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INCLUSÃO ESCOLAR E O PEI

UNIDADE 6:
TESTEMUNHO DE UMA
JOVEM AUTISTA

Caro(a) Aluno(a)
Seja bem-vindo(a)!
A narrativa que apresentaremos nesta unidade consta no livro
autobiográfico de Donna Willians, jovem australiana diagnosti-
cada com o Transtorno do Espectro do Autismo, e também confi-
gura parte de artigos e de revistas científicas que usaram sua rica
descrição para compreender melhor o transtorno.
Na época, o termo Transtorno do Espectro do Autismo ainda
não era vigente e, por isso, a narrativa propõe o termo autismo
como diagnóstico.
É a experiência vivida pela autora que compartilharemos nes-
ta unidade.

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Conteúdos da Unidade
Acompanhe os conteúdos desta unidade. Se preferir, vá assi-
nalando os assuntos à medida que for estudando.

9 Testemunho de uma jovem autista;


9 Descrições diagnósticas e critérios.

Bons estudos!!!
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TESTEMUNHO DE UMA JOVEM AUTISTA

CAPÍTULO 11:
TESTEMUNHO DE UMA JOVEM AUTISTA

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TESTEMUNHO DE UMA JOVEM AUTISTA

Os relatos de Donna evidenciam quanto, inicialmente, até


mesmo o registro de prazer-desprazer e o estabelecimento de tri-
lhas de fuga de desprazer podiam ser inibidos em decorrência do
caos sensorial, prejudicando o estabelecimento de qualquer ação
para obtenção de uma regulação satisfatória em prol de um estado
de homeostase (condição de relativa estabilidade da qual o
organismo necessita para realizar suas funções adequa-
damente para o equilíbrio do corpo).
Em decorrência de perturbações sensoriais, Donna conta
que até a vida adulta “não podia ver uma face ou um corpo como
um todo, com frequência falhava em reconhecer objetos que ain-
da não conhecia” (WILLIAM, 2006, p. 126-127), ficando ab-
sorvida sensorialmente por um “caos visual” (p. 127). Isto tam-
bém impactava sua capacidade de escutar, pois, ainda que pudesse
escutar os sons, não era capaz de processá-los. Assim ela descreve:

“ Perceptualmente, outras coisas estavam


acontecendo comigo. O mundo estava visualmen-
te “em pedaços”: uma realidade fragmentada na
qual era difícil perceber o todo de qualquer coisa
e ainda mais difícil de fazer sentido de algo ou al-
guém no contexto do seu entorno mais distante.
Havia perdas de percepção de profundidade com
uma fascinação compulsiva e o medo de ver as
coisas caindo pelo espaço
” (p. 121)

Donna Williams (1992) ressalta a importância de seus ges-


tos e rituais para garantir a sensação de segurança, assim como

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para aliviar sua angústia. Ela também evidencia um intenso so-


frimento com a solidão extrema e uma vontade de se comunicar
com os outros, apesar de, ao mesmo tempo, necessitar que tal co-
municação seja feita sob certas condições e, preferencialmente, de
maneira indireta e alusiva (BIALER, 2014).

“ Em suas autobiografias, ela descreve suas


interpretações para alguns de seus comporta-
mentos. A necessidade de organizar e categorizar
objetos lhe permitia visualizar as relações entre
eles, assim como abria uma possibilidade para
que, com isso, ela pudesse ter o sentimento de, no
futuro, poder compreender as relações no mundo
e encontrar seu lugar nele. Já as estereotipias lhe
davam um sentimento de continuidade e a segu-
rança de que as coisas permaneceriam no mes-
mo lugar, mesmo em uma situação afetivamente
impactante
” (BIALER, 2014)

Acender e apagar a luz de maneira rápida assim como piscar


compulsivamente tinham a função de fracionar uma experiência,
reduzindo o impacto ou a velocidade da vivência. Além disso, o
controle sobre a luz permitia um sentimento de segurança que ela
não conseguia obter com contatos físicos.
As estereotipias, como derrubar objetos ou deixá-los cair de
maneira repetitiva, traduzia para Williams o sentimento de liber-
dade, de expressar suas emoções sem medo (BIALER, 2014).

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“ Nesse mesmo sentido, seus pulos repetitivos


produziam o sentimento de liberdade, nesse caso,
correlativo a uma sensação de prazer pelo ritmo.
A intensidade do movimento deveria ser propor-
cional à tensão que ela sentia precisar aliviar, ao
medo que ela devia combater. Quando nenhum
desses movimentos ritmados bastava para lhe
acalmar, ela batia a cabeça contra o muro para
combater a tensão e provocar um som ritmado,
um “barulho surdo” (Williams, 1992, p. 304) em
sua cabeça
” (BIALER, 2014)

A fixação do olhar em objetos podia funcionar como um pro-


cedimento de auto-hipnose para se acalmar e relaxar. Para ela, al-
guns desses objetos remetiam às sensações que tinha com algumas
pessoas presentes na sua vida, e o contato com o objeto produzia o
sentimento ligado à pessoa correspondente. O balanceio repetitivo
é descrito como uma preparação necessária para poder se jogar
em direção ao mundo. O sentimento de existência de um “buraco
negro” (1992, p. 303) entre ela e o mundo fazia com que fosse
preciso dar um grande salto em distância para alcançá-lo (BIA-
LER, 2014).
Assim como existe sua vontade de realizar esse salto e a im-
portância da preparação pessoal, há o temor de que outras pes-
soas queiram obrigá-la a saltar. Já a fixação do olhar no vazio, ou
através dos objetos, assim como o movimento de girar em torno
de si mesma são descritos como tentativas de diminuir a tensão

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em situações extremamente difíceis, nas quais Williams não en-


contrava um meio para se expressar ou sentir o que vivia, havendo
tamanha perda de esperança que beirava o sentimento de “suicídio
mental” (1992, p. 305). É muito interessante o relato que Donna
faz ao conhecer Carol, aos 5 anos de idade:

“ Aos 5 anos de idade, após o encontro de Don-


na com uma menina chamada Carol, Donna toma
uma decisão crucial para a sua vida: a decisão de
querer viver no mundo de Carol, que se desdobra
na decisão de querer sair do isolamento autístico


e habitar o mundo

(BIALER, 2015)

Donna se identifica com a imagem de Carol e copia dela com-


portamentos e modos de interagir com as outras pessoas. Após se
separar da Carol “real”, Donna inventa um duplo imaginário que
ela designa Carol. Nesta etapa, a relação de Donna com a imagem
refletida no espelho se torna uma relação de segurança e de con-
fiança, dada a familiaridade e a previsibilidade do reflexo.
Frente ao espelho, Donna “adentra” seus próprios olhos e
toca a si mesma como a outra pessoa, e na imagem de si refletida
pode ver e encontrar seu alter ego, Carol (BIALER, 2015). Nesta
etapa de espelhamento, a imagem de Carol tem, para Donna, vida
própria, não sendo vivida como um reflexo, mas como um ego su-
plementar, fornecido por um duplo dela mesma.
A Carol imaginária surge no espelho da casa de Donna.
Quando Donna olha para si mesma no espelho, encontra Carol.
É no ponto de contato entre a imagem de Carol e a imagem de si

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mesma que surge a porta de contato entre seu mundo autístico e


o mundo compartilhado onde Carol vivia (BIALER, 2015). O es-
pelho se torna, desta forma, um ponto de borda, no qual pode ser
investido um gozo que estava sem localização por falta da croche-
tagem do gozo ao significante no autismo. Nas bordas do espelho
entre Carol-duplo e Donna real, surge um espaço intermediário
entre o mundo de Donna e o mundo da sua personagem imaginá-
ria (que era o mundo da sua própria imagem refletida via
um duplo).
É interessante apontarmos que Donna relata tentativas frus-
tradas de passar para o lado do espelho onde vê a imagem refletida
(BIALER), momento que equivaleria a entrar no mundo compar-
tilhado. Contudo, ela fica presa do outro lado e encontra no olhar
de Carol a mesma tristeza e sofrimento face à sua própria impos-
sibilidade. É através do espelhamento da sua tristeza no olhar de
Carol que Donna pode entrar em contato com a sua emoção. Neste
sentido, podemos sublinhar a possibilidade de Donna ter acesso a
si mesma na ressonância da sua vivência psíquica via Carol. Atra-
vés desta personagem espelhada, Donna pode entrar em contato
com a sua própria tristeza e sofrimento, o que lhe era inacessível
sem a passagem pelo duplo-Carol (BIALER, 2015).
Carol concretiza uma “casca vazia de emoções” (Williams,
2012, p. 108), tornando-se um “frágil apoio” (p. 52) para “a úni-
ca evasão possível para fora de minha prisão interior” (p. 52).
Carol vira a fachada que permite à Donna estabelecer conta-
to com o mundo, mas pagando o preço de sua mutilação psíquica,
de sua ausência subjetiva. O desaparecimento subjetivo de Donna
concomitante com sua personificação via Carol permite, todavia,
que Donna tenha um contato por procuração com a vitalidade es-
pelhada em Carol e viabiliza pontes com o mundo compartilhado.

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Donna escreveu três livros autobiográficos e morreu aos 53


anos vítima de câncer. É evidente que sua vida é uma fonte de co-
nhecimento que nos permite entender mais profundamente um in-
divíduo com espectro autismo e a razão de seus ecos, movimentos,
toc, repetições...
O desejo ardente de comunicação, não aquela à qual usual-
mente recorremos e talvez um pouco peculiar a nosso ver, está ali,
pedindo para ser explorada. O isolamento e a solidão não são pró-
prios do ser humano, e pudemos perceber que nem os autistas os
querem. Cabe a nós buscarmos o rompimento das barreiras, res-
peitando os desejos deles.

“ Antes de Carol, Donna, por volta de dois anos


de idade, já havia inventado Willie. Nesta época,
Donna tinha pavor de adormecer e dormia com os
olhos abertos temendo que uma invasão inimiga a
aniquilasse. Willie surge, então, presentificado, ini-
cialmente, como dois grandes olhos verdes abertos
que aparecem embaixo de sua cama, o que lhe pro-
movia um sentimento de segurança e proteção [...]

Os olhos se concretizam por bordas nas quais


pode ser localizado o gozo que não encontrava lo-
calização no campo significante em decorrência
da falta da identificação ao traço unário no autis-
mo. Se por um lado, o surgimento de Willie per-
mite uma localização parcial do gozo, é somente
após a vivência do espelhamento mimético em
Carol que Willie se concretiza em um duplo ima-
ginário para Donna
” (BOLIER, 2015)

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É na relação com o outro que construímos nosso próprio eu,


nas relações sociais temos consciência de nossa existência. Faz-se
necessário, ao encerrarmos este capítulo, notarmos a grande mu-
lher que Donna Williams se tornou. Mesmo com todos os desafios,
podemos perceber no vídeo a seguir que as barreiras, apesar de
muitas, foram vencidas.
A lição que fica é que se houver cumplicidade e união nos tra-
balhos entre família, escola, especialistas e principalmente poder
público, cujo dever é fornecer subsídios para que ocorram avanços
nas pesquisas e investimento na medicina pública, os resultados
serão grandiosos.

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