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Ana B. Pereira | n.º 7995 | 11.

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Babel (2006) e as relações


interculturais contemporâneas
Introdução
Babel é o nome do filme que foi dirigido pelo cineasta
mexicano Alejandro González Iñárritu e estreou em 2006.
Contou com as atuações de estrelas como Brad Pitt, Cate
Blanchett, Gael García Bernal e Kôji Yakusho. Vencedor
do Óscar de melhor banda sonora em 2007 pelo trabalho
de Gustavo Santaolalla, é, desde a sua primeira exibição,
aplaudido pela profundidade com que aborda as relações
interculturais e o desfecho inesperado das nossas ações.
[1]

Figura 1- Poster do filme Babel [1]

Resumo da trama
O enredo de Babel passa-se em quatro países: Estados Unidos da América,
México, Marrocos e Japão.

Richard (Brad Pitt) e Susan (Cate Blanchett), um casal americano, após a morte
súbita do seu filho mais novo, viajam para Marrocos. Susan é alvejada
acidentalmente por Yussef, um menino marroquino, o que desencadeia o enredo do
filme. Richard e o guia turístico local fazem todos os possíveis para manter Susan
viva, sendo impossível aceder a um hospital e tendo sido negado o envio de uma
ambulância por suspeitas de terrorismo na área onde ocorreu o acidente.
Perseguidos pela polícia, o irmão de Yussef é gravemente ferido e o rapaz
entrega-se às autoridades.

Simultaneamente, no Japão, Chieko Wataya (Rinko Kikuchi), uma jovem surda e


muda, tenta lidar com o suicídio da sua mãe. Desta forma, tem uma relação
atribulada com o pai. Chieko, ao enfrentar sentimentos de isolamento social que
decorrem da sua maneira diferente de comunicar - linguagem gestual -, demonstra
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uma série de comportamentos rebeldes e perversos. Embora esta peça da narrativa


possa parecer desconexa com as restantes, é revelado ao espetador que a arma
que feriu Susan foi oferecida a um homem marroquino pelo pai da jovem (Kôji
Yakusho).

Por fim, enquanto Richard aguarda a recuperação de Susan, a ama dos filhos do
casal, Amelia (Adriana Barraza), vê-se impossibilitada de comparecer ao casamento
do seu filho no seu país de origem, o México. Ainda que bem intencionada, ao levar
Debbie (Elle Fanning) e Mike (Nathan Gamble), com a companhia do seu sobrinho,
para lá da fronteira americana sem a autorização dos pais, é retida pelas
autoridades ao regressar aos Estados Unidos. Em fuga, são encontrados numa área
remota e Amelia é deportada.[1]

Análise

O mito da torre de Babel

O mito bíblico da Torre de Babel constitui uma das mais famosas tentativas do ser
humano explicar a coexistência de um vasto leque de línguas no mundo. Narra-se a
história de uma torre construída até aos céus, que, no entanto, é destruída por
vontade de Deus. Esta força superior interfere na comunicação dos construtores e
faz com que as suas palavras se confundam, levando eventualmente à ruína da
grande construção. De facto, o termo babel poderá ter sido usado como um jogo de
palavras vindo do hebreu balal - “confundir”.[2]

No contexto do filme de Iñárritu, a ideia da torre de Babel consiste na existência de


um passado ou essência partilhados, mas, também, de mal entendidos que surgem
do choque entre modos díspares de comunicar e de ver o mundo.

Multiculturalidade, multiculturalismo e globalização


As relações estabelecidas entre indivíduos de culturas distintas caracterizam-se,
simultaneamente, pela semelhança e pelo contraste.
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Por um lado, Babel realça o contraste entre as várias línguas e culturas, para além
dos desentendimentos e conflitos que daí surgem. Por exemplo, os habitantes da
aldeia marroquina onde Susan é acolhida não entendem os turistas europeus e
norte americanos e vice-versa, criando-se um clima de desconfiança que precipita a
ação do filme. Ainda mais, no Japão, a surdez/mudez de Chieko leva à sua rejeição
por parte de um rapaz em quem estava interessada.

Por outro lado, Babel demonstra a universalidade de certas experiências humanas,


nomeadamente as emocionais e interpessoais. O filme recorre à identificação do
espetador com as personagens para ‘eliminar’ as barreiras que se erguem entre
pessoas de nacionalidades e raças diferentes. A título de exemplo, nos primeiros
dez minutos do filme, a contiguidade das cenas em que Yussef e Debbie e Mike
correm e se escondem pretende enaltecer a inocência de ambos, embora o
ambiente em que tenham crescido seja tão diferente. Desta forma, o alvejar de
Susan por Yussef é tratado como um acidente nascido do ambiente circundante, e
não um indicador de maldade no menino. Para além disso, a relação distante de
Chieko com o seu pai durante o seu luto pela mãe é paralela ao conflito entre Susan
e Richard após a morte do seu filho.

Babel é um filme multiculturalista?


De acordo com o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, o multiculturalismo
consiste na defesa da “coexistência de diferentes culturas, etnias ou religiões numa
mesma comunidade” (“multiculturalismo | Dicionário Infopédia da Língua
[3]
Portuguesa”) . Embora o filme não transmita uma mensagem moral vincada,
podemos considerar que assume uma posição multiculturalista ao expor de maneira
empática as personagens de diferentes culturas, realçando as suas semelhanças
com o espetador e, assim, promovendo a tolerância no público.

A tese do multiculturalismo torna-se cada vez mais discutida à medida que as


populações se tornam cada vez mais heterogéneas. Isto pode ser explicado pelo
aumento das migrações e da mobilidade dos indivíduos, um fenómeno que se
relaciona com o adensar generalizado das redes de comunicação.
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Globalização
Não existe uma noção universal de globalização. Vários autores na área da
Economia, e das Ciências Sociais, de um modo geral, propuseram definições de
“globalização”. Contudo, devido à natureza mutável e multifacetada do fenómeno,
isto demonstrou-se um desafio difícil. Para os objetivos desta análise, considerarei
que o processo de globalização das sociedades consiste no aumento, que decorre
atualmente, das relações de interdependência entre Estados de todo o mundo e do
desvanecimento do protecionismo1 no comércio internacional. Além disso,
carateriza-se pela diminuição da importância da proximidade física como
consequência da disseminação das tecnologias da informação e comunicação -
entre outras, a internet. [4]

A globalização das economias leva à repercussão de um qualquer incidente por


todo o mundo, como é o caso que começa com oferta da arma de caça a um
marroquino e se estende até ao ferimento de Susan e à deportação de Amelia para
o México. A isto podemos chamar “efeito borboleta”.

De acordo com Peter Dizikes, um jornalista científico norte americano, “Traduzido


para a cultura de massas, o efeito borboleta tornou-se uma metáfora para a
existência de momentos aparentemente insignificantes que alteram a história e
moldam destinos.” (Dizikes). O efeito borboleta é, então, um conceito científico que
foi reinterpretado pelo público em geral para melhor compreender a
imprevisibilidade da civilização global. Atualmente, é quase impossível apontar
alguém no mundo que viva totalmente isolado, isto é, alguém que não esteja sujeito
ao efeito borboleta. Na história da Economia, podemos apontar a criação de uma
“bolha” no mercado imobiliário americano que levou à falência do banco Lehman
Brothers e, por sua vez, à grande crise financeira de 2007-2008, que se alastrou por
todo o mundo. [5]

1
O protecionismo é a teoria que defende a conservação e proteção das indústrias nacionais
face à competição do resto do mundo, geralmente aplicada através de medidas como taxas
alfandegárias elevadas, quotas e outras barreiras à importação.
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Comparação entre o meio rural e o meio urbano

Embora a globalização signifique um aumento da mobilidade entre espaços


distantes, ainda é possível observar grandes contrastes entre os meios urbano e
rural. No filme Babel, para além do foco que é dado às personagens e aos seus
conflitos interiores, é também importante analisarmos o retrato do meio envolvente.
Enquanto as cenas no Japão são marcadamente citadinas, as marroquinas
passam-se quase todas na aldeia. Na narrativa do México, vemos que a
demarcação entre rural e urbano é mais ambígua.

Campo Cidade

Predominância do setor primário e Diversidade e complexidade das


economia de subsistência atividades económicas

Conexão com a natureza, paisagem Ausência da natureza, paisagem


intacta ou pouco alterada humanizada

Sugere simplicidade e reflexão Sugere caos e desorientação

Coexistem no mundo economias em diferentes pontos de desenvolvimento2

2
Esta noção de desenvolvimento não se refere a uma evolução para um sistema
inerentemente superior. Refere-se apenas às transformações mais comuns entre as
economias contemporâneas, que se centram na industrialização e no modelo
ocidental/democrata liberal. Note-se que, por esta definição, as economias menos
desenvolvidas podem responder melhor a certos desafios do que as desenvolvidas,
nomeadamente ao do uso sustentável dos recursos e proteção do ambiente.
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Figura 2 - comércio na cidade mexicana Figura 3 - construção civil na cidade mexicana

Figura 4 - via de comunicação de cidade japonesa Figura 5 - vida noturna em cidade japonesa

(Imagens retiradas do filme em análise)

As cidades são caracterizadas por uma grande afluência de pessoas, o que resulta
no aumento da diversidade e quantidade de atividades económicas exercidas. No
espaço urbano predominam as atividades do setor terciário - os serviços (figura 2) -,
que, de um modo geral, ganham importância com a progressiva modernização de
atividades do setor primário, sobretudo a agricultura, e com a consequente
libertação da mão de obra e êxodo rural. Destacam-se atividades como o comércio,
o turismo, a cultura e o lazer (por exemplo, as atividades noturnas - figura 5).
Também é de notar a importância do setor secundário - indústrias e construção civil
(figura 3). O meio urbano é dotado de uma fácil acessibilidade que potencia a
mobilidade de pessoas e mercadorias, geralmente traduzida em redes rodoviárias e
ferroviárias densas e movimentadas (figura 4). No entanto, o dinamismo deste
espaço resulta na total transformação e humanização da paisagem natural, sendo
antes substituída por construções em altura, pavimentações impermeáveis e todo o
tipo de coberturas artificiais da superfície terrestre. [6]
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No filme, a ideia da cidade é acompanhada de luzes coloridas, música enérgica,


ruídos de trânsito e alteração rápida de imagens. Desta forma, a cinematografia
transmite o caos da urbe e a desorientação que causa nas personagens.

Figura 6 - árvore perto de Tazarine, em Marrocos Figura 7 - paisagem perto de Tazarine, em


Marrocos

Figura 8 - troca de arma por moeda e uma cabra Figura 9 - gado caprino perto de Tazarine, em
entre personagens marroquinas Marrocos

(Imagens retiradas do filme em análise)

Por outro lado, os espaços rurais definem-se pela predominância das atividades
ligadas à exploração agrícola e pecuária (também silvícola, embora não com tanta
relevância para esta análise), isto é, do setor primário. No mundo ocidentalizado, o
meio rural tem vindo a ser “invadido” pelo crescimento das cidades, para além de,
nos países desenvolvidos, enfrentar os desafios económicos (nomeadamente, a
estagnação e o desemprego) que surgem do despovoamento e do acentuado
envelhecimento demográfico. Ao campo estão associadas práticas seculares como
a troca direta (a figura 8 refere-se a um misto entre uma troca direta e indireta) e a
agropecuária de subsistência/tradicional (figura 9). Neste meio, há uma coexistência
com a natureza (figura 6 e figura 7) e as paisagens tendem a manter-se largamente
intactas (figura 7). [6]

Em Babel, as imagens do campo são luminosas e espaçosas. As cores tendem a


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ser neutras. Sonoramente, estão apenas presentes algumas vozes e, por vezes, o
gentil tanger de cordas da banda sonora. Assim, o espaço rural transmite
simplicidade e, mesmo nos momentos mais violentos, nunca se torna errático, o que
cria um espaço de reflexão para as personagens. Por exemplo, vemos Yussef e o
seu irmão a refletir em silêncio depois de terem disparado sobre o autocarro onde
estavam Richard e Susan.

Através apenas de recursos visuais e alguns detalhes nas interações entre


personagens, o filme em análise é capaz de comunicar as principais assimetrias
entre os espaços urbanos e rurais.

Conclusão: Que mensagem é que o filme pretende transmitir?

Considero Babel uma das grandes proezas de Hollywood. Desde o invocar do mito
bíblico da torre com o mesmo nome, até à exploração de conceitos como a
multiculturalidade, a globalização e o efeito borboleta, o filme tem a capacidade de
colocar questões importantíssimas sobre as barreiras linguísticas e culturais que
existem num mundo cada vez mais interligado. Por um lado, é retratado o mundo
interior das personagens e relações de empatia entre humanos, por outro, é
ilustrado o mundo exterior ao indivíduo - o campo e a cidade - e a sua relação com
ele.

Babel não tem uma mensagem moralizante forte - e isso é propositado. Na verdade,
o objetivo do filme é mostrar a realidade complexa e imprevisível do nosso mundo.
Como espectadores, apercebemo-nos de que todos fazemos parte de uma rede
muito maior de relações, trocas e diálogos; um simples gesto - o oferecer de uma
arma de caça - pode levar ao mais rebuscado enredo.

O filme em análise é, sobretudo, uma reflexão sobre as diferenças e semelhanças


que existem dentro da civilização humana. Daqui surgem mal entendidos, mas,
também, oportunidades de encontrar aquilo que nos une a todos.
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Fontes

[1]
“Babel (2006).” IMDb, https://www.imdb.com/title/tt0449467/. Accessed 1 January 2024.
[2]
“Tower of Babel | Story, Summary, Meaning, & Facts.” Britannica, 9 November 2023,

https://www.britannica.com/topic/Tower-of-Babel. Accessed 1 January 2024.


[4]
“INTRODUÇÃO À GLOBALIZAÇÃO.” Universidade de Évora,

https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/2468/1/Introdu%C3%A7%C3%A3o%2

0%C3%A0%20Globaliza%C3%A7%C3%A3o.pdf. Accessed 1 January 2024.


[3]
“multiculturalismo | Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa.” Infopedia,

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/multiculturalismo. Accessed 1

January 2024.
[5]
Dizikes, Peter. “The meaning of the butterfly.” Boston.com, 30 August 2022,

http://archive.boston.com/bostonglobe/ideas/articles/2008/06/08/the_meaning_of_the

_butterfly/?page=full. Accessed 1 January 2024.


[6]
Borges, Ana. Territórios | Geografia A 11.º ano. Porto, Porto Editora, 2023.

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