeira,
conduzindo a uma análise sobre a linguagem que a ginga produz sobre a
capoeira, indo além de uma simples relação de movimentação corporal.
Palavras-Chave: Capoeira. Ginga. Linguagem da ginga. Relações entrelaçadas.

ABSTRACT
The main objective of the present essay is to promote a brief reflection
about “ginga” as a performance language present in “capoeira” and other
African and Afro-Brazilian cultural manifestations, surpassing the simple
idea of “gingar”
​​ as a body movement. In this context, we dialogue with
the authors Eduardo Oliveira (2007), Sandra Petit (2015), Zeca Ligiéro
(2011), in order to better understand the act of “gingar”, present in capoeira
like a perspective of maturing the language of the “ginga”, since in some
perspectives this is not exemplified as the language of the body, but simply
as a basic body movement, in which a set of movements is introduced that
offers capoeira a dance / struggle appearance. Thus, the article will broaden
the reader’s gaze by presenting an intertwined relationship between “ginga”
and capoeira, leading to an analysis of the language that “ginga” produces
over capoeira, going beyond a simple relationship of body movement.
Keywords: Capoeira. Ginga. Language of the ginga. Interlacedrelationships.

70

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
INTRODUÇÃO

A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira


constituída de inúmeras matrizes africanas como, por exemplo, o
N´golo1, oNjinga, Basula e Gabetula, dentre outras, como nos aponta
Ligiéiro (2011, p.136), estamos falando de artes marciais2 africa-
nas, danças e ritos de passagem3 que também dão base à consti-
tuição dessa manifestação cultural. No cenário de ebulição cultu-
ral em que a capoeira foi se formando, compreendemos que os/as
escravizados/as e seus/suas descendentes, primeiro, a utilizaram
como estratégia de luta e resistência, mas também traziam ele-
mentos das manifestações rituais e artísticas africanas de diferen-
tes grupos étnicos. Esse conjunto de manifestações culturais que
estão imbricados aos rituais religiosos no cantar-dançar-batucar e
nas formas de combate que trazem consigo a força da ancestrali-
dade africana.
Nesse contexto, de acordo com Souza (1980, p. 17), as ma-
nifestações culturais e, em específico, a capoeira vêm embaladas
no “gingado”, que é o ponto de partida de toda a aprendizagem
de movimentos corporais que serão assimilados futuramente
pelos capoeiristas. O movimento básico de gingar, por sua vez,
continua apenas sendo reconhecido como a basepara os outros
movimentos da capoeira, mas nosso intuito é ampliar esse olhar
e essa compreensão, de modo que a relação intrínseca entre o
gingar e a capoeira, nos possibilite evidenciar a ginga como lin-

1
O N’Golo oudança da zebra foi considerada durante muitas décadas como mito
fundante da capoeira no Brasil. 71
2
As artes marciais consistem em práticas e tradições codificadas, cuja missão é
submeter ou defender-se através de técnicas em questão.
3
Em muitas sociedades africanas, a vida é dividida em diferentes ciclos – nasci-
mento, passagem para a idade adulta e morte –, sendo que essas transições são
marcadas por rituais que determinam para a comunidade a ida de uma etapa
para a outra.

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA:


UMA LINGUAGEM PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
guagem que por muitas vezes passa a ser despercebida diante da
sua prática.
Diante desse cenário, torna-se propício evidenciarmos que,
para muitos capoeirista, a ginga ainda pode ser pensada como
uma postura de esquiva e de ataque, em que o oponente ao ver o
gingado não consegue deduzir qual será o movimento do outro
mandingueiro, podendo se esquivar, ir ao ataque, contra-atacar
ou fugir. A ginga é vista pelas pessoas não praticantes da capoei-
ra apenas como uma movimentação corporal, não reconhecendo
toda a linguagem intrínseca imposta em sua comunicação com o
mundo ancestral como, por exemplo, a travessia da Kalunga. A
grande Kalunga também conhecida como grande cemitério é o
que dizemos por uma existência dupla, forma de conectar-se ao
mundo ancestral. Segundo Rufino ETall (2018, p. 76), “O grande
cemitério é o que nos possibilita pensar a condição de uma exis-
tência dupla, que emerge como rota de fuga para o desvio perpe-
trado pela agência colonial”. O ato de gingar é estar em equilíbrio
entre esses dois mundos, intercalando-os.
Compreendemos que a relação existente entre o movimen-
to de gingar, a ginga como linguagem e a capoeira é orgânica,
pois cada corpo tem o seu movimento variando de acordo com a
sua velocidade, de forma que os dois mandingueiros, que estão
no centro da roda de capoeira, integram-se como um só. Esse
modo orgânico de integração, muito natural e emblemático na
cosmovisão africana e afro-brasileira vai além da forma eurocên-
trica e cartesiana de compreender o mundo, ou seja, vai além de
como eu vejo o universo para como me vejo no universo, é per-
ceber a formação do ser humano no mundo como uma percepção
do que se sente. É dentro da roda que o capoeirista descobre
que o seu corpo, transfigura-se em corpo e dança afro-ancestral
72 (PETIT,2015).Nesse jogo do corpo é que a ginga, compreendida
como linguagem, possibilita ao capoeirista a percepção, a ligação
do corpo, da mente e a assimilação da integração que a circula-
ridade proporciona a partir da dinamização do Axé presente na
roda.

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
É nessa que a circularidade permite-nos a integração de
todos os/as mandingueiros para pensarmos para além do corpo e
dos seus movimentos, a ginga como linguagem que se manifesta
em uma remontagem de sabedorias diaspóricas da cultura africa-
na e afro-brasileira, produzindo uma cosmovisão que vai além da
produção de uma performance, introduzindo uma perspectiva de
pensamento voltado à fronteira do próprio corpo, fazendo men-
ção às experiências diaspóricas da vida através do corpo-dança-
-afro-ancestral.
É pensando a ginga como linguagem que também refleti-
mos sobre a capoeira como grupo social, que possui sua lingua-
gem própria com palavras e expressões diferenciadas dos demais,
podendo por algumas vezes dificultar o entendimento das pesso-
as que não se inserem nesse grupo, sendo assim muitos ouvintes
acabam por não compreender o que está sendo dito em uma roda
de capoeira. A capoeira, por sua vez, possui sua linguagem própria
estabelecida de acordo com os brincantes como, por exemplo, os
movimentos e apelidos que eram usados como forma de chamar
o outro, fazendo um resgate do ensino tradicional, quando a ca-
poeira era discriminada e os praticantes precisavam ocultar seus
nomes próprios como forma de fugir da repressão social sofri-
da. Dado o exposto, a linguagem da capoeira introduz uma das
formas essenciais de conferências entre os praticantes, sendo a
linguagem corporal seu principal meio de comunicação. Contudo,
estabelecendo em sua prática social o método de compreensão do
socializar como forma de integralização da base comunicativa uti-
lizada, dinamiza a transmissão da mensagem para os espectadores
de forma a integrá-los nesse processo.

A ginga para além da movimentação corporal


73
Como já foi dito anteriormente, o gingar vai além da mo-
vimentação corporal e é uma forma de nos interligar ao mundo
ancestral e nessa interconexão está Exu, orixá dono dos desejos,
senhor da comunicação, mestre do movimento, aquele que liga o

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA:


UMA LINGUAGEM PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
mundo material Aiye ao mundo espiritual Orun. Senhor das en-
cruzilhadas, Exu, dono das ruas e estradas liga a roda de mandin-
gueiros através da linha da Kalunga, ligando o visível e o invisível,
ou seja, quando estamos ligados apenas a um lado dessa linha,
o outro lado se desequilibra e se mostra para afirmar que existe,
que está ali e que possui a mesma importância que o outro lado.
“O gingar na linha da Kalunga é estar em movimento com um
pé em cada uma dessas esferas. Porém, isso não é ‘estar em cima
do muro’, mas experienciar a interação com os dois planos, que
manifestam de maneira integrada a fisicalidade e a espiritualidade
das coisas.” (RUFINO et.all., 2018, p.77).
A ginga é uma forma de linguagem que foge dos pensa-
mentos ocidentais dos colonizadores, é uma forma de resistência,
de expressar a africanidade presente em nós. Segundo Rufino et.
all (2018, p. 78), “a ginga não é meramente uma coreografia, mas
o próprio substantivo que possibilita a tessitura dos repertórios
comunicativos na diáspora, a ginga é linguagem e não diz mera-
mente sobre as formas, mas sobre as existências em si.”.
A ginga nos faz pensar sobre nós mesmos a escrevermos
uma história sobre os nossos sentimentos e pensamentos, nos re-
velando para os outros participantes, de acordo com Rufino et.all.
(2018, p. 78) “a ginga emerge como uma força existencial dotada
de uma inteligibilidade que lança o ‘ser’ em uma escrita de si, que
confronta os determinantes impostos pela agenda colonial”.
Parafraseando Rufino et.all. (2018), o jogo de capoeira é
iniciado e finalizado pelo movimento de gingar, sendo a ginga
caracterizada pela inscrição do ser, o jogo caracterizado pela ins-
crição da vida e a capoeira pela prática do saber, todas as situ-
ações da capoeira que se relacionam com a vida em sociedade.
Podemos, assim, perceber que a ancestralidade vive lado a lado
74 com o presente.
A ginga é própria de cada pessoa, cada pessoa ginga dife-
rente, é uma expressão do seu ser, os outros participantes da roda
de capoeira e até os espectadores passam a te conhecer pela forma
de gingar, expressando seus valores e pensamentos, transmitindo

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
a bondade e a maldade presentes na pessoa em cada movimento.
A ginga não é meramente um movimento corpóreo, é o movi-
mento de retomada do corpo-dança-afro-ancestral como lócus de
enunciação do ser em sua integralidade com o cosmos, possibili-
tando uma retroalimentação da nossa energia vital, chamada de
Axé, nos possibilitando a (re) interpretação do nosso ser, ou seja,
somos integralizados quando aprendemos a gingar na vida.

A produção da linguagem do corpo através da ginga

As diversas matrizes culturais africanas que compõem a


capoeira foram trazidas nos porões dos navios negreiros no pe-
ríodo escravocrata, mas foi no Recôncavo Baiano que a capoeira
se intensificou utilizando através das suas expressões e manifes-
tações culturais de dança, música e de luta, como originária de
várias junções culturais. Sua forma de utilização oferecia aos pra-
ticantes uma forma de resistir aos opressores e oferecê-los uma
forma de manifestação de liberdade à sua prática. A utilização do
corpo e da musicalidade encontrada em suas letras de música traz
consigo a intenção de contar sua história que, por vezes, retrata
a dor como elemento fundamental no processo de formação, em
que todo capoeirista reconhece, através da dor e do sofrimento,
um sentimento de manifestação que vai remeter à alegria de viver.
Para Saussure (1969, p. 17), “a linguagem é a matéria do
pensamento e o veículo da comunicação social. Tudo o que se
produz como linguagem ocorre em sociedade para ser comunica-
do”. Nessa perspectiva, é possível se perceber que a linguagem é
a forma que dispomos para transformar os sentimentos ou pensa-
mentos em palavras, no caso as linguagens oral e escrita, transfor-
mando assim os movimentos na linguagem corporal.
O olhar de Vanoye (1998) nos possibilita definir a lingua- 75
gem como “um sistema de signos socializados”, pois a linguagem
produzida pela capoeira é entendida pelos não praticantes como
um espetáculo popular em que a emoção e sensações sentidas no
momento transmitem gestos oriundos de ser sentida pelos especta-

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA:


UMA LINGUAGEM PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
dores. Sendo assim, é impossível negar que a capoeira traz uma co-
municação sempre introduzindo uma mensagem a ser transmitida,
resgatando em sua maioria a história da paz, a preservação do am-
biente e a homenagem à ancestralidade que sempre a acompanhou.
A roda da capoeira dá ao praticante a possibilidade de en-
trar em uma relação com seu próprio ser, usando o corpo
como referência de seu objetivo e de sua expressão, em
que o contato com o outro acontece de forma ocular, ocor-
rendo através do diálogo corporal, bem como do diálogo
musical que se insere no contexto da roda, todo partici-
pante tem o seu papel e é valorizado pelos outros jogado-
res. (BARBOSA, LEMOS,LIMA,MIRANDA, ­ POSPICHIL,
2012, p. 01)

Levando-se em consideração esses aspectos, a linguagem


do corpo se dá por meio do gingar, em que o corpo fala e se
expressa através do cantar-dançar-batucar, trazendo através da
cultura afro-brasileira a arte de “capoeirar” e desenvolver o co-
nhecimento social que os cerca, evidenciando, sobretudo, a re-
presentação de sua própria linguagem e ressaltando, através da
corporeidade utilizada, o significado expresso nas diversas mani-
festações culturais diversificadas no qual a capoeira está inserida.

A utilização da capoeira como método didático

Devido a não valorização dos saberes não formais como


a cultura, muitas escolas ainda são receosas em relação a estes
saberes, mas vagarosamente estão abrindo as portas para os sabe-
res populares. A educação não formal, na qual esses saberes são
desenvolvidos através de um leque de manifestações culturais,
como exemplo a capoeira, atualmente está sendo utilizada como
76 um instrumento educacional por ter infinitas possibilidades de
ser trabalhada.
Esta, por sua vez, proporciona a crianças e jovens um uni-
verso de significados que são adquiridos através da tradição oral
existente dentro das rodas de capoeira, ensinadas pelo mestre. O

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
mestre de capoeira faz parte de um processo para poder chegar
a tal posição, para isso proporciona a adesão de vários saberes
durante anos, que vão ser repassados para os novos praticantes.
Essa manifestação cultural transmite aspectos muito importantes,
como os saberes da ancestralidade dentro das repartições escola-
res. Assim, abre-se espaço para a diversificação na sua forma de
ensino.
Muitos dos movimentos da capoeira como a gingam têm
um caráter lúdico e atraem a atenção das crianças, fazendo jovens
e adultos lembrar-se de quando eram mais jovens, ou rememo-
rar aos seus ancestrais. Para a prática de capoeira, os brincantes
devem deixar do lado de fora da roda todas as preocupações e ir
com o coração leve, para assim conseguirem se conectar com os
ancestrais e encontrar um equilíbrio na linha da Kalunga.
De acordo com Ribeiro (1992), acredita-se que a capoei-
ra pode sim ser ensinada globalmente concebendo da seguinte
maneira: Capoeira como método educador; como esporte; como
dança e arte; como folclore expressando através da cultura brasi-
leira uma mistura de influências teóricas e práticas.
A utilização da capoeira em ambientes escolares influencia
na técnica, movimentação e ritmos, evidenciando novas formas
de se trabalhar temas diversos em sala de aula como o respeito
e a amizade, estimulando a integralização entre as mais diversas
culturas que venham a existir no espaço onde a capoeira se insere.
Através da utilização da capoeira como método pedagógico para
a formação do indivíduo, é necessário se pensar nesta, como um
fenômeno de inventividade em que o ser/sentir/saber/fazer estão
todos interligados ressaltando que só há movimento se tiver um
pensamento para se gingar, articulando os movimentos do corpo
à mente e vice-versa.
77
O capoeirista tem a habilidade de ver sem olhar, ou seja,
‘durante a negação’, “o capoeira” apenas acompanha o mo-
vimento dos olhos do seu oponente, pelo olhar conhece o
local vigiado pelo agressor, pois esse, antes de dar o golpe,
marcava com a vista o ponto vulnerável a ser atingido. Para

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA:


UMA LINGUAGEM PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
evitar, assim, ser descoberto, o capoeirista filiado à luta
regional baiana procurava treinar e possuir um olhar ma-
nhoso ou de soslaio, evitando que seus olhos fossem fixa-
dos pelo adversário eles os conservava abaixado aos fintos
em ponto diverso, olhando o contentor, de ‘canto de olho’
ou por meio de uma rápida visão de conjunto. Quando
se defrontavam os contendores que possuíam essa mesma
qualidade, a luta era mais perigosa e mais difícil. O capo-
eirista impossibilitado de se orientar pelos olhos do seu
oponente aplicava o mesmo sistema de ‘olhar manhoso’,
(ABREU, 2017, p.119).

É preciso ressaltar que a escola é um espaço diversificado,


em que todos possuem suas particularidades, cada pessoa é única,
portanto, ocultar a diversidade cultural nesse espaço é intervir
para que o discente não consiga se encontrar na sociedade, e que
o conhecimento adquirido é apenas o suficiente para se gingar na
vida. A capoeira pode e deve ser utilizada para além das questões
culturais em que pode se flexibilizar, de acordo com a componen-
te ofertada, trazendo para a vida dos discentes uma maior relação
com o meio em que está inserido.
Levando em consideração todos esses aspectos, de acordo
com o Mestre Moraes em suas falas, traduz o significado de gin-
gar na sociedade: “aprenda a ginga na roda para poder gingar na
vida”. Este princípio utilizado por ele pauta na capoeira a ação
política, ética, estética e performática de que a ancestralidade se
insere nesse jogo para evidenciar uma reivindicação de identida-
de no meio social, no qual todos os seres humanos precisam parar
para pensar. A ancestralidade é, portanto, a maior forma de intera-
ção entre a linha do Kalunga. Sendo assim, não se deve priorizar
nos espaços escolares apenas os parâmetros coloniais.

78 Considerações finais
Através da compreensão evidenciada na linguagem que a
capoeira produz por intermédio da ginga, é possível se observar
a singularidade de se comunicar, expressada através dos capoei-

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
ristas que expressam através do movimento do corpo um ritmo
de música, tempo e jogo que vai para além da corporeidade, apre-
sentando uma linguagem verbal, possuindo suas particularidades
que se complementam através de manifestações sociais/ culturais,
que podem influenciar no ambiente escolar.
Mediante as ações envolvidas pelos brincantes, como os
golpes característicos, as rodas em que se observam o respeito
por quem estar dentro do círculo de capoeira, a espera pelo tem-
po de entrada e saída da roda, evidenciam valores que torna a
capoeira uma prática social a valorizar a cultura e a atividade que
está sendo praticada. Apesar da luta, durante a atividade, ela de-
monstra possuir ações pacíficas, podendo ocorrer em qualquer
espaço, como nas ruas, e oferecer aos não praticantes a arte, que
muitos não conhecem como o seu real significado, a sua prática.
Mesmo diante de tantas transformações ao longo do per-
curso da sua história, a capoeira ousou em se comunicar, mesmo
quando sua prática era reprimida, a fim de não deixar a sua ances-
tralidade desaparecer. A linguagem apresentada por sua prática
transmite ao capoeirista e a seus praticantes perceberem o jogo de
ações que são introduzidas em forma de compreensão das suas
ações e assim perceber a valorização ancestral que existe diante
de todo este processo.
Em virtude dos fatos mencionados, a capoeira implica ações
para além dos gestos, nos quais, em sua maioria, as mensagens
evidenciadas através de suas letras indicam trazer a movimenta-
ção da arte como forma de respeitar a cultura do outro, valori-
zando, sobretudo, as mensagens positivas, traduzindo em valores
ancestrais que muitas das vezes passam despercebidos diante do
meio social. Valores de comprometimento e lealdade podem ser
transmitidos através de um momento numa roda de capoeira, tan-
to para quem a pratica quanto para quem os aprecia, ou apenas 79
a assistem. O importante nesse processo é a construção da valo-
rização que é feita através de uma arte que se manteve resistente
depois de tantos métodos de repressão social.

A GINGA PARA ALÉM DO GINGAR CAPOEIRA:


UMA LINGUAGEM PERFORMÁTICA NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS
Referências
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Barabo, 2017.
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MIRANDA, Leandro A.; POSPICHIL, LetieliR. .A capoeira e sua
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portalsaofrancisco.com.br/alfa/capoeira/capoeira-4.php. Acessa-
do em: 15/03/2019.
LIGIÉRO,Z. “O conceito de motrizes culturais aplicado às práticas
performativas afro-brasileiras”. In: REVISTA PÓS CIÊNCIAS SO-
CIAIS, v.8, n.16, p. 129-144, jul./dez, 2011. Disponível em: http://
www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/
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PROJETO DE ENSINO: CAPOEIRA. Disponível em: http://ca-
poeiraunaganga.blogspot. com.br/p/projeto-de-ensino-capoeira-
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RIBEIRO, Antônio Lopes. Capoeira Terapia. Brasília: Secretaria
dos Desportos, 1992.
RUFINO, Luiz; PEÇANHA, Cinézio Feliciano; OLIVEIRA, Edu-
ardo. Pensamento diaspórico e o “ser” em ginga: Deslocamentos para
uma filosofia da capoeira. Capoeira: Revista de Humanidades e
Letras, Bahia, v. 04, n. 02, p. 74-84, 2018. e-ISSN: 2359-2354.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo:
80 Cultrix, 1969.
SOUZA, Osvaldo. Academia de Capoeira Regional. s/ed, Goiânia ,
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VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na pro-
dução oral e escrita. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BRENA RAQUEL GONZAGA DOS SANTOS • MARIA PATRÍCIA DE SOUZA DA SILVA


LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS: PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/
AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE
BATURITÉ

Eliza Távora de Albuquerque


Bacharel em Humanidades e discente do curso de Licenciatura Ple-
na em Pedagogia pela Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (CE).
E-mail: eta@aluno.unilab.edu.br

Afonso José Mendes


Bacharel em Humanidades e discente do curso de Licenciatura Ple-
na em Pedagogia pela Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (CE).
E-mail: tchescomendes7@gmail.com

Evaldo Ribeiro Oliveira


Professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira- UNILAB (CE). Curso de Pedagogia e Ba-
charelado em Humanidades. Instituto de Humanidades (IH). Grupo
de pesquisa “África Brasil: produção de conhecimento, sociedade ci-
vil, desenvolvimento e cidadania global” do CNPq/UNILAB.
E-mail: evaldo@unilab.br
RESUMO
O presente artigo é o resultado das experiências desenvolvidas no projeto
de pesquisa “Pedagogias das Relações Étnico-Raciais: Práticas Educativas de
Professores do Maciço do Baturité” com a colaboração de professores(as) e
gestores(as) das instituições escolares dos municípios de Acarape, Redenção,
Baturité e Capistrano. O trabalho tem por objetivo identificar e compreender
práticas educativas de professores\as da região do Maciço de Baturité voltadas
para a educação das relações étnico-raciais, bem como, refletir sobre as ações
que devem ser tomadas para contribuir na efetivação dessa educação nas
respectivas escolas da região.
Palavras Chave: Educação. Relações Étnico-Raciais. Práticas Educativas.

RESUMEN
El presente artículo es el resultado de las experiencias desarrolladasenelproyecto
de investigación “Pedagogías de las Relaciones Étnico-Raciales: Prácticas
Educativas de Profesoresdel Maciço de Baturité” conlacolaboración de
profesores (as) y gestores (as) de lasinstituciones escolares de losmunicipios
de Acarape, Redenção, Baturité y Capistrano. El trabajotiene por objetivo
identificar y comprenderprácticas educativas de profesores de laregióndel
Maciço de Baturité dirigidas a laeducación de las relaciones étnico-raciales,
así como, reflexionar sobre lasacciones que deben ser tomadas para contribuir
enlaefectivización de esaeducaciónenlas respectivas escuelas de laregión.
Palabras clave: Educación. Relaciones Étnico-Raciales. Prácticas Educativas.

82

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


INTRODUÇÃO

E ste trabalho é resultado das experiências vivenciadas no


decorrer no projeto de pesquisa intitulado “Pedagogias das Rela-
ções Étnico-Raciais: Práticas Educativas de Professores do Maciço
do Baturité1”, que fez parte do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica, PIBIC /CNPq, vinculado a Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade da Integração Interna-
cional da Lusofonia Afro-Brasileira, UNILAB, o projeto foi coorde-
nado pelo pesquisador responsável, professor Dr. Evaldo Ribeiro
Oliveira, docente da mesma universidade, do Instituto de Huma-
nidades e três bolsistas pesquisadores\as do curso de pedagogia.
Nesse sentido, o objetivo da pesquisa foi identificar e
compreender práticas educativas de professores\as da região do
Maciço do Baturité voltadas para a educação das relações étni-
co-raciais. Para o desenvolvimento deste trabalho, realizamos o
contato com escolas de três municípios da região: Acarape, Re-
denção, Baturité e Capistrano. Adotamos como procedimentos
metodológicos, a aplicação de questionário semiestruturado ela-
borado pelo orientador juntamente com a colaboração dos\as
bolsistas do projeto.
Ao todo, oito instituições dos diferentes níveis de ensino
participaram do estudo, e iremos destacar algumas falas e tre-
chos considerados importantes. Utilizamos como principais re-
ferências teórica para o referido estudo, utilizados as produções
de autores/as como: Silva (2007), Silva (2015), Gomes (2010),
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais (2004) e a Lei 10.639/2003. 83
1
O Maciço de Baturité é uma das macrorregiões do estado do Ceará, composta por
13 municípios: Acarape, Aratuba, Aracoiaba, Barreira, Baturité, Capistrano, Gua-
ramiranga, Itapiúna, Mulungu, Ocara, Pacoti, Palmácia e Redenção. Nas cidades
de Redenção e Acarape é onde se encontram os campi da universidade no Ceará.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
Cabe destacar que a relevância da pesquisa, para além dos
aspectos científicos, está em apresentar e destacar ações de pro-
fessores/as de diversas áreas do conhecimento na realização de
práticas educativas direcionadas para o combate ao racismo, pro-
moção da igualdade racial, da diversidade, em consonância com
o que estabelece a Lei 10.639/2003.
Por fim, informamos que o presente artigo, será dividido
em dois momentos, no primeiro, será abordado o papel da gestão
escolar em relação a implementação da educação das relações ét-
nico-raciais nos estabelecimentos de ensino, mediando a reflexão
a partir do que pôde ser pontuado no contato com as escolas.
Já no segundo momento, trataremos de maneira mais específica
das práticas educativas dos/as professores/as destas instituições,
voltadas para a educação das relações étnico-raciais, identificando
como estas estão presentes no seu fazer pedagógico.

Gestão escolar e a implementação da educação das


relações étnico-raciais

Dentro do contexto educacional brasileiro, muitos fatores


influenciaram as contestações no que se refere a práxis educati-
va, principalmente por parte da população negra, historicamente
marginalizada no espaço da educação. Nilma Lino Gomes (2010)
argumenta que:
As questões como a discriminação do negro nos livros di-
dáticos, a necessidade de inserção da temática racial e da
História da África nos currículos, o silêncio como ritual a
favor da discriminação racial na escola, as lutas e a resis-
tência negras, a escola como instituição reprodutora do ra-
cismo, as lutas do Movimento Negro em prol da educação
84 começam, aos poucos, a ganhar espaço na pesquisa educa-
cional do País, resultando em questionamentos à política
educacional. (GOMES, 2010, p. 4)

Se inicia a partir dessas reivindicações um processo de


pressionar as instâncias sociais responsáveis, como o Ministério

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


da Educação, para os seus encargos na implementação de políti-
cas que promovessem uma educação antirracista e atentasse para
a superação da discriminação na escola e na sociedade. É nesse
sentido que surgem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e a lei federal 10.639/03.
A efetivação da lei durante esses anos vem percorrendo um
caminho percalço, sua chegada aos estabelecimentos de ensino
enfrenta conflitos relacionados ao racismo estruturante e institu-
cional da sociedade brasileira, refletido na educação, o que torna
a sua total implementação limitada. Ao dizer isto, reconhecemos
os esforços do Movimento Negro, de Intelectuais Negros, de Nú-
cleos de Estudos Afro-Brasileiros, de professores, em especiais,
professoras negras, do Governo Federal2, nas ações desenvolvidas
pela extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI), entre outros, seja desenvol-
vendo ações de formação de professores, produção de materiais,
palestras, projetos, entre outras ações.
Pensando no processo de ritualização do cotidiano esco-
lar, percebemos que a rotina que se impõe nas instituições de
educação, se torna um obstáculo para a prática do que dispõe a
lei 10.639/03, ocupando assim um lugar que não é prioridade
dentro do plano de ação escolar. É o que podemos verificar ao
realizar uma análise sobre as respostas das unidades de educação
básica que foram visitadas.
No primeiro momento, contatamos apenas a gestão de cada
escola, e de modo geral, as instituições afirmaram que trabalha-
ram a educação das relações étnico-raciais e a lei 10.639/03 du-
rante o mês de novembro, sobretudo na semana da Consciência
Negra e em algumas aulas de história. Nenhuma escola apresen-
tou um plano anual de desenvolvimento de atividades voltadas
para a temática, se restringindo a ações esporádicas: 85
Durante o ano trabalhamos com essa lei, em que tivemos
a hora do conto, reunimos todas as crianças no pátio e
apresentamos a historinha “menina bonita do laco de fita”,

2
Até meados do ano de 2015.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
logo após teve uma roda de conversa sobre o dia 20 de
novembro e ao retornar para sala o professor promoveu
uma roda de conversa. Semana da consciência negra na
educação infantil com: palestras, historinhas, filmes, músi-
cas e apresentações artísticas por sala que é no momento
da culminância (Gestor da escola A3).

A liturgia escolar que deve ser seguida rigorosamente, o


pouco tempo para estudo e planejamento, a cobrança por resulta-
dos no sistema de avaliação externa das instituições educacionais,
aparecem nas escolas como obstáculos na prática da educação
étnico-racial. Dessa forma, as atividades referentes às culturas plu-
rais ficam apenas para as clássicas datas comemorativas, como o
dia do índio, o dia da consciência negra e o dia do folclore.
Esse jeito de trabalhar apenas reforça imagens distorcidas
acerca dos povos indígenas e da população negra, e não leva à
construção de um conhecimento real e crítico sobre a história,
cultura e luta dessas populações, tornando-as apenas como parte
do passado, e não como sujeitas de uma história do presente.
Concordando com o que diz Silva (2015):
Uma evidência de tal situação é o fato de que mesmo sen-
do os negros maioria em nosso país, e, por conseguinte,
maioria também na educação básica pública, ainda não
existe um currículo escolar comprometido com a educação
das relações étnico-raciais e com o respeito e a valorização
da cultura negra. (SILVA, 2015, p.05).

E continua escrevendo que:


(...) mesmo após a aprovação da Lei n. 10.639/03, ainda
não é comum o uso de literatura africana e afro-brasileira
nas escolas, salvo com a proximidade do 20 de novembro,
também chamado Mês da Consciência Negra, momento
86 em que há uma espécie de rompimento do que se refere à
literatura habitualmente utilizada em sala de aula, trazida
pelos livros didáticos fornecidos pelo Ministério da Educa-
ção e considerada universal. (SILVA, 2015, p.02).

3
Classificamos as escolas em A, B, C, para garantir o anonimato.

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


Portanto, retomando o que argumenta Gomes (2010), a con-
cretização da lei 10639/2003 depende também da mobilização da
sociedade para que o direito a educação étnico-racial seja garanti-
do de modo inclusivo no espaço da escola, e isto deve perpassar as
várias dimensões dessa instituição, não apenas eventualmente, mas
precisa estar contida nos currículos, nos projetos políticos-pedagó-
gicos, na formação de professores (as) e gestores (as), nos projetos
de gestão, nas políticas educacionais de maneira geral.
Deve ser um trabalho contínuo, deve participar do cotidia-
no escolar, do planejamento de professores (as) incorporado ao
plano de aula de forma recorrente, deve ser tratado como um co-
nhecimento significativo e igualmente importante como os outros
conhecimentos.
Com essa lei, durante a rotina escolar, trabalhamos com
os alunos (as) sobre o respeito, o amor para com o próxi-
mo. E sempre organizamos as rodas de conversas, em que
levantamos questionário sobre a cor e o respeito e alguns
professores exploraram atividades em suas salas de aulas,
principalmente as de história, isso é no sentido de mostrar
as crianças na escola a sua cultura, mesmo assim, os pro-
fessores e os alunos precisam aprofundar ainda mais sobre
essa lei (Gestora da escola B).

Outro ponto significativo observado, é que as escolas das ci-


dades de Redenção e Acarape realizaram atividades que incluíam
visita aos campida UNILAB, e discussões que tratavam da vinda de
estudantes do continente africano para essas cidades. Coincidente,
todas as escolas acreditam que a UNILAB pode contribuir com a
formação para a educação das relações étnico-raciais através da ida
até o espaço escolar, com palestras, oficinas, projetos e demais ações.
A UNILAB, pode e deve contribuir com atividades, pa-
lestras, oficinas e outros (as), como foi realizado esse ano 87
com alunos bastante esforçados e, empenhados em trans-
mitir, repassando a importância dessa lei, tendo educação
do ensino como alicerce para o primeiro passo na discus-
são sobre a promoção da lei e a cultura afro-brasileira
(Gestor das escolas C).

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
Ressaltamos o papel que a universidade exerce em contri-
buir com o crescimento e a construção da educação da região. A
diversidade étnica que o espaço da UNILAB trouxe é um fator
relevante para buscar dispositivos de promoção da educação das
relações-étnico-raciais, por isso, se faz preciso a continuidade de
projetos tanto no âmbito da pesquisa, como da extensão, que fa-
çam a ponte com a comunidade externa e o Maciço de Baturité,
incentivando a participação mais ativa da população em questões
relacionadas as práticas antirracistas que a universidade tem como
responsabilidade fomentar.

Olhares de professores(as) sobre a prática da Lei


n.10639/2003 em escolas do Maciço de Baturité

Quando voltamos as escolas para ouvir quem vive a realida-


de da sala de aula, nesse caso, as (os) professoras (es), utilizamos
a mesma metodologia anterior, a aplicação de um questionário
estruturado com quatro perguntas direcionadas as (aos) docentes
da região do Maciço de Baturité, com o objetivo de identificar
e compreender práticas educativas para a educação das relações
étnico-raciais e identificar propostas e ações pedagógicas de pro-
moção da igualdade étnico-raciais.
Como analisamos previamente, o contato com a gestão das
escolas da região do Maciço nos permitiu perceber que a edu-
cação das relações étnico-raciais, bem como, a lei 10.639/03, é
existente nessas instituições, mas não de uma maneira concreta,
satisfatória, como deveria ser, se restringindo a ações pontuais.
Como afirma Gomes (2010), o início desse processo, de
implementação da lei e das Diretrizes Curriculares, não implica
no seu total enraizamento na prática de instituições da educação
88 básica, superior e na formação inicial e continuada de professo-
ras/es. (GOMES, 2010, p. 8).
São muitos os desafios que se colocam para sua total efe-
tivação, como a formação dos (as) professores (as), que como
prevê a lei, além de inicial, deveria ser ininterrupta, não chegar

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


a todas as unidades de secretarias de educação, e os (as) funcio-
nários (as) da rede pública de educação alegarem a falta dessa
formação mais profunda, uma vez que os cursos de licenciatura,
em sua grande maioria, não contemplam os estudos raciais.
Um outro desafio nesse caminho apontado por Silva
(2007), se refere a própria relação que professores (as) mantém
com as administrações dos sistemas de ensino, e também com os
(as) alunos (as):
O mais sério é que pretendemos educar nossos alunos
para serem cidadãos participativos e democráticos, capa-
zes de combater discriminações e não poucas vezes não
nos sentimos encorajados a combater as discriminações
que se arremetem contra nós: condições de trabalho não
favoráveis, baixos salários, desqualificação da profissão e
da formação. (SILVA, 2007, p. 500).

A constante precarização da profissão, que se coloca como


uma situação de âmbito nacional, onde o estado tem aprovado re-
formas institucionais, que a curto e a longo prazo vão tornando as
condições de trabalho cada vez mais fragilizadas, são obstáculos
pertinentes a inserção da temática das relações étnico-raciais, e de
outros conhecimentos plurais, na educação.
No entanto, não podemos afirmar que tais práticas não exis-
tam, pois apesar das objeções, são muitas as instituições escolares
e suas respectivas gestões e corpo docente, comprometidas com
a educação das relações étnico-raciais, verdadeiros modelos de
como essas ações são possíveis. Exemplifica Gomes (2010): são
trabalhos conjuntos com a comunidade, com o movimento negro,
comunidades-terreiro, projetos que envolvem todas as áreas do
conhecimento com a participação de estudantes, estudos apro-
fundados sobre o continente africano, dentre outras experiências
(GOMES, 2010, p. 11).
89
A mesma autora também atenta para o fato de que muitas
pesquisas têm demonstrado que há ações organizadas de formas
coletivas, porém, as práticas mais recorrentes vêm da atuação indi-
vidual dos (as) docentes interessados no tema (GOMES, 2010, p.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
11). Não é incomum a resistência de certas instituições que perma-
necem conservadoras e não abertas a outros conhecimentos não
hegemônicos, reprodutoras de estigmas e padrões. Cabe então aos
professores (as) conscientes e reflexivos encontrar formas de bur-
lar esse sistema que impõe práticas excludentes e preconceituosas.
São essas ações individuais que podemos constatar ao ana-
lisar as respostas dos questionários respondidos pelos (as) profes-
sores (as) que se disponibilizaram a participar da nossa pesquisa.
Sob uma perspectiva geral, os (as) professores (as) conhecem a
lei 10.639/03 e do que se trata seu conteúdo.
Ao serem indagados sobre como as ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e a Lei 10.639/03 estão nas suas prá-
ticas educativas e planos de aula, os (as) docentes declaram que
estas estão inseridas no currículo, em momentos oportunos de se
abordar a temática. A professora de história afirma que:
Sim, existem diversas possibilidades de trabalhar essa te-
mática ao longo de um currículo anual seja em que área
for. Como o meu trabalho é diretamente com a história, já
tive oportunidade de desenvolver debates, rodas de con-
versa, reflexões através de textos, poemas, cinema e obras
literárias, feiras de história da África e de abordagens pon-
tuais dentro de temas onde aparecem a possibilidade de
discussão. (Professora de História)

É interessante notar que na fala da professora ela traz o


caráter interdisciplinar que a lei 10.639/03 carrega, ao reconhecer
que existem diferentes possibilidades de se trabalhar os conteú-
dos nas diversas áreas do conhecimento, e não somente na área
de atuação da professora, que é a história.
Há também os projetos desenvolvidos nas escolas, que
nesse sentido, para além da atuação individual do professor que
90 assume a liderança de organizar, há o trabalho coletivo de toda
a escola que se movimenta para fazer acontecer. O professor de
geografia apresenta no seu relato essa experiência:
[...] temos um projeto chamado Pérola Negra: um outro
olhar sobre o continente africano. Trabalhamos esse proje-

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


to anualmente através de maquetes. O dia escolhido para a
culminância é 20 de novembro, dia da Consciência Negra.
Cada maquete é produzida pelos próprios alunos envol-
vidos e apresentada a comunidade escolar em geral. Anu-
almente convidamos alunos de São Tomé e Príncipe e de
Guiné Bissau para palestrar para os alunos e promoverem
uma interação social realista. (Professor de Geografia)

O professor também ressaltou o caráter interdisciplinar da


temática, exemplificando com suas aulas de geografia. Outro pon-
to de destaque é a presença da UNILAB nessa ação, por meio
dos estudantes oriundos de São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.
Esse intercâmbio entre a universidade e a escola é significativo
no processo educativo escolar e não escolar, pois essa experiência
ultrapassa os muros da escola, e atinge dimensões socioculturais
importantes na construção de subjetividades e de outros saberes.
Após a implementação da lei, mudanças podem ser obser-
vadas nos materiais didáticos, e é esse aspecto que a professora
de história reitera:
Primeiro, quero dizer que fico muito feliz em ver esse
tema incluído em todos os livros de História que utiliza-
mos. [...] ou seja, do 6o, 7o, 8o e 9o ano, temos essa temática
em algum capítulo. Por exemplo, esse ano já trabalhamos
essa temática no 7o e 8o, inclusive, os alunos do 8o ano se
aproveitaram dessas aulas, para fazerem uma apresenta-
ção de capoeira, mostrando sua origem, e a importância
dessa luta/dança. Quando entramos nesse tema, também
fazemos uma conscientização com os alunos sobre o pre-
conceito. (Professora de História)

A professora demonstra sua satisfação em ter nos livros di-


dáticos esses assuntos abordados. Embora saibamos que muitos
desses materiais apresentam deficiências, ao não instigarem a re-
flexão e tratarem apenas um lado da história das relações raciais 91
no Brasil, nesse caso, o livro se apresenta como uma potencialida-
de positiva no trabalho da professora.
Também ela traz outra alternativa, que não a leitura, de se
produzir conhecimento voltado para a lei 10.639/03, a partir da

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
apresentação de capoeira. Sobre essas práticas educativas, nos diz
Silva (2007, p. 501):
Se atentarmos para experiências educativas entre povos
indígenas, quilombolas e habitantes de outros territórios
negros, veremos que não é somente com a inteligência que
se tem acesso a conhecimentos. Que é com o corpo intei-
ro – o físico, a inteligência, os sentimentos, as emoções, a
espiritualidade – que ensinamos e aprendemos que desco-
brimos o mundo.

Portanto, esse ensinar e aprender não se faz apenas nos


métodos tradicionais de ensino, em que a presença da lousa, do
caderno e do lápis é essencial. É mais que isso, é construir o saber
através do experimento de outras linguagens, culturais e artísti-
cas, igualmente importantes e detentoras de cientificidade, mas
também de significados simbólicos, que vem da diversidade dos
conhecimentos que cada pessoa carrega.

Considerações finais: sim, a lei é implementada

A implementação da lei 10.639/03 e a Educação das Re-


lações Étnico-Raciais é de fundamental significado em um meio
social permeado de olhares preconceituosos, do racismo estrutu-
ral muitas vezes velado ou escancarado. É a garantia do direito
social a educação da população negra, que também deve ter sua
identidade, sua forma de ser e pensar o mundo, os seus traços, a
sua história, a sua cultura, o seu conhecimento, valorizados.
É no espaço da escola que esses conflitos e tensões vão
emergir fortemente, mas também é nesse mesmo lugar que se
encontra um dos caminhos para a transformação. A professora,
o professor, são atores sociais envolvidos diretamente nesse pro-
92 cesso, ocupam uma posição que não é neutra, crucial enquanto
mediadores do conhecimento. Como foi possível observar, é pela
ousadia e o comprometimento de alguns educadores que se cria
alternativas para o enfrentamento das desigualdades que a escola
reproduz.

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


O referido estudo permitiu desconstruir a ideia, presen-
te em especial nos espaços acadêmicos, que a lei 10639/2003
não está sendo implementada, mas do que isto, permitiu verificar
como docentes e gestores buscam educar as relações étnicos-ra-
ciais. Possibilitou também destacar a importância da universida-
de, neste caso, a Unilab, para as escolas de educação básica, em
uma parceria, de troca, de aprendizagens múltiplas.
Por fim, ao realizar a referida pesquisa, afirmamos: Sim, a
lei 10639/2003 é aplicada por professoras, professores e gestores
da região do Maciço de Baturité, mas não da mesma forma em to-
das as unidades escolares, em todos os municípios, por todos(as)
docentes, desta forma, estamos no caminho certo, mas ainda há
muito o que fazer para educar as relações étnico-raciais.

Referências

BRASIL. Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Esta-


tuto da Igualdade Racial. Disponível em: <http://presrepublica.
jusbrasil.com.br/legislacao/823981/estatuto-da-igualdade-racial-
-lei-1228810#>.
_______. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP
3/2004. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das re-
lações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-bra-
sileira e africana. Brasília, 2004a. Disponível em: <www.mec.gov.
br/cne>.
_______. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei de di-
retrizes e bases da educação Nacional 9394/1996 e inclui Ensino
da História e cultura Afro-brasileira e Africana no Currículo Ofi-
cial e outras Providências. Sancionada pelo Presidente Luís Inácio
Lula Da Silva. Brasília: Diário Oficial da União, v. 10, n. 01, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na 93
educação brasileira: desafios, políticas e práticas. Cadernos ANPAE, v.
1, p. 1-13, 2010. Disponível em: http://www.anpae.org.br/ibero-
lusobrasileiro2010/cdrom/94.pdf.13p. Acesso em: 06 de agosto
de 2018.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS/AS PROFESSORES/AS DO MACIÇO DE BATURITÉ
SILVA. Geranilde Costa e. Produção textual sobre relações étnico-ra-
ciais: O olhar das crianças de uma escola pública de Fortaleza (CE).In:
Memórias de Baobá II.Fortaleza: Imprece, 2015.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e rela-
ções étnico-raciais no Brasil. In: Educação, Porto Alegre, v. 30, p.
489-506, 2007.

94

ELIZA TÁVORA DE ALBUQUERQUE • AFONSO JOSÉ MENDES • EVALDO RIBEIRO OLIVEIRA


DESCONSTRUINDO CONCEITOS:
REPENSANDO O RACISMO NO IFCE –
CAMPUS JAGUARIBE

Eduardo Chaves Dantas


Licenciando do Curso de Ciências Biológicas, Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)/Campus Jaguaribe.
E-mail: eduardochaves019@gmail.com

Rafael Souza Cruz


Licenciando do Curso de Ciências Biológicas, Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)/Campus Jaguaribe.
E-mail: rafaelsouzacruz123@gmail.com

Josefa Nayane da Silva Medeiros


Licenciando do Curso de Ciências Biológicas, Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)/Campus Jaguaribe.
E-mail: nayanem151@gmail.com

Raquel Campos Nepomuceno de Oliveira


Psicóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará
(IFCE)/Campus Jaguaribe.
E-mail: raquel.campos@ifce.edu.br

Cristiane Sousa da Silva


Doutora em Educação (UFC). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Ceará (IFCE)/Campus Jaguaribe.
E-mail: cristiane.silva@ifce.edu.br
RESUMO
As ações racistas são perpetuadas por meio de práticas sociais e cotidianas,
que geram situações de desigualdades e desvantagens construídas
historicamente e culturalmente. O presente estudo objetivou relatar a
experiência de intervenção na perspectiva de rediscutir e desnaturalizar
alguns conceitos, a saber: preconceito, discriminação, identidade, etnia e
racismo, com estudantes do ensino médio, a partir de vídeos e rodas de
conversa sobre a temática étnico-racial no ambiente escolar. O estudo
foi conduzido no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Ceará, situado no município de Jaguaribe, tendo como público
alvo 29 alunas/os do primeiro ano do ensino médio. Os encontros
possibilitaram que as/os estudantes participassem de forma ativa no
estudo da problemática, tomando conhecimento das diversas formas de
manifestação do racismo no âmbito escolar.
Palavras-chave: Educação para as relações étnico-raciais. Racismo. Lei
10.639/03.

ABSTRACT
Racist actions are perpetuated through social and everyday practices,
which generate situations of inequalities and disadvantages built
historically and culturally. The present study aimed to relate the
experience of intervention an intervention experience in the perspective
of rediscussing and denaturing some concepts, namely: prejudice,
discrimination, identity, ethnicity and racism, with students of the
middle school, from videos and talk about ethnic-racial themes in the
school environment. The study was conducted at the Federal Institute of
Education, Science and Technology of Ceará, located in the municipality
of Jaguaribe, with a target audience of 29 students from the first year of
high school. The meetings made it possible for the students to participate
actively in the study of the problem, taking into account the various
manifestations of racism in the school context.
Keywords: Education for ethnic-racial relations. Racism. Law 10.639/03.

96

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
INTRODUÇÃO

A ideia de democracia racial faz parte do pensamento


social brasileiro, pois a elite brasileira via a população negra como
uma ameaça ao processo de branqueamento e ao desenvolvimen-
to do País. Esse “problema” – a população negra – só poderia ser
solucionado e superado por meio da eugenia, ou seja, do exter-
mínio desse povo, que tanto atrapalhava os planos da elite bra-
sileira em constituir um país genuinamente branco. Preocupados
em construir uma identidade nacional branca, a elite pensante
brasileira via a diversidade étnico-racial como causadora do sub-
desenvolvimento. A mestiçagem seria a salvação da população
e ponte para o branqueamento e desenvolvimento do País. Por
isso, o Brasil teve o mais alto e intenso processo de mestiçagem.
Munanga (2008) afirma que o processo de branqueamento não
resultou nos efeitos esperados, apesar da diminuição do percen-
tual de negras/os e da intensificação no projeto de miscigenação.
Os estudos de Gomes (2010) salientam que a miscigenação
racial e cultural brasileira não foi suficiente para ter uma repre-
sentatividade nos diversos setores da sociedade, como nos pos-
tos de comando, no meio acadêmico, nos primeiros escalões da
política. Em particular os/as negras/os, em sua ascensão social,
não deixam de ser tratados com indiferença e de ser vítimas do
racismo.
Contudo, na constituição do sistema racial brasileiro, o
mestiço nasce do resultado da tríade branco-índio-negro/a, como
uma categoria fundante da identidade nacional. Partindo desse
princípio, Munanga (2008) fala do surgimento do mito da de-
97
mocracia racial, segundo o qual fomos misturados na origem e,
portanto, nos tornamos um país mestiço.
Ainda sobre a questão da mestiçagem brasileira, infelizmen-
te a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial,

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


que têm como base a mestiçagem, surtem muito efeito e têm ade-
são da população brasileira, tornando-nos um país multicromá-
tico, como definiu Munanga (2008). Nesse sentido, para muitos
brasileiros, passa a ser preferível ser chamado de “moreno” – e
todos os seus derivados – do que ser identificado como negra/o.
Isso pode forjar, uma realidade racial e uma identidade, procu-
rando uma maneira ou uma palavra de se aproximar do modelo
tido como superior branco. Portanto, o hibridismo racial aderido
pelo povo brasileiro não foi suficiente para solucionar os conflitos
raciais; pelo contrário, dificultou a afirmação da identidade negra,
por razões de o preconceito racial brasileiro ser de cor da pele e
não de origem. A inferiorização da população negra por conta da
cor da pele também é fruto de uma estrutura social racista.
O que Guimarães (1995) chama de pigmentocracia, na qual
a clareza da pele está relacionada a um maior status social, no Bra-
sil passou a ter a cor como um marcador social, um código cifrado
para “raça”. Após cair por terra o caráter biológico de raça, Gomes
(2003), nos seus estudos e escritos, ressignifica o termo raça num
viés social e político. Fazem-se necessárias a compreensão e a
disseminação do uso político do termo raça, a partir das constru-
ções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais
e de poder ao longo do processo histórico, hierarquizando-as de
modo racializado, o que vai, na maioria das vezes, naturalizar as
desigualdades pela cor da pele.
Para Quijano (2005), a colonialidade do poder está alicer-
çada na ideia de raça como instrumento de dominação legitima-
dos pela conquista, baseado num modelo eurocêntrico. Assim,
os povos conquistados e dominados foram postos numa situação
natural de inferioridade, bem como seus traços fenotípicos, sua
cultura e sua história.
98
[...] E na medida em que as relações sociais que se estavam
se configurando eram relações de dominação, tais iden-
tidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis
sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, con-
sequentemente, ao padrão de dominação que se impunha.

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabe-
lecidas como instrumentos de classificação social básica da
população (QUIJANO, 2005, p. 117).

Quijano (2005), pontua sobre a raça como primeiro crité-


rio fundamental nas estruturas de poder. Dessa forma, há uma
hierarquização e subalternização das/os negras/os em relação
aos brancos na sociedade brasileira. Dentro dessa dinâmica, não
podemos desconsiderar o epistemicídio sofrido pelos dominados
nos processos de colonização, quando temos como referência da
colonialidade do poder o eurocentrismo.
Desta maneira, o presente estudo tem como objetivo relatar
a experiência de intervenção na perspectiva de rediscutir alguns
conceitos, a saber: preconceito, discriminação, identidade, etnia
e racismo no primeiro ano do ensino médio, a partir de vídeos
e rodas de conversa sobre a temática étnico-racial no ambiente
escolar.
Uma das maiores vitórias conquistadas pelo Movimento Ne-
gro brasileiro ao longo do tempo, foi a implementação da Lei n.
10.639/03, que torna obrigatório o ensino da História e Cultura
Afro-brasileiras na educação básica e no ensino superior, em ins-
tituições de ensino pública e privada, resultado de uma demanda
reprimida na agenda nacional em decorrência das pressões exer-
cidas ao governo ao longo de mais de 130 anos, desde que a Lei
Áurea declarou extinta a escravidão no Brasil (BRANDÃO, 2010).
A escola é considerada como um dos espaços principais de
subjetivação e desenvolvimento na nossa organização social (ES-
TANISLAU & BRESSAN, 2014). Não obstante, tem representado
historicamente um espaço social em que crianças e adolescentes
negras/os deparam-se com várias formas de discriminação racial
e racismo praticados pelos colegas, professores e pela própria ins-
tituição de ensino. Dentre as estratégias de ensino propostas nos
99
currículos , professores devem ter como eixo norteador a aplica-
ção do tema transversal “Pluralidade Cultural”, que foi publicado
nos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1998. Tal publicação
veio a reforçar a necessidade de se investir em mudanças educa-

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


cionais que valorizassem todos os povos que fazem parte deste
país, fornecendo, assim, informações que contribuíssem para a
formação de mentalidades voltadas para a superação de todas as
formas de discriminação e exclusão (BRASIL, 2011).
A descolonização do currículo é um desafio que as escolas
devem enfrentar. Por muitas vezes já foram questionadas sobre
a rigidez das matrizes curriculares e a falta de conteúdo, além de
apontadas as necessidades de diálogo e formação dos professores,
a fim de formar profissionais reflexivos e capazes de repassar as
culturas que por muito tempo foram negadas e silenciadas nos
currículos (GOMES, 2012).
Cabe ressaltar, ainda, a necessidade da implantação, de
fato, da Lei n. 10.639/03, do Parecer CNE/CP 03/041 e da Reso-
lução CNE/CP 01/042. As escolas precisam reconhecer os saberes
e conhecimentos produzidos pela população negra. Como lei que
deve ser cumprida, os seus princípios não dizem respeito somen-
te aos professores “sensíveis” ao tema, mas a toda a comunidade
escolar (GOMES, 2010).
O movimento negro, desde o início do século XX, já rei-
vindicava essa questão tão cara ao povo negro. Faz-se necessário
descolonizar o conhecimento: a tática colonial nos coloca numa
dimensão homogênea, subsidiada pelo eurocentrismo, sem direi-
to à nossa subjetividade.

Metodologia

A metodologia adotada foi de caráter qualitativo e de ob-


servação participante. O presente estudo foi conduzido no Insti-
1
O Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para Educação das Relações raciais e para o Ensino de História e Cultura
100 Afrobrasileira e Africana (Parecer CNE/CP n. 3 de 10 de março de 2004), onde
são estabelecidas orientações de conteúdos a serem incluídos e trabalhados e
também as necessárias modificações nos currículos escolares, em todos os níveis
e modalidades de ensino.
2
A Resolução CNE/CP n. 1, publicada em 17 de junho de 2004, detalha os
direitos e obrigações dos entes federados frente à implementação da Lei n.
10.639/2003

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
tuto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE,
situado no município de Jaguaribe, a 300 Km de distância da
capital. Recentemente foi inserido, no referido campus do IFCE,
além dos cursos superiores e técnicos subsequentes, o ensino mé-
dio integrado. De início, o curso contava apenas com uma turma
de primeiro ano com 29 estudantes, no caso, o público alvo do
trabalho aqui relatado.
A atividade tratou-se de uma intervenção que foi aplicada
por membros do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas
(NEABI)do próprio campus, em parceria com os profissionais da
assistência estudantil, que orientam o “Projeto de Vida” atividade
realizada semanalmente com os estudantes de ensino médio e
desenvolvida apenas com o primeiro ano, como uma forma de
acolhida da instituição, na qual são trabalhados temas diversos.
O primeiro momento da intervenção aconteceu em agos-
to de 2018 e voltou-se para uma apresentação de conceitos e
discussão sobre os mesmos, a saber: preconceito, discriminação,
raça, etnia e racismo, de vídeos e notícias do cotidiano que nos
reportam a práticas racistas.
Desta forma, a primeira parte da intervenção aconteceu
com a exposição e discussão de dois vídeos, quais foram: oTeste
da boneca3 e o Consciência Negra4. O primeiro trata-se de um
experimento psicológico realizado nos anos 40 nos EUA para
testar o grau de marginalização sentido por crianças afro-ame-
ricanas e causado por preconceito, discriminação e segregação
racial. O segundo vídeo abordado é, um pequeno documentário
feito pelo NEABI do Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC,
exibido pela IFSCTV, o qual dá lugar a vozes que não se veem
na grande mídia e enfrentam o preconceito no dia a dia. Esse
vídeo aborda temas como:aceitação, branqueamento, cotas, his-
tória africana. 101
3
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CdoqqmNB9JE, acessado
em 15/08/2019.
4
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IrEu8bM6K1M, acessado
em 15/08/2019.

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


Após a exibição e discussão dos vídeos, ainda no primeiro
encontro de intervenção, foram distribuídas para os/as estudantes
algumas notícias atuais impressas, sobre casos de racismo e dis-
criminação divulgados e veiculado pela mídia e por redes sociais.
A partir disto, iniciou-se uma roda de conversa sobre os fatos por
eles escolhidos e, assim, dialogamos sobre a desconstrução de
alguns conceitos, bem como a desnaturalização do racismo.
Após, o primeiro momento de roda de conversa e discus-
são de vídeos, a proposta da segunda intervenção foi a realização
de um oficina com a finalidade de fortalecer e exemplificar no
cotidiano as discussões iniciadas no primeiro momento. A oficina
desenvolvida foi uma adaptação de umas das propostas de ativi-
dades que o fascículo “Raças e Etnias” da coleção “Adolescentes
e Jovens para a Educação entre Pares”, propõe para possibilitar o
debate do tema nas escolas (BRASIL, 2011).
Neste encontro, as/os alunas/os foram divididos em quatro
grupos, e um desenho de aproximadamente dois metros de uma
árvore foi colado em uma parede. Posteriormente alguns ques-
tionamentos relativos às temáticas da atividade foram lançados
aos grupos, e as respostas dos mesmos registradas em fichas que
foram fixadas nas partes da árvore.
Na copa da árvore, um dos grupos respondeu sobre as di-
versas formas sob as quais o preconceito e a discriminação racial
podem se manifestar no ambiente escolar. Já na parte que corres-
ponde às raízes da planta, outro grupo destacou as razões para que
essas situações de racismo ocorressem na escola. No caule foram
fixados os diversos meios que contribuem para perpetuação do ra-
cismo. Por fim, no outro grupo, os participantes foram instigados a
darem sugestões de ações e atitudes que a instituição e eles mesmos
poderiam realizar para combater a discriminação racial e o racismo.
102 Uma vez completada a árvore, com ajuda dos mediadores,
foi iniciada uma discussão sobre o que a árvore tinha revelado
e, com a linha de pensamento indicada na árvore, foram discuti-
dos os porquês desses pensamentos existirem e como esses meios
perpetuam o racismo.

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
Resultados e discussões

Ao final dos dois encontros, os mediadores se reuniram e,


levantaram vários pontos que puderam ser observados nas falas
das/os alunas/os ou nas respostas das fichas da árvore, como tam-
bém nas argumentações nos momentos de relatos e discussões.
Em relação ao primeiro encontro, ao serem indagados se
já tinham participado em sua vida escolar de algum momento
que tratasse sobre o tema, a maioria respondeu negativamente,
mostrando que, durante todo o ensino fundamental nas escolas
em que estudavam, não trabalharam a valorização e o respeito
à diversidade racial do Brasil. Se considerarmos que, conforme
Coqueiro (2011):
A infância é a fase fundamental na estruturação da per-
sonalidade humana. As primeiras vivências são profunda-
mente marcantes no processo de formação da identidade
social, por isso é importante que a escola trabalhe já nas
séries iniciais de forma que não continue afirmando a te-
oria da inferioridade dos negros, mantendo o preconceito
racial (p. 19)

Podemos ter uma dimensão dos impactos que a ausência de


discussão, nos espaços educacionais, sobre as diferentes formas
de expressão do racismo causam sobre a formação da identidade
das crianças e adolescentes negras/os no Brasil.
Alguns alunos, após os vídeos, demonstraram se identificar
com alguns dos depoimentos vistos, como no caso de uma aluna
que relatou sofrer muito preconceito devido ao cabelo crespo.
Segundo o relato dessa estudante, não apenas ela, mas também
colegas suas sofriam discriminação e, quando recorriam aos pro-
fessores e diretores, os mesmos tratavam a situação com indife-
103
rença, e nunca providências sérias eram tomadas. Ela afirma que
muitas das amigas alisaram o cabelo, até ela tentou, mas decidiu
por si própria se aceitar e não levar em conta as injúrias que sofria
diariamente na escola.

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


Figura 1 – Registro do encerramento do primeiro encontro

Fonte: Acervo da pesquisa (2018)

Podemos partir dessa fala da aluna para a discussão sobre o


que Gomes (2005)) ressalta quanto à importância da intervenção
dos professores neste tipo de situação, destacando que “os(as)
professores(as) não devem silenciar diante dos preconceitos e dis-
criminações raciais. Antes, devem cumprir o seu papel de educa-
dores(as), construindo práticas pedagógicas e estratégias de pro-
moção da igualdade racial no cotidiano da sala de aula.” (p. 60).
Outros depoimentos, a partir das notícias impressas e esco-
lhidas por eles para discussão recaem sobre a questão dos estere-
ótipos e representações negativas acerca da população negra, em
falas de alunos que afirmavam, por exemplo, em jogos de futebol
de que iam participar, que geralmente eram taxados pelos outros
garotos como “preto é bicho bom de bola”, ou “preto não sabe
jogar bola”. Algumas/uns alunas/os mesmo durante os encontros,
quando iam tirar dúvidas, demonstravam um pouco do enraiza-
104 mento do racismo, ao falar que não achava certo por exemplo, o
casamento entre pessoas brancas e negras. Nesse sentido, é im-
portante destacar a que:
O racismo e o preconceito racial como um conjunto de
ideias, atitudes e comportamentos apoiados em concei-

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
tos e opiniões não fundamentadas no conhecimento, e
sim na sua ausência, estimulam a criação de estereótipos
e representações negativas e dão origem ao um estigma
que imputados ao indivíduo dificulta sua aceitação no co-
tidiano da vida social (CAVALLEIRO, 2000, p 23, apud
­COQUEIRO, 2008, p. 24).

A escola deveria ser um lugar de promoção de igualdade


e condições equitativas para o desenvolvimento dos sujeitos que
dela participam, não de perpetuação de preconceitos. O direito à
educação, garantido na constituição brasileira, abrange também o
direito de não ser agredido cotidianamente na escola, de não ter
a cor da pele, o cabelo, a história e os traços físicos negados coti-
dianamente. É papel da escola e dos educadores não permitir que
esses estereótipos se perpetuem indiscriminadamente e combater
seus impactos sobre o bem-estar dos estudantes.
As brincadeiras também podem funcionar como forma de
perpetuar e de naturalizar o racismo, que muitas vezes é inter-
nalizado pela/o negra/o e, como consequência dessas agressões
violências, contribuem para uma inferiorização em relação ao ou-
tro. Essas marcas negativas influenciam na sua baixa autoestima,
distanciando as pessoas de sua identidade negra. Todavia, faz-se
necessário, desde a educação básica até o ensino superior, ressal-
tar de maneira positiva essas questões e trazer para o centro do
debate essas discussões acerca das relações raciais, contribuindo
para a desconstrução do racismo enraizado na nossa sociedade
(SILVA, 2018).
A palavra “negra/o” já traz consigo estigmas, estereótipos,
preconceitos, sendo carregada de significados negativos muitas
vezes cristalizados e fixados pelo indivíduo desde a infância, pela
sua tez mais escura, processo que acaba por conduzir as pessoas
negras a negarem sua origem africana. Ainda persiste, nos dias 105
atuais, relacionar a/o negra/o à escravidão, restringindo-o nessa
dura comparação que permanece cristalizada, sendo que muitas
vezes a/o negra/o internaliza essa condição como sendo natural
e como se essa fosse sua única condição.

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


Por que, na consciência das pessoas, ao falarmos da popu-
lação negra, esse pensamento não muda? Existe uma carga emo-
cional e simbólica muito negativa em torno da cor da pele, que,
como consequência do racismo, retira a condição humana da/o
negra/o, desumanizando-a/o (GOMES, 2003).
Em relação à metodologia adotada na oficina, onde os
alunos tiveram uma boa participação, acreditamos que possibili-
tou a participação ativa no estudo da problemática, possibilitando
o conhecimento das diversas formas em que o racismo e o pre-
conceito manifestam-se no âmbito escolar, o reconhecimento dos
meios que são responsáveis pela disseminação deste racismo no
dia a dia, e o entendimento das razões pelas quais essas ações
ainda ocorrem nos dias de hoje.

Figura 02 – Registro da “árvore do racismo” concluída no término do


segundo encontro

106

Fonte: Acervo da pesquisa (2018)

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
Umas das ações mais citadas pelas/os alunas/os que possa
ser desenvolvida nas instituições escolares, tendo em vista esse
combate ao preconceito e à discriminação, foram intervenções
em modelos semelhantes ao que estava sendo aplicado com eles,
como também, ciclos de palestras, desenvolvimentos de eventos
voltados para o tema na escola, dentre outras possibilidades.
É importante lembrarmos que “[...] a Europa também
concentrou sob sua hegemonia todas as formas de controle da
subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento e da
produção do conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 121). Por isso
mesmo, é de extrema urgência trazer para o centro do debate a
importância da horizontalização das relações de poder e a des-
colonização das práticas didático-pedagógicas, bem como buscar
tensionar os mecanismos de construção do racismo epistêmico.
Um dos mitos do eurocentrismo, segundo Quijano (2005),
é que a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como
experiências e produtos exclusivamente europeus. Nogueira
(2014, p. 27), na contramão desse pensamento, nos traz o concei-
to do racismo epistêmico como um conjunto de dispositivos que
recusam a validade das justificativas feitas a partir de referenciais
não ocidentais, ou seja, contrapondo a “verdade” absoluta do eu-
rocentrismo e trazendo outras formas de repensar essas questões
a partir de um olhar não ocidental e decolonial.
Esse pensamento ocidentalizado e colonizado fortalece
ainda mais o ideal de branqueamento que perdurou durante
muito tempo no imaginário brasileiro. A tese do branqueamento
visava a “confirmar” a inferioridade de grande parte da popula-
ção nacional – mais especificamente negros, índios e mestiços,
ao passo em que imaginava que essa mesma população poderia
tornar brasileiros todos aqueles brancos “superiores” encarrega-
dos de fazê-la reduzir fenotipicamente, a ponto de desaparecer 107
(SEYFERTH, 1995).
Esse olhar enraizado acerca da mestiçagem faz com que nos
tornemos míopes no tocante às relações raciais e ao racismo – mui-
tas vezes invisíveis aos olhos de quem ainda acredita que existe

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


uma democracia racial no nosso país, olhar este que coaduna para
inexistência do racismo como estruturante da nossa sociedade.
Segundo Gomes (2005), a escola pode ter parceiros como
grupos culturais, entidades do Movimento Negro e Núcleos de
Estudos Afro-Brasileiros, que podem ser chamados para dialogar
e trabalhar com as escolas na construção e implementação de
práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial.
Então, a escola, como afirma a autora, pode promover esse
debate, mas apesar da importância de ações como essas, onde a
presença de um NEABI promove bons resultados, salientamos
que se faz necessário a implementação da lei 10.639/03 devida-
mente, tornando o conteúdo de história e cultura afro-brasileira
e indígena obrigatório, sendo trabalhado por todo o currículo
escolar como temas transversais nas aulas, tanto de história como
português, ciências e demais áreas.

Figura 03 – Encerramento do segundo encontro

Fonte: Acervo da pesquisa (2018)

108 Considerações finais

Ao final dos dois encontros percebemos que as/os alunas/


os possuem conceitos incipientes ao que foi debatido. Percebe-
mos que essa defasagem em relação aos conceitos relacionados

EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
às relações étnico raciais é um resquício de uma ausência dessa
discussão no espaço escolar perpetuada para o ensino médio e
superior. Essa falta de debate acerca do tema vem afirmar o que
temos debatido ao longo do nosso trabalho que é a não imple-
mentação da lei 10.639/03 no currículo da instituição. Essa não
implementação da lei traz muitas consequências para o contexto
escolar, isso somente já é uma forma de negligenciar as/os estu-
dantes quanto às relações raciais, então, as/os alunas/os negras/
os não se identificam e os demais assumem um racismo velado
sob a forma de brincadeira.
Destacamos que proporcionar o contato das/os estudantes
com o tema em questão tem que ser prática corriqueira nas esco-
las, não só em espaços reservados, mas incorporado às disciplinas
e à convivência geral das escolas. Ações como as aqui relatadas
certamente ajudarão a melhorar as relações raciais não somente
na escola, mas também na sociedade, já que essas/es estudantes
perpetuam seus saberes na comunidade em que vivem.
Nesse processo, é essencial pensar a escola como um espa-
ço de produção de subjetividades e de formação de identidades.
Colaborar para a construção de um espaço escolar antirracista
e que valorize as contribuições do povo negro para a história e
cultura brasileira é também um modo de pensar uma escola mais
justa e que se dedica à participação e à garantia dos direitos de
todas/os as/os estudantes.
Corroborando com Silva (2018), ainda persiste, nas institui-
ções de ensino e nos mais diversos espaço da nossa sociedade, o
pensamento ocidentalizado, e este perpetua-se por meio de ações
e atitudes que ocultam e apagam a história e cultura do nosso
povo. Na tentativa de reverter esse quadro, precisamos repensar
estratégias para superação desse racismo, construir práticas alter-
nativas para positivação da história e cultura africana e afro-brasi- 109
leira no ambiente escolar e acadêmico, capazes de problematizar a
naturalização do euro etnocentrismo na seleção e desenvolvimen-
to de temas e conteúdos curriculares, assim como do preconceito
e práticas de discriminação racial no cotidiano escolar.

DESCONSTRUINDO CONCEITOS: REPENSANDO O RACISMO NO IFCE – CAMPUS JAGUARIBE


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EDUARDO CHAVES DANTAS • RAFAEL SOUZA CRUZ • JOSEFA NAYANE DA SILVA MEDEIROS
RAQUEL CAMPOS NEPOMUCENO DE OLIVEIRA
O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO
NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO
POLÍTICO-EDUCACIONAL POR MEIO
DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS

Jacqueline da Silva Costa


Professora Adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofo-
nia Afro-Brasileira (UNILAB) Instituto de Humanidades, Coordenadora do
Curso de Bacharelado em Humanidades (BHU/Ceará).
E-mail: jacquelinecosta.sol@unilab.edu.br
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo demonstrar o papel do Movimento
Negro Movimento Negro na construção e consolidação de um projeto político-
educacional via as políticas de ação afirmativas. O texto propõe realizar o
estado da arte acerca das lutas enfrentadas desde o período escravocrata
até os dias atuais, pois desde então protagoniza uma trajetória de luta e
resistência para garantir direitos e cidadania para o povo negro e a população
em geral. Nesse contexto foram criadas diversas estratégias para garantir o
acesso da população negra nos bancos escolares em meio a um contexto de
negação de direitos a criação da Frente Negra Brasileira (FNB) e do Teatro
Experimental do Negro (TEN), foi pensada para minimizar a ausência do
estado e garantir à população negra o ensino e à alfabetização. Portanto,
podemos afirmar que o movimento negro teve e tem um papel importante
na consolidação de uma agenda positiva em prol da população negra para o
acesso a educação formal ao longo de sua trajetória de luta, ações concretas
podem ser constatadas, como a promulgação da Lei Federal de No 10.639/03
que obriga o Ensino História e Cultura Afrobrasileira nas escolas públicas e
privadas, a implantação das ações afirmativas nas universidades estaduais e
federais brasileiras e por últimoconsidero como o apice dessa agenda positiva
a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileiras (Unilab), a concretização de um projeto político-educacional
estratégico no fortalecimento na cooperação Sul-Sul, na produção e na
circulação de conhecimento sobre e entre esses países.
Palavra chave: movimento Negro – educação – ação afirmativa – UNILAB

ABSTRACT
This article aims to demonstrate the role of the black movement the black
movement in the construction and consolidation of a political-educational
project via affirmative action policies. The text proposes to perform State
of the art about the struggles facing since the slave period to the present
day, because since then starred in a path of struggle and resistance to
ensure rights and citizenship to black people and the general population.
In this context have been created several strategies to ensure access of the
black population in the school benches amid a context of denial of rights
to creation of Brazilian Black Front (FNB) and the Teatro Experimental do
Negro (TEN) was designed to minimize the absence of the State and ensure
the black population and literacy education. Therefore, we can say that the
black movement and has an important role in the consolidation of a positive
agenda for the black population to access formal education along your path of
struggle, concrete actions can be noted, as the enactment of the Federal law
112 of 10.639/03 In which forces the teaching history and culture Afro-Brazilian:
struggling in public and private schools, the implementation of affirmative
action in the State and federal universities in Brazil and finally consider how
the apice this positive agenda the creation of University of International
Integration of Afro-Brazilian Culture (Unilab), a politico-strategic educational
project on strengthening South-South cooperation, in the production and
circulation of knowledge about and between these countries.
Keyword: Black movement – education – affirmative action – Unilab

JACQUELINE DA SILVA COSTA


INTRODUÇÃO

D esde o período escravocrata, o Movimento Negro vem


protagonizando a luta e a resistência para salvaguardar os direitos
e a cidadania da população negra a despeito da ausência do esta-
do brasileiro para com esse segmento. A discordância do modelo
de projeto de Estado Nacional desenhado por líderes políticos e
intelectuais da época acreditavam em um modelo de desenvolvi-
mento em que a presença massiva dos negros escravizados não
lograria sucesso ao país.
Em meio ao contexto de negação de direitos e reivindi-
cações do movimento negro, é importante mencionar a criação
de diversas experiências como a criação de escolas noturnas no
período escravocrata, no pós-abolição, experiências como a da
Frente Negra Brasileira (FNB) e do Teatro Experimental do Ne-
gro (TEN) entre outras ações, foram pensadas para minimizar a
ausência do estado e garantir à população negra ao ensino e à
alfabetização. Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação (LDB) em 1961 tornou-se um marco histórico ao
garantir a universalização da educação. Em 1988, a promulgação
do texto da Constituição Federal referendou a LDB consolidando
a educação como um direito social, logo um direito de todos.
Desse modo, o presente artigo tem como objetivo traçar o
percurso das Políticas Afirmativas até chegar ao Brasil, à formu-
lação e implantação dessas politicas pelas universidades pública
estaduais e federais, o papel do movimento negro na consoli-
dação de uma agenda e reinvindicações ao acesso a educação
formal e garantia do Ensino História e Cultura Afrobrasileira (Lei
113
10.630/03) nas escolas públicas e privadas por último a criação da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Bra-
sileiras (Unilab) como a concretização de um projeto político-e-
ducacional estratégico no fortalecimento na cooperação Sul-Sul.

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
O início das ações afirmativas

A implantação das Ações Afirmativas se deu em contextos


com experiências recentes de democratização. No contexto pós
II Guerra, a Índia foi um dos primeiros países a implantar essas
medidas estabelecidas em Constituição a partir de 1948. Tinham
como objetivo promover igualdade, dado ao grande número de
pessoas cuja vida foi marcada pela exclusão à educação e ao tra-
balho, pela negação de direitos influenciados por questões cul-
turais, religiosas e raciais. O pertencimento a uma casta superior
foi a garantia de privilégios e direitos, já o pertencimento a uma
casta inferior foi sinônimo de uma vida marcada pela exclusão
por diversas gerações. A estrutura social da Índia é,
uma estrutura milenar de opressão, embutida nos concei-
tos religiosos do hinduísmo. Esse sistema se articula em
torno de conceitos de “superioridade” e “inferioridade”,
de “pureza” e de “impureza”, que envolvem não somente
critérios religiosos, mas também sócio-raciais, tanto que,
até hoje, as castas “superiores” (sarvanas) se definem em
relação a uma origem ariana. (WEDDBERBURN, 2005,
p. 314).

Com o passar dos anos o número de castas1 inferiores au-


mentou significativamente, chegando a 4.000 informais consi-
deradas “intocáveis”, conhecidas com dalits e advasis (p. 314). O
autor afirma serem quatro as castas existentes na Índia, os Braha-
mim, Katrya e Vishiya, consideradas superiores, e Shudra, inferior,
Em contexto similar ao da Índia, alguns países africanos,
como Gana (1.957) e Guiné Bissau (1.958), também adotaram
políticas de ação afirmativa. Nesses dois casos em particular,
usou-se a estratégia de nominar o processo de “indigenização”
114 e “nativização”, com vistas à ocupação desses grupos em postos
que lhes eram de direito, “monopolizados pelos europeus” (p.
1
Anterior a esse crescimento, havia reconhecidas oficialmente eram quatro cas-
tas, os Brahamim, Katrya e Vishiya, consideradas superiores, e Shudra, inferior.
(Weddberburn, 2005, p. 314).

JACQUELINE DA SILVA COSTA


317). Há registro que mais países africanos adotaram medidas
semelhantes.
Com o objetivo ao empoderamento das populações em
desvantagem nos anos 60 e 70, países do Caribe e do Pacífico Sul,
depois do processo de independência, adotaram também políticas
de ação afirmativa. Em 1971, a Malásia aderiu ao sistema, que pre-
tendeu equalizar a participação de chineses e a de malaios, com
representações distintas: os primeiros com representação de 25%
e os segundos com 65%.

As Ações Afirmativas e o contexto brasileiro

No Brasil as políticas de ação afirmativa ou “cotas” (como


ficaram conhecidas)foram desenhadas como políticas públicas
voltadas para o acesso de negros no ensino superior, entretanto,
há registros de medidas similares que vinham sendo praticadas
no Brasil desde a década de 1930 em diversas áreas. HédioSilva
Jr. (2010) afirma que a primeira delas foi criada no governo de
Getúlio Vargas: “em 1931, o Brasil aprovava a primeira lei de co-
tas de que se têm notícias nas Américas: a lei da Nacionalização
do Trabalho” (p.17) ainda em vigor na Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT) (art. 354), que obrigava as empresas (cujos
proprietários eram imigrantes) a destinar uma cota de dois terços
de suas vagas a trabalhadores brasileiros.
A Lei do Boi foi instituída em 1968,foram cotas para duas
modalidades de ensino: as escolas que ofereciam o ensino médio
agrícola e as faculdades de Agricultura e Veterinária. Tais medidas
foram recomendadas a agricultores, não-agricultores com posse
ou não de terra e aos filhos destes. Assim, “50% das vagas foram
para candidatos agricultores ou filhos destes proprietários ou não
de terras, que residiam na zona rural e 30% a agricultores ou filhos 115
destes, proprietários ou não de terras, que residiam em cidades ou
vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio” (p. 19).
O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação
(PEC-G) foi criado em 1965 como um acordo de cooperação

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
entre o Brasil e países desenvolvidos e em desenvolvimento. O
programa tem garantido o registro obrigatório de estudantes es-
trangeiros2 beneficiários de convênios culturais sob o comando
do Ministério das Relações Exteriores, órgão responsável pelo
registro da carteira de identidade, documento obrigatório do “es-
tudante-convênio” para a realização da matrícula na instituição de
ensino superior.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera)3 foi começado a ser pensado em julho de 1997 foi rea-
lizado, dentro do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da
Reforma Agrária (Enera). Este encontro foi a concretização de um
projeto que teve como parceiros, o Grupo de Trabalho de Apoio
à Reforma Agrária da Universidade de Brasília (GT-RA/UnB), o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), repre-
sentado pelo seu Setor de Educação, além do Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef), do Fundo das Nações Unidas
para a Ciência e Cultura (Unesco) e da CNBB.
Em 2 de outubro do corrente ano, representantes da Uni-
versidade de Brasília (UnB), Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade Federal
de Sergipe (UFS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e
da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp) de-
senharam propostas de ação, dentre elas, investir na formação
educacional de jovens e adultos do campo.
Após essa articulação em 16 de abril de 1998, o Ministério
Extraordinário de Política Fundiária criou o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Em 2001, o Progra-
ma foi incorporado ao Incra pela Portaria/Incra/nº 837, com a
aprovação de um novo manual de operações.
116 O Programa Diversidade na Universidade foi criado pela Lei
2
A África é o continente com maior número de estudantes beneficiados pelo
programa, com destaque para Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola. Na América
Latina, a maior participação é de paraguaios, equatorianos e peruanos. Na Ásia,
os timorenses estão à frente e respondem pelo maior número de selecionados.
3
http://www.incra.gov.br/pronerahistoria

JACQUELINE DA SILVA COSTA


No10.558, de 13 de novembro de 2002, com a vigência prevista
para os anos de 2002 a 2007. Foi executado pelo Ministério da
Educação (MEC) e gerido com recursos do Banco Interamerica-
no de Desenvolvimento (BID). A sua viabilidade se deu em “par-
te da participação do governo brasileiro na Conferência de Dur-
ban no ano anterior, e se insere num contexto de intensificação
dos debates em torno das políticas de ação afirmativa ocorrido no
Brasil no início da década”4. Os artigos5 1º e 2º não só definiam
o público, como a quem os recursos deveriam ser destinados,
Art. 1oFica criado o Programa Diversidade na Universida-
de, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade
de implementar e avaliar estratégias para a promoção do
acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a gru-
pos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-
descendentes e dos indígenas brasileiros.

Art. 2oO Programa Diversidade na Universidade será exe-


cutado mediante a transferência de recursos da União a
entidades de direito público ou de direito privado, sem
fins lucrativos, que atuem na área de educação e que ve-
nham a desenvolver projetos inovadores para atender a
finalidade do Programa.

O Programa Universidade para Todos (PROUNI) é um


programa do Ministério da Educação, criado em 2004 e foi insti-
tucionalizado pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Prevê
a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de
graduação e sequenciais de formação específica, em instituições
de ensino superior privadas. Para as instituições que aderem ao
programa é oferecida a isenção de tributos. Tem como público
alvo, preferencialmente estudantes egressos do ensino médio da
rede pública ou da rede particular. Nesse último caso, são egres-
sos que foram bolsistas integrais, com renda familiar per capita 117
máxima de três salários mínimos. A seleção é pelo Exame Na-

4
Cf:http://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/atores/nao-humanos/diversidade-na-u-
niversidade/
5
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10558.htm

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
cional do Ensino Médio (ENEM) para estudantes “com melhor
desempenho”6. Aos estudantes que não conseguem a isenção de
100% da mensalidade, é oferecido uma “bolsa permanência”, por
meio de dois tipos: pela bolsa estágio via MEC/CAIXA e MEC/
FEBRABAN ou o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES),
que possibilita ao bolsista parcial financiar até 100% da mensa-
lidade não coberta pela bolsa do programa. Da sua criação até o
processo seletivo do segundo semestre de 2013 matricularam-se
cerca de 1,2 milhão de estudantes, 69% dos quais com bolsas
integrais.
A Lei Federal de n. 12.711/12 dispõe sobre o ingresso
nas universidades federais e nas instituições de técnico de nível
médio. Na distribuição das vagas está prevista a reserva de 50%
do total de vagas disponível da instituição que serão subdivididos
“metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar
bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita
e metade para estudantes de escolas públicas com renda fami-
liar superior a um salário mínimo e meio”7. Em ambos os casos
está previsto o corte étnico racial para contemplar o ingresso de
pretos, pardos e indígenas de acordo com o percentual de cada
Estado, tendo como base de dados sempre o último censo demo-
gráfico do IBGE. Os outros 50% das vagas são destinados à ampla
concorrência.

Movimento negro: uma breve incursão

O movimento negro sempre foi importante na reivindicação


de direitos e cidadania da população negra brasileira e, portanto,
na definição das políticas de ação afirmativa. Petrônio Domingues
(2007),o contexto de cada período exigiu de seus líderes algumas
118 estratégias de atuação por inclusão social, superação do racismo
na sociedade brasileira e reivindicação ao acesso à educação.

6
In: http://prouniportal.mec.gov.br
7
Ministério da Educação sobre o funcionamento da Lei 12.711/12, http://portal.
mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html

JACQUELINE DA SILVA COSTA


Entre as reivindicações dos (as) líderes dos movimentos
negros o acesso à educação foi um tema que sempre esteve pre-
sente nas pautas de reivindicação. Esse direito é reafirmado por
Gonçalves e Silva (2000) ao declarar que qualquer debate ou
reflexão sobre a população negra em nosso país passa necessa-
riamente pela “escolarização dos negros no Brasil. O ponto de
partida é o irremediável lugar-comum da denúncia” (p. 01). Re-
força que as injustiças vividas hoje nos remetem a um passado
não distante que testemunha em favor da veracidade dos dados
estatísticos de desvantagens entre negros e brancos, em vários
setores da sociedade, principalmente na Educação.
Com isso, tendo o passado como referência, buscamos o
conteúdo de dois importantes documentos que constam na in-
trodução das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. São eles: o Decreto n. 1.331-a, de 17 de
fevereiro de 1854 e de n. 7.031-A, de 6 de setembro de 1878. O
primeiro aprovava “O regulamento para a reforma do ensino pri-
mário e secundário do Município da Corte entre muitas atribui-
ções dos dirigentes das instituições escolares”. No Art. 69 consta
também quem poderia e não poderia ser admitido e frequentar
a escola.
Não serão admitidos á matricula, nem poderão frequentar
as escolas:
§ 1o Os meninos que padecerem moléstias contagiosas.
§ 2o Os que não tiverem sido vacinados.
§ 3o Os escravos.

O segundo trata de “Cursos noturnos para adultos nas es-


colas públicas de instrução primária do 1o grau do sexo masculino
do município da Côrte”.Consta no artigo 5o, 119
Nos cursos noturnos poderão matricular-se, em qualquer
tempo, todas as pessoas do sexo masculino, livres ou liber-
tos, maiores de 14 anos. As matriculas serão feitas pelos
Professores dos cursos em vista de guias passadas pelos

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
respectivos Delegados, os quais farão nelas as declarações
da naturalidade, filiação, idade, profissão e residência dos
matriculados.

Os documentos mencionados especificam o público que


pretendia ser atendido: indivíduos livres e libertos. Dessa forma, o es-
tado alicerçava-se de estratégias para que os escravos não estudas-
sem. Nem mesmo a reforma dos ensinos primários e secundários
por meio do decreto n. 7.247, de 19 de abril de 1879, proposto
por Carlos Leôncio de Carvalho, que garantia o ensino a jovens e
adultos, bem como a regulamentação dos cursos de Direito e Me-
dicina garantiram que escravos tivessem acesso às escolas notur-
nas em algumas províncias. Em províncias como, a de São Pedro
do Rio Grande do Sul, proibia-se completamente“a presença dos
escravos”e“dos negros libertos e livres”como afirmam Gonçalves e
Silva. A exclusão com base na classe e na raça foi praticada aber-
tamente em um “contexto escravocrata”. Embora o estado não re-
conhecesse tal exclusão, os números referentes ao analfabetismo
eram significativos mesmo entre a população livre:
Os dados sobre a instrução nesse período indicam a ur-
gência da intervenção, bem como as dificuldades que
se apresentam a tal empreendimento. Em 1877 os re-
latórios oficiais apontam que, de uma população livre
de 6.858.594 habitantes, sabem ler e escrever apenas
1.563.078. O número de escolas primárias era 70% in-
ferior ao minimamente desejável. O ensino secundário
restringia-se a aulas avulsas com exceção de poucos colé-
gios, e de poucos cursos superiores que, mal aparelhados,
atendiam à pequena parcela da população o que buscava
o título de bacharel, menos pela profissionalização e mais
pela reafirmação dos privilégios por ele possibilitados.
(Valdemarin, 2000, p. 62)
120 Anteriormente ao golpe militar de 1964, várias iniciativas
de organizações negras foram criadas reivindicando a aceitação
de negros (as) nos estabelecimentos de ensino, a entidades como grêmios
recreativos e organização política (MAIO, 1999; HANCHARD,
2001; SILVA, 2011).

JACQUELINE DA SILVA COSTA


Em 1945, foi criada a Associação do Negro Brasileiro
(ANB), grupo que foi responsável pelo Jornal Alvorada, que de-
nunciava a precária situação do negro em diversas regiões do Bra-
sil, assim como noticiava as conquistas (SILVA, 1999). Na edição
de julho de 1946, o jornal noticiou conquistas dos negros nos
Estados Unidos. A notícia se referia a um grupo de estudantes ne-
gros daquele país que concluíram o ensino superior, sob o título:
“Buscando igualdade na educação universitária”.
Na América do Norte, todos os anos, para mais de 2.500
estudantes negros buscam igualar-se na educação uni-
versitária. Vem desmentindo naquele país, o pensamento
que segundo a nota aqui transcrita havia em “o velho Sul
achava que o Negro fosse simplesmente incapaz de assimi-
lar a educação e que, se ainda o fizesse, ficaria preparado
unicamente para o trabalho humilde” ... O negro crendo
ainda que a educação é o caminho mais seguro para atin-
gir a igualdades, modela seus colégios e universidades.
Na arquitetura dos prédios, na solenidade da reabertura
dos cursos e nas atividades internas. (Jornal Alvorada, jul.
1946, p. 3). (p.22).

A ANB ficou conhecida pelas suas ações em prol da erra-


dicação do preconceito de cor, liberdade de imprensa, direito ao
voto, a educação, entre muitas outras reivindicações. A que lhe
deu fama, no Brasil e no exterior, foi o lançamento do “Manifesto
em defesa da Democracia”, que classificava as medidas do gover-
no de 1937 como sendo reacionárias e fascistas principalmente
em relação à criação dos partidos políticos, censura de imprensa e
de realizar reuniões. No manifesto explicava-se, também que, para
além de unir os (as) negros (as) de São Paulo, a associaçãotinha
como objetivos:
• Combater todas as manifestações de racismo no Brasil; 121
• Exigir que as leis trabalhistas sejam ampliadas (estendi-
das) objetivando incluir as empregadas domésticas e os
trabalhadores rurais;
• Lutar pela anistia incondicional para todos os prisionei-
ros políticos;

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
• Exigir a eliminação da discriminação racial nas academias
militares e no serviço diplomático;
• Exigir legislação penal especial direcionada para aquelas
instituições e indivíduos que discriminam e – Exigir o di-
reito de sindicalização e o direito a greve;
• Lutar pela educação universal em todos os níveis;
• Restabelecer o jornal “O Clarim da Alvorada”, que circu-
lou entre os negros por muitos anos. (p. 24).

De acordo com Silva, Michael Mitchel, em estudo sobre


consciência racial e identidade dos negros em São Paulo, em
1977, reconheceu a ANB como um dos grupos mais sofisticados,
daquela época, comparado a outros grupos e associações.
O Teatro Experimental do Negro (TEN) trouxe contribui-
ções importantes para o país, cuja proposta estava direcionada
às atividades culturais e artísticas (MAIO, 1999). Para Guerreiro
Ramos, significou a inauguração de uma nova fase nos estudos do
negro no Brasil. As inquietações em fundar o teatro eram muitas.
Uma marcante, citada por Nascimento (2004), foi denunciar a
prática do black face: atores brancos que se pintavam de negro
para representar o negro nos palcos do teatro brasileiro. O TEN
foi fundado por Abdias do Nascimento, em 1944, e tinha como
propósito estudar o negro, porém não como tema somente. Passa
“a agir no sentido de desmascarar os preconceitos de cor”,dizia
Guerreiro Ramos. Sua fundação se deu na efervescência dos es-
tudos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros que buscavam
comprovar a inferioridade do negro. O objetivo do TEN foi “tra-
balhar pela valorização social do negro no Brasil, por meio da
educação, da cultura e da arte” (p.210).
De acordo com Maio (1999), a experiência que nascera sob
fortes críticas aos poucos foi ganhando força. A cada dia aumen-
122 tava a participação de homens e mulheres, ao ponto de registra-
rem-se em torno de 600 pessoas matriculadas no curso de alfabe-
tização de adultos. Com o tempo, a atuação do TEN foi ganhando
novas frentes, entre as quais: oferta do ensino de alfabetização de
adultos, de cursos básicos de iniciação à cultura geral, de cursos

JACQUELINE DA SILVA COSTA


de noções de teatro e de interpretação: na participação política, na
criação do jornal Quilombo que denunciou as atrocidades do regi-
me militar. Organizaram conferências8, convenções e congressos
para debater a questão do negro os quais, na visão do mesmo, fo-
ram encontros “animados de propósito práticos e não de reuniões
de debates acadêmicos” (p. 162).
Segundo Guimarães (2003), em 1978 o Movimento Ne-
gro Unificado (MNU) surgiu fortemente após a ditadura militar
com um discurso que negava a existência de uma “democracia
racial”. Explica que isso se deu fortemente porque incorporou-
-se a ideia de raça, ao mesmo tempo em que reivindicavam “a
origem africana para identificar os negros”. Naquele mesmo ano,
Guimarães afirma que lideranças do MNU mal podiam esperar
que suas denúncias fossem corroboradas pelos resultados da
pesquisa feita por pesquisadores como Carlos Hasenbalg e Nel-
son do Valle e Silva. Hasenbalg finalizou sua dissertação de pós-
-doutoramento na Universidade da Califórnia em Ber H ­ uanday,
nos EUA, intitulada, Race Relations in Post-Abolition Brazil: The
Smooth Preservationof Racial Inequalities, sob orientação de ­Robert
Bleuner9.
Em 1979, o estudo foi traduzido para o português e resul-
tou na obra Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Segundo
Marcia Lima10, a pesquisa de Hasenbalg auxiliou para compreen-
der o Brasil e a preservação da desigualdade racial. Ressaltou que
o autor “foi uma peça fundamental na formação de pesquisado-
res, em especial de pesquisadores negros, e na consolidação de
um campo de estudos sobre raça no Brasil” (pp. 921).
Segundo Rodrigues (2011, p. 2), desde a década de 1970
8
Convenção nacional do negro em São Paulo (1944) e no Rio de Janeiro (1947),
a Conferência nacional do Negro no Rio de Janeiro (1949) e o I Congresso Na-
cional do Negro (1950) p. 162. 123
9
Ficou conhecido pela criação do termo “Colonialismo Interno” em contraposi-
ção ao “Colonialismo Clássico”. Segundo Cashmore o conceito criado por Robert
Blauner “foi uma grande contribuição para as teorias de relações raciais, tendo
pelo menos desviado a atenção das circunstâncias correntes para a história como
ponto de partida para a investigação” (p. 137).
10
Assistente do pesquisador por mais de uma década.

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
o movimento negro já atuava no combate à discriminação racial e
ao racismo, de maneira estratégica e politizada.
A atuação do movimento negro registrou a concordância
entre intelectuais negros de que a raça constituía-se um
conceito organizador das relações sociais no Brasil, daí
passou a pautar a importância de participar e influir na
elaboração e conteúdo da Constituição Federal de 1988
e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional com
objetivo de desacreditar a ideologia da democracia racial
reeditada até então na orientação de leis e diretrizes das
políticas públicas. (p. 2)

A parceria da liderança do movimento negro com os (as)


intelectuais negros (as) fez com que problematizassem temas
como, a qualidade dos conteúdos aplicados em sala de aula, par-
ticularmente os conteúdos dos livros didáticos que normalmente
retrataram os negros de uma maneira estereotipada e inferiori-
zada. Assim, o ano de 2003 foi significativo e importante para a
efetivação e institucionalização dessa reivindicação, ano em que
a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) foi alterada com incorporação
da Lei 10.639/03, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva em março de 2003.
A lei tornou obrigatória a inclusão do Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira no currículo dos estabelecimentos de en-
sino fundamental e médio oficias e particulares (Art 26-A) e além
do conteúdo a lei assegura o dia 20 de novembro como uma data
comemorativa ao aniversário da morte de Zumbi dos Palmares,
como sendo o dia Nacional da Consciência Negra (Art. 79-B).
Desde a promulgação da Lei 10.630/03, esforços vêm sen-
do feitos para que nas universidades brasileiras fossem criadas
disciplinas que abordassem o tema da “Educação das Relações
124 Étnico Raciais”, para garantir a formação de professores (as) a
partir de uma proposta curricular voltada para os conteúdos da
Lei. Para além da criação de cadeiras específicas que abordem os
referidos conteúdos, um exemplo forte e potente de concretiza-
ção da luta do movimento negro e das ações afirmativas em nosso

JACQUELINE DA SILVA COSTA


país foi a criação da Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) no estado do Ceará e na
Bahia, cuja proposta curricular, sobretudo na área de humanas
(Antropologia, Bacharelado em Humanidades, História, Letras,
Pedagogia e Sociologia) é voltada para o cumprimento da Lei
10.639/03 e com disciplinas cujos conteúdos contemplam temas
afrocentrados contemplando temas específicos sobre o continen-
te africano, mas precisamente dos Países de Língua Portuguesa
(PALOP) 11

O papel do Movimento Negro na reconfiguração de


políticas educacionais brasileiras

Nos últimos anos muitos estudiosos (as) das Relações Ra-


ciais de diversas áreas do conhecimento, tem se dedicado ao es-
tudo acerca do impacto da participação política e social do Movi-
mento Negro na formulação de políticas educacionais de estado.
Tatiane Cosentino Rodrigues (2005) em sua dissertação de
mestrado intitulada Movimento negro no cenário brasileiro: embates e
contribuições à política educacional nas décadas de 1980-1990, ao ana-
lisar o impacto da participação do movimento negro na definição
de um novo projeto político-educacional para o Brasil, consta-
tou “a importância atribuída à educação pelo movimento negro,
bem como a sua luta e organização por participar dos processos
­decisórios” (p. 14).
Nilma Lino Gomes (2011) destaca a importância do movi-
mento negro na formulação de políticas educacionais e o carac-
teriza como “sujeito político” que obteve resultados importantes
com o governo federal. Afirma ainda que 2000 foi um ano de con-
quistas na trajetória do movimento negro, pela forte influência
no governo brasileiro e em dois órgãos de pesquisa, o IPEA e o 125
IBGE. Segundo a autora, “esse reconhecimento político tem pos-
sibilitado, nos últimos anos, uma mudança dentro de vários seto-
11
como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçam-
bique e Timor-Leste, países de origem dos (as) estudantes.

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


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res do governo e, sobretudo, nas universidades públicas, como,
por exemplo, o processo de implementação de políticas e práticas
de ações afirmativas voltadas para a população negra” (p.135).
O debate para a implantação das Políticas de Ação Afir-
mativa ou Cotas para negros no ensino superior foi uma conti-
nuidade das reivindicações do movimento negro em nosso país.
A realização da Marcha Zumbi dos Palmares pela vida e contra todas
as formas de discriminação, que ocorreu em 20 de novembro de
1995, data de celebração dos 300 anos da morte de Zumbi dos
Palmares, foi considerada um momento histórico na conquista
de direitos para a população negra e um passo importante para
as relações raciais em nosso país. Ao receber ativistas e militantes
do movimento negro, o Presidente da República Fernando Hen-
rique Cardoso afirmou que o “Brasil é um país racista” (SILVA,
2013, p. 9). No documento entregue ao presidente continham-se
reivindicações para diversas áreas. As que pautaram a educação
foram:
(1) a exigência de garantia de uma “escola pública, gratui-
ta e de boa qualidade”, (2) o monitoramento dos “livros
didáticos, manuais escolares e programas educativos”, (3)
a formação permanente de professores e de educadores
para o trato da “diversidade racial”, (4) identificação das
“práticas discriminatórias”, (5) eliminação do analfabetis-
mo e (6) desenvolvimento de “ações afirmativas para o
acesso” a curso profissionalizante e à universidade.

Como resultado da Marcha foram criadas duas instâncias


ligadas ao governo para aprofundar a discussão sobre as reivindi-
cações da população negra: o Grupo de Trabalho Interministerial
(GTI) e o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação
no Emprego e na Ocupação (GTEDEO).
126 De acordo com Silva, em 2000 iniciaram-se as mobilizações
em razão da III Conferência Mundial contra o racismo, que acon-
teceria em Durban, África do Sul, em 2001.
Foram realizadas conferências municipais, estaduais, re-

JACQUELINE DA SILVA COSTA


gionais e temáticas, até a Conferência Nacional e a Confe-
rência Regional das Américas. Alimentando os debates, o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sistema-
tizou dados estatísticos sobre a população negra, realizan-
do novas tabulações e análises. A participação brasileira,
do governo e da sociedade civil, foi intensa e significativa
tanto no processo de preparação quanto na participação na
III Conferência propriamente dita. (p. 10)

A Conferência Nacional mobilizou a participação de 2.500


pessoas, entre delegados (as), representantes do governo e con-
vidados. O documento formulado continha 23 propostas direcio-
nadas à promoção de direitos e cidadania da população negra e,
entre as propostas, recomendou-se a “adoção de cotas nas uni-
versidades e outras medidas afirmativas de acesso de negros às
universidades públicas” (p. 11).
Para Gomes (2013), o debate sobre ações afirmativas se deu
num “contexto de construção de um Estado mais democrático e
de uma universidade mais democrática (p. 2)” o que, fora desse
contexto, seria impossível. Silvério (2003) destaca ainda que a
conjuntura brasileira foi propícia para o surgimento de medidas
como: o reconhecimento do preconceito racial por parte do go-
verno brasileiro; o reconhecimento das terras de remanescentes
de quilombo; o acúmulo de ganhos do Movimento Negro com a
visibilidade internacional e o peso do direito internacional sobre
a legislação brasileira. Essas medidas influenciaram fortemente
a implantação das ações afirmativas nas universidades públicas,
mesmo sob o olhar “atento” de alguns líderes políticos, dirigen-
tes universitários, críticos e cidadãos comuns que se expressaram
contrariamente a elas, geralmente justificados por argumentos do
senso comum. Sobre isso, independentemente da posição contrá-
ria ou a favor, o autor afirma: 127
Em linhas gerais debater em torno da aceitação ou não-
-aceitação das cotas, além de empobrecer a discussão de
conteúdo, significa perder a oportunidade de levantar e
tentar responder à seguinte questão: como podemos in-
cluir minorias historicamente discriminadas, uma vez que

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
as políticas universalistas não têm tido o sucesso almejado,
e, ao mesmo tempo, debater em que bases é possível rever
aspectos fundamentais do pacto social? (p. 220).

Souza (1997) reconhece que o I Seminário Internacional in-


titulado “Multiculturalismo e Racismo: O papel da ação afirmativa nos
estados democráticos contemporâneos” ocorrido em julho de 1996 como
um marco no debate de tais políticas. O evento foi promovido pelo
Departamento de Direitos Humanos, ligado à Secretaria de Direi-
tos Humanos do Ministério da Justiça, com o objetivo de debater
o racismo e a formulação de políticas públicas que garantissem o
combate à discriminação racial. No seminário, estiveram presentes
intelectuais nacionais, internacionais e lideranças negras. Na opor-
tunidade, Thomas Skidmore, em entrevista a um jornalista brasilei-
ro, afirmou que se tratava de um momento importante na história
da luta contra o racismo, por ser um primeiro evento promovido
pelo governo brasileiro, no qual oficialmente se reconheceu o ra-
cismo existente no país. O evento possibilitou um estímulo ao de-
bate e aprofundamento das desigualdades sociais e raciais.
Em 9 de novembro de 2001, o governador Antony Garo-
tinho sancionou a Lei n. 3.708, reservando 40% de vagas para
negros e pardos na UERJ e na Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF), implantada em 2003. Pesquisadores associa-
ram a implantação das políticas, em razão da ativa participação da
UERJ dos espaços de debates que antecederam as conferências
preparatórias para Durban. Havia, portanto, um contexto político
favorável à mobilização para tais políticas. Em 2003, a Universi-
dade do Estado da Bahia (UNEB), pela resolução n. 196/2002,
implantou políticas de cotas, reservando 40% de suas vagas aos
candidatos que se autodeclarassem afrodescendentes. Nesse mes-
mo ano, universidades federais também se movimentaram para
128 implantá-las. São elas: Universidade de Brasília (UnB), Universi-
dade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Alagoas
(UFAL) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Rosana Heringer (2003) ressalta que a adoção de tais me-
didas compôs uma agenda de reivindicações pela promoção da

JACQUELINE DA SILVA COSTA


igualdade racial, em curso no país. Lembra ainda que, aos olhos
de grande parte da população, tratava-se de um tema novo e po-
lêmico, mas que “sempre houve no Brasil a mobilização de orga-
nizações negras e de outros setores que lutam contra o racismo e
as desigualdades raciais no país” (p. 285).
De acordo com os dados do GEMMA,12 em 2015, do total de
95 universidades, 90 implantaram um tipo de cota: 32 estaduais e
58 federais. Apenas cinco não adotaram tais medidas. Em 2011 re-
alizou-se um levantamento para analisar a proporção de universi-
dades com ação afirmativa e constou-se que as regiões Nordeste e
Sudeste apresentaram índices satisfatórios com maior número de
universidades que adotaram tais políticas como mostra a tabela 1.

Tabela 1 – Universidades públicas federais e estaduais com pro-


gramas de ação afirmativa por região. Brasil. 2011
Região Universidade Universidade % de universidades
(N) com AA com AA
Norte 14 5 35,7
Nordeste 27 22 81,5
Centro-Oes- 8 7 87,5
te
Sudeste 28 23 82,1
Sul 21 13 61,9
Total 98 70 71,4
Fonte: Gemma.

De 2012 a 2010 e em 2008 um maior número de univer-


sidades federais implantou os PAA. As estaduais, por exemplo
apresentaram dois momentos fortes de implantação: em 2005 e
em 2008, portanto, antecederam as federais, o que demonstra
uma maior autonomia universitária vivenciada pelas estaduais e, 129
segundo Feres (2011), porque elas não são “objeto de legislação
federal” (p. 5).

12
Coordenado pelo prof. Dr. João Feres Jr ligado ao Instituto de Estudos Sociais
e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
Gráfico 1 – Evolução da implantação de PAA/ ano de acordo
com o tipo de universidade

Fonte: GEMMA (2011)

Os dados mostram que a modalidade de AA mais antiga e


mais praticada pelas IES é a que tem como beneficiários (a) alu-
nos (a) de escola pública, o que desmistifica a polêmica criada em
torno desses programas, amplamente criticados pela opção das
categorias étnico-racial como critério para o acesso de negros e
indígenas no ensino superior como mostra a tabela 2.

Tabela 2 – Universidades de acordo com os beneficiários


(as) das ações afirmativas. Brasil. 2011
Beneficiários (as) N %(*)
Alunos de Escola Pública 61 87,1
Negro 40 57,1
Indígena 36 51,4
Deficiente 13 18,6
Indígena/ licenciatura 6 8,6
Quilombola 3 4,3
Nativo do estado 3 4,3
Baixa renda 2 2,9
Professor da rede pública 3 4,3
130 Interior do estado
Filhos de policiais, bombeiro, mortos ou incapacitados em
3
2
4,3
2,9
serviço 1 1,4
Mulher
Total de universidades 70
Fonte: GEMMA (*) Calculada em relação ao total de universidades com AA,
que é 70.

JACQUELINE DA SILVA COSTA


Os dados do referido levantamento demonstram a evolu-
ção na implantação dos PAA nas universidades federais e esta-
duais. A crescente adoção fez cair por terra um dos argumentos
usados pelos contrários à medida: o da inconstitucionalidade. O
mesmo argumento foi derrubado em 2012 pelo Superior Tribu-
nal Federal (STF) que, unanimidade, votou pela continuidade
e constitucionalidade da AA. Os argumentos do parecer do mi-
nistro Ricardo Lewandowisk, relator da ADPF/186, considerou
ainda a histórica desigualdade existente em nosso país que há
tempos tem preterido negros (as) do gozo de direitos fundamen-
tais em nome da igualdade formal. Recuperou-se o debate das
ações afirmativas na esfera nacional e internacional demonstran-
do a necessidade de se reconhecer a diferença para promover a
igualdade e a justiça social.
Lewandowisk (2012) destacou duas questões importantes:
o reconhecimento de que a igualdade formal não tem dado con-
ta de acolher os diferentes grupos em desvantagem; o reconhe-
cimento de que o objetivo “das instituições de ensino vai mui-
to além da mera transmissão e produção de conhecimento em
benefício de poucos que logram transpor os seus umbrais, por
partirem de pontos de largada social ou economicamente privi-
legiados” (p. 16). Entre os diversos autores utilizou textos do
jurista Oscar Vilhena Vieira (2006) para afirmar a existência de
uma preferência nacional pela permanência de grupos compostos
majoritariamente de pessoas brancas pela disputa de uma vaga na
universidade e, consequentemente, aos postos de trabalho.
Vieira (2006) considera que o ingresso no vestibular é uma
pré-seleção a uma vaga ao ensino superior e futuramente aos pos-
tos de trabalho na medida que determina quem fica e quem sai o
mais preparado e o não preparado. Os problemas apontados pelo
jurista demonstram que a forma equivocada de seleção para in- 131
gresso, além de causar um ambiente segregado, gerará prejuízos
ao ponto de,
1) Violar o direito dos membros dos grupos menos fa-
vorecidos de se beneficiar do ‘bem públicoeducação’ em

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
igualdade de condições com aqueles que tiveram melhor
fortuna durante seus anos de formação.
2) A universidade predominantemente branca, em segun-
do lugar, falha na sua missão de constituir um ambiente
passível de favorecer a cidadania, a dignidade humana, a
construção de uma sociedade livre, justa [...]
3) Uma universidade que não integra todos os grupos so-
ciais dificilmente produzirá conhecimento que atenda aos
excluídos, reforçando apenas a hierarquias e desigualda-
des que tem marcado nossa sociedade desde o início de
nossa história. (p. 376)

Essas políticas pretendem o reaprumamento dos grupos,


historicamente prejudicados em razão de sua raça, gênero e etnia.
Objetiva, portanto, o empoderamento e acesso em carreiras até
então não ocupadas e em espaços até então não circulados.

O Projeto UNILAB: a consolidação do Projeto Político-


Educacional do Movimento Negro e o empoderamento
epistemológico e das carreiras profissionais da
população negra, quilombola, indígena e africana da
CPLP
É possível afirmar que a trajetória de luta e resistência dos
movimentos sociais, favoreceu um ambiente favorável para rei-
vindicações por cidadania, pelo direito a educação e pela promo-
ção da igualdade de oportunidades concretizadas por meio de
uma agenda de ações positivas conforme abordamos inicialmente
neste artigo, dentre as quais a criação de espaços institucionais
de produção de conhecimento garantidos por políticas de ação
afirmativas, de igualdade, de diversidade, de reparação e de in-
ternacionalização.
132 Destarte, fazendo uma análise do atual cenário político do
Brasil destacamos as universidades públicas brasileiras (estadu-
ais, federais e institutos federais) e o importante investimento fei-
to nesses últimos 13 anos, pelo governo do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (2003 – 2009) e pela ex-presidente Dilma

JACQUELINE DA SILVA COSTA


Rousseff (2010 – 2016). Me refiro a criação da Universidade Fe-
deral da Integração Latino-americana – Unila, e da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Uni-
lab, como resultados concretos de demandas trazidas pelos mo-
vimentos sociais. Aqui destacamos o movimento negro, indígena,
dos(as) trabalhadores (as) rurais sem-terra, dos Núcleos de Estu-
dos afro-brasileiros e Indígenas das universidades públicas brasi-
leiras – Neab/Neabi, que do ponto de vista estatístico e em razão
de pautas históricas de reinvindicação lutaram pelo aumento e
aprimoramento do acesso e da permanência no ensino superior.
Costa e Melo (2018), afirmam que aUnilab é um projeto
político desenhado pelo ex-presidente Lula e continuado pela
ex-presidente Dilma Rousseff. Possibilitou a aproximação e um
amplo diálogo com os países da cooperação Sul-Sul, pertencentes
a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, que
atende estudantes oriundos do Brasil, dos países Africanos de
língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé
e Príncipe, Moçambique) do Sudeste Asiático (Timor Leste).
Criada pela Lei 12.289 de 20 de julho de 2010, atualmente
funciona com quatro campisituados emMalês (São Francisco do
Conde/BA), Palmares (Acarape/CE), Liberdade e Auroras (Re-
denção/CE) onde também funciona a sua sede administrativa.
Dados quantitativos da Diretoria de Registro e Controle Acadê-
mico – DRCA, de outubro/2017 registram um total de 6.803 es-
tudantes matriculados nos cursos de graduação, pós-graduação,
presencial e a distância. Nos cursos presenciais, foram registrados
3.995 estudantes, por nacionalidade: Brasil: 2.964, Angola: 151,
Cabo Verde: 91, Guiné-Bissau: 622, Moçambique: 32, São Tomé
e Príncipe: 84, Timor Leste: 51. Na Pós-Graduação Stricto Sensu
Presencial: 102 e em cursos a distância: Pós-Graduação Lato Sen-
su: 914, Pós-Graduação Lato Sensu a Distância: 1.792. 133
Diante da conquista de ter como sede duas universidades
estratégicas do ponto de vista da produção do conhecimento e
da promoção da justiça social, hoje vemos o Brasil em um quadro
bastante desafiador. Desde agosto de 2016, após um golpe parla-

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
mentar-jurídico, e de cunho profundamente neoliberal/colonial,
vem se impondo um conjunto de propostas que não foram refe-
rendadas pelo voto direto, colocando-se em perigo tudo o que se
conquistou até esse momento. Um exemplo concreto foi a aprova-
ção da PEC 95, apresentada pelo governo federal e aprovada pelo
Congresso Nacional, a emenda que congela por 20 anos os gastos
públicos com saúde e educação.
O país como um todo sofre com o impacto do projeto
neoliberal e colonialista que mudou a prioridade da polí-
tica externa, colocando no centro países como os EUA e o
continente europeu, deixando em segundo plano a relação
com os países da América Latina e do continente Africano.
O projeto colonial/neoliberal age de forma brutal, invisi-
bilizando e silenciando grupos não conformados (indíge-
nas, pobres, negros(as), LGBTT+), assim como através de
expulsões de lugares que “nunca foram destinados a tais
grupos”, a exemplo das universidades públicas. (COSTA
E MELO, 2018, p. 6)

A educação é uma frente bastante visada por esse movi-


mento neoliberal, onde projetos como “Escola sem Partido” tem
o intuito de manter a educação sob as rédeas do capitalismo/
colonialismo. Nesse contexto de ataque direto à educação estão
em jogo os projetos Unila e Unilab, que concentram corpos (ne-
gros (as), quilombolas, indígenas e africanos dos países da CPLP,
pobres e LGBTT+) e currículos que contestam o “status quo” atual.

Considerações finais

O presente artigo teve como objetivo demonstrar impor-


tante papel do Movimento Negro frente a consolidação de um
projeto político-educacional e a consolidação das políticas de
134 ação afirmativas nas universidades brasileiras que vem contem-
plando o ingresso da população negra nos mais variados cursos
de graduação.
Ao longo de uma trajetória de existência, resistência e de luta
o Movimento Negro elaborou diversas estratégias para g ­ arantir o

JACQUELINE DA SILVA COSTA


ingresso da população negra aos bancos escolares, proibida no por
decretos pelo estado brasileiro fortemente entre os anos de 1.854
a 1.878. E, atualmente embora não se tenha leis que proíbam esse
ingresso, existe o racismo que funciona como um medidor de para
dizer quem entre e quem sai, quem entra e quem permanece ileso
a violência cotidiana e tóxica dessa pratica abominável, em todos
os estágios da vida da população negra, antes de ingressar na es-
cola, durante o ingresso na (creche, educação infantil, ensino fun-
damental, ensino médio) no ensino superior (graduação, latu e
strictu sensu) e na vida profissional mesmo tendo de 23 a 25 anos
dedicados aos estudos13.
Tais Programas de Ação Afirmativa nas universidades bra-
sileiras se configuram como uma importante política de igual-
dade de oportunidade, justiça social e de diversidade. Destaco
primeiramente que, essas políticas, ao longo da implantação, têm
promovido o debate sobre racismo na sociedade brasileira e pos-
sibilitado o diálogo acerca do tema. O debate também foi feito no
interior dos movimentos sociais, de alguns setores da universida-
de e do governo.
Nesse sentido, os PAA nas universidades brasileiras, comu-
mente têm sido embasados no argumento da igualdade demons-
trando ser uma importante ferramenta política e pedagógica na
promoção da igualdade de oportunidades, garantindo a presença
dos (as) negros, indígenas, quilombolas e africanos (as) no en-
sino superior. Por outro lado, essas políticas podem ser lidas na
chave da diferença, uma vez que causam um estranhamento e in-
cômodo com a presença destes corpos na universidade descentra,
desloca e causa um ruído no “conjunto de representações” que se
construiu sobre o negro. Assim, a corporeidade negra desestabi-
liza e questiona a epistemologia e a produção de conhecimento,
a partir de uma matriz de conhecimento eurocêntrica reivindi- 135
cando e compartilhando outros saberes e múltiplas experiências.
Afirmar que o projeto UNILAB e UNILA representam pro-
jetos importantes de desenvolvimento, de sociedade, de desco-

13
Trago essas informações a partir da minha experiência profissional de professora.

O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO NA CONSOLIDAÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO-EDUCACIONAL


POR MEIO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
lonização do saber e de redefinição do projeto de sociedade é
reconhecer que um conjunto de ações vem sendo gestadas e de-
senvolvidas em nosso país por mais de 300 anos por um conjunto
de atores sociais e em, momento específicos, protagonizados pelo
governo brasileiro e países parceiros do Sul e do Norte. Ambos os
projetos de universidades em instalação tem sido poderosas ferra-
mentas na promoção da igualdade de oportunidades, na reconfi-
guração dos grupos étnicos/raciais, na (re)formulação de projetos
de vida, na produção e na circulação de novos conhecimentos.
É necessário, portanto compreender e analisar tais experi-
ências não é somente romantizá-las e isentá-las de práticas racis-
tas, misóginas, xenofóbicas, homofóbicas dos corpos que nelas
estão inseridos, mas sim reconhecê-las como um espaço privile-
giado para a formulação de questões educacionais, sociológicas,
históricas e antropológicas com vistas à compreensão dos efeitos
do colonialismo (FANON, 2008), tem e teve na vida da população
negra, quilombola, indígena, das mulheres e dos africanos dos
países de língua portuguesa deste país. Portanto, o mesmo local
em que se produziu ciência com base em teorias eurocêntricas e
eugênicas, ironicamente tem sido o mesmo que tem acolhido gru-
pos sociais de diferentes lugares com seus corpos, gestos e língua
marcados (as) pela colonialidade (QUIJANO, 2005).
Esses corpos têm cor, gênero, classe, etnia, religião e na-
cionalidade com um modus operandi bem diversificado um dos
outros, posso dizer, talvez nunca visto ou vivenciados em canto
algum do Brasil. Esses corpos chegam na Unilab com a sua dose
de “privilégio epistêmico” 14 que possibilita tencionar um currí-
culo já pensado a partir de questões afrocentradas, decoloniais e
pós-coloniais. Para mim são geocorpos, geovidas, geoexperiências
que foram reposicionados estrategicamente, frutos da cooperação
136 Sul-Sul, vindo da margem (de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné
Bissau, Moçambique, São Tomé e Timor Leste) mundo e cami-

14
Conceito usado pela Socióloga Patrícia Hill Collins para ser referir a grupos
sociais de diferentes lugares que conseguem compreender teorias e reinventá-las
a partir do seu lugar de origem.

JACQUELINE DA SILVA COSTA


nham para o “centro” do conhecimento que não está fortemente
mais associada ao eixo sul e sudeste. Assim o Nordeste, com o for-
te investimento da expansão do ensino superior tem demonstrado
que o que separava esses (as) estudantes intelectuais do acesso ao
ensino superior de trajetória de sucesso era somente uma oportu-
nidade que com apenas pouco tempo posicionados às leituras te-
óricas somadas às diversas experiências já praticando a desobedi-
ência epistêmica (MIGNOLO, 20018), produzem conhecimento
a partir das necessidades da sua comunidade, descolonizando e
desracializando histórias e saberes até então i­nvisibilizados.

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140

JACQUELINE DA SILVA COSTA


ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO
DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:
ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA
ENTRE AS “COMUNIDADES DE
APRENDIZAGEM”

Luís Carlos Ferreira


Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana. Pedagogo. Docente do insti-
tuto de Humanidades/Pedagogia da UNILAB.
Email: luisferreira@unilab.edu.br

Geranilde Costa e Silva


Doutoraem Educação. Pedagoga. Docente do Instituto de Humanidades/Peda-
gogia da UNILAB.
Email: geranildecosta@unilab.edu.br
RESUMO
O propósito do texto é, numa tentativa preliminar, aproximar e dialogar
sobre a educação moçambicana, em especial, a Alfabetização e Educação
de Adultos (AEA) em seus múltiplos contextos de desenvolvimento
humano e social do país, a partir das comunidades de aprendizagem como
espaços não-formais alternativos de escolarização. Na primeira parte,
apresentamos os aspectos históricos e políticos de desenvolvimento da
educação moçambicana, a partir de avanços e retrocessos indicados na
historiografia do país, bem como nos documentos oficiais que expressam
as políticas de educação ao longo dos anos. Na segunda parte do texto,
demos ênfase aos aspectos que envolvem o analfabetismo e as questões
ligadas à pobreza e a exclusão social das pessoas subescolarizadas,
conforme aspectos destacados na evolução da educação e na produção
moçambicana. E, na última parte do trabalho, os destaques dados para
as comunidades de aprendizagem existentes e que funcionam como
alternativas para o alcance do desenvolvimento produtivo nacional, numa
esfera ampla e, para o resgate da pessoa [humana] e plena cidadania,
numa esfera restrita.
Palavras-chave: Alfabetização e Educação de Adultos – educação
moçambicana – comunidades de aprendizagem.

ABSTRACT
The purpose of the text is, in a preliminary attempt, to approach
and dialogue on Mozambican education, especially Literacy and
Adult Education (AEA) in its multiple contexts of human and social
development of the country, from the learning communities as alternative
non-formal spaces of schooling. In the first part, we present the historical
and political aspects of the development of Mozambican education,
based on advances and setbacks indicated in the historiography of the
country, as well as on the official documents that express the policies of
education over the years. In the second part of the text, we emphasized
aspects of illiteracy and issues related to poverty and social exclusion
of under-educated people, as highlighted in the evolution of education
and Mozambican production. And in the latter part of the work, the
highlights given to existing learning communities and functioning as
142 alternatives for the achievement of national productive development, in
a broad sphere, and for the ransom of the [human] person and full
citizenship, in a restricted sphere.
Keywords: Literacy and Adult Education – Mozambican education –
learning communities.

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


INTRODUÇÃO

“É hora de tornar visíveis os africanos invisíveis”


(HALL, 2017, p.18)

A s palavras iniciais desse trabalho consistem num desa-


fio preliminar de aproximação e diálogo sobre a educação mo-
çambicana, em especial, a Alfabetização e Educação de Adultos
(AEA) em seus múltiplos contextos de desenvolvimento humano
e social do país1. Partimos do pressuposto de que as políticas de
educação, sobretudo, voltadas para o avanço da produtividade
e erradicação da pobreza, passam pela formação humana como
condição básica para a escolarização das pessoas que, por inúme-
ras circunstâncias, deixaram os bancos escolares e retornaram a
uma segunda chance em instituições escolares e não-escolares, na
tentativa de resgate a uma cidadania esquecida e/ou negada.
Nesse trabalho, atribuímos o conceito de comunidades de
aprendizagem para identificarmos as instituições não-formais de
ensino e aprendizagem, ou seja, damos status de espaços de
aprendizagem por reconhecer as práticas e experiências de for-
mação fora dos espaços institucionalizados e, em muitos casos
1
Nos propomos a tecer, conjuntamente, essa rede de conhecimentos por en-
tendermos que os diferentes olhares e, ao mesmo tempo, a integração entre os
conhecimentos trabalhados por cada um de nós, representa um complexo tecido
com fios a serem puxados nas discussões a seguir. Dessa forma, nosso ‘lugar de
fala’ parte de nossas pesquisas, discussões e trabalhos desenvolvidos que somam
na tessitura desse material produzido. No caso, a primeira pesquisadora, educa-
dora brasileira que, ao longo dos anos, trabalha com as questões étnico-raciais,
em particular, com a Pretagogia, enquanto referencial teórico e metodológico de 143
tratar da questão afro-brasileira às diversas identidades de negros e não-negros.
O segundo pesquisador é também educador brasileiro que acumula estudos no
campo das políticas públicas de educação e trabalho, particularmente, aprofun-
dando a temática da educação de adultos, os impactos das manifestações das
culturas africanas e afro-brasileiras nas práticas pedagógicas, na perspectiva da
erradicação da pobreza do desenvolvimento cidadão do país.

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
onde as políticas de educação não conseguem alcançar. Daí que
os grupos sociais, entidades, associações, programas do Ministério
da Educação e Desenvolvimento (MINED) bem como projetos li-
gados às organizações internacionais, integram essas experiências
que contribuem [estrategicamente] para a Alfabetização e Educa-
ção de Adultos moçambicana.
Assim, nos desafiamos a buscar entre os estudos [ainda te-
óricos] e as pesquisas na literatura africana, parte dessa árdua
e complexa construção de uma realidade socioeducacional mo-
çambicana, considerando as múltiplas determinações – históricas,
econômicas, sociais, culturais, humanas e, principalmente, políti-
cas – envolvidas no contexto de escolarização e formação humana
desses sujeitos sociais.
Por fim, propomos uma mudança de olhar para a Alfabe-
tização e na Educação de Adultos privilegiando os sujeitos afri-
canos e, ao mesmo tempo, dando lugar de destaque às análises,
reflexões e, sobretudo, na divulgação das diferentes etapas da
escolarização realizadas nas práticas pedagógicas escolares e não-
-escolares presentes em comunidades de aprendizagem.

Do legado histórico às políticas de educação


moçambicana

Ao conhecermos parte da história [pouco conhecida] de


um país que carrega marcas de luta por libertação, o combate à
pobreza e, principalmente, a elevação dos índices de escolariza-
dos, nos deparamos com o processo de decolonização e resistên-
cia a um nacionalismo moçambicano de controle europeu. Assim,
o legado deixado pelos inúmeros conflitos armados permite-nos
entender que a superação do olhar moçambicano passa, entre ou-
144 tras áreas, pela educação como possibilidade de se alcançar inde-
pendência político-ideológica e a unidade nacional moçambicana.
No conjunto de ações estrategicamente elaboradas com o
intuito de promover a intervenção e o desenvolvimento do país,
encontramos uma cronologia historicamente definida, que muito

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


contribuiu para o legado educacional pós-independência e a for-
mação do pensamento africano. Assim, potencializou-se a estraté-
gia de ampliar a Alfabetização e Educação de Adultos no avanço
do acesso e da permanência das pessoas ao direito a uma edu-
cação escolar, conforme compromisso firmado no Plano de Ação
para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA) para o desenvol-
vimento produtivo do país e a formação humana das pessoas que
buscam transformação social de suas vidas.
No entanto, destacamos que a libertação do país e o des-
pertar para o nacionalismo moçambicano se fez em meio às dis-
putas e contradições vividas, de um lado, por grandes influências
e interferências internacionais – FMI, Banco Mundial, ONU, orga-
nizações internacionais – e de outro, movida por um grau de de-
pendência política que a torna prioridade nos acordos, ajustes e
compromissos firmados com organizações e países que destinam
recursos, doações e empréstimos para os programas e projetos
em educação, o que nem sempre significou a continuidade dos
trabalhos.
Em determinados momentos, podemos admitir os avanços
deixados no pós-colonialismo quando o país passou a ter clareza
de que a educação serve de instrumento para a elevação do grau
de cidadania das pessoas ao se reconhecerem como capazes de
fazer melhores escolhas em suas vidas – políticas, profissionais,
econômicas, culturais e sociais – em relação as atitudes, valores
e comportamentos; como na compreensão de que a mobilidade
social [no caso de redução da pobreza] ocorre com a aquisição
de habilidades e competências técnico-profissionais presentes nas
instituições de ensino.
Da mesma forma, é possível falarmos em retrocessos quando
os interesses na alfabetização conservaram [e ainda conservam] a
estrutura do sistema colonial, num formato mecanicista e de alie- 145
nação na leitura e na escrita em zonas de libertação; nas metodo-
logias de ensino pautadas no modelo tradicional, sem estabelecer
o diálogo; na falta de recursos básicos para a material didático;
na precária formação de professores que atuam na alfabetização;

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
além do número reduzido de docentes, contando com professo-
res voluntários sem auxílio entre outros.
Para garantir uma nova estrutura no sistema educação,
sobretudo, pelo governo de transição, a FRELIMO2 (Frente de
Libertação de Moçambique) mobilizou a sociedade para a cons-
trução de escolas, revisão dos currículos escolares face à ideologia
do sistema colonial – gestão das escolas, conteúdos escolares, mé-
todos de ensino e aprendizagem, materiais didáticos entre outros.
Convém lembrar que um dos aspectos desafiadores da FRELIMO
em relação ao novo projeto educacional concentrou-se tanto na
quantidade de professores como na qualidade dos docentes. Ou
seja, a formação dos educadores-alfabetizadores articulada com a
proposta político-pedagógica de educação nem sempre caminhou
dessa forma!
Destacamos os estudos de Intanquê e Subuhana (2018)
que apresentam as prioridades da FRELIMO para a educação de
Moçambique pós-independência, sobretudo, como perspectiva
para a formação das novas gerações. Dentre as prioridades tive-
mos:
[...] criar uma sociedade nova e um homem ‘novo’ com a
capacidade e mentalidade livre, capaz de ser independen-
te da ajuda estrangeira, organizar uma nova nação com o
sistema do Estado novo equiparada às nações modernas,
desenvolver uma economia com a base da agricultura e
indústria. Chegar a essas metas levaria Moçambique a se
tornar um país moderno com uma sociedade moderna.”
(p. 3)

O compromisso com a refundação histórica de uma edu-


cação política e cidadã serviu para o desenvolvimento sistemático
da nação e de uma democracia popular, à medida que a formação
146
2
Após longo período dura repressão e exploração étnica, reforçando ainda mais
a desigualdade entre os povos, surgiram grupos de luta pró-independência. São
eles: UDENAMO – União Democrática Nacional de Moçambique, MANU – Mo-
zambiqueAfricanNation Union, UNAMI – União Nacional Africana de Mocam-
bique Independente. Juntos, formaram em 25 de junho de 1962, a FRELIMO
– Frente de Libertação de Moçambique.

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


e o desenvolvimento humano estiveram assentados na mudança
de comportamento, em atitudes e valores em prol do sujeito críti-
co-reflexivo, emancipado e com capacidade de reconhecer-se, na
sociedade, como um sujeito de direitos.
No intuito de assegurar o crescimento, o país adotou estra-
tégias socialistas, a exemplo da socialização do campo e do meio
agrícola aos fazendeiros, a garantia do direito de acesso à educa-
ção pelo Estado, sobretudo, na tentativa de combate ao analfabe-
tismo e aumento da escolaridade entre o povo moçambicano. Ao
governo, coube a elaboração, organização, execução e implemen-
tação dessas políticas educacionais.
Em se tratando de direitos de acesso democrático à educa-
ção, o período pós-independência, em 1975, caminhou na direção
de ampliar as campanhas em prol da alfabetização e outros nos
níveis de escolaridade, com resultados considerados bem signifi-
cativos constatados no período entre 1975 a 1981 em que a redu-
ção da taxa de analfabetismo passou de 90% para 70%, em 1980.
Uma das iniciativas de garantia do exercício de direitos à
educação ocorreu no ano de 1973, com um Seminário Pedagó-
gico de preparação dos estudantes para a formação de um nova
concepção de Alfabetização e Educação de Adultos e, no âmbito
das políticas educacionais moçambicana, foi implementado o De-
creto-Lei 5/1973 no qual expressava que “o ensino destinado aos
adultos é equivalente a todos os níveis de ensino e às atividades
voltadas à formação profissional dos adultos: extensão cultural,
formação, aperfeiçoamento, atualização e especialização”. (Vieira,
2006, p.88)
Verificamos também que, após a independência de Moçam-
bique ocorreram os incentivos às iniciativas populares na criação
e construção de escolas bem como no aumento das campanhas
de Alfabetização e Educação de Adultos por grupos dinamizado- 147
res, organizações não-formais, também consideradas como “esco-
las do povo” por serem oposição ao modelo de escolas coloniais
e conservadoras, cuja centralização pertencia ao Estado. Ainda
nesse período, aconteceram movimentos em prol da orientação

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
política e pedagógica dos professores, a exemplo da realização do
Seminário Nacional de Alfabetização, em 1975 e, principalmen-
te, pela busca por um novo sistema educacional com mudanças
estruturais, políticas e pedagógicas. Entre as mudanças pedagó-
gicas, destacam-se a revisão dos métodos de ensino, a atualiza-
ção de conteúdos com a inclusão [por exemplo] de Geografia e
História nos currículos escolares numa perspectiva democrática e
popular de pensar as [novas] gerações pertencentes à sociedade
­moçambicana.
Em Intanquê e Subuhana (2018) vimos que no contexto da
educação moçambicana “as normas da política da educação con-
centraram-se na democratização do ensino e na sua articulação
com as políticas do desenvolvimento nacional e foi reafirmada a
importância da educação para o progresso econômico e social”.
(p.6)
Entretanto, algumas dificuldades pedagógicas entre os pro-
fessores e suas relações em sala de aula com os alunos configura-
ram-se como mais complexas, pois ainda insistiam na perpetuação
do sistema colonial, embora tenha sido criado logo no ano se-
guinte (1976) a Direção Nacional de Alfabetização e Educação de
Adultos (DNEA) para subsidiar questões dessa natureza, orien-
tando e controlando o sistema, sem envolvimento com a formação
dos professores em relação ao acompanhamento de suas práticas,
uma vez que eram os mesmos professores [em sua maioria] que
atuaram com resistência às mudanças no interior das salas de aula.
Na cronologia das ações dirigidas à Alfabetização e Educa-
ção de Adultos, Vieira (2006) nos mostra que em 1977 aconteceu
o III Congresso da FRELIMO, na qual a alfabetização foi consi-
derada prioritária entre as políticas de educação. Assim sendo, no
ano seguinte, tivemos a realização da “1ª Campanha Nacional
148 de Alfabetização” intitulada como “Fazer da Escola uma base para o
Povo tomar o Poder”, apresentada pelo Presidente Samora Machel.
Logo no ano seguinte (1978) cada província criou seus Centros
de Formação Acelerada de Trabalhadores (CFATs) cuja iniciati-
va de formação destinava-se aos que tivessem concluído a 4ª a

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


classe do ensino primário, ou que tivessem participado das Cam-
panhas de Alfabetização.
O caráter político e pedagógico tomou conta dos discursos e
práticas firmadas pela FRELIMO vistas nas propostas ligadas a for-
mação dos trabalhadores analfabetos e adultos em busca de pre-
paração e melhoria no trabalho e, principalmente, na vida social.
Nesse sentido, a educação moçambicana pôde contar com a
aprovação pela Assembleia Nacional Popular, em 1983, da organi-
zação do Sistema Nacional de Educação (SNE) distribuída numa
estrutura de quatro níveis: primário, secundário, médio e superior.
Complementada, então, por cinco subsistemas3: Educação geral,
Educação de adultos, Educação técnico-profissional, Educação de
professores e Educação superior. No entanto, destacamos o quan-
to o governo sofreu com as dificuldades financeiras para tornar
viável o acesso de todos, seja pela quantidade de escolas neces-
sárias, seja pela disponibilidade de professores em condições de
atendimento e com qualidade para implementar uma proposta
diferenciada e, portanto, humana, de educação e ensino.
A história nos mostra que Zimbábue (na época, Rodésia do
Sul) apoiada também pela África do Sul conseguiu desestabilizar
o governo FRELIMO com um movimento de resistência e opo-
sição, apoiados por diferentes setores da sociedade que se mos-
traram contra as políticas ideológicas do atual governo, gerando
um conflito armado com a deflagração da guerra civil travada
pelo grupo intitulado de RENAMO (Resistência Nacional de Mo-
çambique). Entre as consequências negativas e sofridas geradas,
a educação foi uma das áreas mais afetadas com o esvaziamento
de escolas, destruição de prédios e estruturas, uma vez que o país
passou por uma grave crise financeira e desestabilização econô-
mica com terras e aldeias que foram invadidas gerando muitas
mortes, além do êxodo do campo para a cidade ter forçado mi- 149
3
No Brasil, esses subsistemas podem ser entendidos como modalidades de edu-
cação e ensino, por se tratar de especificidades de uma educação com objetivos
sociopolíticos e educacionais, assim como possui um determinado público-alvo,
currículo específico e formação diferenciadas e próprias para atendimento.

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ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
lhares de pessoas a saírem para buscar refúgio e sobrevivência em
outros países.
Após intensos conflitos e resultados negativos para o de-
senvolvimento de Moçambique, em 1987, o país firmou compro-
misso com o Banco Mundial e ao FMI para a reforma do Estado
e das condições econômicas do país declaradas no Programa de
Reabilitação Econômica (PRE). No contexto de reestruturação,
permitiu-se, então, a entrada de programas de privatização, reper-
cutindo no corte de recursos, sobretudo, educacionais, entre as
diversas empresas estatais.
Dados mostram ainda que após o fim dos conflitos armados
e com o compromisso firmado, as escolas primárias e secundárias
foram restabelecidas tanto na infraestrutura como no aumento no
quadro de professores qualificados para essas escolas e, principal-
mente, na redução da evasão escolar e aumento da permanência4
na escola, o que valeu para a reorganização do sistema de Alfabe-
tização e Educação de Adultos.
A Direção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos
(DNAEA) foi integrada à Direção Nacional do Ensino Primário li-
gada ao Departamento de Alfabetização e Educação de Adultos,
nos idos de 1990. E, no ano seguinte, iniciou-se o “Programa de
Alfabetização em Línguas Moçambicanas”, pois um dos desafios
para tratar da redução da evasão escolar e erradicar o analfabe-
tismo passava pelo ensino das línguas faladas nas províncias que,
além de trabalharem forçosamente a Língua Portuguesa, desva-
lorizavam as referências étnicas nas diferentes línguas, a exemplo
das línguas sena, ndau, changana, emakua, nyadja, como parte do
“Projeto de educação Bilingue de Mulheres” (Nandja, 2004)
A promulgação de uma nova Constituição da República de
Moçambique, em 1990, pôs fim ao conflito armado e com a as-
150
4
Os estudos de Intanquê e Subuhana (2018) levantaram a questão do aumento
de meninas nos bancos escolares e da própria questão de gênero como um das
militâncias, sobretudo, dando ênfase a igualdade de direitos e oportunidades
para homens e mulheres no planejamento da política e nos planos estratégicos,
com destaque para o Plano intitulado como Estratégia do Gênero na Função
Pública, vigente entre os anos de 2009 a 2013.

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


sinatura do Acordo de Paz em 1992, o país passou a admitir a
organização de novos partidos políticos na disputa das eleições
– multipartidarismo – como uma das bases para efetivação da
democracia liberal.
Nesse período pós-guerra, diversas iniciativas foram inten-
sificadas para que a educação, por meio da alfabetização e a es-
colarização das pessoas, possibilitasse uma nova mentalidade da
população independente, autônoma e em condições de trabalhar
para a erradicação da pobreza e, diretamente, comprometida com
os avanços nos diversos setores da sociedade, sobretudo, na agri-
cultura e na indústria. Assim, foi criado o Instituto Nacional de
Educação de Adultos (INEA) com papel importante na formação
de profissionais para pesquisa, informação, documentação, pres-
tação de serviços e assistência técnico-pedagógica, sendo comple-
mentada pela Lei 6/1992 que definiu a educação de adultos no
âmbito do ensino regular, admitindo o ensino extra-escolar ao
reconhecer e valorizar as atividades de alfabetização, aperfeiçoa-
mento e atualização cultural e científica.
O avanço no pensamento de um ‘novo homem’ moçambica-
no livre das amarras da colonização, deveria estar acompanhado
de uma ‘nova concepção’ de Estado cujo pressuposto vem expres-
so nas palavras do Presidente Samora Machelda seguinte forma:
[...] os moçambicanos deveriam adquirir uma atitude cien-
tífica, aberta, livre de todos os pesos de superstição e tra-
dições dogmáticas. Deveria ser criada uma nova atitude de
mulher, emancipá-la na sua consciência e comportamento
e ao mesmo tempo inculcar no homem um novo compor-
tamento e mentalidade em relação à mulher. O desenvol-
vimento desse processo dependeria das novas gerações.
(INTANQUÊ E SUBUHANA, 2018, p.4)

A promulgação da Lei 6/1992 permitiu o aumento de or- 151


ganizações profissionais que se reuniram como Associações de
Educadores de Adultos para apoiar as iniciativas de Alfabetização
e Educação de Adultos. Nesse contexto de ampliação das forças,
em 1994, Maputo realizou o 1o Fórum Nacional sobre Educação

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
Não-Formal em parceria com o Ministério da Educação (MINED)
e a UNESCO.
Nesse período, a possibilidade de ampliação do diálogo
com organismos internacionais na educação permitiu ao Minis-
tério da Educação formular, em 1994, um plano-diretor para o
ensino geral e técnico com prioridades para a descentralização
da gestão das escolas, passando o controle para os governos das
províncias; inclusão das línguas locais e maternas nos materiais
didáticos utilizados nas escolas; implementação de métodos de
ensino e práticas pedagógicas condizentes às realidades das esco-
las, dos professores e dos estudantes e, por fim, incentivo ao setor
privado na organização do ensino moçambicano. (INTANQUÊ E
SUBUHANA, 2018)
No ano seguinte, o governo apresentou sua Política de
Educação, constituindo entre suas prioridades e estratégias para a
elaboração da Política Nacional de Educação (PNE) o apoio dado
pelos organismos internacionais na organização e na coordenação
de ações conjuntas. Logo na sequência, em 1997, o governo lança
o Plano Estratégico para o setor da Educação (PEE-I) vigente
entre os anos de 1999 a 2005 com destaques para as prioridades
contidas no PNE, considerando: a ampliação do acesso à educa-
ção, melhoria da qualidade e, por último, desenvolvimento das
escolas.
Uma das estratégias do PEE-I foi a criação do Movimento
de Educação para Todos (MEPT), em 1999; a recriação da Dire-
ção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos (DNAEA),
em 2000. Em paralelo, o Plano de Ação em Combate à Pobreza
Absoluta (PARPA), representou um importante documento que
marcou a Alfabetização e a Educação de Adultos como instru-
mento de desenvolvimento humano e elevação do grau de enten-
152 dimento sobre a sua própria cidadania, a partir da qualidade no
desenvolvimento sustentável do país, tanto nos aspectos políticos
e econômicos, quanto sociais.
Constatamos no relatório do PARPA que a pobreza em
Moçambique atingiu índices alarmantes de 70% da população

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


e, embora reconheçamos que a educação não pode ser tratada
como redentora da sociedade, admitimos que a falta [de educa-
ção] aprofunda ainda mais os desafios da economia para elevação
dos níveis de pobreza.
Desse modo, a Alfabetização e a Educação de Adultos de-
monstraram o quanto precisavam avançar em situações básicas
para garantir a participação na frequência dos alunos nas salas
de aula, como: a revisão das práticas teóricas e metodologias uti-
lizadas pelos docentes, tornando-a mais próxima dos alunos e
privilegiasse o diálogo; a valorização das línguas das províncias
que resistiam à Língua Portuguesa, como própria do colonizador
português, reconhecendo a alfabetização como um conjunto de
elementos pedagógicos, culturais, sociais [entre outros] que dão
ênfase ao aprender a leitura e a escrita como uma prática social,
política e transformadora; a implementação de programas que as-
segurem o diagnóstico, acompanhamento e avaliação dos progra-
mas; a inclusão de materiais didáticos considerados básicos para
efetivar a aprendizagem na alfabetização e, por último e tão im-
portante, a intensificação de esforços na formação continuada dos
professores alfabetizadores com atuação na educação de adultos
na cidade e no meio rural e, principalmente, garantir efetividade
no trabalho voluntário que tende a ser descontinuado à medida
que não são remunerados. (VIEIRA, 2006)
No contexto moçambicano atual, a educação enfrenta sé-
rios desafios quanto ao acesso reduzido de escolas em face da
quantidade de pessoas em idade escolar, ou seja, há menos es-
colas e mais contingente de estudantes. A questão da oferta de
escolas incompatível com a procura entre as pessoas com idade
regular merece destaque em nossas discussões, uma vez que a
situação se acentua ainda mais entre os que deixaram os estudos
e buscam (re)ingressar nos bancos escolares como “passaporte” 153
para a obtenção do reconhecimento de sua cidadania plena.
Os dados atuais do IBGE (2016) constatam a necessidade
de investimentos para a melhoria do quadro de desenvolvimento
educacional do país, à medida que em um dos indicadores sociais

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
dos países africanos que fundamentam o estudo, ou seja, a taxa de
alfabetizados entre as pessoas com 15 anos ou mais idade mostra
o seguinte:

Angola 71,2 %
Cabo Verde 88,5 %
Guiné-Bissau 59,8 %
Moçambique 58,8 %
São Tome e Príncipe 91,7 %
Timor Leste 95,2 %
Brasil 92,6 %
Fonte: IBGE – 2016

Os estudos mais recentes de Intanquê e Subuhana (2018)


mostram duas grandes questões impostas à educação moçambica-
na que são: a questão da qualidade do ensino primário e a questão
da expansão do ensino pós-primário. Isso demonstra que a quan-
tidade reduzida de escolas compatível com a população em idade
escolar torna o processo ainda mais difícil de desenvolvimento e
produtividade do país, pois ainda se constatam dados nos quais
os adultos não-escolarizados reproduzem a pobreza pela falta de
qualificação e as precárias condições de trabalho, seja na indús-
tria, agricultura, comércio e tantos outros setores.
O que há de grave nessas condições de falta de acesso ao
aparelho institucional do Estado é a constatação do que Castel
(2013) irá nos revelar como pessoas inseridas numa categoria
classificada como sobrantes. A partir das condições desiguais de
atendimento às pessoas que, economicamente, não estão inte-
gradas aos circuitos produtivos de proteção salarial, social e de
seguridade do trabalho e passam a estabelecer relações de inter-
154 dependência com as instituições assistenciais5.

5
Castel (2013) de forma muito dura apresenta em seus estudos sobre a questão
da exclusão social e da desigualdade, a constatação de três categorias: 1. Desesta-
bilização dos estáveis, aos que deixam de exercer funções até então consideradas
estáveis e conhecidas. 2. A instalação na precariedade, em que considera de tra-

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


Por outro lado, há um esforço conjunto de diversas inicia-
tivas da sociedade civil em promover o alcance do desenvolvi-
mento da educação no país, a exemplo das parcerias e entrada
de organismos internacionais, projetos de alfabetização e edu-
cação de adultos por grupos e movimentos sociais, instituições
não-formais, organizações religiosas, instituições de Ensino Supe-
rior6 que buscam como alternativa possível garantir conhecimen-
tos e conteúdos necessários à cidadania entre as comunidades de
aprendizagem.
Nessa perspectiva, é sempre bom recorrermos a Boaventura
de Souza Santos que nos lembra que o princípio da igualdade
consiste em reconhecermos que “temos direito a ser iguais quan-
do a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes
quando a igualdade nos descaracteriza”. (SANTOS, 1996, p.3)
Estamos diante de espaços-tempos não-escolares diferen-
ciados, em favor da busca por uma educação possível e necessá-
ria àqueles considerados, a priori, invisíveis aos olhos comuns de
um mundo desigual. Dessa forma, ter acesso a um conhecimento
letrado [quase sempre] representa ser e estar incluído na socie-
dade. Por isso, recorremos às experiências nos espaços-tempos
em instituições não-formais para uma aproximação inicial e diá-
logo entre os que firmam o compromisso ético-político de incluir
àqueles que, em muitos casos, são reconhecidos como subcida-
dãos ou excluídos socialmente do mundo.

As ‘comunidades de aprendizagem’ como locus da


segunda chance

Nossa proposta de estudos segue fundamentada no que,


historicamente, conhecemos sobre a Alfabetização e Educação
de Adultos ao reconhecermos as diferentes práticas pedagógi- 155
balho flexível pelas condições de trabalho impostas, seja pela falta de escolari-
zação ou opções de trabalho. 3. Sobrantes como sendo “as pessoas que não têm
lugar na sociedade, que não são integrados, e talvez não sejam integráveis no
sentido forte da palavra a ela atribuído”. (p.302)
6
A exemplo da Universidade Pedagógica – UF, em Maputo/MZ.

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
cas decorrentes de múltiplas experiências vividas por esses su-
jeitos que buscam os espaços-tempos não-formais ou ambientes
de aprendizagem nos quais denominamos de comunidades de
­aprendizagem.
Ao falarmos das comunidades de aprendizagem nos refe-
rimos aos espaços-tempos não-formais em que ocorrem a apren-
dizagem ou as aprendizagens, cujo as políticas de educação não
alcançam efetividade. No caso dos espaços-tempos não-formais,
nos apoiamos em Gadotti (2003) que define educação não-for-
mal e, de forma relacionada ao conceito, damos sentido para as
comunidades de aprendizagem dizendo que estão vinculadas às “or-
ganizações não-governamentais, partidos políticos, igrejas etc.,
geralmente organizadas onde o Estado se omitiu e muitas vezes
organizada em oposição à educação de adultos oficial”. (p.30)
Evidentemente, a nossa preocupação está voltada para a
Alfabetização e Educação de Adultos em Moçambique e, o que
nos chama atenção é a presença de organismos internacionais e
entidades da sociedade civil de proposição educacional que bus-
cam nas brechas políticas, econômicas e, sobretudo, educacionais,
recuperar os efeitos negativos deixados pelos conflitos armados
pelo processo de libertação dos povos. Dessa forma, o que se
coloca na relação entre a educação e ao desenvolvimento huma-
no é a condição imposta de negação da cidadania das pessoas
pouco escolarizadas ou analfabetas, o que as impede de perceber
o quanto a pobreza é a causa para se manter a dominação e a
opressão social.
Concordamos com Vieira (2006) ao afirmar que
[...] a causa da pobreza não é o analfabetismo, o efeito
da pobreza é o analfabetismo, pois a pobreza inviabili-
za inclusive a busca por direitos não apenas de acesso à
156 educação, mas aos bens culturais, sociais e políticos, o que
inclui o acesso aos bens produzidos e não distribuídos
socialmente”. (p.141)

Em torno dessas afirmações, consideramos que o desen-


volvimento humano está articulado às múltiplas determinações

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


que envolvem o quadro social, juntamente com a educação, a saú-
de, a segurança, o trabalho entre tantos outros fatores que, direta
e indiretamente, são fundamentais para distinguirmos a alfabeti-
zação e a pobreza.
Assim, o não-conhecimento da cultura letrada e, por con-
seguinte, a não-apropriação do sentido interpretativo e reflexivo
dos textos, frases, sílabas e palavras, assim como dos números vai
além da grafia e da falta de acesso aos conhecimentos livrescos,
escolares e intelectuais, pois afeta a uma cidadania [produzida]
com a perda e a privação dos conteúdos socioculturais, políticos,
éticos, da pessoa [humana].
Em função disso, observamos na realidade histórica de
Moçambique a disseminação de comunidades de aprendizagem
presentes na forma de uma educação não-formal, que inclui as
organizações nacionais e internacionais, com apoio do FMI, Ban-
co Mundial, UNESCO, além de projetos com fins religiosos, sem
fins lucrativos, experiências com a sociedade civil, movimentos
sociais, em prol da recuperação da escolarização e da formação
humana das pessoas. Essas alternativas de promoção da aprendi-
zagem representam uma ampliação no acesso a cultura letrada e,
por fim, a uma alfabetização como prática social.
Com esse argumento, destacamos a resistência dos movi-
mentos sociais, das associações, fóruns de pesquisa, pesquisado-
res, docentes e ações educativas em lutar pela Alfabetização e
Educação Adultos, insistindo na superação do olhar de ‘subsetor’
das políticas para compor as pautas das discussões acerca das po-
líticas públicas de educação.
Pressupomos que a falta de políticas públicas para erradica-
ção do analfabetismo no país, somada com a precariedade do en-
sino formal e da dificuldade de minimizar a distorção idade-ano
de escolaridade (idade-série), reforçam ainda mais a dependência 157
moçambicana aos interesses internacionais.
Nesse debate em prol dos povos moçambicanos localizados
em províncias ou aldeias tradicionais, principalmente, nas áreas
rurais e províncias afastadas dos centros urbanos, interrogamos

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
a questão do ser adulto e das determinações que integram essa
concepção. E, nesse entendimento, fomos surpreendidos com
uma abordagem centrada na dimensão cultural que determina a
pessoa-adulta não pela idade cronológica ou tempo de vida, mas
pelo reconhecimento do ser adulto com base no passado e nas ex-
periências vividas entre os sujeitos nos ritos sagrados das aldeias
e das comunidades.
Na prática, queremos mostrar que ter contato com rituais
sagrados e segredos difundidos entre os saberes comunitários, as-
sim como trabalhar nas minas da África ou participar dos “rituais
de passagem”acumulando experiências com a ancestralidade nas
comunidades e aldeias, indicam àqueles considerados “homens”
entre os seus grupos sociais.
Dessa maneira, pela cultura moçambicana a pessoa pode
ser considerada adulta com menos de 20 anos, por exemplo, ou
adquirir o status de adulta com mais idade, embora a idade cro-
nológica dê condições de ser considerada um sujeito adulto.
No caso das “mulheres”, principalmente, essa relação dá
ênfase as tradições para que seja tutelada. Em outras palavras, se
for mãe a cultura lhe reserva um tipo de comportamento e, em
caso de não ser mãe, conserva o estatuto de criança respeitando
também as manifestações dessa categoria. Ou seja, as diferentes
fases nos processos de ritualização podem variar de acordo com a
situação e nível de cada mulher. (Vieira, 2006)
Nesse contexto, os dados mostram que a temática da Al-
fabetização e Educação de Adultos está relacionada mais direta-
mente com as mulheres que pouco permanecem na escola ou não
dão continuidade aos estudos aumentando os índices de analfa-
betismo em Moçambique, onde revelam que 44,9% de pessoas
analfabetas são adolescentes e jovens de 15 a 19 anos e também
158 idosos. Entre o percentual de adolescentes, jovens e idosos, a
maioria é composta de mulheres. (www.ibge.gov.br)
Além disso, vale destacar também que até 2016, um dos
desafios das políticas de educação no país consistia em atrair os
homens para as salas de aula, uma vez que a presença de mulhe-

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


res inibe a frequência dos homens na escola que desistem mais
rapidamente de permanecer nos estudos por sentir-se envergo-
nhados de sentar nos bancos escolares e dividir as salas de aula
com as mulheres. (www.dw.com)
Estamos certos de que o ser adulto, seja homem ou mulher,
está ligado ao rompimento do restrito olhar que relaciona a po-
breza com a falta de desenvolvimento educacional para a com-
preensão da pobreza enquanto condição imposta e de interesse
econômico e financeiro de muitos organismos internacionais be-
neficiados pelos recursos mundiais.

Considerações finais

No limite do texto, cumprimos nosso papel de aproximação


e diálogo com a Alfabetização e Educação de Adultos, conside-
rando os aspectos teóricos da literatura moçambicana em suas
dimensões históricas, sociais, políticas e, sobretudo, educacionais.
Com a análise, vimos o desafio moçambicano de ampliação
da Alfabetização e Educação de Adultos, sobretudo, com estraté-
gias de redução do número de moçambicanos sem escolaridade
condizente para a produtividade e para o desenvolvimento do
país.
Das nossas discussões, duas questões fizeram parte do es-
tudo: a primeira, reveladora de práticas pedagógicas exercidas em
salas de aula que reforçam e repetem o sistema colonizador e não
asseguram formas diferenciadas e decolonizadoras de pensar e
fazer as ações didáticas nos espaços-tempos de aprendizagem. E
a segunda, que nos aponta para do uso da língua do colonizador,
ou seja, a língua portuguesa como nacional, afastando todas as
demais línguas utilizadas em províncias e aldeias fora dos cen-
tros urbanos e, portanto, nas áreas afastadas do país como nas 159
zonas rurais, onde concentra-se maior número de analfabetos ou
­subescolarizados.
Resultado da desigualdade linguística e das dificuldades
encontradas no processo ensino-aprendizagem, a Alfabetização e

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
Educação de Adultos carregam, em si, a dualidade estrutural da
língua que se torna determinante em algumas províncias, desca-
racterizando toda a base de uma cultura local.
No entanto, reconhecemos que o processo de libertação do
país não se deu tão somente por decreto ou no papel, mas por
uma questão cultural em que o uso da língua padrão e efetiva-
mente, passa por opções políticas. Mas ainda é um árduo desafio a
ser enfrentado, pois os grupos étnicos marcados por suas histórias
de colonização resistem à dominação da língua portuguesa e nas
salas de aula os reflexos são vistos com as dificuldades na alfabe-
tização e no ensino destinado aos adultos.
A interessante experiência de Paulo Freire7 nos países de
África, a exemplo de Guiné-Bissau nos fala sobre a tentativa [sem
êxito] de compreender a Alfabetização e Educação de Adultos
utilizando [forçosamente] a língua portuguesa como determinan-
te no processo ensino-aprendizagem. Nesse caso, a resposta dada
por Freire e Guimarães (2003) revela o seguinte:
Essa experiência eu acho que foi muito boa, na medida
em que ela ensinou o óbvio, quer dizer: que não era pos-
sível fazer o ensino da língua portuguesa nas zonas rurais
do país. Eu estava dizendo, na hora do almoço, que eu
assisti, em diferentes oportunidades, camponeses criando
palavras a partir da palavra portuguesa. E eles no fundo
estavam criando palavras em sua língua nacional, com a
ortografia portuguesa, o que demonstrou, durante um ano
todo, a impossibilidade do aprendizado em língua portu-
guesa, uma língua que não faz parte da prática social do
povo, uma língua estrangeira. (p.33)

Na concepção pedagógica das comunidades de aprendiza-


gem, objeto de estudos, destacamos que os espaços não-formais
160 de ensino e aprendizagem buscam, nas brechas e na falta de ga-
rantia de direitos a ter direito a uma educação, escolarizar pesso-

7
Sobre a questão de trazermos Guiné-Bissau, Paulo Freire destaca que não foi
convidado para ir a Moçambique desenvolver seus estudos, como feito em alguns
países de África, a exemplo de Angola, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau.

LUÍS CARLOS FERREIRA • GERANILDE COSTA E SILVA


as e promover a formação humana aliada aos conhecimentos da
leitura e da escrita.
A relação entre as comunidades de aprendizagem com o
papel do Estado em Moçambique, passa por uma dependência
com instituições públicas e privadas no mundo, gerada pelos di-
ferentes convênios e parcerias com organizações internacionais
que apoiam, doam, financiam e participam dos projetos de escola-
rização tanto de crianças como dos que não conseguiram alcançar
no período escolar.
Nesse contexto, temos registros de fortes influências e in-
terferências nos rumos econômicos, sociais e, no que nos inte-
ressa, educacionais. A exemplo do FMI, Banco Mundial, ONU,
UNESCO, além das Organizações Não-Governamentais, as comu-
nidades religiosas, organismos de paz e instituições da sociedade
civil mundial.
A história de Moçambique passa pela luta intensa e pela re-
sistência de sua população por emancipação e libertação política
e ideológica. Numa perspectiva nacionalista e pós-independência,
vemos que a ampliação da educação moçambicana faz parte da
estratégia de desenvolvimento e produtividade, além de estar li-
gada ao Acordo de Paz e compromisso firmado no Plano de Ação
para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA).
Vimos que a tomada da FRELIMO frente à formação das
novas gerações, pós-guerra, marcaram todo o projeto educacio-
nal moçambicano, com perspectivas democráticas de formação e
crescimento pela refundação de uma ‘nova sociedade’. Assim, di-
versas iniciativas vêm sendo promovidas no sentido de combater
o analfabetismo e aumentar a escolaridade do povo moçambi-
cano, a exemplo do ativismo dos movimentos de campanhas em
prol da Alfabetização e Educação de Adultos por diversos grupos,
em contraposição ao sistema colonial e estrutura conservadora de 161
manutenção do regime instituído.
O analfabetismo enquanto efeito historicamente produzido
pela pobreza no país se mantém, não garantindo acesso à educa-
ção formal do povo moçambicano nas instituições de ensino em

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
quantidade compatível com a demanda da população em idade e
situação escolar. Ou seja, o acesso ao bem cultural da humanida-
de pela aprendizagem da língua falada e escrita é o que poten-
cializa o desenvolvimento humano: no aumento da expectativa
de vida quando conscientiza as pessoas para um comportamento
humanizado, autônomo e emancipador na tomada de decisões e
nos rumos solidários da vida planetária; no crescimento da pro-
dutividade econômica (PIB8) ao retirar o país da carência mate-
rial e possibilitar aumento de renda e poder de consumo, dentre
tantas estratégias político-econômicas de reduzir a a desigualdade
entre as classes sociais.
No caso da reestruturação de Moçambique, os esforços no
campo da educação têm efeitos sobre a qualificação de profes-
sores e ampliação da oferta de alfabetização como impulso para
resolver os problemas sociais do país.
Assim, entendemos que a qualidade do ensino e suas mar-
cas teórico-metodológicas nas salas de aula trabalhadas pelos
professores, influenciam diretamente no processo ensino e apren-
dizagem. Com isso, esperamos cada vez mais que a educação pro-
blematizadora, inspirada no pensamento freireano, seja recorren-
te nas práticas pedagógicas e entre os mecanismos de apropriação
de conhecimento que seja capaz de romper ou possibilitar a cisão
entre a ingenuidade e a consciência crítico-reflexiva.

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8
Produto Interno Bruto

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163

ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE:


ASPECTOS DA FORMAÇÃO HUMANA ENTRE AS “COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM”
SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E
ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE

Sabino Tobana Intanquê


Bacharel em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lu-
sofonia Afro Brasileira – UNILAB. Cidade de Acarape. Estado do Ceará.
E-mail: sabinosabinotobana@hotmail.com

Carlos Subuhana
Doutor em Serviço Social (PPGSS/ESS/UFRJ); Pós-doutor em Antropologia
(DA/USP); Professor Adjunto (UNILAB). Cidade de Redenção. Estado do Ceará.
E-mail: subuhana@unilab.edu.br
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o sistema educativo de
Moçambique durante a vigência do colonialismo português, este traba-
lho ainda visa compreender os mecanismos utilizados pelos colonizado-
res portugueses no processo da dominação no país. A principal questão
teórica abordada neste trabalho é a educação, que engloba os processos
de ensinar e aprender e ocorre em qualquer sociedade e grupos. A me-
todologia usada durante a pesquisa para a elaboração deste trabalho
foi fundamentada, basicamente, na pesquisa bibliográfica. Conclui-se, a
partir do estudo, que a educação colonial em Moçambique em todas as
suas vertentes, não possibilitou a tomada de consciência e emancipação
do povo moçambicano, e a sua lógica era capacitar os moçambicanos
para servirem a demanda colonial.
Palavras-chave: Moçambique, educação; colonização.

ABSTRACT
This study aims to examine the educational system of Mozambique
during the period of portuguese colonialism, it seeks also to understand
the methods used by the portuguese in the process of domination of
this country. The main theoretical issue addressed in this work is edu-
cation, which encompasses the teaching and learning processes in any
Society and group. The research methodology used in this study is the
bibliographical research. On this basis, we conclude that the colonial ed-
ucation in Mozambique not enabled, in all its aspects, the awareness and
emancipation of the Mozambican people, but it was merely ideological
and used to make them serve the colonial demand.
Keywords: Mozambique, education; colonization.

166

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


INTRODUÇÃO

N este trabalho o nosso interesse é descrever e discutir


como se implementou o sistema de ensino colonial em Moçam-
bique, principalmente abordar as formas utilizados pelos coloni-
zadores portugueses no processo da educação em Moçambique.
Acreditamos que se trata de um trabalho de extrema importância,
principalmente no que diz respeito à produção de conhecimento
científico e à formação de recursos humanos, pois é por meio da
educação que podemos mudar uma sociedade.
Na primeira parte deste trabalho, propomos enfatizar de
forma concreta as ideias sobre herança colonial da educação em
Moçambique, ou seja, a forma como o país passou a adquirir um
tipo da educação de maneira orquestrada e planejada pelos colo-
nizadores portugueses para aniquilar os valores do próprio povo
moçambicano; na segunda parte, discutimos a questão referente à
situação da educação em Moçambique na era colonial, que de cer-
ta forma era ‘precária’, onde a maioria da população moçambicana
não tinha acesso à educação; na terceira parte, a nossa intenção é
de salientar a forma como o sistema de ensino era estruturado na
era colonial, de igual modo assinalar as formas como os currículos
escolares eram divididos; na quarta parte deste trabalho, damos
mais atenção no que se refere à influência da educação colonial
portuguesa em Moçambique; na quinta e última parte, o nosso
interesse é de descrever as formas como os colonizadores por-
tugueses implementaram as políticas públicas educacionais, de
igual modo tentar refletir de maneira a tentar perceber qual era a
finalidade das políticas públicas na era colonial.
167
A educação é problematizada por vários autores, mas, as
abordagens de Machava (2015), de Piletti (1996) e de Bolacha
(2013), serviram-nos de suporte teórico conceitual para melhor
abordarmos o assunto.

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


Segundo Machava (2015), a educação é um fenômeno mui-
to antigo, assim como a própria aventura da humanidade, daí que
sempre que se fala do ser humano está subjacente uma forma de
ver, de interpretar a realidade e de projetar o futuro. Grandes
civilizações que marcaram a história do passado, a chinesa, grega,
latina, egípcia, só para ilustrar, não tiveram escolas, pois, apesar de
já possuírem a escrita, a divisão social do trabalho não havia ainda
atingido um nível de complexidade que demandasse maior racio-
nalidade na transmissão de conhecimentos, aptidões, atitudes e
valores específicos para o exercício profissional.
Piletti (1996) afirma também que a educação é um meio
de escravidão e ao mesmo tempo de libertação e ninguém pode
escapar destes dois meios como também ninguém pode escapar
do nascimento e da morte, ainda para autor, a educação é um
processo que ocorre universalmente.
Bolacha (2013), por sua vez, diz que a educação é um pro-
cesso que vai influenciar o modo de ser, de pensar, de sentir e
agir. Ela não é repetição de algumas informações estruturadas
num manual. A educação fundamenta-se na aquisição de estra-
tégias, conhecimentos, valores, habilidades que nos tornam mais
humanos, cidadãos ativos de uma sociedade complexa.
A metodologia usada durante a pesquisa para a elaboração
deste trabalho foi fundamentada, basicamente, na pesquisa bi-
bliográfica. Segundo Gil (2008), a pesquisa bibliográfica é feita
a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e
publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos
científicos e páginas de web sites.
De acordo com Gil, os exemplos mais característicos desse
tipo de pesquisa são investigações sobre ideologias ou aquelas
que se propõem a análise das diversas posições acerca de um pro-
168 blema. (Gil, 2008, apud Gerhardt& Silveira, 2009).

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


Figura 1 – Mapa de Moçambique

Fonte: Google, 2019.


169
Contextualização geográfica

Moçambique, um dos estados mais importantes da África


Austral está localizado na costa oriental da zona austral do con-

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


tinente africano. Este país está definido entre os paralelos 10o
27’ e 26o 52’ de latitude sul e os meridianos 30o 12’ e 40o 51’
de longitude leste, ao sul do Equador. O território moçambicano
tem uma extensão de costa de cerca de 2.4701 quilômetros, ba-
nhada pelo oceano Índico, desde a foz do rio Rovuma ao norte, à
Ponta do Ouro ao sul. Tem a sua menor largura interior na zona
centro-norte (a costa de Naamacha a Catembe, Alto Farol) com
cerca de 47,5 quilômetros e a maior largura interior na costa que
vai da península de Mossuril até à confluência do rio Aruângua
com o rio Zambeze. A superfície é de 799.380 quilômetros qua-
drados (786.380 para terra firme e 13.000 de águas interiores). A
configuração física do território condicionou a luta de libertação
nacional, pois dificultou a ligação entre as suas várias partes. (PÉ-
LISSIER, 2000 apud CAMBINDA, 2014)

Herança colonial da educação em Moçambique

Na era colonial, a maioria dos africanos que viviam nas co-


lônias não tinha a possibilidade de ingressar no sistema da educa-
ção básica e secundária, não lhes era permitido se matricular nas
escolas que os brancos e assimilados frequentavam. Existia uma
enorme diferença entre escolas de nativos e escolas de brancos e
assimilados, na escola dos nativos, se ministrava a chamada edu-
cação indígena e estas escolas eram orientadas pelos missionários,
de preferência católicos. O Estado ou os institutos privados admi-
nistravam as escolas dos brancos e assimilados.
De acordo com Basílio (2010), para educação dos jo-
vens, o sistema colonial formou um tipo de sistema alternativo
de educação que é muito parecido com a educação tradicio-
nal, isso foi no ano de 1980 e este sistema de ensino seguia as
170 normas e tendências do sistema estatal do ensino europeu mo-
derno. Este sistema de ensino tinha como objetivo formar uma
mão-de-obra barata e alfabetizada com o intuito de atender as
demandas das relações coloniais e manter uma dominação neste
território. Desta forma, em Moçambique, a educação colonial ba-

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


seava-se em ensinar aos nativos moçambicanos a leitura, escrita
e contagem.
Pode-se perceber que esta educação que os colonizadores
propunham, na altura, não levaria os moçambicanos a terem uma
consciência de que estavam sendo explorados, quer dizer não
lhes era permitido por meio desta educação fazer uma reflexão
do contexto em que eles mesmos estavam inseridos, pois eram
preparados para se inserirem no mercado de trabalho capitalista
de forma exploratória.
Mazula (1995) afirma que nas zonas onde se encontravam
numerosas populações da colônia, principalmente nas zonas ru-
rais, as missões religiosas eram encarregadas do ensino e para
que funcionassem essas escolas, o Estado português repassava
recursos para as missões e assim sendo, o sistema de ensino das
missões era oficial. Segundo o ato colonial de 1930, as crianças
africanas seriam educadas inicialmente em um ‘sistema de edu-
cação rudimentar’, que era uma educação simples. Em 1962 esta
educação passou a ser chamada de ‘ensino de adaptação’,com uma
duração de três anos, após os quais, automaticamente, as crianças
com menos de treze anos de idade eram aceitas para ingressarem
no ‘sistemaformal da educação primária’ por três anos, nos quais
estes alunos se preparavam para poder ingressar no ensino secun-
dário, denominado liceu.
Basílio (2010), enfatizou ainda que no ano de 1845, o
governo português começou a fazer regulamentação do ensino,
criando escolas públicas nas colônias e o governo colonial criou
uma estrutura de ensino seguindo as normas da organização do
ensino ministrado por entidades religiosas. No mesmo período, o
governo fez a divisão do ensino em dois modelos: ensino indíge-
na e ensino oficial, reservado para filhos de colonos assim como
para assimilados. O ensino estabelecido na altura tinha caráter 171
separatista, quer dizer, os currículos do sistema de ensino eram
diferentes, havendo um currículo para indígenas, com conteúdo
direcionado para área do trabalho manual, ou seja, educar os in-
dígenas para que estes pudessem ter uma certa competência para

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


desempenhar trabalhos manuais, enquanto que o currículo oficial
tinha conteúdo que visava a formação dos indivíduos socialmente
capazes de autocrítica e formação cidadã para que estes pudessem
ter a capacidade de socialização dos valores culturais.
Desta forma, podemos apontar que o ensino destinado aos
indígenas na altura, ou melhor para os moçambicanos não passa-
va de uma apreensão mental, dominação ou melhor, uma explo-
ração do homem pelo homem.
De acordo com Subuhana (2005), em 1954 apenas três mil
(3.000) de cento e oitenta mil (180.000) alunos matriculados no
sistema de educação rudimentar fez a prova de aceitação, mas só
dois mil e quinhentos (2.500) destes alunos conseguiram apro-
vação. O sistema de educação para os filhos dos colonizadores
europeus e assimilados era estruturado da seguinte maneira: as
crianças europeias e assimiladas começavam a estudar de uma
forma direta através do ensino primário com a duração de quatro
anos e possibilitava-lhes entrar no ensino secundário, liceu. Desta
forma, pode-se afirmar que a educação em Moçambique na era
da colonização estava estruturada em três momentos: educação
rudimentar destinada principalmente aos africanos, que abrangia
o ensino primário e secundário, em seguida o ensino técnico, que
era ministrado nas escolas de artes e ofícios e por último as esco-
las comerciais e industriais que estabeleciam o fim da educação
formal.
A maneira como era composto ou como funcionava este sis-
tema de educação, impedia várias pessoas que viviam na colônia,
diríamos, a maioria, de entrar na escola, o que originou a elevada
taxa de analfabetismo em língua portuguesa. Na década de seten-
ta, poucos anos faltando para a independência, 90% da população
da colônia era analfabeta. O sistema colonial usava uma política
172 no sistema de ensino que era de diferenciar as pessoas que viviam
na metrópole das que viviam na colônia. As pessoas que viviam na
colônia tinham certos limites para ingressar na educação e ainda
por cima era um esforço para ingressar em escolas que lhes in-
culcavam a noção da importância da metrópole, desta forma, os

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


raros alunos africanos que conseguiam acesso a esta educação,
eram tirados do que se chamava de ‘estado selvagem’ para uma
‘civilização’, segundo o ideário destas escolas metropolitanas, im-
buídas da grande arrogância da cultura portuguesa quanto à reli-
gião cristã e ao trabalho, enquanto que as escolas que os africanos
frequentavam, eram constituídas em função do aproveitamento
econômico e da religião da metrópole.
Até a década de sessenta Portugal não tinha priorização
em expandir o sistema de educação na colônia. De acordo com
Mondlane (1995), apudsubuhana, (2005), no ano de 1963 havia
trezentos e onze escolas (311) primárias em Moçambique e estas
escolas tinham vinte e cinco mil e setecentos e quarenta e dois
(25.742) alunos e só 20% destes alunos eram africanos e no ensi-
no secundário, em 1963, os alunos africanos tinham ainda menor
percentagem, o que significava 6% dos três mil (3.000) alunos
matriculados. De igual modo, o sistema educacional não chegava
em várias regiões de Moçambique e existia irregularidade na dis-
tribuição das escolas, pois muitas escolas eram concentradas nos
distritos de Inhambane e Lourenço Marques, no sul de Moçambi-
que. Quando os movimentos independentistas reagiram, nos anos
de 1960, o governo português foi levado a investir e disponibili-
zar os recursos para a educação.
De acordo com Subuhana (2005), no ano de 1962, foram
lançadas as bases para a fundação da primeira Universidade da
Província de Moçambique, instituição que em 1968 ascendeu ao
estatuto de Universidade de Lourenço Marques e de 1976 até à
atualidade passou a ser chamada de Universidade Eduardo Mon-
dlane. Os esforços dos movimentos independentistas deram aos
africanos a possibilidade de ter acesso à escola, pois estas pesso-
as tinham muita dificuldade para ingressar na escola, devido às
seguintes razões: as escolas custavam muito e até as escolas da 173
educação rudimentar eram cobradas, os alunos pagavam os estu-
dos prestando alguns serviços na escola. As práticas que o sistema
colonial impôs aos africanos levou a educação tradicional, que as
famílias e comunidades praticavam, a não se tornar uma regra,

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


de igual modo aconteceu com a educação colonial, que levou a
educação tradicional a sofrer um abalo, em virtude dos novos
valores que foram trazidos através da luta de libertação, mas em
última instância, estes valores foram também os valores culturais
do povo de Moçambique.

Educação: a situação da educação moçambicana na


época colonial.

Mondlane, (1995), apudSubuhana, (2005), salientou que


os europeus e os americanos sempre tiveram o hábito de conce-
ber todo pensamento humano como proveniente do espírito co-
lonial. Em particular a África, à qual nunca foi atribuída qualquer
contribuição para o desenvolvimento humano, sempre foi olhada
como fechada e completamente atrasada, tendo sido trazida para
a corrente do desenvolvimento em virtude da invasão europeia.
Nas terras que os portugueses colonizaram, a educação para
os nativos africanos tinha dois objetivos: educar uma população
que atuaria como mediadora entre Portugal e a colônia e colocar
no africano educado por eles a atitude de submissão à coloniza-
ção. As escolas para os africanos eram um meio de alargamento da
língua portuguesa e de sua cultura, a ideologia dos colonizadores
portugueses era a disponibilidade de um mecanismo para educar
os africanos para que falassem uma só língua, que é a língua por-
tuguesa e aceitassem o cristianismo com todo o amor e igualmen-
te para fazê-los agir de maneira nacionalista, como os portugueses
que viviam na metrópole.
Para poder atingir os seus objetivos, o governo de Portugal
fez um decreto que salientava que toda a população deveria falar
só a língua portuguesa e essa língua deveria ser ensinada nas
174 escolas africanas, as línguas africanas seriam usadas como meios
facilitadores para o ensino da língua portuguesa. Com o decor-
rer do tempo, os colonialistas portugueses conseguiram atingir
os seus objetivos e alguns africanos começaram a desrespeitar
suas próprias línguas, culturas e tradições. Por outro lado, estas

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


pessoas não sabiam ler e escrever a língua portuguesa de uma
boa forma, porque não foram ensinadas para ter essa habilidade.
Chegando à conclusão de que para atingir a unidade po-
lítica, deve-se passar pela unidade moral, a religião passou a ter
uma enorme importância na educação dos africanos. Entre as re-
ligiões existentes na altura, a constituição de Portugal mencionava
o catolicismo como a religião preferida, a transmissão da religião
católica na África foi encorajada por Salazar e onde as missões ca-
tólicas foram estabelecidas, predominou privilegiadamente entre
as outras religiões, como plataforma para estabelecer o catolicis-
mo como religião nacional e meio específico para a ‘civilização’.

Sistema de ensino

As normas do ensino nos países que os portugueses colo-


nizaram, segundo Subuhana (2005), foram estabelecidas a partir
da década de 1930, por meio da promulgação da Lei n. 238, de
15 de maio de 1930.
Havia duas camadas no sistema de ensino nas terras coloni-
zadas pelos portugueses:

1) as escolas que a missão católica de Roma dominava com


o principal objetivo de ensinar aos africanos a educação primária;
2) o sistema de ensino mais avançado que era reservado
para brancos, asiáticos e assimilados.

De acordo com a teoria dos colonizadores, esta educação


tinha o objetivo de ajudar os africanos a se tornarem ‘civilizados
e portugueses’. A educação que os portugueses implementavam
na altura em Moçambique não era adequada, não só por causa do
pequeno número de africanos que frequentava estas escolas, mas 175
também pela forma como ensinavam estas pessoas, afastada da
necessidade de Moçambique. Os colonizadores não reconheciam
os métodos da educação indígena ou a educação tradicional que
existia. No ano de 1962, quase no início das guerras de libertação

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


na África, o governo português fundou a Universidade de Estu-
dos Gerais de Moçambique (UEGM) que foi a primeira instituição
de ensino superior do país, com cursos de medicina, agronomia,
floresta, ciências veterinárias, mineração, engenharia civil, elétrica
e química. No ano de 1980, quando essa universidade passou a
ser chamada de Universidade de Lourenço Marques (ULM) foi
aberto o departamento de matemáticas aplicadas, física, química,
biologia e geologia e a explosão da guerra levou à expansão da
Universidade com cursos de filosofia romana, história, economia
e engenharia metalúrgica. Esta Universidade destinava-se a ins-
truir os filhos e filhas dos colonizadores portugueses e com o
tempo, o governo português enfatizou o não-racismo, o que levou
alguns africanos a se assimilarem e alguns desses conseguiram ter
acesso ao ensino superior.
Entre1960 e 1970 havia apenas 40 moçambicanos negros,
menos de 2% de todos os estudantes que conseguiram entrar na
Universidade Lourenço Marques. Até a proclamação da indepen-
dência em 1975, o Estado moçambicano com suas indústrias, seu
comércio e mesmo a universidade permaneceram em total depen-
dência dos portugueses.
Segundo a História de Moçambique vol. 3.Moçambique no auge
do Colonialismo, 1930- 1961(1993), a partir de 1930, o Governo
colonial efetuou uma mudança no sistema educacional de Mo-
çambique, ao mesmo tempo, Governo colonial passou a controlar
o ensino do povo de forma direta principalmente o ensino para
os moçambicanos. O objetivo deste controle rigoroso era de criar
um sistema de ensino com o propósito de habilitar o indígena
para uma área específica, trabalhar para aumentar a economia do
governo colonial em Moçambique e proporcionar aos brancos
uma educação mais completa, com conteúdo reflexivo e crítico,
176 visando formar um cidadão com ‘valor’ de cidadania. O aumento
da população branca em Moçambique, originou uma separação
de ensino entre os filhos dos indígenas e os filhos dos ditos ‘civili-
zados’, por esta razão, o Governo colonial optou por criar um sis-
tema de ensino simples com objetivo de ‘civilizar e nacionalizar’

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


os indígenas, ensinando-lhes a língua e os costumes portugueses
e tornando-os mais ‘apropriados’ para se inserirem na sociedade.
O ensino para os nativos tinha certas disciplinas como:

a) Língua portuguesa
b) Aritmética e sistema métrico
c) Geografia e história de Portugal
d) Desenho e trabalhos manuais
e) Educação física e higiene
g) Educação moral e canto coral

Os portugueses e a influência da sua educação em


Moçambique

A grande preocupação dos primeiros portugueses que pe-


netraram o solo moçambicano foi de incentivar a educação, co-
locando-a como um dos meios mais importantes para o avanço
econômico e social. Nesta primeira viagem, quando chegaram a
Moçambique, além da difusão do cristianismo, os missionários
também se dispuseram a ensinar os nativos a ler, escrever e apren-
der alguns ofícios. No início o sistema educacional se desenvolveu
nas zonas rurais, com o tempo, devido à evolução, várias escolas
governamentais foram fundadas principalmente nas zonas onde
havia maior concentração populacional, mas as escolas missioná-
rias se encontravam nas zonas rurais.
De acordo com Rodrigues (2007),na época colonial, a edu-
cação ou ensino, dependia da Direção Geral da Educação (DGE)
do Ministério Ultramarino, na qual havia um órgão de consulta, o
Gabinete de Estudos e Ação Educativa (GEAE). A obrigatorieda-
de da educação e instrução foi comunicada às famílias pela cons-
tituição política, segundo a qual a família tinha deveres de educar 177
e instruir, dentro de seu recurso e sua faculdade, para que cada
pessoa se tornasse benéfica para a sociedade, mostrando assim
o valor da educação. A função das famílias era de dar impulso à
educação, o que levou a constituição a formalizar esse dever, esti-

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


pulando que as escolas primárias, complementares, médias, supe-
riores e centros de investigação científica fossem sustentados pelo
Estado. Era permitida a utilização das línguas locais nas escolas
primárias, como meio de facilitar o ensino da língua portuguesa.
Ainda Rodrigues (2007) afirma que,na colônia, a educação
e ensino público para indígenas tinha a finalidade de fazer os
indígenas se assimilarem, as missões católicas eram meios para
estimular a relação entre portugueses e os nativos. Cada ano os
estabelecimentos missionários cresciam bastante e de igual modo
crescia a catequese nos lugares onde tinham se multiplicado as
missões.
Na altura, crescia mais o número de missionários e seus au-
xiliares do que o de alunos, destarte, mais do que a melhoria dos
estabelecimentos escolares, já que as escolas que os indígenas fre-
quentavam eram bastante simples, os colonizadores portugueses
aproximavam-se dos indígenas para torná-los novos portugueses,
para servirem através das atividades escolares e fundarem novos
países.

Política de educação para Moçambique

Ao discorrer sobre a política da educação que os portugue-


ses implementavam em Moçambique, é interessante também falar
sobre como procediam os impérios que dominavam o continente
africano: Bélgica, Grã-Bretanha, França e Portugal.
Segundo Taimo (2010), a segunda metade do século XX
foi o momento em que Portugal buscou a maneira de estabelecer
as normas de educação nas suas colônias, por isso, no ano de
1946, foi publicado o primeiro decreto sobre a educação.
A educação nas colônias estava se desenvolvendo de uma
178 forma vagarosa, isso mostra bem claramente que a intenção dos
portugueses era de ‘civilizar’ os indígenas, explicitando um enten-
dimento de que os indígenas não devem só assumir o costume
dos trabalhos, mas sim de fazê-los, serem bons portugueses, edu-
cados, já que a educação passou a ser um meio facilitador para a

SABINO TOBANA INTANQUÊ • CARLOS SUBUHANA


domesticação dos indígenas. Este caso nos indica a incoerência
do sistema da educação colonial, que tinha a intenção de criar
mais escolas para indígenas, para assim torná-los portugueses, o
que levou à obrigação de estabelecer sistemas educacionais nas
colônias para poder formar os intermediários, que interpretariam
a cultura dos colonizadores.
Da maneira que o colonialismo penetrou sem respeitar a
cultura moçambicana, a atitude do colonialismo e a sua política
levaram à assimilação dos indígenas. Nesta época, como foi men-
cionado, no sistema colonial português em Moçambique, a edu-
cação não estava só sob a responsabilidade do Governo Colonial,
mas também sob a responsabilidade das Companhias Majestáti-
cas, principalmente nas áreas das suas competências. Nesse caso,
as missões católicas ficavam com a responsabilidade de educar,
evangelizar e ‘civilizar’ a população nativa de Moçambique.
Ainda Taimo (2010) enfatizou que o começo do século XX
pode ser entendido como a chance da chegada da educação às
colônias, devido à proclamação da República, que aconteceu em
1910 e que tinha como finalidade a liberdade e a democracia.
Vários problemas se verificavam na metrópole, tais como: o alto
índice de analfabetismo, que deu origem à entrada obrigatória
das crianças entre sete a dez ano de idade na escola, a resistência
à mudança, a crise econômica e a própria atitude deste sistema.
Isso levou à afirmação de que as colônias não eram territórios
portugueses. O Estado novo, na busca de maior influência sobre
suas colônias no continente africano, privilegiou a educação como
um dos importantes meios de marcar presença nestes territórios,
vide o Ato Colonial (AC), que atendia a necessidade de expandir
as escolas primárias do Estado e as Missões Católicas (MI) que
tinham o papel muito importante em expandir as escolas para que
os indígenas pudessem ingressar no sistema de alfabetização. 179
O sistema de educação que os colonizadores estabeleceram
na época tinha a finalidade de fazer os indígenas se assimilarem,
passarem a ter o espírito português e se afirmarem como portu-
gueses com grande orgulho, segundo a moral cristã.

SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


Considerações finais

Fechando a discussão trazida neste artigo, é de suma im-


portância enfatizar que o objetivo da realização deste trabalho é
apontar as principais finalidades da educação colonial em Moçam-
bique, que era uma educação onde os colonizadores portugueses
usavam seus sistemas de ensino para atender as suas demandas
de mão-de-obra.
Falando da educação colonial em Moçambique, é muito in-
teressante relatarmos aqui que o Estado colonial se empenhou
bastante para concretizar as suas finalidades dando mais ênfase
a uma educação não ‘libertadora’ e de preponderante negação
dos valores culturais e sociais do povo moçambicano e de cer-
ta forma, esta educação não possibilitou nenhum avanço para o
mesmo povo. Nesta ótica, este trabalho sinaliza o retrocesso do
país causado pela educação colonial, onde a maioria da popula-
ção na altura não frequentava a escola em virtude da separação
discriminatória.
A partir da análise do material coletado durante a pesquisa,
percebemos que a educação implementada na altura pelos coloni-
zadores portugueses não se baseava em uma ‘pedagogia flexível’
que possibilitasse aos moçambicanos a tomada de consciência da
exploração a que estavam sendo submetidos. A educação colonial
ainda serviu como uma ferramenta negativa que não possibilitou
a formação de um tipo de cidadão, nem ajudou na lavagem do
cérebro e na tomada de consciência e muito menos na evolução
da sociedade e sua transformação.

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SITUAÇÃO COLONIAL, EDUCAÇÃO E ANALFABETISMO EM MOÇAMBIQUE


RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO
EDUCACIONAL: O CASAMENTO
TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA
DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA
GUINÉ BISSAU

Yolanda Victor Monteiro Garrafão


Bacharel em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lu-
sofonia Afro Brasileira – UNILAB.
E-mail: yolandagarrafao@gmail.com

Carlos Subuhana
Doutor em Serviço Social (PPGSS/ESS/UFRJ); Pós-doutor em Antropologia
(DA/USP); Professor do Magistério Superior (UNILAB).
E-mail: subuhana@unilab.edu.br
RESUMO
O presente artigo visa analisar a percepção das mulheres da etnia papel
do seu ritual de passagem, o casamento tradicional (k´mari), tendo como
finalidade averiguar a importância deste, não só como principal rito
de passagem das mulheres na sociedade papel da Guiné-Bissau, mas
também como parte integrante do processo educacional destas mulheres
guineenses. A escolha do tema se deve à necessidade de conhecer de perto
o casamento nesta etnia, a realidade do processo ritual de iniciação das
mulheres através do casamento tradicional, seu significado e contribuição
para sua educação. A principal questão teórica deste trabalho é o casamento
e/ou matrimônio e seus simbolismos. Outros temas, casamento fantasma
e ritos de passagem foram analisados a partir da questão principal. Trata-
se de uma pesquisa de natureza qualitativa. O material aqui analisado foi
coletado através de entrevistas semiestruturadas (com questões abertas
e fechadas) realizadas em Bissau, capital da Guiné-Bissau, em 2016. As
entrevistadas são originárias da região de Biombo e todas são da etnia
papel e casadas no tradicional k´mari. Conclui-se, a partir do estudo, que
o casamento tradicional papel (k´mari) é de extrema importância na vida
das mulheres dessa etnia guineense, pois só depois que a mulher se casa
tradicionalmente é que passa a se sentir mais completa, madura, mais
resolvida, com mais status e útil para a sociedade.
Palavras-chave: Guiné-Bissau; casamento tradicional; etnia papel.

ABSTRACT
This article aims to analyze the perception of women of the papel ethnicity
of their ritual of passage, the traditional marriage (k’mari), with the
purpose of ascertaining its importance, not only as the main rite of passage
of women in the papel society of Guinea- Bissau, but also as an integral
part of the educational process of these Guinean women. The choice of
the theme is due to the need to know closely the marriage in this ethnic
group, the reality of the ritual process of initiation of women through
traditional marriage, its meaning and contribution to their education. The
main theoretical question of this work is marriage and / or matrimony
and its symbolism. Other themes, ghost marriages and rites of passage
were analyzed out of the main issue. This is a qualitative research. The
material analyzed here was collected through semi-structured interviews
(with open and closed questions) held in Bissau, capital of Guiné-Bissau,
in 2016. The interviewees come from the region of Biombo and all are of
184 the papel ethnicity and married in the traditional k´mari. It is concluded
from the study, that traditional marriage k’mari is of extreme importance
in the life of women of this Guinean ethnicity, because only after the
woman marries traditionally she becomes more complete, mature, more
settled, with more status and useful for society.
Keywords: Guinea-Bissau; traditional marriage; papel ethnicity.

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar a


percepção das mulheres da etnia papel do seu ritual de passagem,
o casamento tradicional (k´mari), tendo como finalidade averiguar a
importância deste, não só como principal rito de passagem das mu-
lheres na sociedade papel da Guiné-Bissau, mas também como par-
te integrante do processo educacional destas mulheres g­ uineenses.
Acreditamos que este trabalho seja de grande relevância
acadêmica, por se tratar de um material teórico e acadêmico que
possibilitará, aos novos acadêmicos, o conhecimento do casamen-
to na sociedade das mulheres papéis.
A pesquisa me possibilitou adquirir informações sobre o
casamento tradicional (k´mari) papel, que por sinal é o meu grupo
étnico. A perguntas de partida foram as seguintes: 1) por que é
que as mulheres da etnia papel privilegiam e/ou valorizam o ca-
samento tradicional? 2) como o casamento tradicional contribui
para a educação das mulheres papéis? 3) qual é o contributo do
casamento tradicional na mudança do status social das mulheres
da etnia papel.

Contextualização teórica

A principal questão teórica deste trabalho é o casamento


e/ou matrimônio e seus simbolismos. Segundo Mary Douglas
(1987 apud FGV, 1087), o termo casamento refere-se aos arran-
jos para a união aprovados pela sociedade, com referência espe-
cial ao relacionamento institucionalizado entre marido e mulher;
185
designa também as cerimônias que servem para estabelecer tais
­relacionamentos.
Ainda segundo Mary Douglas (1987 apud FGV, 1987), no
uso comum, casamento inclui duas ideias distintas: a) a de que

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
o homem e a mulher vivem juntos, em geral com a intenção de
fundar uma família; b) a de que há casamento e formas de união
sexual denominadas pré-maritais, extramaritais, adúlteras etc.
Essa distinção às vezes é essencial para a definição de casamento:
“uma simples relação sexual sem a intenção de vida conjunta e
criação de filhos, não constituí de modo algum um casamento”
(BURROWS, 1944 apud FGV, 1987). Douglas argumenta que na
análise das sociedades modernas, o uso geral do termo segue tal
definição, mas os arranjos para a união nas sociedades estudadas
pelos antropólogos sociais revelam tanta diversidade, que é im-
possível encontrar uma definição bastante ampla e que não seja
tautológica. Por essa razão, segundo Douglas (1987 apud FGV,
1987), o normal é deixar a palavra casamento sem definição e
usá-la apenas como termo chave, que subentende um número
de características, que podem ser encontradas nas várias com-
binações de diferentes sociedades. Mary Douglas diz que, nesse
enfoque, o casamento pode possuir todas ou apenas algumas das
seguintes funções: a) estabelecer o status legal dos filhos das par-
tes que contraem o casamento; b) transferir direitos para cada
uma das partes: i) o aspecto domiciliar; ii) a sexualidade do outro;
iii) a propriedade (para beneficiar os filhos do casamento); c)
estabelecer uma aliança ou relação de afinidade entre os parentes
das partes; d) obter o reconhecimento público da relação.
Moreira (1994), por sua vez, diz que na teoria antropoló-
gica o casamento surge como um conceito à volta do qual não
se reúne um consenso global. Ainda segundo a autora citada, a
multiplicidade das implicações (jurídicas, éticas, econômicas e ri-
tuais) e a diversidade de situações que abarca, consoante com as
particularidades do contexto sociocultural em que tem lugar, em
muito contribuíram para a falta de consenso sobre a definição de
186 casamento. Moreira (1994) considera o casamento, a maneira de
Peter Rivière, como “uma das formas de relacionamento entre os
papéis conceptuais femininos e masculinos, representando a sua
forma legitima por excelência”. Este aspecto, segundo Moreira,
decorre do fato dele geralmente estabelecer as bases legitimas

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


da filiação, ordenando o socialmente hipotético ‘caos’ gerado por
uma fecundidade não controlada. Deste modo, ainda segundo
Moreira, se compreende que o casamento pode ser entendido
como um meio de ordenar a capacidade procriadora feminina,
daí se considerar frequentemente que a posição do homem e da
mulher, perante esta instituição, não é idêntica.

Casamentos fantasmas

A denominação ‘casamento fantasma’ foi criada pelo antro-


pólogo inglês E.E. Evans- Pritchard (apud FGV, 1987). O casa-
mento fantasma é uma instituição matrimonial característica dos
nuer, povo do Sudão e de outros povos, a exemplo dos papéis da
Guiné-Bissau.
Entre os nuer trata-se de uma disposição especial, que per-
mite ao irmão ou parente mais próximo de um homem solteiro,
ligar-se em matrimônio a uma mulher “em seu nome e em seu
proveito”.
De acordo com essa instituição, a jovem que o parente do
morto desposa não é deste, mas do morto, da mesma forma que
os filhos nascidos da união são considerados seus descendentes.
Isto ocorre porque os nuer, como outros povos africanos patri-
lineares, segundo Barbosa (apud FGV, 1987), acreditam que é
fundamental para todo homem casar-se e iniciar uma linha de
descendência. Se, entretanto, um homem morre solteiro, é consi-
derado impróprio que seu irmão mais novo ou um parente mais
próximo da sua geração ou da que o sucede, porém nunca da que
o antecede, tome uma esposa para si próprio, sem antes desem-
baraçar-se de sua obrigação de casar e gerar descendentes para
o morto.
187
Nessas uniões o marido legal é o defunto (ghost), em nome
de quem a riqueza da noiva foi paga e para quem a ceri-
mônia do casamento foi realizada. A mulher é ciekjooka,
a esposa fantasma e os seus filhos são gaatjooka, os filhos
de um fantasma. A família que se forma a partir deste ca-

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
samento é uma família fantasma, em reconhecimento ao
status do pater das crianças. É formada pelo morto, a espo-
sa, as crianças (nascidas da união e o parente que gerou e
que age como se fosse o verdadeiro pai. (BARBOSA apud
BARBOSA, 1987).

De acordo com o antropólogo britânico Evans-Pritchard


(1969 apud FGV, 1987), o número de casamentos fantasmas entre
os nuer é quase o mesmo que o casamento comum. Isto é devido
a vários fatos:

1) Jovens que morrem antes do casamento;


2) Homens casados que por alguma razão não tiveram f­ ilhos,
3) Homens que realizam um casamento fantasma para al-
guém (irmão ou parente) e morrem sem ter tido con-
dições econômicas de contratar um casamento para si
próprios.

Uma complicação adicional surge quando uma mulher se


casa em nome de um parente morto, geralmente um irmão uteri-
no. As pessoas envolvidas nesta união são o homem morto, a irmã
que se casou em seu nome, a esposa e o homem que foi trazido
para coabitar com ela.
De acordo com Barbosa (apud FGV, 1987), este tipo de ar-
ranjo sociocultural e outros, como o levirato, são mais bem com-
preendidos quando o casamento não é visto como uma união de
dois indivíduos, mas como a união de dois grupos. Esta forma de
instituição é característica das sociedades em que a descendência
unilinear na linha masculina (agnação) constitui o cerneda orga-
nização social.
Na etnia papel, da Guiné-Bissau, algumas famílias realizam
188 o casamento da mulher depois de morta, caso em vida não tenha
se casado tradicionalmente. De acordo com uma das nossas inter-
locutoras, isso se dá porque:
Se uma mulher for sepultada sem casar-se no tradicional
(k´mari), e caso ela tenha filhas, não vão poder se casar,

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


simplesmente porque a mãe das mesmas não casou tradi-
cionalmente em vida. Nesse casamento (fantasma) é esco-
lhida uma mulher viva, da linhagem da mulher morta, para
representar a mesma (...). (NDJAMÉ)

Nestas comunidades, segundo Lívia Neves de Holanda


Barbosa (1987), o princípio de descendência é tão importante,
que são criados arranjos sociais para fazer face às exceções que
possam ser desagregadoras da estrutura social.

Ritos de passagem

Segundo Mair (apud FGV, 1987), a expressão ‘ritos de pas-


sagem’ foi usada pela primeira vez por Arnold van Gennep(Les-
rites de passage. Paris. Noury, 1909) para descrever dois tipos de
ritos: os que acompanham a passagem de um indivíduo de um
status social para outro no decorrer de sua vida e os que marcam
pontos determinados na passagem do tempo (ano, lua, solstício
ou equinócios). A expressão acabou por restringir-se ao primeiro
tipo, atualmente chamado, às vezes, de rito de crises existências.
Os ritos de passagem típicos, no sentido moderno, são os que
acompanham o nascimento, a consecução do status de adulto, o
casamento e a morte.
Van Gennep analisou esses ritos numa sequência de três
estágios: ritos de separação, ritos marginais e ritos de agregação
(ou de entrada, espera ou saída da terra de ninguém interme-
diária). Os três elementos não se encontram igualmente marca-
dos em todos os ritos de passagem. Segundo Gennep(apud FGV,
1987), o elemento de separação é o mais importante no ritual
mortuário e o de agregação no casamento. O casamento é um
rito de agregação, uma vez que une duas famílias (cf. SEGALEN,
2002; MOREIRA, 1994; EINARSINARSDOTTIR, 2004). E entre 189
cada um desses estágios existe a etapa do estado intermediário.
Como exemplo aqui, o noivado, “com o objetivo de selar a aliança
virtual entre as duas famílias e o casal poder ter maior liberdade
de convívio”. (AZEVEDO, 1987, p. 53).

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
Os ritos marginais que marcam o período em que um in-
divíduo sai de um status, mas ainda não é admitido no estágio
seguinte, são muito visíveis nas cerimônias de iniciação que en-
volvem os participantes num longo período de espera, afastados
de seus contatos sociais normais.
A segregação desses períodos cruciais da vida individual
é em si um caso de interesse sociológico. Arnold van Gennep
chamou a atenção para o simbolismo característico dos ritos de
passagem, como, por exemplo, morte simulada e ressureição, ou
passagem ritual por uma porta ou arcada. Interpretou os rituais de
nascimento como significando a separação da criança do mundo
dos mortos (ou não vivos) e a sua agregação ao mundo dos vivos.

Metodologia

O material aqui analisado foi coletado através de entrevis-


tas semiestruturadas (com questões abertas e fechadas), que fo-
ram realizadas em Bissau, capital da Guiné-Bissau, mas todas as
entrevistadas são originárias da cidade de Quinhamel, região de
Biombo. No total foram realizadas 06 (seis) entrevistas, com uma
média de 30 minutos de duração, entre os meses de maio de 2016
e outubro de 2016. Todas as entrevistadas são da etnia papel,
casadas no tradicional (k´mari), a média de idade das entrevista-
das é de 33 anos. A mais nova tem 25 e a mais velha 42 anos de
idade. Dessas a de 42 anos está casada há 22 anos. A de 25 anos
está casada há um ano no tradicional, mas não mora mais com o
marido. Das 06 (seis) entrevistadas, uma nunca frequentou uma
escola oficial e as demais são escolarizadas, sendo que a que tem
um nível mais alto concluiu a 9ª série.
A escolha das entrevistadas foi aleatória. Tivemos o cuidado
190 de entrevistar apenas mulheres casadas tradicionalmente (k´mari)
e que fossem da etnia papel. As entrevistas ocorreram nas casas
das interlocutoras e com o consentimento das mesmas.
Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa. Segundo
Strauss &Corbin (1990), pesquisa qualitativa é a definida como

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


sendo aquela que os resultados obtidos não são provenientes dos
procedimentos estatísticos ou outros de quantificação. Triviños
(1994) diz que muitas pesquisas de natureza qualitativa não pre-
cisam apoiar-se na informação estatística. Isto não significa que
sejam especulativas. Elas têm um tipo de objetividade e de vali-
dade conceitual, que contribue decisivamente para o desenvolvi-
mento do enfiamento cientifico.
É um tipo de pesquisa que, segundo Strauss &Corbin
(1990), pode ser uma pesquisa relacionada ao modo de vida das
pessoas, histórias e comportamentos, como também ao funciona-
mento organizacional, movimentos sociais, relações ou interações.
Alguns dados podem ser quantificados, tal como acontece com as
informações do censo, mas cuja análise, por si só, é qualitativa.

Guiné-Bissau: Localização geográfica

Aqui pretendemos mostrar o contexto histórico e geográfi-


co da Guiné Bissau. Segundo Augel (2007), a Guiné Bissau está
situada na costa ocidental da África, estendendo-se por uma área
de 36.125km2 a superfície habitada é de apenas 24.800km2, de-
vido a inundações, marés fluviais e alagamentos decorrentes das
chuvas. Tem uma população compreendida em cerca de um mi-
lhão e quinhentos habitantes, tem fronteira com a república de
Senegal ao norte e ao leste e sul com a república de Guiné Co-
nakry, sendo banhada pelo oceano Atlântico por toda a extensão
ocidental. Além do território continental, também se acrescenta
o território banhado pelo mar, ou seja, o arquipélago de Bijagós
com mais de 80 ilhas.

Os papéis
191
Segundo Américo Gomes (2016, p. 11), os papéis foram os
primeiros habitantes de ilha de Bissau. A hipótese mais aceita, se-
gundo o autor, baseia-se na tradição oral e faz preceder os papéis,
habitantes de Bissau, aos biafadas. Segundo esta tradição, Mecau,

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
filho de um rei de Quinara, andando à caça, chegou à ilha de
Bissau. Gostou muito do lugar e resolveu aí instalar-se. Trouxe,
depois, as suas seis esposas e também a sua irmã mais velha, já
casada. A irmã garantia-lhe a sucessão, de acordo com o costume
matriarcal, segundo o qual é o sobrinho, filho da irmã mais velha
e não o filho do rei, que sucede ao trono. Mecau seria, pois, o
primeiro rei de Bissau.
De sua irmã e das seis mulheres ter-se-iam originado as
sete gerações (clãs) da etnia papel. Pungenhum, a irmã de Mecau
gerou o clã Intchassu, no plural Bissassu, donde se teria origina-
do o nome Bissau. De fato, este clã ainda hoje habita a cidade
de Bissau. Gomes diz que os indivíduos desta geração se diziam
bravos como a onça e por isso escolheram o apelido Nanque. Hoje
também usam o apelido Ié. Ocupavam posições de mando: eram
reis, fidalgos ou djagras mala. Uma das seis mulheres, gerou o clã
Intsó(plural Bitsó) que povoou Bandim. As pessoas desta geração
escolheram como totem o sapo, có, porque se dedicavam à agri-
cultura, andavam metidos na água como os sapos. Intsoma outra
mulher, gerou o clã Indjokomo, noplural Bidjokomo, que povoou o
alto Crim. Tinham como totem a hiena, cá, pois eram destemidos
guerreiros, atacavam como as hienas. Djokom, a terceira mulher,
gerou o clã Intsafinte, no plural Bitsafinte, que povoou Safim. Usa-
vam como totem a lebre, té, pois diziam-se matreiros como a lebre.
Kliker, a quarta mulher, originou o clã Iga, no plural Biga, que po-
voou Kliker (atualmente Calequir). Esta geração escolheu como
totem a cabra do mato, sá, pois afirmavam serem rápidos como
este animal. Intende, a quinta esposa, gerou o clã Intsutu, no plural
Bitsutu, que povoou Mindara. Usavam como totem o timbaou urso
formigueiro, djô. Finalmente, Intchopolo, a sexta mulher, gerou o
clã Intsalé(plural Bitsale) que foi para Bissalanca. Esta geração es-
192 colheu como totem o macaco, Indi, pois eram hábeis para subir às
palmeiras e extraírem o vinho de palma. Dos locais onde viviam
estes clãs, expandiram-se depois para todos os pontos da região,
sem discriminação territorial. (GOMES, 2016, p.11).

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


Fonte: Gomes (2016, p12) – Árvore genealógica dos papéis.

De acordo com Gomes era considerado incestuoso o casa-


mento entre indivíduos do mesmo clã ou geração (em crioulo,
djorson) e, por isso, o casamento tinha de ser exogâmico, isto é,
entre indivíduos de clãs diferentes. Quanto aos apelidos, inicial-
mente eles eram os da geração da mãe, mas mais tarde passaram
a ser usados os da geração do pai.
Quanto à origem etimológica da etnia papel, Odete Seme-
do (2010) diz que os portugueses pagaram tributo aos régulos
papéis até finais do século XIX, altura em que impuseram o paga-
mento dos impostos de cabeça e de palhota aos nativos. Segundo
a autora, o nome dessa etnia estaria ligado ao relacionamento 193
difícil com o colonizador. Os habitantes da ilha de Bissau, muito
rebeldes, nunca quiseram pagar impostos de palhota e de cabeça
impingidos pelos colonizadores e sempre que recebiam a notifi-
cações de pagamento, levavam o ‘o papel’ diretamente à adminis-

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
tração, reclamando serem eles filhos do chão (terra) e por isso
não deveriam pagar nada. Assim, sempre que os homens apare-
ciam, os brancos exclamavam: “aí vêm os homens do papel! ”. E
o nome ficou. Quem passou essa informação para Odete Semedo
foi a tia Maria Nank, uma das suas informantes. Na língua local,
papel, esse grupo se autodomina ussau e os papéis de Biombo se
autodenominam yum.

Rito de passagem como processo educacional

Segundo (Brandão 2007) nenhum indivíduo é isentado


da educação, esses processos educacionais acontecem na casa, na
rua, na igreja ou aldeia, isto é, no espaço formal e informal, tanto
para aprender, como também para ensinar, ou aprender e ensinar
simultaneamente. Todos os dias misturamos a vida e a educação
com uma ou com várias educações. Partindo do pressuposto de
Brandão para nossa análise das sociedades africanas, que têm di-
ferentes perspectivas da educação, a do nosso interesse, no pre-
sente trabalho é a iniciação como processo da educação, pois nas
sociedades africanas a iniciação é entendida como um certo tipo
de processo da educação, o que explica a série de estágios de
aprendizado de códigos e signos, que só quem passar por esse
processo poderá entender e decodificar. O casamento tradicional
k’marida etnia papel da Guiné Bissau é um exemplo de rito de
passagem como um tipo de processo de educação.
Segundo Có (2010), espera-se que toda mulher passe por
essa iniciação através do casamento, após o qual ela é conside-
rada uma pessoa adulta e com uma certa maturidade para par-
ticipar dos momentos decisórios da comunidade, portanto essa
ideia da maturidade nos mostra que esse casamento implica em
194 um processo de agregação de saber. A sociedade papel ritualiza
a passagem da adolescência ao estado adulto para ambos os se-
xos, havendo ritos próprios para os rapazes – chamados fanados
e ritos de iniciação para as moças chamados k´mari (casamento).
Algo similar foi observado por Subuhana (2001), entre os Yao

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


do norte de Moçambique, onde com o nascimento e os ritos cor-
respondentes, a criança ainda não está completamente integrada
na sociedade. O seu verdadeiro nascimento social ocorrerá com a
participação nos ritos de iniciação.

Os principais rituais de passagem papéis da Guiné-Bissau

Fanado
Segundo Carlos Humberto ButiamCó (2010), o fanado para
os papéis é uma tradição muito sagrada. Participando nos ritos
de iniciação, o neófito passa a ser ‘adulto’ e toma consciência da
própria identidade e do lugar que lhe compete na comunidade.
Por outro lado, dá-se uma grande relevância aos processos das
cerimônias fúnebres da pessoa que cumpriu com esse ritual, isto
é, a cerimônia fúnebre terá um tratamento adequado e especial.

Casamento (k´mari)
O casamento tradicional (k´mari) é um dos rituais de pas-
sagem de extrema importância entre os papéis, sobretudo para
as mulheres. De acordo com Có (2010), a tradição cultural papel
permite que haja uma relação conjugal entre primos colaterais,
isto é, primos da primeira linha. Dizem para que a geração perma-
neça unida e extensiva, é necessário que os primos se casem para
fortalecer esta geração. Esta prática gradualmente está perdendo
força.
Tradicionalmente, quando uma mulher atingia a fase de
puberdade na sua família, esperava-se que fosse indicado com
quem deveria se casar. De modo geral o casamento dizia respeito
aos pais, em nenhuma circunstância as mulheres tinham liberda-
de de escolha. Elas deveriam manter-se ‘puras’ até ao casamento
para não desonrarem e fraudarem a família. Em alguns casos, os 195
homens também não tinham liberdade de escolher a futura espo-
sa. Apenas solicitavam ao pai e este, junto com os outros membros
da família buscava os meios de encontrar mulher para o filho.

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
A importância do casamento tradicional (k´mari) na
sociedade papel

Como está acima citado o casamento tradicional é um dos


principais rituais de passagem das mulheres da etnia papel. Ao
fazer uma análise das entrevistas, percebe-se o quanto as mulhe-
res desta etnia valorizam o matrimônio tradicional e em suas falas
deixam bem claro que uma vez casadas no tradicional se sentiam
mais completas e valorizadas, seja na família como na sociedade
em si. Mesmo reconhecendo que hoje em dia na Guiné-Bissau
muitas práticas das tradições culturais e étnicas estejam sendo
negligenciadas, o casamento tradicional (k´mari) mantém-se vivo
entre os integrantes dessa etnia.
Segundo Pires, entre os papeis o casamento tradicional é
encarado como um ato de respeito aos antepassados, uma conti-
nuidade étnica e uma afirmação da existência do próprio grupo
e de seus valores. (cf. PINTO apud PIRES 2013). Tanto as falas
das nossas entrevistadas, quanto a leitura do texto de Pires nos
levam a considerar os papéis como sendo um grupo étnico muito
conservador, mesmo reconhecendo que em alguns aspectos são
maleáveis à mudança.
Eis as falas de nossas entrevistadas sobre a importância do
casamento tradicional:
É importante o casamento tradicional [k´mari] na socieda-
de papel, visto que é através do casamento tradicional que
a mulher conquista respeito e pode ser respeitada. A mu-
lher casada tem mais respeito do que a mulher rica, mas
que não se casou tradicionalmente. (BONHONIN).
É importante preservar o ritual da nossa etnia e seguir cos-
tumes dos meus ancestrais, adquirir respeito na sociedade
196 e espaços privilegiados, pois tem certos tipos de rituais
tradicionais que só podem participar mulheres casadas tra-
dicionalmente. (BOMEBU).

Quando foram perguntados sobre a contribuição do casa-


mento tradicional para educação das mulheres as respostas fo-

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


ram unânimes. Afirmam que o casamento tradicional contribui
muito em suas vidas, pois trata-se de um rito de passagem. Elas
dizem que os ensinamentos recebidos durante o processo ritual
do casamento contribuem positivamente para a boa convivência
na comunidade e entre marido e mulher, eis a fala das nossas
entrevistadas “os (as) anciões (as) aconselham a noiva a ser uma
boa mulher, a respeitar e ponderar o marido. ” (BIKINHO´RI)
O casamento tradicional contribui na educação, porque no
ato do casamento os anciãos educam em forma de conse-
lho, entre os quais tratar bem o marido, sempre seguindo
os passos do marido e não o ultrapassar, etc. Por outro
lado, se no caso a mulher não se contentar com qualquer
ação do marido, ela deve chamar os anciões para fazer uma
reunião. (NDJIMÉ)

Rituais fúnebre diferenciado entre mulheres casadas e


não casadas tradicionalmente

A etnia papel da Guiné-Bissau, valoriza as tradições cultu-


rais no que diz respeito à realização da cerimônia fúnebre, tan-
to para os homens assim como para as mulheres. Em seu traba-
lho, Có (2010) nos traz à tona duas questões: como é realizada
esta cerimônia? E, por quê é que todas as pessoas, sobretudo as
mulheres, preferem ter ritual ao seu agrado? No texto citado o
autor procura dar mais ênfase e destaque àquele que consegue
geralmente cumprir com todas as fases exigidas. Daí que o autor
fala de Ondjenzsem(cerimônia fúnebre de uma pessoa casada) e
Onbamssam(cerimônia fúnebre de uma pessoa não casada). Aos
olhos da sociedade, segundo Có (2010), a cerimônia das pessoas
(homens e mulheres) que não cumpriram o ritual de k´mari, não é
realizada com o mesmo destaque daquelas que conseguiram cum-
prir com esse ritual. Quando uma pessoa casada no k´marimorre é
197
sacrificada uma cabra e o sangue dessa cabra e a farinha de arroz
da terra são derramados no túmulo da pessoa falecida.
Carlos Humberto Butiam Có diz que é o sonho de pratica-
mente todas as mulheres papéis terem um ritual fúnebre digno

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
e especial para demonstrar a sua grandeza e respeito perante a
sociedade papel.
As nossas entrevistadas são unânimes em reconhecer a im-
portância de se fazer uma diferenciação entre o ritual fúnebre das
mulheres casadas e não casadas tradicionalmente. Segundo elas, é
feita essa diferenciação da cerimônia fúnebre para mostrar que a
mulher casada desfruta de mais respeito em relação à não casada
tradicionalmente, por isso a casada tradicionalmente é enterrada
de um modo mais especial, no ato dessa cerimônia é usada a
esteira ondjenssem na cova e para as não casadas é usada a esteira
mais simples chamada ombanssam.
A mulher casada tradicionalmente é mais respeitada na so-
ciedade. O ritual fúnebre dessa mulher será feito de um modo
especial, usando uma esteira, chamada ondjensseme depois de co-
brir a cova quebram o pote feito de barro para demonstrar que a
mulher foi casada em vida. Já o ritual fúnebre da mulher que não
passou pelo k´mari é feito de uma forma simples. No passado não
se usava nada na cova, mas hoje em dia depende da decisão de
quem está dirigindo o ritual fúnebre. Caso seja do consentimento
do mesmo, o oficiante da cerimônia põe a esteira por de baixo do
corpo chamada onbamssam. (BONHONIN).
Segundo Jonina Einardosttir (2004), é considerado ver-
gonhoso para os pais ter que enterrar uma filha solteira e ‘não
adulta’ (badjuda). Uma mulher papel que nunca se casou tradicio-
nalmente (k´mari) será tratada como uma menina solteira, ou seja,
badjuda, independentemente de ser mãe ou não. Além disso, as
filhas de uma mulher solteira não podem casar de acordo com o
a tradição cultural papel. Jonina nota que as mães não só se pre-
ocupam com os casamentos de suas filhas, mas também com o de
seus filhos, pois para os papéis os principais ritos de passagem são
198 o fanado (para os homens) e o k´mari(para as mulheres). A Abi-
roUenlo, a Ndjimé e a Bomebu, nossas interlocutoras, defendem
que é necessária a realização do casamento tradicional da mulher
depois de morta, isso caso em vida a defunta não tenha sido ca-
sada tradicionalmente. O que acontece é que caso a mulher papel

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


não se case tradicionalmente, seja em vida ou não, caso tenha
filhos (as), os mesmos não poderão se casar tradicionalmente.
Se uma mulher não for casada, caso tenha filho (as), não
poderão casar-se porque a mãe não se casou tradicional-
mente. É com base nisso que é necessária a realização do
casamento tradicional da mulher depois da morte. Isso faz
com que os filhos se preocupem com a realização do ca-
samento da mãe depois da morte. Assim, permitindo que
a futura mãe tenha acesso também à cerimônia fúnebre
especial de casadas. (BOMEBU).

O casamento tradicional (k´mari) desempenha um papel


considerável para as mulheres da sociedade papel. A mulher só
passa a ser respeitada a partir do momento em que passa pelo ca-
samento tradicional e o papel do k´mariseria o de atribuir à mulher
cidadania, dignidade e respeito na sociedade.
O casamento tradicional tem grande papel e importância,
de modo que com o casamento você ganha respeito na
sociedade e lugar de prestígio, por exemplo, em algumas
cerimônias só podem participar os casados a entrada dos
solteiros naquele recinto é barrada. (NDJIMÉ).

Einarsdottir (2004) afirma que uma mulher papel que nun-


ca se casou de acordo com o costume ritual de seu povo, será
tratada como uma menina solteira, a chamada (badjuda), por toda
a sua vida, mesmo que ela tenha filhos. Além disso, as filhas de
uma mulher solteira não podem casar de acordo com a tradição
cultural papel. A aliança matrimonial legitimada pela tradição, se-
gundo uma de nossas entrevistadas, desempenha um papel rele-
vante na reprodução social da sociedade papel, que se transmite
de geração para geração.
As entrevistadas também afirmam que o casamento tradi- 199
cional contribui para a educação das mulheres, pois tra-
ta-se de um rito de passagem. Elas dizem que os ensina-
mentos recebidos durante o processo ritual do casamento
contribuem positivamente para a boa convivência entre
marido e mulher, e na sociedade, pois “os anciões aconse-

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
lham a noiva a ser uma boa mulher, a respeitar e ponderar
o marido. ” (BIKINHO´RI)

O casamento tradicional contribui na educação, porque no


ato do casamento os anciãos educam em forma de conse-
lho, entre os quais tratar bem o marido, sempre seguindo
os passos do marido e não o ultrapassar, etc. Por outro
lado, se no caso a mulher não se contentar com qualquer
ação do marido, ela deve chamar os anciões para fazer uma
reunião. (NDJIMÉ)

Considerações finais

Ao finalizar nosso trabalho, constatamos que mesmo reco-


nhecendo que hoje em dia na Guiné-Bissau muitas práticas das
tradições culturais e étnicas estejam sendo negligenciadas, o ca-
samento tradicional mantém-se vivo entre os integrantes dessa
etnia. De fato, para os papéis o casamento tradicional (k´mari) é
encarado como sendo um ato de respeito aos antepassados, uma
continuidade étnica, uma afirmação e reafirmação da existência
do próprio grupo e de seus valores.
Vale notar que hoje em dia são visíveis ligeiros sinais de
mudança no jeito como o casamento tradicional é praticado e es-
sas mudanças, segundo nossas entrevistadas, não alteram o valor
do casamento tradicional.
Destarte, uma mulher papel que nunca se casou tradicional-
mente, ou seja, de acordo com o costume ritual de seu povo, será
tratada como uma menina solteira, a chamada (badjuda), por toda
a sua vida, mesmo que ela tenha filhos. Além disso, as filhas de
uma mulher solteira não podem casar de acordo com a tradição
cultural papel. A aliança matrimonial legitimada pela tradição, de
acordo com as nossas entrevistadas, desempenha um papel rele-
200 vante na reprodução social da sociedade papel. Trata-se de uma
prática tradicional que é transmitida de geração para geração.
Conclui-se, a partir do estudo, que o casamento tradicional
papel (k´mari) é de extrema importância na vida das mulheres
dessa etnia guineense, pois só depois que a mulher se casa tradi-

YOLANDA VICTOR MONTEIRO GARRAFÃO • CARLOS SUBUHANA


cionalmente é que passa a se sentir mais completa, digna, madura,
resolvida, com status e útil para a sociedade, ou seja, uma cidadã
com plenos direitos, mas com deveres e responsabilidades.

Referências

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pos-colonialíssimo na literatura da Guiné Bissau. Rio de Janeiro: Ga-
ramond, 2007.
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Editora Brasiliense, 1981. 116 p.
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dos e Pesquisa), Bissau, 2010.
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Child Death, and Poverty in Guinea-Bissau. Madison, WI: The Uni-
versityof Wisconsin Press, 2004.
MENDES. Francisco Livonildo: Modelo político unificador. Lisboa:
Chiado, 2015
MOREIRA, Margarida Mira. O Casamento na Etnia Papel da Guiné-
-Bissau. 2013. Dissertação (Licenciatura em Antropologia) – De-
partamento de Antropologia. Universidade Nova de Lisboa. Lis-
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PIRES, Inaida. Em convite: A performativa no casamento da etnia pa-
pel. Disponível em: http://oquevcfazcomasualingua.blogspot.com.
br/ Acesso em:7 ago.2013.
SEMEDO, Maria Odete da Costa. Guiné Bissau: historias, culturas
sociedade e literatura. Belo horizonte: Nadyala, 2010.
TRIVIÑOS Augusto Nibaldo Silva. Introdução a pesquisa em ciências
sociais. São Paulo: Atlas, 1987.
201

RITO DE PASSAGEM COMO PROCESSO EDUCACIONAL:


O CASAMENTO TRADICIONAL K’ MARI NA VIDA DAS MULHERES DA ETNIA PAPEL DA GUINÉ BISSAU
MAIS RESPEITO, POR FAVOR!
TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E
HOMOFOBIAS NA ESCOLA

Joanice S. Conceição
Prof. Adjunta em Antropologia da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira; Doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
E-mail: joaniceconceicao@gmail.com

Patrícia da Silva Simões da Cunha


Graduada em Letras pela Universidade Estácio de Sá; Graduanda
em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense.
E-mail: pattysscunha@gmail.com

Camila Camargo
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo; Endereço ele-
trônico: camcv53@hotmail.com
RESUMO
O objetivo deste artigo é propor uma reflexão acerca dos marcadores
heteronormativos, tradicionalmente ensinados nos espaços escolares.
Analisa o cotidiano escolar, as interações de alunos, quanto às
sexualidades e à religião por meio do projeto de pesquisa (PIBIC/CNPq).
A pesquisa foi realizada em duas escolas públicas na cidade de Santo
Antônio de Pádua1, localizada no Norte Fluminense, Estado do Rio de
Janeiro, no ano de 2017. O método empregado foi o qualitativo, apoiado
pelos procedimentos técnicos da observação, entrevista semiestruturada,
assim como a perspectiva teórica decolonial para interpretação dos
dados. Deste modo, algumas provocações teóricas são feitas, com o
intuito de repensar e desconstruir práticas hegemônicas na educação, de
modo a criar sentidos e vivências que direcionem a escola ao respeito
aos diferentes.

ABSTRACT
The objective of this article is to propose a reflection about the
heteronormative markers traditionally taught in school spaces. Analyzes
the daily school life, the interactions of sexuality and religion through
the research project (PIBIC / CNPq). The research was carried out
in two public schools in the city of Santo Antônio de Pádua, located
in the North of Rio de Janeiro, State of Rio de Janeiro, in the year
2017. The method was the qualitative, supported by the technical
procedures of observation, interview semi-structured, as well as the
theoretical decolonial perspective for data interpretation. In this way,
some theoretical provocations are made, with the intention of rethinking
and deconstructing hegemonic practices in education, in order to create
meanings and experiences that direct the school respect for the diferents.
Keywords: Education, Queer. Sexualities. Homophobia.

204
1
Por se tratar de um tema ainda considerado tabu e por ser Santo Antônio de
Pádua uma cidade muito pequena com poucas escolas públicas e privadas, resol-
vemos omitir os nomes das escolas, dos professores e diretores, com intuito de
preservar a identidade dos colaboradores da pesquisa.

JOANICE S. CONCEIÇÃO • PATRÍCIA DA SILVA SIMÕES DA CUNHA • CAMILA CAMARGO


INTRODUÇÃO

A educação desempenha importante papel na formação


das pessoas. Entretanto, os espaços escolares, em certa medida,
são marcados por práticas que desrespeitam direitos de determi-
nadas pessoas, com ações, cujas concepções apoiam-se em aspec-
tos heterossexistas1, racista e classistas. Isto é, existem ambientes
escolares que carregam práticas e atitudes com características des-
respeitosas no que tange às sexualidades e aspectos religiosos,
dentre outros. Tais premissas leva-nos a acreditar que muitas ve-
zes são utilizados comportamentos para legitimar atos discrimi-
natórios e violentos, a partir da heteronormatividade, da religião,
da raça e da classe.
Algumas vezes, a escola encarna-se em figuras homofóbicas
para categorizar, classificar indivíduos, forçando-os viver uma re-
alidade de exclusão, violência e abjeção2. Essas ações produzem
uma classificação, tendo de um lado o que é considerado certo e
do outro aquilo que é acatado como errado, gerando deste modo,
dinâmicas que visam à manutenção de estigmas e processos de
exclusão e, consequentemente a inviabilização deolhares, trocas
de reflexões, bem como a criação de espaços, nos quais, as pesso-
as possam ser inseridas e respeitadas, como bem salienta o autor
abaixo:
Chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade na-
quilo que foi, durante tantos séculos, considerado como
loucura; a plenitude de nosso corpo que, durante muito
tempo, foi um estigma e como que a ferida neste corpo;
205
1
Diz respeito ao sistema ideológico que tem a heteronormatividade como norma
central, validando a homofobia, isto é, a hostilidade e discriminação contra pes-
soas cuja orientação divirja daquilo que tal sistema julga correto.
2
Termo usado refere-se “ao espaço em que a coletividade costuma relegar a
aqueles e aquelas que consideram uma ameaça ao seu bom funcionamento, à
ordem social e política ” .

MAIS RESPEITO, POR FAVOR! TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E HOMOFOBIAS NA ESCOLA


nossa identidade, naquilo que se percebia como obscuro
impulso sem nome. (FOUCAULT,1993, p. 146).

Foi a partir das inquietações supramencionadas que criamos


o projeto de pesquisa intitulado As concepções de Gênero e religião na
prática docente3. Por meio deste, buscamos analisar de que maneira
o emprego da teoria queer na prática docente na desconstrução
de estereótipos presentes nas ações educativas, com vistas no re-
conhecimento de outros estilos de vivências sexuais, de modo a
possibilitar a abertura caminho singulares, a fim de produzir sig-
nificativas mudanças quanto às práticas discursivas que envolvam
sujeitos, corpos, gêneros e sexualidades. Salientamos que ainda
que a Teoria Queer não se proponha a ser uma ferramenta política
para a educação, mesmo assim a utilizamos para verificar mudan-
ça de comportamento com bases nas premissas queer.
O projeto de pesquisa em questão teve por objetivo prin-
cipal, conhecer as concepções de gênero e de religiões na prática
docente e a experiência, a partir da visão de professores e di-
retores, de ambos sexos, vinculados à escolas públicas do pro-
jeto Iniciação Científica, acima mencionados (PIBIC /CNPq) na
Universidade Federal Fluminense, campus de Santo Antônio de
Pádua, no Noroeste Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, no
ano de 2017. A investigação contou com uma equipe técnica com-
posta por dois bolsistas, um voluntário e um coordenador. Foram
entrevistados 6 professorese 2 diretores, dentre os quais 5 mu-
lheres e 3 homens, sendo estes respondentes de uma entrevista
semiestruturada, com 22 questões. Além de conversas informais
com funcionários e funcionárias das escolas pesquisadas. Ambas
escolas atendem alunos de ambos os sexos, com idade de 10 a
15 anos, que corresponde ao sexto e nono ano. Em sua maioria,
os alunos pertencem aos extratos mais populares da sociedade
206 (FONSECA, 1994).
O projeto, salvo engano, é pioneiro na iniciação científica
em escolas no município de Santo Antônio de Pádua -RJ, no que
3
O projeto desenvolvido no ano de 2017, na Universidade Federal Fluminense,
com financiamento parcial do CNPq.

JOANICE S. CONCEIÇÃO • PATRÍCIA DA SILVA SIMÕES DA CUNHA • CAMILA CAMARGO


tange o campo da Antropologia e Educação, o que justifica o ine-
ditismo da pesquisa. A partir das primeiras visitas às escolas e das
narrativas de docentes, gestores e pessoal de apoio, verificou-se
mudanças no comportamento na escola, especialmente quando
do trato de alguns indivíduos. Ao longo das visitas foi-se estabe-
lecendo maior aproximação com os funcionários e tambémdos
alunos, que por diversas vezes, nos abordaram para saber o que
estávamos fazendo na escola e na sala de aula.
Para melhor compreender as questões prementes da inves-
tigação, usamos o método de pesquisa qualitativo, com a técnica
de entrevista semiestruturada. Para tanto seguimos algumas eta-
pas, tais como: a) pesquisa e revisão bibliográfica sobre o tema;
b) pesquisa exploratória e visita às escolas; c) Reunião com pro-
fessores e direção para explicar melhor os propósitos da pesquisa;
d) Observação semana em sala de aula das duas escolas. Cum-
pre salientar que tanto as observações realizadas nas reuniões
com os professores e gestores quanto as feitas em sala de aula
(3 salas), serviram de base para a formulação do rol de pergun-
tas que resultaram no roteiro das entrevistas semiestruturadas; e)
Realização de ciclo de debates sobre gênero∕sexualidades, Raça,
Performance e Religião, na UFF e nas escolas pesquisas;f) Formu-
lação do roteiro de entrevistas e aplicação das mesmas junto aos
professores e gestores; g) Análise dos dados empíricos coletados;
h) Elaboração do relatório final.
A conceituação teórica de alguns termos utilizados neste
artigo é essencial para o entendimento da proposta em questão.
O termo heteronormatividade diz respeito aos ensinamentos pe-
las instituições sociais como exemplo, igreja, escola família. Tais
ensinamentos resultam na produção sujeitos e corpos generifica-
dos, com base na crença de uma atração “natural” entre o sexo
(biológico) oposto. A heteronormatividade pode ser definida 207
como um conjunto de valores, normas, dispositivos e mecanismos
que definem e impõem a heterossexualidade como a única forma
natura e legítima de expressão identitária e sexual (ANDRADE;
JUNQUEIRA, 2009, P. 20-21).

MAIS RESPEITO, POR FAVOR! TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E HOMOFOBIAS NA ESCOLA


No que tange à homofobia diz respeito contra pessoas cujas
identidades ou expressões não estão de acordo com o binarismo
de gênero, isto é homem X mulher. A violência e vigilância apli-
cadas a essas pessoas baseia-se na ideia de que as fronteiras se-
xuais estão restritas a binômio hetero/homo e gênero masculino/
feminino. Portanto, o conceito de homofobia está diretamente à
masculinidade hegemônica4.
Quanto ao termo Queer é aqui entendido, a partir do pen-
samento da Preciado (2011) como o empoderamento de corpos
subalterno, e não ao empoderamento assimilacionista. A teoria
queer ampliar a discussão, na medida em que propõe o questiona-
mento às epistemes, às essências do feminino, do masculino e de
um desejo generificado.
No que se refere a estrutura do artigo este é composto por
um resumo, uma introdução, na qual se apresenta o objetivo do
artigo, justificativa, os principais conceitos e autores e a metodo-
logia de trabalho. Acrescenta-se ao artigo duas seções; a primei-
ra fazer uma análise acerca da educação no Brasil e as questões
relativas aos gêneros. Na segunda seção apresentamos análise
e resultados apontados na pesquisa. Por fim apresentamos uma
breve conclusão. Não obstante, a análise intersecciona5 as catego-
rias supramencionadas revelando de que maneira ainda hoje as
opressões estão presentes nas práticas pedagógicas.

Sistema escolar e os estudos de gênero

O ambiente escolar é preconizado como um espaço impor-


tante para o desenvolvimento dos humanos e de fato o é, mas
também é verdade o fato dele não ser um lugar favorável para
todas as pessoas, por vezes, ele pode provocar marcas indeléveis,
208 já que a depender das características, o tratamento é diferenciado.
4
Sobre masculinidade hegemônica ver Joanice Conceição, 2017.
5
Tomamos de empréstimo o uso do termo “intersecção” do movimento feminista
negro, conceituado posteriormente por CRENSHAW (1989) para nos referir as
combinações de diferentes categorias para fortalecer as opressões sofridas pelos
alunos no ambiente escolar.

JOANICE S. CONCEIÇÃO • PATRÍCIA DA SILVA SIMÕES DA CUNHA • CAMILA CAMARGO


As características físicas,morais e os atributos empregados ao sexo
dizem respeito aos aspectos socioculturais e não a marcas naturais
que fixam o homem e/ou a mulher em um destino traçado pela
genitália, biologicamente falando. Essa condição foi constatada
dentro dos espaços escolares, por meio da investigação, quando
o docente, na aula de biologia informa aos alunos e alunas a exis-
tência de dois sexos. Desta forma, a escola acaba por reproduzir
ou reforçar o binarismo (CONCEIÇÃO, 2017), uma vez que não
foi feita nenhuma referência às diversas discussões sobre a cons-
trução da pessoa enquanto ser social. Tal fato, mostra que a cons-
trução das categorias dos gêneros, especialmente do masculino,
feminino são configuradas a partir de um conjunto de fatores e
situações sem considerar o social como elemento fulcral. Portanto
a adoção de um caráter heterossexistas, pode levar a comporta-
mentos homofóbicos.
No Brasil dentre as muitas reivindicações, dois setores po-
dem bem representar a educação, especialmente no âmbito do
Ensino Fundamental II. De um lado está uma parcela que reivin-
dica práticas educacionais que têm por base projetos que defen-
dem a moral, a religião cristã e a concepção binária do gênero; do
outro há profissionais que defendem uma educação onde os alu-
nos sejam pessoas respeitadas e que possam livremente expressar
seus desejos e vivências.
Denunciar o caráter homofóbico dentro desses espaços
escolares é sem sombra de dúvidas promover a desconstrução
de processos históricos culturais, cujos sujeitos são colocados à
margem e privados de viver plenamente a sua sexualidade e con-
sequentemente viver de forma inteira a sua existência. Outros-
sim,as práticas homofóbicas não permitem a integração de valores
que versam sobre políticas e práticas que cessem a discriminação
desses sujeitos (CARDONA, et al. 2015), principalmente, em se 209
tratando de um ambiente escolar, cujas práticas apoiam-se no
tradicional e na segregação de indivíduos. Questionar o caráter
normativo, do politicamente correto, do sexualmente aceito pode
funcionar como agentes norteadores, com vistas na produção de

MAIS RESPEITO, POR FAVOR! TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E HOMOFOBIAS NA ESCOLA


experiências e na ressignificação de características de determina-
dos indivíduos, considerados por práticas a homofóbicas como
estranhas e/ou anormais.
A mudança de comportamento nas ações escolares pode
ensejar a possibilidade de um reaprendizado de ideias, abrindo
assim espaço para práticas educativas que permitem entender as
fraturas do sujeito queer, bem com as múltiplas afetividades de
crítica a um processo de normalização (Miskolci, 2009).
No final dos anos 80 a teoria queer começou a se desenvol-
ver nos Estados Unidos, e teve grande impacto na formação de
novos político-sociais, haja vista que trouxe uma série de questio-
namentos acerca de temas não problematizados anteriormente.
O termo queer era usualmente utilizado para designar algo con-
siderado estranho, de acordo com a tradução literal da palavra.
Contudo,acabou por se tornar uma ferramenta de resistência e
revolução, ressignificando positivamente para representar aqueles
que até então eram insultados e tratados de forma pejorativa; o
termo veio para trazer novos significados às práticas que eram
consideradas anormais. O queer enquanto movimento mobiliza-se
em torno da não aceitação e incorporação na sociedade, rejei-
tando a condição de “indivíduos sujos e patológicos”. A crítica
gira em torno das premissas conservadoras de que insistem em
criminalizar e legitimar a discriminação. Lutar por uma proposta
queer não se resume somente a luta sobre as sexualidades, ela vai
além; reivindica lugar na sociedade para seres humanos dignos
de respeito e igualdade de direitos. Segundo os autores que se-
guem a proposta queer, esta visa mostrar as ciladas que escodem o
pensamento hegemônico acerca das sexualidades.
Para Louro (2012), a introdução de um a perspectiva queer,
exerceu profundo impacto nas formas pedagógicas, uma vez que
210 se formou uma crítica em torno do sistema escolar, mobilizan-
do-a a reavaliar suas práticas, cujas bases estavam, em certa me-
dida, focadas em diversos preconceitos. Se por um lado temos o
movimento queer mobiliza a sociedade para reivindicar o direito
de existir e viver plenamente, do outro lado temos uma gran-

JOANICE S. CONCEIÇÃO • PATRÍCIA DA SILVA SIMÕES DA CUNHA • CAMILA CAMARGO


de parcela dos espaços educacionais que negligenciam, negam
os ataques perpetrados contra os “dissidentes”. Logo o combate
e eliminação dessas violências torna cada vez mais difícil de ser
efetuado. Há que se repensar esse cenário, para buscar estratégias
que dialoguem com a pluralidade, de maneira a promover o direi-
to de existir de cada pessoa.
A partir da observação em ambiente escolar notamos que a
maneira como os indivíduos são tratados exerce grande influên-
cia na constituição enquanto pessoa e, notoriamente, suas mani-
festações são igualmente marcadas pela falta do reconhecimento
da diversidade sexual na escola, quiçá na sociedade, como salien-
ta o fragmento abaixo.
Desde a sua constituição, a escola moderna é marcada
por diferenças e está implicada, também, com a produção
dessas diferenças. Embora não seja possível atribuir a ela
toda a responsabilidade pela construção das identidades
sociais, ela continua sendo, para crianças e jovens, um local
importante de vivências cotidianas específicas e, ao mesmo
tempo, plurais. (MEYER; SOARES, 2004, P. 8).

A assertiva corrobora o pensamento de Louro (2008) que,


embora ressalte a importância do ambiente escolar para a for-
mação social, salienta que de forma sistêmica, os assuntos rela-
cionados às sexualidades são constantemente invisibilizados. Na
maioria dos casos, o que se observa é o silêncio para questões
que sempre acompanharam os indivíduos. Entretanto, quando o
fazem, abordam sob a perspectiva da heteronormatividade, do
binarismo e do sexismo, mostrando-os como formas legítimas
para expressar os desejos sexuais, ao passo que as torna obriga-
tórias, hegemônicas e aparentemente indiscutíveis. Neste sentido,
torna-se imprescindível pensar em uma educação de qualidade,
com respeito às individualidades com vistas no currículo esco-
211
lar. Logo, uma educação nesses moldes só é possível se houver
respeito às diferenças, que reconheça as especificidades étnicas,
classistas, religiosas, raciais e a livre orientação. Isto é, a educação
deve figurar enquanto categoria relacional ( grifo nosso). Por isso,

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deseja-se um currículo comprometido com a justiça, a equidade,
a solidariedade, a integridade, o autorrespeito, enfim, uma escola
que leve em conta a alteridade (Figueiró, 2001).
No campo das sexualidades as proposições e proibições
impostas aos educandos, conduzem à suposição de que só pode
haver apenas um modo de vivenciá-las, por meio da união entre
um homem e uma mulher cisgêneros6. Deste modo, a escola tor-
na-se um dos espaços mais tóxicos para falar sobre os temas su-
pramencionados. A escola nega e ignora, por exemplo, a homos-
sexualidade, restringindo as oportunidades para que adolescentes
reconheçam ou assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos
(Louro, 2000). Outrossim, acontece porque as práticas sexuais fo-
ram naturalizadas e utilizadas para controlar o corpo dos sujeitos
limitando-o as possibilidades da expressão da diversidade sexual.
A pesquisa realizada nas escolas municipais de Santo An-
tônio de Pádua, Norte Fluminense, RJ, Brasilrevelou que, em sua
grande medida, os professores ao abordarem as influências reli-
giosascolocam as sexualidades no âmbito da reprodução; outras
vezes como algo nefastas e pecaminosas. Tais distorções podem
ter implicações nas escolhas afetivas dos educandos, na medida
em que a sexualidade é algo construído socialmente e a escola
exerce grande influência nesta formação. Nos últimos tempos, a
cidadedo Rio de Janeiro vem tentando implementar o projeto
Escola sem Partido, com clara tentativa de coibir que o ensino sobre
as sexualidades seja efetivado. Contudo, deve-se considerar que
tais discursos estão sendo cada vez mais questionados dentro de
sala de aula não apenas por docentes que respeitam às individua-
lidades, mas pelos próprios discentes.
O projeto-movimento “Escola sem Partido”, criado em
2004, de autoria do advogado Miguel Nagib, em conjunto com
212 pais de alunos e uma pequena parcela de professores que, dentre
outras coisas, diz lutar contra “doutrinação ideológica” nas esco-

6
O termo é utilizado para se referir às pessoas que se identificam com o gênero
biológico, no qual nasceram, isto é, nasceram com sexo biológico masculino ou
feminino e assim se autodeclara.

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las. Conquanto, cabe ressaltar que este projeto, indubitavelmente
apresenta visão equivocada acerca do estudo das sexualidades e
das religiões. Grosso modo, o movimento quer que o estudo das
religiões se limita ao cunho cristão e as sexualidades reduzidas
ao binarismo e a função reprodutiva, de modo a invisibilizar os
diferentes aspectos que envolvem a temática das sexualidades.
É triste constatar que, caso haja a implementação de tal
projeto-movimento ficar-se-á mais distante de umasociedade livre
das amarras do sexismo, da homofobia e do racismo religioso.
Também é presumível que a educação deixará de cumprir o papel
de fazer com que o ser humano produza a si mesmo, com ideias,
valores, símbolos, hábitos, atitudes e as habilidades que o torna
distinto de outros seres (Barros, et al. 2011).

Análise e discussão dos resultados

De certa maneira a maioria das escolas brasileiras tende a


olhar para os alunos como indivíduos genéricos, cujos aspetos
relacionados às sexualidades são omitidos, negligenciados e con-
trariando um dos princípios educacionais que visa a promoção do
desenvolvimento da pessoa na sua integralidade. Entretanto, ain-
da que de forma dissimulada a mesma educação que diz promo-
ver o desenvolvimento pleno dos indivíduos, por vezes, participa
do jogo de construção da diferença. Vale ressalta que a diferença
aqui não está positivada, como assim quer Wieviorka (2002). Ela
entra em jogo para excluir e oprimir, sobretudo pessoas que se
mostram fora dos padrões sociais e, naturalmente aceitos; são se-
res desviantes que desobedecem a ordem de gênero (Oliveira,
2017). Desta perspectiva, entender às sexualidades continua a ser
ponto premente para uma discussão, face às novas proposições da
teoria queer. 213
A desconstrução das oposições binárias tornaria manifesta
a interdependência e a fragmentação de cada um dos pó-
los. Trabalhando para mostrar que cada pólo contém o ou-
tro, de forma desviada ou negada, a desconstrução indica

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que cada pólo carrega vestígios do outro e depende desse
outro para adquirir sentido. A operação sugere também o
quanto cada polo é, em si mesmo, fragmentado e plural.
Para os teóricos/as queer, a oposição heterossexualidade/
homossexualidade – onipresente na cultura ocidental mo-
derna – poderia ser efetivamente criticada e abalada por
meio de procedimentos desconstrutivos. (LOURO, 2001,
548).

Com vista nas reflexões de Louro é possível e urgente pen-


sar uma educação que contemple reflexões acerca da temática
queer; debates em que a educação heterossexista seja contestada,
de modo a provocar alterações em relação às práticas educativas
de cunho discriminatório, então normatizadas e naturalizadas,
desde os livros didáticos até as conversas informais do ambiente
escolar, como foi observado durante a pesquisa de campo.
O ideal é criar uma política educacional que valorize os
diferentes corpos que circulam no ambiente escolar. Com isso,
espera-se que as reflexões provocadas pela teoria Queer, abram
espaços para a discussão das diferenças, da multiplicidade, da
sensibilidade e da interdependência do outro. Reitera ainda, que
as normas de gênero operam ao ordenar a corporificação de cer-
tos ideais de feminilidade e masculinidade, ideias que são qua-
se sempre relacionados à idealização do vínculo heterossexual
(BUTLER, 2003b, p. 157).
Um dos principais objetivos da pesquisa foi compreender
de que maneira as concepções docentes, acerca das questões rela-
tivas aos gêneros, às sexualidades e à religião influenciam na prá-
tica docente e na construção da visão dos gêneros, bem como nas
escolhas afetivas dos educandos, dando especial atenção às inter-
seccionalidades entre educação, gênero, sexualidade e religião.
Promover atitudes discriminatórias, emitir juízo de valor
214 ou desqualificar o outro por ser diferente, leva à desigualdade e
prejuízos psicológicos na prática e é neste contexto que se insere
a escola. A escola deve ser a ferramenta capaz de coibir atitudes
e comportamentos preconceituosos, com o intuito de fazer va-
ler o compromisso com a igualdade na diversidade. Entretanto, a

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pesquisa realizada revelou a existência de uma intencionalidade
segregacionista em relação aqueles que, de alguma maneira, não
se encaixam no padrão imposto não apenas pela escolar, como
também pela sociedade.
Como, pois, podemos pensar a matéria dos corpos como
uma espécie de materialização governada por normas re-
gulatórias – normas que têm a finalidade de assegurar o
funcionamento da hegemonia heterossexual na formação
daquilo que pode ser legitimamente considerado como
um corpo viável? (BUTLER, 2016, p. 171).

A partir dos dados levantados por meio da entrevista se-


miestruturada, percebeu-se que os conteúdos relativos ao gênero,
quando abordado, são tratados de maneira genérica, binária e a
partir das crenças e concepções docentes, ainda que fossem nega-
das tais atitudes. O estudo reitera o silêncio em relação aos temas,
tendo em vista que a sexualidade e/ou negação das diferentes
sexualidades no ambiente escolas sempre foi assunto pouco dis-
cutido. Assim sendo, o silenciamento contribui para o enaltecer
atitudes preconceituosas que ocasionam uma série de conflitos e
discriminações, desde piadas, apelidos, brincadeiras que geram
exclusão e humilhações. Dos sujeitos que não se encaixam dentro
do padrão de heteronormatividade.
A esse respeito a direção de uma das escolas pesquisadas
ao ser questionada por uma mãe dealuno que se queixou com ela
por ter sido chamado à direção por agredir outro aluno. A mãe
buscou explicação e diretor lhe disse que tudo começara porque
um aluno havia xingado o filho dela de negro do bozó e mulher-
zinha. A isso a direção formulou a seguinte argumentação:
Mãe, seu filho já lhe falou quantas vezes eu sento para conversar? Ai eu digo:
se conselho fosse bom a gente não dava, a gente vendia. As vezes eu sento com 215
seu filho, não peço para ele mudar o jeito dele de ser, mas só fico perguntando
a ele se ele está preparado para ouvir os comentários, porque ele não pode
agredir ninguém por causa de um comentário maldoso das pessoas. Ele precisa
saber o que ele quer da vida dele (Diretor Escolar, Entrevista realizada,
em maio de 2017).

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Percebe-se na fala da direção que mais uma vez o aluno
culpabilizado por se defender de uma violência sofrida. Embora
não seja a apenas a escola a responsável por tratar sobre as ques-
tões relativas às religiões existentes, e às sexualidades, cabe a ela
informar sobre estas, tendo em vista que tanto à religião e às se-
xualidades contém um conjunto de informações significativas das
histórias de uma ou grupo de pessoas.
Através do trabalho de campo, podemos perceber que a ho-
mofobia, o racismo, o classismoe o sexismo, bem como as outras
formas violentas de excluir o outro acompanham as dinâmicas so-
ciais, haja vista que todas essas violências são escamoteadas numa
mesma roupagem, chamando-as Bullying7.Tal termo pode omitir
o caráter perverso dos comportamentos desiguais empregados
para diferentes pessoas. O bullying homofóbico vai muito além
dos insultos, tendo em vista que suas matrizes estão fundadas
em noções de masculinidades e feminilidades, intrinsicamente re-
lacionada à violência estrutural para com aqueles e aquelas que
fogem às normas(BUTLER 1990; FORMBY 2015). Fazendo-se
necessária a introdução da temática das sexualidades na escola,
como adverte Goldemberg (1998).
As hipóteses de que as concepções de gênero e sexualida-
des vividas pelos professores e professoras acabavam por influen-
ciar no processo de aprendizagem dos docentes, de certa forma,
foi confirmada, visto que em uma das entrevistas, um dos alunos
que dizia não gostar de meninas e por isso era hostilizado por
grande parte dos colegas de sala de aula, assim como pela pro-
fessora. Talvez a atitudes dos colegas de turma e a conivência da
professora, pode nos levar a inferir como sendo a afirmação da

7
De radical inglês bully associa-se ao correspondente brasileiro “valentão”. Já o
216 termo bullying pode ser conceituado como ação negativa, individual ou coletiva,
que expõe o indivíduo ou grupo a outrem. A ação é de caráter intencional e cons-
tante, cujos objetivos é causar ou tentar provocar danos morais, sofrimento e mal-
-estar a uma pessoa. Especialmente nos programas televisismo, muitos ataques às
religiões e as sexualidades, tidas como desviantes são classificadas como bullying,
quando na verdade são explicitamente casos de racismo religioso, homofobia,
preconceito em que o algoz busca a inferiorização do Outro.

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heterossexualidade da professora, uma vez que a ritualização dos
insultos provoca um declínio na autoestima do sujeito (Pascoe
2007, p. 2013). Embora esse aluno não tivesse baixo rendimento
na disciplina da docente referida, o fato dele apresentar um com-
portamento diferente da norma hegemônica, fazia com que seus
colegas o tratassem de maneira homofóbica, podendo ser notado
na fala da professora: “Esse aluno vive dando espetáculo em sala
de aula, porque a turma tira “sarro” dele, falam que ele não gosta
de menina e eu também acho”. Ao ser interrogada pelo pesquisa-
dor se ela teria certeza da escolha de relacionamento afetivo do
aluno, a mesma diz: “Você vai ver. Vai reconhecer! Ele é escanda-
loso, fala com a voz fina, parece mulher”.
É fácil concluir que há nos processos de reconhecimento a
inscrição ao mesmo tempo da atribuição de diferenças e mutável
dos sujeitos queer. Tudo isso implica a instituição de desigual-
dades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, es-
treitamente imbricado com as redes de poder que circulam numa
sociedade. O reconhecimento do outro, daquele ou daquela que
não partilha dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar
que ocupamos. (LOURO, 1999).
No cotidiano escolar observamos que esta condenação mo-
ral pode ser fruto de uma política que divide desde muito cedo,
trabalha com um mundo binário: feminino x masculino. Neste
processo hierarquizado e masculinizado trabalha-se com marca-
dores sociais imprescindíveis para que seja instaurado o discurso
homogeneizador que garantirá a perpetuação de formas hegemô-
nicas de masculinidade e de feminilidade (LOURO, 2000, p. 49).
A partir do exposto, a teoria queer passa a funcionara como uma
ferramenta pedagógica, a fim de articular um diálogo na aquisição
de novos sentidos de enfrentamentos para que as práticas educa-
cionais possam trazer para o seio da escola conceitos e valores que 217
se alinham às vivências dos indivíduos, normatizando assim, suas
singularidades e características que até então eram i­nvalidadas.
Guacira Lopes Louro (2001), em seu importante artigo
Teo­ria Queer: uma política pós-identitária para a educação, sugere uma

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possível articulação entre a pedagogia tradicionalista com a educação
­queer. Sobre isto a autora salienta:
A diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, alheia
ao sujeito e seria compreendida como indispensável para a
existência do próprio sujeito. A diferença deixaria de estar
ausente para estar presente: fazendo sentido, assombran-
do e desestabilizando o sujeito (ibid., 550).

A assertiva da autora pode provocar inquietações de modo


a possibilitar o rompimento de ações e atitudes consideradas
normais ou anormais. Uma educação com foco na pessoa e nas
características que a torna singular, sem antes fixar em marcas
identitárias que a quer dentro de um padrão, por assim dizer
hegemônico. As inquietações da autora apontam para a desmobi-
lização de categorias que tentam de alguma forma categorizar o
sujeito através da biologia, na qual o sexo, o desejo e os gêneros
são fragmentados, o que segundo Cornejo (2012), limita o su-
jeito e suas ações, minando o modelo de identidade, posto que
também é deslegitimado enquanto humano, portanto, a escola é
um dos espaços tóxicos para uma pessoa, especialmente um ado-
lescente que almeja vivenciar seus desejos sexuais, considerados
pelos padrões heteronormativos como desviantes.
[...] aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gê-
nero ou sexualidade, que as atravessam ou que, de algum
modo, embaralham e confundem os sinais considerados
“próprios” de cada um desses territórios são marcados
como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atraves-
sadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos
que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses
sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer pena-
lidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na
melhor das hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possi-
218 velmente experimentarão o desprezo ou a subordinação.
Provavelmente serão rotulados (e isolados) como “mino-
rias”. (LOURO, 2004, p. 87).

Não obstante os entrevistados docentes negassem a exis-


tência de tratamento diferenciado no trato das sexualidades em

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sala de aula, podemos perceber ao longo das entrevistas o des-
conforto que estes expressavam ao serem abordados sobre as-
suntos ligados às essas questões. Notamos também dentro desses
espaços, a obrigatoriedade de se realizar orações de cunho cató-
lico, que, por conseguinte, nos mostra uma intencionalidade em
estabelecer uma crença religiosa aos discentes, esquecendo que
o ambiente escolar deve-se manter laica. Ao contrário, em alguns
momentos era evocado nome de Deus para mostrar que a prática
de atos sexuais deveria ser feita para fins reprodutivos, qualquer
coisa fora do binário era pecado, passivo de sanções divinas. Logo
as categorias, religião e gênero/sexualidades juntam-se para au-
mentar ainda mais a opressão.
Realizamos um questionário com 22 perguntas relaciona-
das aos temas, mas escolhemos duas questões como agentes nor-
teadores para o desenvolvimento e compreensão do que havia
sido proposto para a pesquisa. A primeira questão foi: você con-
sidera que as suas concepções religiosas e de sexualidades
influenciam na sua prática docente?(Grifo nosso). Inicialmen-
te, todos os entrevistados foram unânimes em dizer que não in-
fluenciavam, justificando que respeitavam a forma de ser de cada
aluno. Contudo, quando deixávamos a fala livre, percebemos que,
mesmo que de maneira velada, havia influência religiosa por meio
das mensagens emitidas à turma, os quais deixavam implícitos
que tais dogmas deveriam ser seguidos.
A segunda questão era: você acha que suas concepções
acerca das sexualidades e religião influenciam na aprendiza-
gem dos alunos? (Grifo nosso). A esse questionamento 5 dos 6
entrevistados também responderam que não influenciavam, mas
o incômodo gerado era visível por parte dos alunos quando estes
assuntos eram abordados em sala de aula. Notamos que alguns
entrevistados faziam apelo de ordem moral e emocional para cha- 219
mar atenção da turma, utilizando-se de ferramentas que remetiam
aos aspectos religiosos, fazendo com que esses elementos ame-
drontassem os discentes. A esse respeito, um professor discordou
do restante do grupo ao afirmar que:

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A prática educativa não é neutra, portanto, os docentes acabam por influen-
ciar, de alguma maneira essa prática. Na maioria dos casos, os professores
trabalham confrontando suas concepções com outras práticas de religião e se-
xualidades, já que eles julgam que suas escolhas tanto religiosas e sexuais são
as corretas e isso acaba por interferir nas escolhas dos discentes, já que muitos
alunos veem nos professores um modelo a ser seguido. Além disso, as posturas
dos professores podem criar situações conflituosas e entraves (Professor, En-
trevista realizada, em abril de 2017).

Percebemos que de modo acobertado, a homofobia é per-


mitida dentro do espaço escolar, ao passo que nesse ambiente
hostil, muitos alunos preferem esconder e reprimir seus desejos
sexuais, sua forma de vivenciar o corpo por medo de serem ataca-
dos, rechaçados e humilhados perante aos demais alunos. Com-
portamentos como os descritos acima impedem a livreescolha o
que cada um escolher viver.
De modo geral, 5 dos 6 docentes entrevistados admitiram
que têm dificuldade em abordar os temas relacionados à religião
e às sexualidades em sala de aula. Esses discentes disseram que os
professores justificaram a ausência da abordagem alegando não
possuírem formação adequada para tratar dessas temáticas, além
disso, os professores acrescentaram que o período ideal para ini-
ciar um diálogo em torno desse assunto seria a partir do sexto
ano, isto é, entre 11 e 12 anos, na medida em que o alunado pos-
suiria uma idade mais avançada.
Apenas um dos docentes concorda que tais questões devem
ser abordadas desde o início da escolarização. Este acredita que
as realidades devem ser confrontadas e inseridas no processo de
ensino-aprendizagem, pois trata-se de seres humanos constituí-
dos na sua integralidade, sendo as sexualidades e a religião di-
mensões que envolvem a vida das pessoas. Este docente também
afirma que as concepções de sexualidades e religião acabam por
220 influenciar os discentes, mas que ele busca ser imparcial no trato
dos temas.
Ao serem interpelados, os professores consideram que a
sua escola trata de maneira adequada as temáticas das sexuali-
dades, 4 dos 6 entrevistados disseram que sim, mas ao justificar,

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disseram que falta aos docentes a formação adequada para tratar
o tema. Já 2 dos 6 professores disseram que a escola não abor-
da adequadamente o conteúdo, sendo omissa, sobretudo, no que
tange ao material didático. Acrescentaram ainda que os livros não
fazem muitas referências acerca dos temas religião e sexualida-
des. Os professores reiteraram que quando ocorrem conflitos, os
quais se naturalizam a prática dos estereótipos religiosos ou das
sexualidades, na maioria dos casos, o que se observa é o silêncio,
entretanto, quando o assunto é discutido, faz-se sob a perspectiva
da heterossexualidade e do binarismo. Mostrando que o que deve
prevalecer é o determinismo biológico. Desse modo, é imperativo
que os docentes mantenham uma formação continuada, a fim de
possibilitar efetivamente a implementação desse trabalho com o
corpo discente, (Felipe, 1999). Segundo a autora, há de se criar
uma força tarefa que se constitua de múltiplas visões e reúna es-
forços em todos os sentidos para se combater a homofobia, tanto
dentro dos espaços escolares quanto fora dele.

Conclusão

A partir do que foi exposto espera-se que as reflexões aqui


provocadas possam contribuir para uma análise crítica acerca dos
marcadores sociais que são reproduzidos de forma sistemática
dentro dos espaços escolares. Deseja-se que os discursos hete-
ronormativos possam ser descontruídos, deixando de ser instru-
mento regulador e disciplinador.
Acrescentamos que os questionamentos aqui pontuados
carecem de profundos investimentos em diversos campos, princi-
palmente em se tratando da desfragmentação daquilo que a esco-
la insiste em carregar como “certo”: dogmas e pensamentos que
mais produzem muros e excluem esses sujeitos taxados de “ina- 221
dequados”. Devemos levar em consideração que os apontamentos
aqui feitos não se configuram como um sistema garantidor para
que práticas discriminatórias e homofóbicas cessem, mas no sen-
tido de levantar reivindicações e tentativas que caminhem para

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uma sociedade que se apresente livre de preconceitos, tornan-
do-se relevante para despertar novas ações longe dos discursos
heteronormativos que negam a existência dos indivíduos “des-
viantes e subalternos”. Ansiamos por uma educação que permita
as pessoas serem aquilo que elas desejarem ser.
Por fim, diante de tal cenário, faz-se urgente a ressignifica-
ção dos conceitos e práticas que regem a educação tradicional e
atualmente concebida como normativa pela sociedade. Esse siste-
ma de controle populacional e gerenciamento de como tais cor-
pos devem se comportar, não se constitui mais como algo aceito,
é preciso admitir que os corpos não são mais dóceis (PRECIADO,
2011, p. 15), e diante dessa indocilidade, devemos articular novas
propostas de redirecionamento dentro dos espaços escolares, a
fim de desaprender aquilo que nos foi ensinado historicamente,
redesenhando uma história onde corpos e sujeitos são aceitos e
respeitados, sem que haja padrões reguladores, implicando assim,
em novos desdobramentos acerca de uma educação onde a teoria
queer possa figurar como agente norteador.

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MAIS RESPEITO, POR FAVOR! TEORIA QUEER, ESTEREÓTIPOS E HOMOFOBIAS NA ESCOLA


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hoc. A seleção de artigos para publicação toma como crité-
rios básicos sua contribuição à educação e à linha edito-
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do texto, em ordem alfabética, obedecendo às normas da ABNT.
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titulação, instituição e área que atua, publicações mais impor-
tantes, bem como indicar endereço eletrônico e o endereço
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dos desde que acompanhado de seu respectivo orientador,
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ceberão 02 (dois) exemplares da publicação. Caso contrário
forneceremos cópia em e-book.

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Esta revista, com o formato final de 14cm x 21cm, contém 230 páginas.
O miolo foi impresso em papel Off-Set 75g/m2 LD 64cm x 88cm.
A capa foi impressa no papel Cartão Supremo 250g/m2 LD 66cm x 96cm.
Tiragem de 200 exemplares.
Impressão no mês de novembro de 2019.
Fortaleza | Ceará.

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