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Billie Eilish.

A miúda que fez explodir as ilusões da pop

Com 22 anos, e depois de se tornar a pessoa mais jovem a ganhar


por duas vezes um Óscar, Billie Eilish continua romper a recusar-
se a compor uma figura de cera perfilando-se de acordo com a
galeria da eternidade, e lança-se uma e outra vez no confronto
com a impostura das narrativas de sucesso contemporâneas.

Nunca o reino infatigável que nos introduz nessa vertigem


colorida ao captar e recombinar pequenas e estimulantes doses de
realidade com elementos de fantasia nuns poucos minutos de
rebentação sonora, nunca o reino da Pop nos tinha dado a
conhecer um artista como ela. Aos 22 anos, Billie Eilish leva-nos
ao devastador eixo dessa impossível primeira pessoa, uma
perspetiva que tem vindo a degradar-se, na medida em que parece
ser cada vez mais difícil a qualquer de nós suster uma narrativa
pessoal forte e aglutinadora, ao invés de se sentir esvaído e
desfigurado por uma realidade que a todo o momento se atravessa
e nos faz ruir.
No passado domingo, Eilish tornou-se a pessoa mais nova a
conquistar dois óscares, depois de ter arrecadado o prémio em
2022 por No Time to Die, desta vez foi distinguida pela canção
What Was I made For?, da banda sonora de Barbie, de Greta
Gerwig, e um momento chave para aquele filme que, de forma um
tanto convoluta, procura resgatar a boneca que veio a simbolizar
uma série de aspirações e ciladas para as quais várias gerações de
mulheres foram empurradas, mas a canção teve um tal impacto
que se tornou uma espécie de hino geracional sussurrado, e em
que cada um é levado a indagar sobre essa sensação de levar uma
vida em que o aspeto dominante é o de se ser arrastado até
encalhar no molhe. Mas se o peso do mundo hoje é sentido
através da nossa impotência, só quem consegue travar ainda um
combate severo de modo a passar dessa impotência fundamente
sentida até uma forma que lhe permita traduzir livremente as suas
convicções e angústias está em condições de nos oferecer um
rumo alternativo.
Tudo parece de algum modo incaracterístico nas canções como na
postura de Eilish, e deve destacar-se desde logo a extraordinária
sensação de ameaça que está presente na sua música, a forma
como as suas canções tomam conta de uma divisão, como não
evitam e até cavalgam essa persistente sensação de que algo de
mau parece prestes a desabar sobre nós. Não demoramos muito
tempo a perceber que o fascínio que Eilish comanda se liga essa
variação entre os momentos em que se mostra uma presença
tocada pela perturbação para, no momento seguinte, parecer ter
esconjurado tudo isso e surgir com um ar de absoluta
descontração, conseguindo produzir esta viragem às vezes de um
verso para o outro. Essa força de empurrar o dia-a-dia e expor os
movimentos de alma como se sujeitos às rotinas de uma espécie
de sanatório íntimo, em que os processos artísticos lhe servem
para se embalar entre drásticas forças de oposição, tudo isso leva
a recortar uma imagem que faz dela uma presença
desestabilizadora do cânone e das convenções da Pop, e, por essa
razão, muitas vezes Eilish tem sido descrita como um ícone anti-
pop.
É preciso ter em conta que este talvez seja um dos mais estelares
momentos para essa constelação, isto depois de 2023 ter sido de
longe o ano em que mais estádios ficaram à pinha, rendendo um
total de nove mil milhões de dólares, com Taylor Swift e Beyoncé
a provar que esta é uma religião que corresponde e gratifica
inteiramente as sensibilidades e ilusões de toda uma geração de
praticantes, gerando essas hordas infindáveis de fanáticos que se
organizam em público e online para comungar. Mas tanto uma
como a outra, correspondem a imagem típica da figura
evangelizadora, e de algum modo exprimem essa forma de horror
moderno em que vemos a mesma figura surgir com um sorriso
estampado e uma boa disposição forçada, representando o papel
daquele que não se deixou transformar num fantasma face ao
enorme sucesso e à fama que o atingiu.
Eilish parece colocar o dedo na ferida desse efeito de
espectralização do indivíduo, e que ocorre não apenas com as
celebridades, mas com qualquer pessoa que hoje sinta o apelo e o
efeito desse vórtice de um regime mediático omnipresente e
opressivo, à medida que as tecnologias digitais vão
reconfigurando o espaço e o conteúdo em que nos movemos,
adulterando não apenas as nossas perceções, mas também
carregando de ansiedade e revirando as nossas noções sobre a
realidade, deixando-nos prisioneiros de um ciclo degradante de
estímulos e de insegurança psíquica em relação a nossa imagem e
ao nossos lugar no mundo.
Neste contexto, e tendo sempre no bolso esse portal obsessivo,
que a todo o momento procura capturar-nos, não é difícil
compreender por que vamos absorvendo uma espécie de
desespero ambiente. Mais complicado é divisar uma estratégia de
forma a reagir a esse quadro de desgraça e tristeza sem limites.
Eilish vai identificando esses pontos de pressão, e a sua música
funciona como um enredo que consegue exorcizá-los e produzir
algum alívio, uma forma de identificação face a um mal
generalizado. Não é que tenha respostas, não se trata de
diagnosticar uma série de afeções e propor algum regime
terapêutico, não é outro programa de wellness, outra teoria
holística para nos vender retiros pagos a peso de ouro para
ficarmos sujeitos às missas desses gurus da hipóstase universal.
Trata-se antes de reconhecer que este é o abismo do nosso tempo,
e aquelas canções ajudam a levantar barreiras e defesas
psicológicas face a essa indução de um mal-estar difuso e que
propõe para cada dor algum alívio através do consumo.
Canções como When the Party's Over erguem uma barricada face
ao desespero e à sensação de isolamento que os meios de
comunicação social têm induzido numa geração que cada vez
mais se sente sequestrada. Por outro lado, devemos ter em conta
como a realidade de uma estrela pop, as constantes solicitações e
essa espécie de foco constante e que tantas vezes prossegue uma
devassa da vida íntima, cercando o ídolo de um regime de
especulação e acosso sufocante, tudo isso produz uma versão
mais intensa dessas formas de perturbação a que todos nos
sentimos sujeitos.
No seu álbum de estreia, Eilish lançou-se numa expedição ao
centro desse ego precário que nos sustenta, e devolveu um reflexo
poderoso a partir desse quadro de perturbação psíquica,
dependência e vício, seja de ordem química ou outras formas de
compulsão, e tocou nessas tentativas de focalizar a dor e que
podem passar pela automutilação ou outros comportamentos que
revelam uma tentativa de organizar os efeitos do caos na nossa
interioridade. Por uma vez, a depressão não surgia glamorizada
nem como um efeito de pose. E havia, por fim, alguém que em
vez de andar em campanha, a propor uma imagem de adaptação
saudável a uma realidade devastada, conseguia construir uma
proposta artística à altura, fazendo ecoar esses mecanismos de
preservação de outros adolescentes que tentam lidar com a
ansiedade agarrando-se a uma combinação eternamente mutável
de niilismo e humor.
Esta forma de sabedoria passa por reconhecer que não há
propriamente uma saída nem uma forma qualquer de iluminação,
mas que a única coisa a fazer é abraçar o absurdo, contar com ele.
Assim, Eilish está longe de corresponder ao modelo de virtudes
exemplares, mas é na sua atitude de renúncia às expectativas
culturais que consegue oferecer aos seus admiradores pistas sobre
como lidar com o quadro de obsessões e de desafios a que estão
sujeitos. No fundo, a questão que ela levanta parece ser: para quê
sujeitar-se às intrigas e querer corresponder aos valores de um
mundo que não nos oferece outra coisa senão uma existência
dominada pela vertigem e pelo medo?
Em março de 2020, Eilish começou a incorporar uma curta-
metragem intitulada Not My Responsibility nos seus concertos.
Nesse clipe sombrio de quatro minutos podíamos vê-la a despir-se
lentamente antes de mergulhar numa piscina tomada por uma
excreção negra, e enquanto a música impunha aquele tom de
ameaça, Eilish falava sobre a vergonha que sentira ser lançada
sobre o seu corpo a partir do momento em que se viu
transformada na adolescente mais olhada do planeta. Tinha
passado um ano, desde que se estreara, com apenas 17 anos,
oferecendo uma alternativa à impostura desses radiantes deuses
de celulóide, mergulhando através da carne e da sua fragilidade,
para pôr em órbita um astro excêntrico, que em vez de exalar uma
luz morta, reflecte toda a disfunção do mundo.
When We All Fall Asleep, Where Do We Go? declarou a
armadilha dos sonhos para os quais somos puxados. Mas agora
Eilish enfrentava um desafio ainda mais complexo, tendo-se
transformado no novo espécime favorito para essas aulas de
dissecação mediática, as quais funcionam às mil maravilhas na
hora de vulgarizar e esterilizar qualquer ameaça ao seu quadro de
ambições reclusivas. Tratando-se de uma mulher, ainda sujeita à
metamorfose e instabilidade da adolescência, o seu corpo era o
ponto de inflexão que vali a pena explorar, sobretudo porque
Eilish fazia questão de o esconder por baixo de roupas que
diluíam as formas. Se a brigada histriónica das virtudes correu a
saudar a sua recusa feminista em ser sexualizada, à medida que se
impunha uma narrativa de "positividade corporal", outros
perceberam como esse é apenas mais um engodo moralista, um
preceituário que apenas vira do avesso a etiqueta dominante.
Eilish limitava-se a recusar qualquer código. "Por isso, enquanto
sinto os vossos olhares, a vossa desaprovação ou o vosso suspiro
de alívio", murmurava no tal clipe, "sei que se vivesse de acordo
com eles, nunca seria capaz de me mexer".
A armadilha que ela expunha surge desse modo de colocar o
problema de uma forma prescritiva, em que aquele que é sujeito a
um ataque fica obrigado a corresponder a um quadro de isenção
que, se o alivia da culpa, logo depois o mortifica. No seu segundo
álbum, Eilish segue de forma impiedosa, com uma honestidade
sem igual, relatando a sua rápida ascensão ao estrelato e a
conjugação de elementos de abuso e paranoia que o acompanham.
Em Happier Than Ever, a jovem de 19 anos, peneira os escombros
de uma ascensão que alterou de forma profunda a sua vida e
dispôs uma série de minas terrestres no seu caminho, de tal modo
que o ídolo adolescente de Eilish, Justin Bieber, chegou a expor-
se em lágrimas, manifestando solidariedade e receio por tudo o
que ela estava a viver, como ele vivera, mas de forma ainda mais
concentrada. O álbum exprime desde o início uma espécie de luto
face à vida que tinha antes, e Eilish reconhece o alto preço que
pagou, mostrando ter saudade de tempos mais simples. Mas em
vez de sufocar debaixo do peso das expectativas, em vez de
procurar corresponder ao entusiasmo que se gerou à sua fórmula
anterior, Eilish não se deixou perder tentando produzir uma
sequela para aquele registo de pesadelo pop do álbum anterior, e
fez valer-se do processo artístico para se defender, recuando para
um som mais suave, “onde os flashes de estranheza são subtis
mas inventivos”, como assinalou a Pitchfork.
Não cedeu ao culto nem a uma distância que lhe permitisse
representar-se, nem deixou que a sua intimidade fosse avassalada,
nem procurou que a sua vulnerabilidade se tornasse um distintivo
pessoal. Happier Than Ever hasteou de forma resoluta a bandeira
do sarcasmo, e Quinn Moreland, na crítica do álbum que assinou
nas páginas da Pitchfork, fez-nos recuar à cerimónia dos Grammy
no ano anterior, quando uma Billie Eilish já com uma braçada de
estatuetas conquistadas essa noite, no momento em que era
anunciado o prémio de Álbum do Ano, meio embaraçada deixa
escapar uma súplica: “Por favor, que não venha também para
mim.” Mas foi. E foi demais para ela, tudo demasiado cedo e
demasiado depressa.
E o álbum seguinte seria uma destilação de tudo isso, uma forma
de expor os elementos de confisco e invasão que traz consigo esse
mundo dourado da celebridade. Eilish procurou ainda assim
defender o seu quarto, e recuar o suficiente para nos oferecer um
relatório sincero desde as trincheiras da maioridade, lançando um
olhar através dessa forma muito particular de devastação, em que
tudo nos devolve um reflexo e procura encerrar-nos numa caixa
de música reprodutora dos ecos do passado, fazendo do futuro
uma distância impossível, com o presente a impor-se como esse
purgatório exaustivo. Mas como vinca Moreland, “Eilish não
finge que tem tudo planeado”. O seu triunfo é esse lugar-comum
capaz de enfrentar todo o absurdo e o caos deste mundo sem
ceder às suas representações aberrantes.
Nunca vimos nada como ela, e, face a isso, nada mais há a fazer
que deixá-la cumprir um itinerário acidentado e tão estimulante
para uma geração que, tendo aprendido a viver de forma vicária
as suas paixões, reconhece nela algo mais que outro avatar onde
nos projetamos, cabendo-lhe traduzir a forma atual e suprema do
conflito com um mundo que tanto nos atrai e seduz apenas para
nos tornar impotentes diante dele. Com Billie Eilish, e o seu modo
intensificado de super-ênfase, não sabemos o que se segue, não
podemos fingir que há margem para nos lançarmos em grandes
previsões, e o que ela nos lembra é que a razão porque uma
pessoa chega a encontrar um rumo, e o trilha de forma
desafiadora, isso dá-se precisamente porque abraça a incerteza,
aceita o caos, e tenta responder e organizá-lo da forma mais
honesta e vigorosa possível.

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