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A mulher em Bachelard: a gênese do devaneio

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A mulher em Bachelard: a gênese do devaneio


Álvaro de Pinheiro Gouvêa – PUC/RJ

RESUMO le féminin chez l’homme et l’animus évoque le mascu-


lin chez la femme. Dans notre présent essai nous vou-
Para Bachelard e para Jung, o psiquismo humano é an- lons défendre que la réflexion sur l’anima e l’animus chez
drógino em sua primitividade: um homem e uma mulher Bachelard oublie l’anima e l’animus dans son aspect né-
habitam no nosso inconsciente (anima/animus – “o du- gatif et, d’autre part, prend une direction confuse dans
plo” é o duplo de um ente duplo). No seu livro “A poética le moment où il accepte de centrer, au même temps,
do devaneio” Bachelard apresenta a tese de que o deva- ces deux instances psychologiques (animus/anima) dans
neio está sob o signo da anima e sustenta que o homem l’homme et dans la femme. Néanmoins, on sent une
mais viril, com demasiada simplicidade caracterizada por immense unité harmonique entre les deux penseurs sur
um forte animus, tem também uma anima – um homem l’androgynie du psychisme humain. Mais la pensée entre
e uma mulher falam na solidão do nosso ser. Mas faz-se les deux devient distincte et, dans ce texte, nous essaye-
necessário ter em conta que a anima em Jung evoca sim- rons de réfléchir et préciser la nature de cette possible
plesmente o feminino no homem e o animus o masculino différence. Il est presque inutile d’ajouter que la fem-
na mulher. Este trabalho sustenta que, em Bachelard, me chez Bachelard n’est pas exactement la femme chez
a reflexão sobre anima/animus negligencia a anima e o Jung.
animus em seu aspecto negativo e, por outro lado, torna-
se uma reflexão um pouco confusa, no momento em que Mots clés: Psychanalyse jungiene. Feminine et masculi-
ele afirma que o homem possui também um animus e a ne. Anima et animus. Ego. Self.
mulher uma anima. Contudo, existe uma imensa unida-
de harmônica entre os dois pensadores quando falam da
androgenia do psiquismo humano. Mas o pensamento “E eis-nos no centro da tese que queremos defender no pre-
deles acaba por se distinguir e esse artigo tenta refletir sente ensaio: o devaneio está sob o signo da anima. Quando
e precisar a natureza dessa possível diferença. É quase o devaneio é realmente profundo, o ente que vem sonhar em
inútil acrescentar que a mulher em Bachelard não é exa- nós é a nossa anima.”
tamente a mulher em Jung. Gaston Bachelard

Palavras-chave: Psicanálise junguiana. Feminino e mas- “A anima, em sua forma desenvolvida, atua como mediado-
culino. Anima e animus. Ego. Self. ra entre o ego dos homens e o Self. Ela estabelece uma conexão
com a fonte de seu ser.”
Von Franz
RÉSUMÉ
Pour Bachelard et pour Jung, le psychisme humain est Não se pode falar de anima e animus sem falar
androgyne en sa primitivité: un homme et une femme de sombra, sem compreendermos o mecanismo de
habitent dans notre inconscient (anima/animus – le “dou- projeção da psique com vistas à construção do eu e
ble” est le double d’un être double). Dans son livre “La
poétique de la rêverie” Bachelard présent la thèse que
às atuações de caráter simbólico que presenciamos
la rêverie est sous le signe de l’anima. Ici il soutient qui no que Jung chama de “processo de individuação”.
l’homme le plus viril, est trop simplement caractérisé par Esses são conceitos interligados. Como nos diz Jung
un fort animus, a aussi une anima (un homme et une fem- “não é o sujeito que projeta, mas o inconsciente”.
me parlent dans la solitude de notre être). Mais il faut Projetar é uma função da psique, “não se cria a pro-
tenir compte qui l’anima chez Jung évoque simplement jeção: ela já existe de antemão” (JUNG, 1986, p. 7).

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Na verdade, “projetar” foi a melhor maneira que a sucumbir: ora por abandonar e desconhecer as exi-
psique encontrou para levar o eu a dar conta do mun- gências do “mundo interno” e ora por não suportar
do externo sem perder de vista o mundo interno e as demandas do “mundo externo”. No que concerne
as exigências do Selbst (si-mesmo). Diferentemente a um eu forte, diríamos que seria aquele que está
de Freud, Jung postula a existência de dois centros sempre conseguindo estabelecer uma dialógica en-
na psique: o “eu” como centro da consciência e o tre esses dois mundos. Surge daí essa advertência de
“si-mesmo” como centro da totalidade da psique. Jung: “o enraizamento do eu no mundo da cons-
Os pós-junguianos falam do eixo “Eu-Si-mesmo” ciência e o fortalecimento da consciência por uma
(Ego-Self) para formalizar a dialética entre o eu e o adaptação o mais adequada possível são de suma
inconsciente. O eu como centro da consciência teria importância” (JUNG, 1986, p. 22, § 46).
como alvo a realização do “si-mesmo”, adequando e Enquanto centro da consciência, o eu tem como
abrindo caminhos para um saber metódico e criati- papel resistir aos embates entre conteúdos arquetí-
vo, acompanhando o sentir, transformando o invisí- picos e às questões propostas pelo mundo externo.
vel em visível e mesmo, manuseando o ser pela via Assim, o desejo inconsciente estaria sempre sendo
das atividades sensório-motoras. traduzido pelo eu, transformando-se a seguir em
Através do mecanismo de projeção o ser se abre consciência. Dessa forma o eu se assentaria de um
ao universo, mistura-se com o “de fora” a fim de ade- lado, sobre impulsos inconscientes vindo do “si-mes-
quar o desejo inconsciente às exigências do mundo mo” e, de outro, sobre o campo da consciência, essa
externo. Contudo, nessa dialética intermitente entre última sendo o resultado do embate travado entre o
“mundo interno” e “mundo externo” o eu pode su- desejo do indivíduo e o desejo do mundo que o cer-
cumbir. Abordando essa questão Jung adverte: “a ca. Não se trata de um assentamento pacífico, mas
assimilação do eu pelo si-mesmo deve ser considera- de uma batalha travada a cada momento na vida do
da como uma catástrofe psíquica”. (JUNG, 1986, p. indivíduo. O objetivo dessa batalha é permitir ao eu
22, § 45). Isso porque, embora sendo a realização do emergir de sua identidade primária com o “si-mes-
“si-mesmo” o alvo do processo de individuação, antes mo” e colocar-se de maneira criativa no mundo.
de tudo, é ele um arquétipo dotado de forte numino- Nessa dialética entre o “de dentro” com o “de
sidade que se for projetada indiscriminadamente no fora”, o indivíduo se transforma em sujeito e objeto
eu pode levá-lo a inflacionar. O perigo encontra-se de uma trama existencial. Uma ordenação secreta
na possibilidade dessa propriedade numinosa do si- no interior de seu ser projeta-se no mundo dos ob-
mesmo levar o indivíduo a sucumbir a uma espécie jetos em busca de consciência. A ordenação siste-
de megalomania. Nesse caso, imagens fascinantes e mática dos objetos no exterior é que vai possibilitar
fortemente carregadas de afeto poderiam invadir o ao eu classificar e ordenar o desejo, estabelecendo
eu, desencadeando um surto psicótico. uma nova ordem nos objetos interiores. O proces-
Ao contrário desse perigo haveria um outro, o de so de individuação reside nessa busca de ordenações
vir o eu a assumir uma atitude rígida e extremada e de significações, ou seja, na busca de realização
frente às exigências do mundo interno, abandonan- do “si-mesmo” através da fabricação e do lidar com
do o “si-mesmo” como referencial ao entregar-se por imagens. A “economia libidinal” se daria através da
completo aos estímulos externos. Nesse caso, a forte fabricação de símbolos expressos em imagens carre-
repressão dos instintos de fora para dentro, levaria gadas de afeto e de significação, imagens estas que
o indivíduo a comportamentos neuróticos, podendo buscariam a luz da consciência, levando o indivíduo
também no futuro vir a desenvolver um quadro psi- à criação de si mesmo. Diríamos então que “pro-
cótico. Diríamos, portanto, que o eu caminha fragil- cesso de individuação” é o mesmo que “processo de
mente como no fio de uma navalha sempre sujeito a criação e de simbolização”. Individuar, simbolizar,

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criar e viver – combinam elementos do inconsciente divíduo a rever as linhas que demarcam o processo
coletivo (virtualidades arquetípicas), do inconscien- de individuação.
te pessoal (complexos) e naturalmente de exigências Como nos adverte Jung, o inconsciente sofre e
impostas pela civilização. Trata-se de um agir inte- provoca mudanças e o eu se transforma no agen-
grado entre o ser e o fazer humanos. ciador dessa metamorfose contínua do indivíduo. E,
O eu aparece nesse contexto como o centro da nessa dinâmica da individuação, os “parceiros do eu”
consciência, articulando o ser no não ser. O invisível ocupam um lugar de importância, importância esta
e obscuro da personalidade do indivíduo encontra que, segundo Jung (1986, p.27, § 53), “vai crescen-
nesse formador de consciência que é o eu o media- do na seguinte progressão: consciência do eu, som-
dor ideal para nossas ilusões, fantasias e devaneios. bra, anima/animus e si-mesmo”. Aqui caberia nos
Mas como o eu receberia e articularia o “mundo de perguntar: qual seria o papel da anima e do animus
dentro” com o “mundo de fora”? Existem mecanis- nessa dinâmica?
mos que auxiliam a psique nessa difícil tarefa de re- Segundo Jung, o grupamento anima/animus re-
alizar o “si-mesmo” no mundo: são os “parceiros do presenta conexões arquetípicas (arquétipo sexual)
eu”. São eles: a persona (máscara), a sombra, animus e que se relacionam entre si, possuem aspectos posi-
anima. O “eu e a sombra” como estruturas de iden- tivos e negativos e exercem uma ação direta e siste-
tidade e a persona e anima/animus como estruturas de mática como mediadores de emoções. Jung (1986,
relação. A sombra e a persona coexistem com uma p. 11, § 26). nos diz:
certa harmonia na medida que uma compensa a ou-
O fator determinante das projeções é a anima, isto
tra. Grosso modo, a sombra como estrutura de iden-
é, o inconsciente representado pela anima. Onde
tidade seria uma espécie de anti-eu; representa os
quer que se manifeste: nos sonhos, nas visões e fan-
lados obscuros, desconhecidos e renegados de nossa tasias, ela aparece personificada, mostrando deste
personalidade. modo que o fator subjacente a ela possui todas as
O que é reprimido pela persona transforma-se em qualidades características de um ser feminino. Não
sombra. A sombra aparece como uma personalidade se trata de uma invenção da consciência; é uma
produção espontânea do inconsciente. Também
escondida que precisa vir à tona e ser apropriada de
não se trata de uma figura substitutiva da mãe.
maneira criativa pelo eu: Pelo contrário: temos a impressão de que as qua-
Dentro de cada um há uma sombra escondida. lidades numinosas que tornam a imagem materna
Por trás da máscara que usamos para os outros, tão poderosa originam-se do arquétipo coletivo da
por baixo do rosto que mostramos a nós mesmos anima que se encarna de novo em cada criança do
vive um aspecto oculto da nossa personalidade. De sexo masculino.
noite, enquanto dormimos indefesos, sua imagem
nos confronta face a face (VON FRANZ, 1993, p. Ao contrário do homem, Jung (1986, p. 12,
88). § 29) vai se referir ao masculino na mulher como
animus:
Uma sombra forte guarda uma persona enfraque- A mulher é compensada por uma natureza mas-
cida. O complexo da persona, enquanto estrutura de culina, e por isso o seu inconsciente tem, por assim
relação, está voltado para o mundo exterior e ajuda dizer, um sinal masculino. Em comparação com
o eu a mediar os conteúdos vindos do mundo ex- o homem, isto indica uma diferença considerável.
terno. A persona representa nossas atitudes conscien- Correlativamente, designei o fator determinante
tes direcionadas para o mundo externo e toda vez de projeções presente na mulher com o nome de
que o eu por algum estímulo externo se volta de animus.
maneira desmesurada (inflação do eu) para as exi-
gências externas, a sombra é acionada levando o in-

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E acrescenta Jung (1986, p. 12, § 29): “Como a mulher, a figura compensadora é de caráter mas-
anima corresponde ao Eros materno, o animus corres- culino e pode ser designada pelo nome de animus”
ponde ao Logos paterno”. (JUNG, 1978, p. 81, § 328). Mas, por outro lado,
A nossa questão nesse trabalho é a de saber se no poderíamos considerar que Bachelard esteja se refe-
eloqüente discurso de Bachelard em que usa o con- rindo ao animus da anima de um homem. Vejamos o
ceito junguiano de anima/animus (BACHELARD, que Jung nos fala sobre o animus da anima e a anima
1988), estaria ele sendo fiel ao texto junguiano. Na do animus:
verdade, os pontos de vista de Jung e Bachelard so-
Como o animus tem tendência a argumentar, é nas
bre o conceito de anima/animus não são coincidentes discussões obstinadas em que mais se faz notar a
em todos os pontos. A formulação de Bachelard diz: sua presença. Por certo é possível que haja também
“O homem mais viril, com demasiada simplicidade muitos homens que argumentem de maneira bem
caracterizada por um forte animus, tem também uma feminina, naqueles casos, por exemplo, em que
anima [...]” (grifo nosso) (BACHELARD, 1988, p. são predominantemente possuídos pela anima, ra-
zão pela qual se transmudam no animus da anima
58) E mais à frente o filósofo acrescenta:
(JUNG, 1988, p.13, § 29).
[...] é preciso confessar que existem dois tipos
de leitura: a leitura em animus e a leitura em ani- Através da sua anima Bachelard é capaz de ace-
ma. Não sou o mesmo homem quando leio um li- der à sua “mulher interna” na forma de uma inquie-
vro de idéias, em que o animus deve ficar vigilante, tude intelectual que se abre a um ardente devaneio
pronto para crítica, pronto para a réplica, ou um em anima, sem perder de vista a força de vontade e
livro de poeta, em que as imagens devem ser rece- a energia própria do animus da sua anima. A anima
bidas numa espécie de acolhimento transcendental se faz mulher em Bachelard na produção sistemática
dos dons. O animus lê pouco; a anima, muito. Não e firme de seus escritos sobre o devaneio, ou seja, a
é raro o meu animus repreender-me por ler demais mulher enquanto logos aparece no interior de sua
(BACHELARD, 1988, p. 61-62). anima tornando-a criativa. A anima que se formaliza
Ao contrário de Bachelard, como vimos na cita- em mulher, transforma o homem em poeta e filóso-
ção de Jung acima, quando Jung se refere à anima fo, despotencializando o ego de Bachelard do vam-
é exclusivamente para falar do feminino no ho- pirismo de uma anima negativa. Portanto, diria que
mem, nesse caso o homem não possuiria animus, o a “mulher em Bachelard” ou sua anima, se encontra
mesmo valendo para a mulher que só teria animus. encarnada em sua poética. O animus da mulher que
Bachelard, em oposição a Jung, acredita que o ho- existe em Bachelard leva o poeta a ser tomado por
mem possua também um animus, não é, portanto um impulso de agir objetivo, transformando seus
inteiramente compatível com o pensamento jun- sonhos literários em devaneios profundos e bem ar-
guiano. Em Jung o correto seria dizer que o homem ticulados lingüisticamente. A nosso ver, é sua anima
possui uma anima e que poderíamos nos referir tam- a responsável por esse construto literário que o leva
bém ao animus dessa anima. Bachelard parece fugir a fazer uma ruptura e uma explosão impetuosa com
à nomenclatura junguiana quando situa no mesmo a racionalidade científica. Optando pelo devaneio
indivíduo homem ou mulher os pares anima/animus, em anima, Bachelard dá início a uma estética não
sem esclarecer a questão. muito racionalizada, essencialmente feminina em
Certamente que em Jung quando usamos o ter- seu conteúdo.
mo anima estamos falando textualmente da essên- A partir da figura contra-sexual amadureci-
cia do feminino no homem e animus da essência do da de uma mulher interior, a produção literária de
masculino na mulher: “A anima, sendo feminina, é Bachelard é fortemente alimentada por um cer-
a figura que compensa a consciência masculina. Na to rigor, disciplina, coragem e espírito de verdade

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próprio do animus de sua anima. Certamente não en- no. Quando falo do “feminino em Bachelard”, estou
contramos em suas reflexões em anima as distorções falando de uma forma exterior de viver que permite
de uma anima negativa. Talvez, o próprio fato de a Bachelard produzir toda sua literatura, fundamen-
negar a possibilidade do aspecto negativo da ani- talmente a sua poética, com uma certa precisão e
ma, possa ser entendido em Bachelard como uma harmonia literárias. A harmonia presente na poéti-
espécie de dominação da anima. Em simplificando ca de Bachelard nos permite visualizar Sofia, uma
grosseiramente, diríamos que a anima em seu aspec- anima que se transformou numa sábia mulher. Ao
to negativo aparece como algo de autoritário e rí- mesmo tempo em que Bachelard produz sua obra
gido ou como o dragão de um complexo materno percebemos que está também se individuando, ou
negativo que sugaria a energia de seu filho envol- seja, regulando e unificando as energias do “si-mes-
vendo-o em uma feminilidade sensível e delicada em mo” em torno dos outros arquétipos: a sombra, a
extremo. O que não é o caso de Bachelard. O entu- anima, o animus. Aqui dá para entender Bachelard
siasmo de Bachelard em sua “poética do devaneio” quando diz que “a poética do devaneio é uma poéti-
poderia ser registrado por uma psicanalista junguia- ca em anima”. A anima como porta-voz, como men-
no como sendo uma espécie de reação interna po- sageira de conteúdos do inconsciente.
sitiva ao aspecto sombrio de sua anima. A “mulher Por outro lado, poderíamos questionar essa es-
em Bachelard” apareceria então como uma possível peculação de Bachelard sobre a gênese do devaneio.
superação masculina e intelectual dos poderes devo- Por que não estaria o devaneio também sob o signo
radores de que uma anima negativa poderia exercer do animus? A afirmativa de que o devaneio é uma
sobre sua personalidade. manifestação da anima poderia sem dúvida ser ape-
Como nos diz Jung, a anima passa por vários es- nas uma projeção marcada pela anima de Bachelard.
tágios: Eva, Helena, Sofia e a Sabedoria de Deus. Essa não imparcialidade de Bachelard poderia deno-
Em Bachelard a anima transformou-se numa com- tar o reflexo singularmente humano de um pensa-
panheira espiritual com quem mantinha um sexo dor que ao sonhar em anima em alguns momentos
romântico e uma sabedoria que o colocava mais per- acaba construindo uma espécie de mundo mental
to da vida. Ao escrever “A poética do devaneiro”, masculino inteiramente dominado pela anima. Daí
Bachelard criava em anima, embora fosse alimentado Bachelard desejar sonhar também em animus, o que
por uma maturidade em animus. Isso faria sua poéti- do ponto de vista junguiano seria o sonho do animus
ca transformar-se no ato heróico de um homem que da sua anima. Vejamos o que diz Bachelard: “[...]
parecia ter superado o demônio materno e matado vejo que mantive todos os meus devaneios nas faci-
a mãe imaginária em seu aspecto letárgico e ansioso lidades da anima” E continua o poeta: “Entretanto,
e partisse em busca de um devaneio consistente que para que não se diga que a anima é o ser de toda
realizasse seu ser através de uma anima positiva. nossa vida, gostaríamos ainda de escrever um ou-
Bachelard sabia que o devaneio é sempre um de- tro livro, que, desta vez, seria a obra de um animus”
vaneio em busca de objetos, ao contrário do delírio (BACHELARD, 1988, p. 205).
que recusa ver-se comprometido com a necessida- A complexidade do mundo do devaneio envolve
de de exterioridade do ser. Devaneio não é delírio. questões nem sempre óbvias. Não podemos esquecer
Na verdade, o delírio nasce dos dilemas ocasiona- que uma discussão sobre a fenomenologia do deva-
dos pela falta ou, ao contrário, pela proliferação de neio, em que usamos os conceitos de anima e animus,
objetos. O devaneio é uma forma mais elevada de exige também algum conhecimento sobre a dinâmi-
saber que ultrapassou um Eros em estado primitivo ca e o funcionamento da psique como um todo. Faz-
de fantasia auto-erótica para dar ao homem a capa- se necessário investigar e precisar um pouco mais os
cidade de um relacionamento maduro com o femini- conceitos de anima e animus. Vejamos o que nos diz

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a psicanalista junguiana Von Franz (1993, p. 114) como uma espécie de diálogo estabelecido entre su-
sobre o conceito de anima/animus: jeito e o seu sonho. Como já observamos acima, o
devaneio pelo devaneio é puro delírio. Isso porque
Assim como veremos que o animus na mulher é
o mundo do devaneio para ser benéfico ao sonhador
às vezes destrutivo e negativo, anima negra é re-
tem que ser relacionado com a vida real.
lativamente negativa no homem. Ela indica que
sua capacidade de amar é basicamente auto-eró- Certamente, poderíamos entender o devaneio
tica. Um homem que não desenvolveu a anima, como uma atividade própria à dinâmica inconscien-
seu lado feminino, em geral é narcisista. É isso que te. Nesse caso, o devaneio em anima permitiria ao
uma mulher com pesar sente quando um homem indivíduo aproximar-se de conteúdos inconscientes
mia como um gato diante da sua janela. Na ver- e mesmo a descrever as raízes do arquétipo mater-
dade, ele ama sua própria fantasia. Ele ama o fato
no. Não é incorreto considerar que o arquétipo se-
de estar amando, mas isso está longe de aprender a
amá-la de fato. xual anima/animus ao colocar o indivíduo no estado
de devaneio de algum modo estaria libertando-o de
Haveria devaneio sob o signo de uma anima ne- seus desejos incestuosos provindos do arquétipo ma-
gativa? Consideramos que interpretar o devaneio terno. Isso porque o devaneio enquanto uma espécie
tão somente como sob o signo da anima pode causar de sonho acordado permite ao eu entrar em contato
muitos equívocos. Em primeiro lugar seria preciso com necessidades arquetípicas do “si-mesmo”, ane-
fazer essas distinções: primeiro nos perguntar se es- xando-as às demandas do mundo externo. No deva-
tamos falando do lado feminino do inconsciente do neio presenciamos uma baixa de consciência capaz
homem ou se falamos de uma anima generalizada de transformar os indivíduos em poetas demiurgos.
pertencendo ao homem e a mulher, como parece Em sendo assim, pode-se afirmar que a poética
ser o modo de Bachelard compreender a questão. de Bachelard está diretamente próxima da numino-
Uma outra questão diz respeito aos aspectos positi- sidade do “si-mesmo”. O eu do poeta que escreve em
vo e negativo do animus e da anima. Faz-se necessá- anima se encontra seduzido pela mulher que habita
rio distinguir o que pode haver de destrutivo ou de sua alma e prazerosamente o conduz pelas veredas
criativo no animus e na anima. Não ter consciência da poesia e da criatividade. Verdadeiramente pode-
do lado negativo da anima poderia resultar também ríamos dizer que no devaneio bachelardiano o eu e
numa projeção coletiva da anima negativa. a anima encontram-se numa circularidade dialética,
Como podemos observar, a dificuldade estaria evidenciada, muitas vezes, pelo animus de sua anima.
em determinar se estamos falando da anima nega- Uma anima que aparece não simplesmente como a
tiva ou da anima positiva e, depois, pensar sobre a “dançarina geradora de ilusões” (JUNG, 1986, p. 9,
fenomenologia do devaneio. Aqui caberia nos per- § 20). Isso porque o eco de exterioridade assegurado
guntar sobre qual anima Bachelard estaria tecendo pelo animus da anima aumentou a segurança do eu
seu devaneio? Que espécie de literatura poderia uma estabelecendo uma ponte entre o desejo, os fantas-
anima negativa tecer? Seria possível o devaneio em mas e as fantasias. Assim cria-se o estado de espírito
animus? A nosso ver, a talentosa escrita de Bachelard necessário para que se faça a conexão e a conjunção
nos remete sem dúvida a uma anima positiva, pro- necessárias à produção de realidade.
fundamente criativa. Contudo, acreditamos que o Faz-se necessário insistir na pergunta: esta-
fundamento da intuição bachelardiana no seu livro ria Jung e Bachelard falando da mesma anima?
“A poética do devaneio” é nada mais que o reflexo sin- Certamente que Bachelard escreve “A poética do de-
gularmente humano de um pensador transformado vaneio” numa anima positiva e seu discurso apresenta
por sua anima. E, ao falar por ela, acaba enredando- pontos de convergência com o conceito desenvolvido
se numa reflexão pessoal. Consideramos o devaneio por Jung. Com algumas variantes, poderíamos dizer

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que Bachelard e Jung tecem seus comentários inspi- paralisa o crescimento da mulher”. Apesar de consi-
rados na idéia de que o inconsciente mantém no in- derarmos que o texto de Bachelard sobre anima/ani-
divíduo poderes de androginidade (BACHELARD, mus em seu livro “A poética do devaneio” possua um
1988, p. 55). Contudo, apesar das ressonâncias jun- tom mais poético que o de Jung em suas obras, não
guianas em seu texto, Bachelard parece mais propen- encontramos propriamente uma oposição entre eles
so a absolutizar o papel da anima como a geradora no que se refere ao conteúdo do texto. Apenas fica
por excelência do fenômeno do devaneio, conduzido marcante a forma como os dois pensam o funcio-
talvez por uma estética feminina potencializada por namento desse par de opostos. Consideramos que a
suas projeções em anima, o que, de certa forma, o anima bachelardiana é uma anima positiva deduzi-
situaria fora do campo gravitacional da psicologia da, a nosso ver, das experiências positivas que teve
aplicada. Bachelard como filósofo-poeta e velho-sábio, exis-
Diria que a anima que inspira Bachelard em tindo nesse livro um enfoque excepcionalmente am-
sua poética não é exatamente a mesma das obras plo e otimista desse conceito. Mas, ambos modelam
de Jung. Contudo, ambas possuem algo inapela- o ser humano a partir de uma massa feminina, um
velmente tentador e sedutor e adquirem contornos ser híbrido em sua natureza arquetípica, uma lama
absolutamente numinosos e considerável poder de originária na qual o sopro de Deus em animus faria a
fascínio como num surto ordenado de inspiração po- vida surgir em anima. Daí, Jung ter definido a anima
ética. Mas, embora seguindo caminhos diferentes, como o Arquétipo da Vida e Bachelard ficar plena-
existe uma unidade intuitiva que permeia as idéias mente de acordo.
de Bachelard, aproximado-as das idéias de Jung, A diferença entre eles reside apenas em alguns
Não há dúvida de que os componentes básicos da pormenores: enquanto Bachelard investiga a função
poética bachelardiana são da ordem do devaneio em criativa do devaneio em anima, Jung procura aden-
anima. O filósofo-poeta precisa do devaneio para trar também nas árduas e fastidiosas formas negati-
contextualizar sua arte de filosofar. Mas, em Jung vas que a Sizígia possa vir a assumir ao se encarnar
existe uma preocupação com a clínica. E, para evitar no eu de um individuo. A questão de discernir en-
um devaneio contínuo em anima, Jung procura ati- tre uma anima positiva ou negativa, parece ser im-
var o animus de sua anima, com o intuito de extrair portante mais para o psicólogo que para o filósofo.
uma certa atividade lógica e funcional própria do Embora reconhecendo o problema que envolve indi-
animus. Essa tarefa exige dele esforços contínuos e víduo-mundo-interindividualidade, Bachelard pre-
plenos de tensão. fere optar pela anima “que sonha e canta” na solidão
Assim, marcado pelo animus da anima, compre- do ser como uma “anima normal” que não conhece
ende Jung que não se pode ignorar, na clínica, a problemas. Recusa-se a admitir o aspecto negativo
fronteira que demarca o desdobramento da anima da anima mas, paradoxalmente, ele nos fala de uma
em duas: uma cuja força motriz e fascínio impele e “anima normal” deixando-nos inferir sobre a pos-
encoraja os homens, nutrindo-os através das aventu- sibilidade de existência de uma anima negativa ou
ras do devaneio e, outra negativa, que os dissociam “anormal”. Vejamos o que ele nos diz:
e os despersonalizam. De qualquer modo, insiste
Os sintomas de feminilidade que o psicólogo enu-
Jung em afirmar que são idênticas as ações do ani- mera para determinar suas classificações caracte-
mus e da anima sobre o eu. Vejamos esse comentário rológicas não nos proporcionam um verdadeiro
da psicanalista junguiana Von Franz (1993, p.151): contato com a anima normal, a anima que vive em
“[...] assim como a anima vampiresca do homem, todo ente humano normal. Muitas vezes o psicó-
o animus em sua forma negativa é um parasita. Ele
personifica a brutalidade, a frieza e a obstinação, e  A Sizígia é o termo utilizado por Jung para se referir ao grupa-
mento anima e animus (JUNG, 1986, p. 9).

Cronos, Natal-RN, v. 4, n. 1/2, p. 71-78, jan./dez. 2003


Álvaro de Pinheiro Gouvêa
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logo não observa mais que uma escuma das fer- va: “Tais simulacros existem: há homens e mulheres
mentações de uma anima inquieta, de uma anima que são demasiado homens – há homens e mulheres
trabalhada por ‘problemas’. Problemas! Como se os que são demasiados mulheres. A boa natureza tende
houvesse para quem conhece as seguranças do re-
pouso feminino! (BACHELARD, 1988, p. 62).
a eliminar esses excessos em proveito do comércio
íntimo, numa mesma alma, das potências de animus
E continua o filósofo: “Quando Jung nos diz e de anima” (BACHELARD, 1988, p. 87).
que Bismarack tinha crises de choro, tais vacilações Vale a pena, pois, concluir dizendo que o animus
do animus não constituem, automaticamente, ma- positivo seria uma espécie de movimento interno na
nifestações positivas da anima. A anima não é uma mulher que a levaria com o tempo a uma inteligên-
fraqueza” (BACHELARD, 1988, p. 65). Apesar cia e intencionalidade superiores que decorrem de
dessa diferença, é preciso afirmar que ambos, Jung uma psique que é mais completa que a consciência.
e Bachelard consideram o ser humano como um ser Haveria, portanto no indivíduo, duas faces: no ho-
dividido cuja singularidade se efetua sempre alter- mem essa face estaria voltada ora para anima e ora
nando e conjugando interior/exterior, individual e para o animus da anima e, na mulher, ao contrário,
coletivo, anima/animus. uma face estaria voltada para o animus e a outra para
De acordo com Bachelard e Jung, anima e ani- a anima do seu animus. É essa androgenia do psiquis-
mus são duas dimensões presentes no psiquismo hu- mo que afasta o grotesco e a degradação a que está
mano. Para ambos o psiquismo humano é em sua sujeito o espírito humano e cria, ao mesmo tempo,
primitividade andrógino. Como já fora dito, a dife- uma espécie de antídoto necessário ao bom desem-
rença essencial entre os dois pensadores é determina- penho do eu.
da pela esquiva de Bachelard a possíveis qualidades
negativas da anima. Em Bachelard a anima enquan-
REFERÊNCIAS
to matriz do devaneio ela é sempre positiva, nor-
mal. De sua embriagues em anima, devaneia o nosso BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins
filósofo-poeta: Fontes, 1988.
Para receber os poderes da anima, portanto, seria
JUNG, C. G. AION. Estudos sobre o simbolismo do Si-
necessário, a nosso ver, voltar as costas às pesqui-
mesmo. Petrópolis: Vozes, 1986.
sas dos psicólogos que vão a busca dos psiquismos
acidentados. À anima repugnam os acidentes. Ela ______. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978.
é uma substância suave, substância lisa que quer
gozar suavemente, lentamente, de seu próprio ser VON FRANZ, M-L. O caminho dos sonhos. São Paulo:
liso. ‘Viveremos mais seguramente em anima apro- Cultrix, 1993.
fundando o devaneio, amando o devaneio, o deva-
neio das águas, sobretudo’. (BACHELARD, 1988,
p. 65-66).

Mas, a anima nem sempre nos conduz aos “de-


vaneios em águas” como deseja Bachelard. Muitas
vezes, os dois momentos simultâneos em anima e
animus se compõem de maneira estranha ao eu e
faz surgir no indivíduo uma espécie de profundi-
dade esquizóide que o leva ao extremo dessa divi-
são, transformando-o em um simulacro de homem.
Paradoxalmente é o próprio Bachelard quem obser-

Cronos, Natal-RN, v. 4, n. 1/2, p. 71-78, jan./dez. 2003

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