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Capítulo 8

Limite e Continuidade

8.1 O que é Cálculo?


A palavra Cálculo vem do latim Calculus que é o diminutivo de Calx, que
significa pedra. Era como se chamavam as pedrinhas do ábaco, que era utilizado
antes da invenção da calculadora e do computador. O ato de manipular as pedri-
nhas do ábaco para encontrar o resultado de uma operação matemática se chama
calcular.
O Cálculo Diferencial e Integral é essencialmente o estudo de variações. Mais
especificamente de grandezas que variam de acordo com uma variável que na
maioria das aplicações é o tempo ou a posição. O Cálculo Diferencial é o estudo
da taxa de variação desta grandeza em relação à variável, enquanto o Cálculo
Integral é o estudo do acúmulo destas variações ao longo de uma região.
O exemplo mais simples de aplicação de Cálculo é provavelmente o estudo da
cinemática. Se uma certa função descreve a posição de uma partícula ao longo do
tempo, a taxa de variação desta função em relação ao tempo, isto é, sua derivada,
descreve a velocidade da partícula. Agora se uma função descreve a velocidade
da partícula, o acúmulo destas velocidades em um intervalo de tempo, isto é, a
integral desta função num certo intervalo de tempo, descreve o deslocamento total
da partícula neste intervalo.
O Cálculo é também a arte de dividir um problema complexo em diversos
problemas pequenos que podem ser aproximados por uma solução simples e so-
mando (ou integrando) estas soluções simples em uma solução geral do problema
complexo, tomando o cuidado de saber se o erro da aproximação é pequeno o
suficiente para a nossa aplicação.
O Cálculo é a linguagem da Ciência. As leis da natureza, que utilizamos para
prever o comportamento do nosso objeto de estudo, são expressos em conceitos
de Cálculo, por meio de equações diferenciais. Essa linguagem é utilizada na Fí-
22 Limite e Continuidade

sica, Química, Biologia, Engenharia, Computação, Economia e diversos outros


campos do conhecimento. Antes de Isaac Newton as previsões feitas pela Ciên-
cia eram geralmente observações de padrões que se repetem e a suposição de que
esse padrão vai continuar se mantendo, como o movimento da Terra em torno do
Sol. As próprias leis de Kepler são basicamente descrições de movimentos que se
repetem. Mas elas não ajudam a entender como podemos mandar um foguete para
Saturno. A segunda lei de Newton nos diz que a aceleração (que é a derivada da
velocidade ou segunda derivada da posição) de um corpo é proporcional à força.
Então conhecendo as forças que agem no objeto, podemos saber como será o mo-
vimento dele mesmo que este movimento nunca tenha acontecido antes. Ao dizer
que a força de atração entre dois corpos é proporcional ao produto das massas e ao
inverso do quadrado da distância entre eles, Newton foi capaz de mostrar que este
movimento deve obedecer às leis de Kepler. Com as leis de Newton e sabendo
fazer as contas, cujo aprendizado acontece em cursos de Cálculo, podemos saber
que forças devem agir em um foguete para levá-lo até Saturno. Essas contas que
devem ser feitas são basicamente derivadas e integrais.
Mesmo com diversas aplicações importantes, o estudo do Cálculo é muito
bom para desenvolver as próprias habilidades analíticas. O estudo do Cálculo
proporciona uma clareza de pensamento e uma capacidade de análise extrema-
mente importantes mesmo sem uma aplicação imediata deste conhecimento. O
Cálculo é também desafiador, divertido e recompensador. É possível perceber o
nosso crescimento acadêmico ao resolver problemas cada vez mais complexos.

8.2 Uma breve história do Cálculo


O primeiro conceito do Cálculo a surgir foi a integral, na Grécia antiga e na
China independentemente, como um método de aproximação de áreas chamado
de Método da Exaustão. Com este método Arquimedes encontrou a fórmula para
a área limitada por uma circunferência, o volume limitado por uma esfera, entre
outros exemplos. No entanto o conhecimento de Álgebra não existia nessa época,
então o número de exemplos em que o Método da Exaustão podia ser aplicado era
muito limitado.
Este método continuou a ser desenvolvido na China, na Índia, no Oriente Mé-
dio e na Europa. O desenvolvimento das fórmulas de Cardano e Ferrari, que
descrevem soluções de polinômios de terceiro e quarto grau respectivamente, per-
mitiu a aplicação do Método da Exaustão a um número maior de exemplos. O
trabalho de Kepler com o cálculo da área limitada por elipses foi também uma
contribuição importante para o conceito da integral.
O conceito de derivada vem do problema de se encontrar a inclinação de uma
curva em um determinado ponto. Apesar deste problema existir desde a anti-
8.2 Uma breve história do Cálculo 23

guidade, foi no começo do século XVII que foi mais bem desenvolvido, especi-
almente com os trabalhos de Descartes e Fermat. Os dois desenvolveram uma
técnica para encontrar a equação da reta tangente à curva em um determinado
ponto.
Imagine que a curva y = f (x) descreve a elevação de um certo terreno. Se essa
curva descreve uma reta, o terreno é uma ladeira com uma certa inclinação. É
Dy
fácil calcular a inclinação de uma reta tomando dois pontos e calculando a = Dx .
2
Agora imagine que f (x) = x . A curva y = f (x) pode representar por exemplo um
halfpipe onde se faz manobras com skate. Neste terreno a inclinação vai aumen-
tando à medida que nos afastamos do ponto mais baixo. Intuitivamente podemos
perceber que existe uma inclinação diferente para cada ponto da curva y = x2 , o
problema agora é calcular este valor.

Figura 8.1: Reta tangente a um ponto.

Por simplicidade vamos escolher o ponto (1, 1). Podemos ver na figura 8.1
que existe uma reta que passa pela parábola no ponto (1, 1) e que possui a mesma
inclinação da parábola. A equação desta reta é y = ax + b, onde a representa a
inclinação e b o intercepto da reta com o eixo y. Como esta reta passa pelo ponto
(1, 1) temos 1 = a · 1 + b que implica b = 1 a e a equação da reta pode ser escrita
como y = ax + 1 a ou y = a(x 1) + 1.
24 Limite e Continuidade

Exemplo 8.1 (Método de Descartes). 1

Descartes desenvolveu a Geometria Analítica e a utilizou para calcular a equa-


ção desta reta. Primeiro traçamos uma reta perpendicular à reta que queremos
encontrar que passa pelo ponto (1, 1). Esta reta intercepta o eixo x em um ponto
com coordenadas (x1 , 0). Basta encontrar o valor de x1 que podemos calcular a
inclinação da reta normal e tomando o oposto do inverso encontramos a inclinação
da reta tangente.

Figura 8.2: Ilustração do método de Descartes.

Agora traçamos uma circunferência centrada em (x1 , 0) que passa pelo ponto
(1, 1). A reta que queremos calcular é a reta tangente a esta circunferência que
passa pelo ponto (1, 1). Este ponto pertence tanto à curva y = x2 quanto à cir-
cunferência que podemos representar por (x x1 )2 + y2 = r2 . Então substituindo
1 Este
exemplo e o próximo foram inpirados no vídeo https://www.youtube.com/watch?v=
xKfEmbWBgvM
8.2 Uma breve história do Cálculo 25

y = x2 na equação da reta temos

r2 (x x1 )2 (x2 )2 = 0 . (8.1)

Esta equação é um polinômio do qual o ponto x = 1 é uma raiz. E como as curvas


se tocam mas não se cruzam, esta raiz é dupla, o que nos permite escrever

r2 (x x1 )2 x4 = (x 1)2 g(x) . (8.2)

Expandindo os dois lados desta equação encontramos

r2 x12 + 2x1 x x2 x4 = (x2 2x + 1)g(x) . (8.3)

Do lado esquerdo temos um polinômio de quarto grau enquanto no lado direito


temos um polinômio de segundo grau multiplicado por g(x). Portanto g(x) deve
ser um polinômio de segundo grau, isto é, g(x) = Ax2 + Bx +C. Assim
r2 x12 + 2x1 x x2 x4 = (x2 2x + 1) · (Ax2 + Bx +C) ,
r2 x12 + 2x1 x x2 x4 = Ax4 + Bx3 +Cx2 2Ax3 2Bx2 2Cx + Ax2 + Bx +C ,
(r2 x12 ) + 2x1 x x2 x4 = Ax4 + (B 2A)x3 + (C 2B + A)x2 + (B 2C)x +C .

Comparando os dois polinômios termo a termo encontramos


⇥ 4⇤
x : 1 = A =) A = 1 , (8.4)
⇥ 3⇤
x : 0 = B 2A =) B = 2A = 2 , (8.5)
⇥ 2⇤
x : 1 = C 2B + A =) C = 2B A 1 = 4 , (8.6)
⇥ 1⇤ B 2C
x : 2x1 = B 2C =) x1 = =3, (8.7)
⇥ 0⇤ 2
x : r2 x12 = C =) r2 = x12 +C = 5 . (8.8)

Com este valor de x1 sabemos que a reta normal passa pelos pontos (1, 1) e (3, 0)
Dy
e possui inclinação Dx = 03 11 = 12 . Portanto a inclinação da reta tangente deve
1
ser a = 1/2 = 2 e a equação da reta é y = 2(x 1) + 1 ou apenas

y = 2x 1 (8.9)

pelo método de Descartes.

Exemplo 8.2 (Método de Fermat).

Agora consideramos o método de Fermat. Nosso objetivo é encontrar os valo-


res a e b que representam a reta tangente à curva y = x2 no ponto (1, 1). Sabemos
que b = 1 a e a reta por ser escrita como y = a(x 1) + 1 pelo fato dela passar
26 Limite e Continuidade

pelo ponto (1, 1). Agora consideramos x1 como a coordenada horizontal do ponto
em que a reta tangente intercepta o eixo x. Seja a um valor positivo e considere o
ponto 1 + a no eixo x. O ponto da reta tangente com esta coordenada horizontal
tem coordenada horizontal y1 .

Figura 8.3: Ilustração do método de Fermat.

Na figura 8.3 temos dois triângulos retângulos equivalentes, um de base 1 x1


e altura 1 e outro de base 1 + a x1 e altura y1 . Logo

1 y1
= . (8.10)
1 x1 1 + a x1
Isolando y1 temos

1 + a x1 a
y1 = = 1+ . (8.11)
1 x1 1 x1

No valor de x = 1+a temos uma certa distância entre a reta tangente e a curva.
Esta distância diminui se consideramos um valor de a pequeno, mas só podemos
8.2 Uma breve história do Cálculo 27

dizer que esta distância é nula se a = 0. Mas vamos fazer de conta que a distância
é de fato nula. Neste caso temos

y1 = f (1 + a) = (1 + a)2 = 1 + 2a + a2 . (8.12)

Comparando com a equação (8.11) temos


a
1 + 2a + a2 = 1 + . (8.13)
1 x1

Subtraindo 1 dos dois lados temos


a
2a + a2 = (8.14)
1 x1

que podemos simplificar ainda mais dividindo os dois lados por a, resultando em

1
2+a = , (8.15)
1 x1

de onde podemos isolar o x1 e obter

1
x1 = 1 . (8.16)
2+a

A suposição de que y1 = f (1 + a) só vale se a = 0. Então substituindo a = 0 na


equação (8.16) temos

1 1
x1 = 1 = . (8.17)
2 2
Com este valor sabemos que a reta tangente passa pelos pontos (1, 1) e (1/2, 0) e
Dy
tem inclinação a = Dx = 11 1/02 = 2 e a equação da reta tangente é y = 2(x 1) + 1
ou apenas

y = 2x 1. (8.18)

O método de Descartes é mais trabalhoso, mas infelizmente é aplicável apenas


a polinômios. O método de Fermat é mais simples e aplicável a um número de
curvas maior que o método de Descartes. Entretanto, o método de Fermat tem uma
certa estranheza. Entre as equações (8.14) e (8.15) dividimos por uma quantidade
a, o que só pode ser feito se a 6= 0. Mas logo depois substituímos a = 0. Esta
estranheza se repete no método desenvolvido por Fermat para encontrar os valores
máximos de uma função.
28 Limite e Continuidade

Exemplo 8.3 (Problema de otimização). 2

Imagine que temos 1m2 de alumínio para fazer uma lata cilíndrica. O raio
e a altura deste cilindro podem variar, desde que a área da lateral e das tampas
somadas seja 1m2 . Qual o raio e altura do cilindro que maximiza o volume contido
pelo cilindro?
A área do cilindro e das tampas é dada pela fórmula A = 2pr2 + 2prh, onde r é
o raio do cilindro e h a sua altura. Isolando a variável h nesta equação encontramos
A
h = 2pr r, lembrando que a área é fixa então a altura depende apenas do raio
nessa expressão. O volume contido pelo cilindro é V = pr2 h e substituindo o
valor de h encontrado temos

2 A A
V (r) = pr r = r pr3 . (8.19)
2pr 2

Figura 8.4: Ilustração do método de Fermat para encontrar o valor máximo de


uma função.

Esta expressão para o volume é um polinômio de terceiro grau com compor-


tamento exibido na figura 8.4 à esquerda. Este gráfico
q se anula em r = 0, quando
A
o cilindro se torna um fio sem espessura, e em r = 2p , quando a altura é nula e
todo o material foi gasto nas tampas. Mas entre estes dois valores o valor de V (r)
cresce até chegar num valor máximo e depois diminui. Nosso objetivo é encontrar
as coordenadas deste valor máximo.
Pelo método de Fermat traçamos linhas horizontais, como na figura 8.4 à di-
reita. Estas linhas podem não cruzar o gráfico, podem cruzar em dois pontos ou
2 Este exemplo foi inpirado no livro O poder do infinito de Steven Strogatz.
8.2 Uma breve história do Cálculo 29

em apenas um ponto. A linha horizontal que atravessa o máximo em um ponto


apenas passa pelo ponto de máximo do gráfico. Suponha que a reta horizontal
intercepta o gráfico em dois pontos com coordenadas horizontais x = a e x = b
respectivamente. A coordenada vertical destes pontos deve ser a mesma, portanto
V (a) = V (b). Então podemos fazer a seguinte manipulação algébrica.

V (a) = V (b) ,
A A
a pa3 = b pb3 ,
2 2
A
(a b) = p(a3 b3 ) ,
2
A
(a b) = p(a b) · (a2 + ab + b2 ) .
2
Se a 6= b podemos dividir os dois lados por p(a b) e obter
A
= a2 + ab + b2 . (8.20)
2p
Podemos descrever a reta horizontal que cruza o gráfico em um ponto como o
caso particular da reta que cruza em dois pontos em que a = b. Substituindo b = a
no resultado obtido encontramos
r
A A
3a2 = =) a = . (8.21)
2p 6p
Com uma área de A = 1m2 temos que o raio do cilindro deve ser a ' 0, 23m e uma
A
altura h = 2pa a ' 0, 46m, que gera um cilindro com volume V (a) = A2 a pa3 =
q q q
A A A A A A 3
2 6p p 6p 6p = 3 6p ' 0, 077m .

Este resultado está absolutamente correto, mas foi encontrado por métodos
questionáveis. Ao dividir por (a b), o resultado encontrado só é válido se a 6= b.
Divisões por zero podem chegar a conclusões absurdas como na sequência de
manipulações
a=b,
2
a = ab ,
a b = ab b2 ,
2 2

(a b)(a + b) = b(a b) ,
a+b = b ,
2b = b ,
2=1.
30 Limite e Continuidade

O próprio Fermat sabia que estes passos são questionáveis e apresentava o método
como uma maneira de encontrar o valor, e não uma definição do valor.
Ainda no século XVII, Newton e Leibniz desenvolveram ainda mais o Cál-
culo Diferencial e Integral, baseados no Método da Exaustão de Arquimedes e
no método de Fermat. Ambos mostraram que a derivada e a integral, que até
então eram conceitos geométricos completamente independentes, estão intima-
mente ligados pelo Teorema Fundamental do Cálculo. Newton foi o primeiro a
desenvolver esta versão do Cálculo, mas Leibniz foi o primeiro a publicar, mas
ambos desenvolveram o mesmo conhecimento de maneira independente. O tra-
balho deles, especialmente com as aplicações na Física, fez com que o Cálculo
Diferencial e Integral deixasse de ser apenas uma técnica utilizada na geometria
para um ramo da matemática independente dos demais. Por isso hoje considera-
mos Newton e Leibniz os inventores do Cálculo, apesar dos conceitos de derivada
e integral serem anteriores a ambos.
Newton manteve os problemas de divisão por zero do método de Fermat. Ele
mesmo dizia que o método dele servia apenas para calcular o valor da derivada, e
não como uma prova rigorosa da existência da derivada. Ele postulava a existência
da derivada da função, o que é razoável na maioria das aplicações. Leibniz tentou
embasar de maneira mais rigorosa o método usando quantidades chamadas por ele
de diferenciais, que são quantidades positivas, mas menor que qualquer número
real positivo. Mesmo esta abordagem ainda não resolvia o problema da divisão por
zero, mas as previsões científicas feitas a partir deste método eram confirmadas
pelas experiências, então a comunidade científica não via problemas em utilizar
este método enquanto não encontrasse um caso problemático.
Surge então no século XIX a Série de Fourier. Ao desenvolver um método ca-
paz de descrever a propagação do calor em uma barra de ferro, Fourier encontrou
tais casos problemáticos. Estas soluções trouxeram a necessidade de uma defini-
ção rigorosa do que é uma função contínua e do que não é. A definição moderna
de continuidade, que resolve os problemas encontrados de maneira rigorosa, veio
com Weierstrass e foi aprimorada por Cauchy. Seguindo seus passos, Riemann
aprimorou a noção de integral com o mesmo rigor.
Por este motivo histórico, apesar do conceito de integral surgir antes do con-
ceito de derivada, que por sua vez é anterior ao conceito de limite, hoje aprende-
mos primeiro o conceito de limite nos cursos de Cálculo, para depois aprendermos
derivada e finalmente integral.

8.3 Infinito
Além da divisão por zero, uma dificuldade do Cálculo é que frequentemente o
valor que queremos calcular nunca pode ser obtido em um número finito de pas-
8.3 Infinito 31

sos. Um exemplo deste problema ocorre quando queremos obter a representação


decimal do número racional 1/3. Ao aplicar o algoritmo de divisão encontramos a
cada passo uma aproximação cada vez melhor que a anterior na forma

1/3 ' 0, 3
1/3 ' 0, 33
1/3 ' 0, 333
1/3 ' 0, 3333
1/3 ' 0, 33333
1/3 ' 0, 333333
1/3 ' 0, 3333333
1/3 ' 0, 33333333

No entanto, não é possível escrever o valor exato de 1/3 nesta forma. O melhor
que podemos fazer é, dado um erro que consideramos aceitável, escrever a repre-
sentação decimal com um erro menor que o aceitável.
Outro exemplo mais próximo ao Cálculo é a forma como Arquimedes encon-
trou uma aproximação para p. Seja uma circunferência de raio a onde desenhamos
um hexágono inscrito e um hexágono circunscrito como na figura 8.5.

Figura 8.5: Ilustração do método da exaustão para encontrar uma aproximação de


p.

Na figura à esquerda, o lado do hexágono inscrito é igual ao raio da circun-


ferência, e o seu perímetro vale p = 6a. O lado do hexágono circunscrito vale
2a
p
3
e o perímetro externo vale P = 12a
p . Como o perímetro interno é menor que o
3
comprimento da circunferência, que por sua vez é menor que o perímetro externo,
32 Limite e Continuidade

temos

12a 6 p
6a < 2pa < p =) 3 < p < p = 2 3 ' 3, 4641 . (8.22)
3 3

A diferença entre a aproximação menor e a aproximação maior é de mais de


10% das aproximações, o que é um erro grande na maioria das aplicações. Mas
a partir desta aproximação podemos encontrar uma ainda melhor dobrando o nú-
mero de lados dos polígonos, como ilustrado na figura 8.5 à direita. A linha trace-
jada corresponde à aproximação anterior. Comparando a nova aproximação com a
aproximação anterior e com alguma geometria envonvendo o teorema p de Pitágoras
p
encontramos que o lado do polígono de 12 lados inscritos vale 2 22 3 a e o lado
p p
do polígono de 12 lados circunscrito vale 2 p2 p3 a, gerando uma aproximação
2+ 3

p p p p p p p p
2 3 2 3 2 3 2 3
24 a < 2pa < 24 p p a =) 12 < p < 12 p p
2 2+ 3 2 2+ 3
(8.23)

Nesta aproximação temos que 3, 10582854 < p < 3, 21539031. A diferença entre
o maior valor e o menor valor diminuiu em relação à aproximação por hexágonos.
Mas se ainda não estamos satisfeitos com essa aproximação, podemos melhorá-la
ainda mais dobrando novamente o número de lados. Com polígonos de 24 lados
temos
q p q p
p p
2 2+ 3 2 2+ 3
24 < p < 24 q p p (8.24)
2
2+ 2+ 3

que implica 3, 13262861 < p < 3, 15965994, agora com uma diferença menor que
1% do valor destas aproximações.
Dobrando novamente o número de lados, aproximando a circunferência por
polígonos de 48 lados temos
r q r q
p p p p
2 2+ 2+ 3 2 2+ 2+ 3
48 < p < 48 r q (8.25)
2 p p
2+ 2+ 2+ 3

ou 3, 13935020 < p < 3, 14608622. Finalmente, aproximando por polígonos de


8.3 Infinito 33

96 lados temos
s r s r
q p q p
p p
2 2+ 2+ 2+ 3 2 2+ 2+ 2+ 3
96 < p < 96 s r (8.26)
2 q p p
2+ 2+ 2+ 2+ 3

ou 3, 14103195 < p < 3, 14271460, agora com uma diferença menor que 0, 1% do
valor das aproximações. Na época em que Arquimedes calculou esta aproxima-
ção, não se utilizava representações decimais. Arquimedes na verdade calculou
números racionais menores que a aproximação por baixo e números racionais
maiores que a aproximação por cima. Na aproximação por polígonos de 96 lados
Arquimedes encontrou os números racionais
1 1 22
3+ < p < 3+ = (8.27)
71 70 7
e a aproximação p ' 22 7 é utilizada até hoje em aplicações em que um erro da
ordem de 0, 1% é aceitável. Outros matemáticos continuaram a aproximação feita
por Arquimedes para polígonos com número de lados ainda maiores. O mate-
mático chinês Zu Chongzhi utilizou polígonos de 24576 lados para encontrar a
aproximação p = 355113 com um erro de 0, 00001%. Os últimos matemáticos a cal-
cular aproximações de p por este método foram o francês François Viète no século
XVI, com polígonos de 393216 lados e o neerlandês Ludolph von Ceulen no co-
meço do século XVII com 262 lados (um número com 19 dígitos), num processo
que levou 25 anos para conseguir calcular os 35 primeiros dígitos de p e final-
mente o austríaco Christoph Grienberger calculou os 38 primeiros dígitos de p, o
último a calcular pelo método da exaustão de Arquimedes.
Newton mostrou que é possível calcular p de maneira muito mais acelerada
utilizando séries infinitas para se aproximar o valor de uma integral. As técnicas
do Cálculo desenvolvidas por Newton permite calcular os mesmos dígitos que
von Ceulen calculando a soma de 50 números, o que pode ser feito em horas com
lápis e papel, ou em frações de segundos utilizando o computador. No momento
em que este texto foi escrito, o recorde de dígitos calculados de p é de 50 trilhões
de dígitos, conquistado por Timothy Mullican em 2020 em uma operação que
levou quase um ano.3 .
Na questão de precisão, os 35 dígitos obtidos por von Ceulen já são suficientes
para, dado o raio do universo, calcular o perímetro do universo com precisão de
átomos. Não há uma necessidade prática de conhecer mais dígitos de p, mas essa
“corrida” desenvolve técnicas que possuem diversas outras aplicações.
3 https://blog.timothymullican.com/calculating-pi-my-attempt-breaking-pi-record
34 Limite e Continuidade

8.4 Paradoxo de Aquiles e a Tartaruga


O filósofo pré-socrático Zenão de Eleia acreditava que o movimento era uma
ilusão e para refutar esta ideia formulou alguns paraxodos que aparentemente im-
plicavam uma contradição. O paradoxo de Zenão mais famoso se chama paradoxo
de Aquiles e a Tartaruga. Nele o herói grego Aquiles e uma tartaruga apostam
uma corrida. Como Aquiles é muito mais rápido que a tartaruga, ela começa com
uma certa vantagem. Dada a largada, Aquiles precisa de uma certa quantidade
de tempo t0 para percorrer a distância original d0 entre ele e a tartaruga. Mesmo
sendo lenta, a tartaruga se move com uma certa velocidade, então neste intervalo
de tempo inicial a tartaruga percorreu uma distância adicional d1 , ficando à frente
de Aquiles, que agora precisa de um intervalo de tempo adicional t1 para percorrer
essa distância d1 . Neste novo intervalo de tempo a tartaruga percorre mais uma
distância d2 , que será percorrida por Aquiles em um novo intervalo de tempo t2 .
Em cada intervalo de tempo adicional a tartaruga sempre percorrerá uma dis-
tância adicional positiva, por menor que seja, exigindo de Aquiles um número
infinito de intervalos de tempo até finalmente alcançar a tartaruga. Segundo Ze-
não esta necessidade de um número infinito de intervalos de tempo exigiria de
Aquiles uma quantidade de tempo infinita para alcançar a tartaruga, motivo pelo
qual o movimento seria uma ilusão.
Imagine que a velocidade da tartaruga é de 1 metro por segundo e que a de
Aquiles é de 10 metros por segundo. Se a distância original é de 100 metros,
temos a seguinte sequência de intervalos de tempo:

d0 = 100m =) t0 = 10s ,
t0 = 10s =) d1 = 10m =) t1 = 1s
t1 = 1s =) d2 = 1m =) t2 = 0.1s
t2 = 0.1s =) d3 = 0.1m =) t3 = 0.01s

Aqui podemos ver que em um número finito de passos neste procedimento


Aquiles não alcança a tartaruga. O paradoxo surge da suposição de que os infinitos
passos necessários não podem ser feitos em um tempo finito, ou que uma soma de
infinitos números reais não pode resultar em um número finito.
Este problema pode ser resolvido de maneira mais simples considerando que
a velocidade relativa entre Aquiles e a tartaruga é de 9 metros por segundo, e
nessa velocidade relativa a distância inicial de 100 metros é percorrida em T =
100
9 segundos ou T = 11, 111 . . . segundos. Agora está claro que cada passo do
raciocínio de Zenão acrescenta um dígito na dízima periódica que representa o
resultado final, que é um número racional finito.
8.5 Necessidade de limites 35

8.5 Necessidade de limites


Nos exemplos vistos tivemos duas dificuldades. No cálculo da derivada ti-
vemos que operar uma divisão por uma certa quantidade que depois foi tomada
como zero, o que invalida a divisão. No cálculo de p pelo método da exaustão a
dificuldade foi nunca obter o valor exato. Os casos vistos foram bem sucedidos
no sentido de que conseguimos calcular o valor desejado, ou pelo menos chegar
próximo dele. No entanto um procedimento ruim pode chegar a um resultado
errado.

Figura 8.6: Aproximação da circunferência que sugere um resultado errado para


p.

Imagine que queremos calcular p aproximando a circunferência por um qua-


drado como na figura 8.6 à esquerda. O lado do quadrado é igual ao diâmetro da
circunferência, que vale d, e o perímetro do quadrado é obviamente P = 4d. A
razão entre o perímetro e o diâmetro sugere uma aproximação de p por 4. Agora
cada canto do quadrado é transferido para a circunferência como na figura 8.6 no
meio. O novo polígono possui o mesmo perímetro que o quadrado original, então
temos uma razão entre perímetro e diâmetro igual a 4.
Podemos repetir o procedimento com todos os cantos que não estão contidos
na circunferência, como ilustrado na figura 8.6 à direita. A cada passo o polígono
se aproxima cada vez mais da circunferência, mas mantendo sempre o mesmo
perímetro. Confiando ingenuamente neste algoritmo poderíamos pensar que p =
4, o que sabemos que é errado. Neste exemplo específico o erro vem do fato de
que o limite da integral não é necessariamente igual à integral do limite, fato que
vai ser explorado com o conceito de convergência uniforme.
Quando conhecemos a resposta do problema podemos discernir qual procedi-
mento produziu o resultado correto. Mas e se ainda não conhecemos a resposta?
Como podemos saber em qual procedimento confiar? A resposta é dada pelo con-
ceito de limite. Aprendendo a calcular o limite de um certo procedimento quando
o número de passos tende ao infinito podemos responder se o procedimento de
fato produz um resultado confiável. Da mesma forma podemos calcular o limite
36 Limite e Continuidade

de uma função que não está definida em x = 0 para saber quando podemos confiar
no resultado encontrado para a derivada de uma função. Por este motivo nos cur-
sos de Cálculo Diferencial e Integral o conceito de limite é visto antes de derivada
e integral.

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