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EXPERIÊNCIAS DE RECOLHIMENTO DA REALIDADE

PROJETADA
de NATHANAEL M. B. CABRERA

O termo projeção se tornou de uso comum. Quando falo que alguém está
projetando, isto significa que está vendo algo na pessoa que não está ali – ao menos, não
inteiramente. Nesta dinâmica, o alvo da projeção pode ter mais ou menos da qualidade
que é projetada. Um pouco mais difícil é a percepção de que a qualidade projetada no
objeto se refere a algo que não reconhecemos em nós mesmos. Através da projeção,
inconscientemente colocamos o véu da nossa subjetividade entre nós e a realidade.
Assim, a vida é vivida de acordo com nossos próprios pressupostos inconscientes.
Nunca iremos nos libertar totalmente desta condição, pois a nossa percepção é
psíquica – este é o único meio imediato de interação com a realidade interna e externa
que temos. Porém, através do processo de trabalho com o inconsciente, podemos
adquirir consciência dos elementos psíquicos que operam em nós, e, através disto, se
diferenciar destes. Com esta diferenciação, o que antes era projetado na realidade e
identificado ao nosso eu, passa a ser visto como conteúdo do inconsciente – o que
equivale a uma mudança de concepção interna e externa. Irei abordar exemplos onde
essa diferenciação ocorreu, para entendermos melhor esta dinâmica.
O primeiro caso trata-se de uma pessoa que costumava viver uma vida muito
extrovertida e ligada a festas. Havia morado no Rio de Janeiro, e era muito conectado ao
carnaval carioca. Queria buscar neste ambiente social um senso de pertencer a um
grupo, ao mesmo tempo que esperava neste ambiente encontrar uma relação verdadeira.
De certa forma, confundia a busca individual com a busca por um constante frenesi,
procurando o contentamento neste frenesi. Podemos conjecturar que sua busca
individual estava projetada neste ambiente.
Um dia refletiu sobre o seu hábito, e se deu conta do espaço que estas atividades
festivas haviam ocupado em sua vida. Se deu conta que estas eram sua prioridade,
inclusive estava dando mais importância a poder comparecer a determinada festa ou ao
carnaval do que a projetos pessoais que pudesse ter. Neste dia sonhou que: “agora
entendia que não éramos nós que tínhamos o Rio de Janeiro, mas era o Rio que nos
tinha”.
O sonho ratificava sua reflexão, lhe demonstrando que esta atitude tinha a ver
com a captura da consciência pelo “complexo Rio de Janeiro”. Este foi um marco para
uma mudança de postura em relação a essas atividades. Outros sonhos seguiram
reforçando tal postura. Em um momento em que preferiu não ir a uma festa, para se
dedicar as suas coisas, sonhou que “era necessário sacrificar certas coisas para que
outras aparecessem”. Em outro momento sonhou que “o que parecia uma limitação,
era em realidade uma ampliação”. Assim, paulatinamente, através do caminho traçado
pelo inconsciente, despertou para outros objetivos que não estes conectados a um
mundo mais sensorial e imediatista. Por consequência, houve uma mudança em relação
a sua visão de mundo. Este caso me recorda da reflexão de Jung:
“A simples razão não pode fazê-lo abandonar a plenitude da vida e o excitante
sensual do estado imediato. Assim, é necessário que nele estejam contra o poder e o
prazer do temporal a alegria do eterno, e contra a paixão do sensual a maravilha do
suprassensível.”1

Outro exemplo é um ocidental que havia tido contato com filosofias orientais,
budismo, espiritismo e ordens “místicas”, como o Rosacrucianismo. Vinha de uma
família que, enquanto secretamente possuía um complexo de inferioridade,
compensatoriamente nutria uma visão de serem “espiritualmente” e “intelectualmente”
superiores. Este era também um reforço em uma autoimagem de consciência, pois, em
realidade, em sua família havia um histórico de pessoas que tiveram surtos psicóticos.
A grandiosidade exagerada estava intimamente relacionada com a inferioridade e com a
fragilidade não reconhecidas.
No mapa astral desta família, um dos eixos astrológicos mais ativos era o eixo
VIRGEM-PEIXES. Tal funcionamento possui uma similaridade com este eixo, pois
virgem é o signo das virgens do Olimpo que deveriam manter tudo asséptico, apontando
para um excesso de racionalidade e de não percepção da sombra. Já o contraponto
pisciano é um signo com muita irracionalidade. Segundo Von Franz, “ocorre com muita
frequência que a exigência do prestígio do Eu não permite uma “compreensão
melhor””.2 Assim, a necessidade perfeccionista virginiana não permitia a este
funcionamento familiar entender seu próprio funcionamento.
Nesta grandiosidade havia uma busca por perfeição, um certo heroísmo, e,
principalmente nesta pessoa, pouca tolerância as falhas. Havia uma dinâmica interna
que lhe cobrava em demasia, o que impedia a ação, por sempre necessitar internamente
fazer um trabalho “de gênio”, que, além de lhe destacar da massa, também iria ratificar
que realmente tinha um caminho a seguir “espiritualmente” ou “intelectualmente”
superior. Em realidade, depositava nessas “conquistas” a esperança de salvação para sua
vida, pois, ao nível do humano, não conseguia ter o papel de regente em sua vida. Como
compensação, esperava que esta dita “genialidade” lhe abrisse o caminho da vida sem
esforços. Esta cobrança, atitude de poder e expectativa lhe paralisavam a ação, por não
conseguir corresponder ao que lhe impunha o complexo. O complexo provocava a
pretensa ascensão e a pretensa queda. Uma característica desta dinâmica, comum ao
primeiro caso, é a projeção da sua valoração no coletivo. Toda sua dinâmica estava
voltada para o poder, e não para se sentir bem.
Seguindo o funcionamento de sua família, a abordagem dos conteúdos
“místicos” também era pautada por este complexo de inferioridade-superioridade. Por
exemplo, em uma interpretação que lhe fizeram do mapa astral, havia uma previsão de
que seria um artista famoso. Questionava se esse seria um destino traçado para si
mesmo, de maneira que pudesse se aventurar na expressão artística com a garantia do
retorno financeiro e do reconhecimento. Em um livro, ensinavam sobre o “poder
1
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos In:Obras Completas de C. G. Jung, vol. VI Petrópolis:
Vozes 2011 - § 435
2
Von Franz, Reflexos da Alma, Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C.
G. Jung, pag 180
mental”, como focalizar sua mente em alguém para o fazer virar para sua direção. O
“poder mental” também poderia curar males e dores. Um livro oriental lhe dizia que
poderia se livrar do sofrimento, se entendesse o que ele era. Tentava então se concentrar
e entendê-lo, com o objetivo de se livrar do sofrimento e atingir um estado acima do
humano. Mas a verdade é que não obtinha esses resultados. Neste mesmo
funcionamento, acreditava poder “obter a iluminação” caso se concentrasse. A
iluminação seria o ponto de atingir a perfeição, onde, a partir daí, toda sua vida fluiria
de acordo consigo mesmo. Vemos então que havia uma busca pelo inconsciente, uma
busca por alguma espécie de autoconhecimento, mas marcada pela racionalidade, poder
e controle.
Um sonho que teve esta época, que marca este funcionamento, é o seguinte:
“buscava transcender a mente. Quando então percebi: pera aí, isto aqui (a busca por
transcender a mente) é a própria mente. Então, uma luz vinda de cima lhe iluminou”.
Vemos nesse sonho já uma possibilidade de diferenciação deste comportamento. Caso
entendesse que sua busca equivocada, de caráter racionalista, e por demais
perfeccionista e heroica, era o que lhe afastava de sua vida, teria se aproximado daquilo
que, ao buscar, se afastava.
A leitura de Fausto o tocou bastante. O caráter de Fausto, deprimido por não
encontrar a verdade que tanto buscou em sua vida, que recorre a uma atitude de poder
para tentar alcançá-la, através dum pacto com o demônio, era, de fato, parecido com o
seu complexo. Fausto trata o demônio Mefistófeles como seu subordinado, enquanto
era, secretamente, suplantado por este. Há uma utilização do inconsciente para uma
busca de poder, não como uma relação ética com o inconsciente, mas uma racionalidade
imposta ao mesmo. Essa racionalidade, em realidade, brota do próprio complexo
“fáustico”, ao qual o ego sucumbe, cego em sua própria luz. Longe de ser um caso
isolado deste paciente, a dinâmica reflete a própria racionalidade humana que, afastada
de suas bases e negando a existência de um inconsciente, acredita poder moldar a
existência a sua própria vontade, não percebendo que é manipulada pelas costas pelos
complexos inconscientes.
A identificação com Fausto se apresentava neste comportamento racionalista em
busca de poder, que também buscava que o realizasse no mundo. Assim, seu próprio
lado artístico estava a serviço não da conexão com sua individualidade, mas na
expressão deste complexo. Num sonho, sonhou que Fausto “lhe agradecia por haver
lhe dado um rosto”. Em outro, estava “interpretando Fausto”. Em outro sonho, “um
cachorro-demônio lhe dizia que a profecia se cumpriria em quatro meses”.
Questionado sobre o sonho, achava que era algo de grandioso interpretar Fausto, e,
portanto, mostrava que estava no “caminho correto”. Podemos ver, que o complexo era
projetado também na interpretação que fazia de seu sonho. Se identificava com o
complexo Fausto, o interpretando, dando-lhe um rosto, ao invés de se diferenciar deste e
viver a sua individualidade. O fatídico desta dinâmica está no fato de que o complexo
que fascina e que se faz sentir como algo vital é justamente aquilo que aprisiona e que
priva o indivíduo de si mesmo.
Um comportamento de semelhante grandiosidade vivenciei com um paciente da
internação psiquiátrica, quando era estudante. Ele havia tentado se suicidar, cortando
seu pescoço. Havia algo de grandioso e inconsciente entre a relação deste paciente e sua
mãe. Ao narrar o momento que havia cortado seu pescoço, referiu que sua mãe lhe
dissera que ele parecia o próprio “deus da Morte”. Sua expressão parecia de fascínio em
relação a esta identificação, que lhe conferia um pretenso poder, enquanto a sua vida
individual se esvaia. De fato, após alguns dias conseguiu se suicidar na internação.
Retornando ao nosso analisando, através da análise conseguiu entender, com
certa resignação, seu comportamento regido pelo “complexo Fáustico”, e se adequar aos
seus verdadeiros limites e possibilidades. Apesar de inicialmente o complexo se impor
aos sonhos sua própria interpretação racionalista, com o decorrer do processo adquiriu
consciência do inconsciente e conseguiu se diferenciar deste funcionamento. Teve um
sonho importante, onde: “via uma procissão carregando uma cruz. Era uma cerimônia
de Crisma. Seu amigo lhe dizia que era uma confirmação do pacto com Deus. Ficava
muito feliz, pois o pacto com Deus lhe livrava do pacto com o diabo”.
Este pacto com Deus significa uma conexão positiva com o inconsciente,
caracterizada pela consciência, enquanto o estado anterior lhe mergulhava em uma
indiferenciação com o próprio inconsciente. Havia nesse aspecto uma volta positiva
para a coletividade, marcada pelo aspecto comunitário do ritual no sonho. Tal aspecto se
concretizou em sua vida como um retorno a um convívio mais humano e comum,
aspecto que o complexo lhe cortava, ao impor uma vida “especial” e “escolhida”. Ao
invés de buscar algum poder e controle que lhe privasse do desafio da via, agora estava
na própria vida.
Outro sonho importante foi de que: “em seu quarto, onde havia um retrato de
Fausto, agora havia um espelho”. Este sonho marcou a diferenciação em relação ao
complexo. Antes, ao buscar seu reflexo, se deparava com o complexo. Agora,
enxergava a si mesmo, como era. O espelho é uma imagem importante, pois, através
dele, a imagem retorna para si mesmo, o que caracteriza uma reflexão. Segundo Von
Franz, “a única fonte real de autoconhecimento é olhar o espelho que o Self mantém
diante de nós, o resto não passa de ponderações narcisistas do Eu sobre ele mesmo.” 3 .
Sua característica de proporcionar retorno do verdadeiro reflexo, aponta para uma
objetividade no processo de autoconhecimento.
Neste caso, o conteúdo também se projetava no mundo de relações. O
analisando tinha uma namorada simpática, porém com dificuldades psíquicas.
Acreditava que compunham um casal escolhido pelo destino para estar juntos. Era como
se fosse uma “missão” estar junto com essa garota. De certa forma, repetia a sua mãe,
que também imaginava no relacionamento com seu pai algo “espiritualmente previsto”,
predestinado. Se anteriormente achava sua mãe perfeita, agora achava essa namorada
também perfeita. Tal projeção ofuscava uma relação real que ambos pudessem
estabelecer, assim como uma reflexão sobre a união. Argumentava à sua namorada que
eles tinham sido feitos um para o outro.
A namorada utilizava de brigas e de ameaças de fim de relacionamento como
forma de ter poder na relação, ou talvez fosse uma reação natural a este estado - o que
acabou gerando uma relação submissa por parte do paciente. Esta relação submissa
3
Von Franz, Reflexos da Alma, Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C.
G. Jung, pag 204
reproduzia muito a relação de seu avô materno com sua avó, que foram muito presentes
em sua infância.
Sua avó tinha uma ideia fixa de que seu avô lhe traia com diversas mulheres, e
que outras pessoas tramavam complôs contra ela. Portanto, mantinha o avô em rédeas
curtas, que, para evitar problemas, nunca se posicionava contrariamente a ela. Ao
mesmo tempo, após sua avó adoecer, seu avô lhe disse que ela era a “alegria da casa”.
Assim, na vivência do avô havia o mesmo fascínio e submissão do qual também era
vítima. Sem se dar conta, repetia seu passado familiar.
Concomitante a sua libertação do “complexo fáustico”, se diferenciou destas
ideias de “casal especial”. Um dia teve o insight de que não podia dizer para a sua
namorada o que era melhor para ela, apenas poderia dizer o que achava que era melhor
para si mesmo. Começou a considerar mais quais eram as suas vontades e as da
namorada. Com o tempo, a relação se desfez. A isso se seguiu o estabelecimento de
novas relações sociais mais individuais, não contaminadas pela dinâmica imposta pelo
complexo.
Em outro caso, um jovem tinha um comportamento semelhante ao pai, marcado
por não ter consciência de suas prioridades e de não se perguntar e nem de assumir
escolhas perante a vida, enveredando pelo caminho mais fácil. Faltava uma atitude de
introspecção e de compromisso consigo mesmo. Isto era acompanhado de uma certa
insatisfação perante a vida, pois lhe parecia que nunca estava fazendo aquilo que
realmente lhe importava e que realmente deveria fazer. Tal dinâmica provocava em
ambos o estabelecimento de relações marcadas pelo não-envolvimento, mantidas mais
por uma questão de comodismo do que por uma conexão verdadeira. Essas relações
mais aconteciam do que eram escolhas, e nunca lhe parecia que era a “relação certa”.
Quando via, estava envolvido em uma relação que nem tinha optado por estar. Havia
um componente da lua no signo de libra nos mapas astrais desta família, caracterizando
o inconsciente com os matizes da não-escolha, não-individualidade e não-conflito.
Um dia, conversando com seu pai, notou como seus caminhos de vida estavam
semelhantes, de maneira inconsciente. Estava repetindo algo que não era sua escolha. O
que lhe parecia a sua maneira de viver era na realidade a reprodução de um complexo
familiar, a vida do pai, sem a participação da individualidade. Neste dia sonhou que
“estava em um trem, com uma menina que não tinha nada a ver com ele. Resolveu que
precisava sair do trem, e saiu”. Confrontado com a realidade psíquica, buscou aplicar
maior consciência, se perguntando quais eram suas verdadeiras prioridades, e se
desidentificando com o funcionamento paterno.

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