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VIGOTSKI E A EDUCAÇÃO ESPECIAL:

NOTAS SOBRE SUAS CONTRIBUIÇÕES

VYGOSTKY AND SPECIAL EDUCATION: NOTES


ON HIS CONTRIBUTIONS

Nilda de Oliveira Bentes


Universidade do Estado do Pará (UEPA)

RESUMO ABSTRACT

Neste texto temos o objetivo de destacar as In this text we aim to highlight the
contribuições da psicologia histórico-cultural contributions of cultural-historical psychology
nas proposições de Vigotski para a compreensão within the propositions of Vygostky for
do desenvolvimento humano de pessoas com the understanding of human development
necessidades educacionais especiais, discutindo of people with special educational needs,
como as intervenções oferecidas, segundo suas discussing how the interventions that are
ideias, podem ter impacto na formação desses offered, according to his ideas, can impact
sujeitos como pessoa. Com base em seu texto the constitution of these subjects as persons.
sobre defectologia focalizamos a criação de Based on his text on defectology, we focus on
“caminhos alternativos” e “recursos especiais” the creation of “alternative paths” and “special
não só para aquisição da aprendizagem, e sim para resources” not only for learning acquisition,
compreender a imersão do desenvolvimento do but also to understand the immersion of the
sujeito como pessoa, trabalhando com a diversidade subject’s development as a person, working
na criação de estratégias como alternativas de lidar with diversity for the creation of strategies as
com o problema da deficiência. Salientamos que alternatives to deal with the issue of disability.
criar caminhos alternativos e recursos especiais We emphasize that creating alternative
não significa simplificar tarefas, separar a criança paths and special resources does not mean
dos colegas ou ocupá-la com atividades que se simplifying tasks, separating the child from
baseiam nas funções psicológicas elementares, its peers, nor engaging it in activities that are
que só fazem preencher o tempo e não criam based on the basic psychological functions,
zonas de desenvolvimento proximal e, por isso, that do nothing but pass time and end up not
não tem impacto na aprendizagem e não criam engendering development. We expose some
desenvolvimento. Expomos algumas ponderações, considerations, pointing out the contemporary
apontando o valor da atualidade da teoria value of Vygostkyan theory regarding what is
vigotskiana ao que hoje é trabalhado na inclusão de applied today to the inclusion of people with
pessoas com necessidades educacionais especiais. special educational needs.

Palavras-chave: Caminhos alternativos. Recursos Keywords: Alternative paths. Special resources.


especiais. Defectologia. Psicologia histórico-cultural Defectology. Cultural-historical psychology.
Introdução implicadas no desenvolvimento e educação des-
ses sujeitos Góes ([19--?]).
Falar de Vigotski1 e de suas contribuições im- Dessa forma, procuramos apontar as aproxi-
plicadas no desenvolvimento da pessoa com ne- mações com o paradigma vigente, especialmen-
cessidades especiais, conhecendo os acervos das te aquelas contribuições ligadas às intervenções
produções focadas na problemática de autores pedagógicas que nos parece estar próximas do
da área da Educação Especial, principalmente as paradigma vigente e são por assim dizer reali-
discussões e reflexões sobre a importância desse mentadas com os princípios da escola inclusiva.
aporte teórico para as questões da deficiência, as
experiências de pesquisa já tratadas sobre suas pro- Metodologia
posições e perspectivas nessa problemática, não é
tarefa fácil. É no mínimo um grande desafio a ser O presente texto assume como referência
transposto. Além disso, as discussões de Vigotski teórica a abordagem histórico-cultural nas pro-
sobre a Educação especial não focalizam o mo- posições de Vigotski tomando como estratégia
delo vigente de paradigma da Educação Especial. metodológica a pesquisa bibliográfica, na abor-
Na época em que viveu esse autor, os argumen- dagem qualitativa, centrando a análise nos texto
tos do entorno da temática não era a inclusão da Fundamentos de Defectologia (VYGOTSKY,
pessoa com necessidades educacionais especiais, 1989), e nas obras Proposições da abordagem
provavelmente se vislumbrava ainda o paradigma histórico-cultural sobre o desenvolvimento hu-
da segregação dessa clientela e se vivenciava um mano, deficiência e educação, (GÓES, [19--]),
silenciamento sobre a forma de lidar com a educa- e no texto de Ravière (1988), La psicologia de
ção e desenvolvimento da pessoa deficiente. Vygotski que discutem as contribuições de Vi-
Entretanto, a nosso ver, Vigotski traz propo- gotski sobre a questão da deficiência no livro
sições de grande relevância em seus escritos so- Fundamentos de Defectologia.
bre a deficiência, abrindo possibilidades em suas
teorizações anteriores ao paradigma vivente, no Resultados e Discursões
qual encontramos interfaces com o paradigma da
inclusão. Com esse redimensionamento dá para No que se refere à perspectiva vigotskiana, a
apontar formas de olhar a diversidade e perce- discussão sobre a inclusão ou escola inclusiva não
ber a pessoa deficiente a fim de valorizá-la como emerge em sua centralidade porque o tema não
pessoa, ministrando uma educação adequada a estava em pauta à época em que vivia. Entretan-
sua deficiência, destacando os “caminhos alter- to, Vygotsky tinha uma compreensão profunda
nativos” e “recursos especiais”, com a intenção da questão da deficiência. Tanto assim que já na
de provocar mudanças. década de vinte do século passado, esse autor já
Por essa razão, propomos, aqui, iniciar um analisava a profunda crise em que se encontrava
debate explorando a argumentação do autor a a Educação Especial em seu país. Fazendo-nos
respeito de suas contribuições sobre a pessoa de- pensar, ao ler seus textos, que defendia a modifi-
ficiente, naturalmente sem a pretensão de tecer cação de concepção existente na União Soviética
comentários exaustivos que esgotem o assunto sobre a deficiência. Assim, ter suas ideias como
complexo como as questões da deficiência. O princípio implica na não redução diagnóstica da
nosso intuito é iniciar esse debate baseado prin- pessoa deficiente a simples causa orgânica.
cipalmente na leitura de seu livro Fundamentos Para ele, mais que apontar o retardo mental
de Defectologia, no qual Vygotsky (1989) abor- da pessoa, é necessário conhecer suas manifes-
da os processos de indivíduos (mais frequentes tações no ambiente, suas interações com outras
da infância) com deficiência mental, surdez, crianças, pois estas são básicas para redimensio-
cegueira, deficiência múltipla e outras análises nar a sua organização sócio-psicológica, como,
com transtornos emocionais e de conduta, sem por exemplo, se ela faz uso de instrumentos psi-
perder de vista as necessidades e possibilidades cológicos e culturais disponíveis no ambiente
social. Para o autor, era de fundamental impor-
1
Como a grafia do nome do autor apresenta variação em tância compreender o funcionamento psíquico,
diferentes traduções, utilizaremos uma só forma ao grafar o nome seu desenvolvimento para o entendimento da
do autor, porém preservaremos as indicações diferenciadas nas
Referências.
estrutura complexa da deficiência da criança

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para se fazer uma intervenção pedagógica para que luta para transcender a deficiência, melhor
trabalhar a situação. dizendo, em uma psicologia da “vitória sobre
Assim, suas formulações concernentes a a cegueira” ( VYGOTSKY, 1989). O trabalho
defectologia passaram a influenciar pesquisa- pedagógico, para esse autor, não tem que incidir
dores, como, por exemplo, no caso brasileiro, sobre a falta da visão, mas no como compen-
na problemática da surdez textos de (GÓES, sar essa falta. O paradigma da inclusão também
1996; 2000); deficiência intelectual e síndro- centra na deficiência da pessoa, mas na diferen-
me de Down (CARVALHO, 1997); transtornos ça, na diversidade. Nesse sentido, esse aspecto
hipercinéticos e aprendizagem (WERNER JR., é uma das interfaces entre a teoria de Vigotski e
2000); entre outros. Como se observa suas pre- o paradigma vigente.
ocupações e, de modo especial, a intervenção Na argumentação desse autor sobre as escolas
pedagógica ainda hoje se revestem de extrema especiais para surdos, a maneira como eram es-
atualidade e, por isso, trazem notáveis contri- truturadas só fazia manter e acentuar o problema
buições para melhor compreensão do trabalho de surdez dessa clientela, jamais contribuindo
pedagógico com essa clientela. para sua superação (VIGOTSKI, 1989). Nessa
Atualmente, a Educação Especial já ultrapas- mesma linha de pensamento, sobre os testes de
sou o paradigma da segregação, vivente na época inteligência, que tinham uma concepção quanti-
em a pessoa deficiente ficava confinada em am- tativa de desenvolvimento, dizia Vigotski (1989,
bientes que, por vezes, não lhe dava condição de p. 02) que “com a ajuda destes métodos, se de-
sobrevivência, ou em instituições específicas, re- termina o grau de redução do intelecto, mas não
cebendo um atendimento especializado baseado se caracteriza a própria deficiência e a estrutu-
tão somente no modelo médico, onde a deficiên- ra interna da personalidade originada por ela”.
cia era vista como uma doença. Isso acontecia na Vigotski (1989, p. 03) defendia a tese de que “a
primeira metade do século XX quando a abor- criança, cujo desenvolvimento foi complicado
dagem biológica e a avaliação quantitativa eram por uma deficiência, não é menos desenvolvida
as explicações e modelos de atendimento usado, que seus contemporâneos normais, é uma crian-
especialmente da deficiência mental (hoje inte- ça, mas desenvolvida de outro modo”.
lectual). O paradigma da integração é, segundo A inferência que se pode extrair dessas consi-
Sassaki (1998), um processo visando à adapta- derações é de que a criança deficiente precisa ser
ção da pessoa deficiente ao contexto escolar es- atendida por meio de metodologias específicas, e
pecial em classes especiais. Vivenciamos, hoje, a que frente as suas condições especiais e peculia-
Educação Inclusiva, cujo marco foi à Declaração ridades pessoais da deficiência há necessidade de
deul Salamanca (UNESCO, 1994) – promulga- condições especiais sim, sendo que os mesmos
da na Espanha – que estabelece como princípio princípios gerais de desenvolvimento são válidos
que as escolas regulares dos sistemas de ensino para todas as crianças. Nesse sentido, embora as
devem ser o lócus da inclusão. Estas acolherão leis de desenvolvimento sejam as mesmas para
todas as crianças, independente de suas condi- as crianças ditas normais e para as deficientes,
ções físicas, intelectuais, sociais, emocionais e compreende-se que “as diferentes funções psí-
linguísticas (UNESCO,1994). quicas se formam de maneira diferenciada nas
As discussões de Vigotski, embora não se- crianças com deficiência mental” (CARVALHO,
jam pensadas nesse modelo teórico, trazem con- 1997, p.146).
tribuições recorrentes para explicar o impacto O que fica subentendido é que a criança limi-
da deficiência na pessoa. Ele não acreditava que tada por uma deficiência não é menos desenvol-
a abordagem biológica e a avaliação quantitati- vida que a criança sem essa limitação, mas é uma
va do desenvolvimento fossem os únicos meios criança que se desenvolve de uma forma diferente.
científicos de explicação da deficiência. Suas Assim, por exemplo, uma criança com deficiência
ideias, a nosso ver, fazem interfaces com a Es- intelectual não está “apto a desenvolver as capa-
cola Inclusiva. Seus pressupostos teóricos não cidades de compreensão, abstração, planejamen-
se centram especificamente na deficiência, ou to das próprias ações etc.” (CARVALHO, 1997,
seja, para ele o desenvolvimento de uma crian- p.147), por isso, a escola buscará formas dife-
ça cega, não precisa estar centrado na ceguei- rentes para desenvolver essas capacidades nessa
ra, no déficit da visão, mas no desenvolvimento criança como modos de lidar com a sua diferença.

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A ação pedagógica deve incidir nas funções e desenvolveu atividades clínicas.
psicológicas superiores, e não “atuando no nível Acredita-se como sinalizou Rivière (1988)
de treinamento das funções sensoriais e motoras” que esse envolvimento e dedicação com essas
(CARVALHO, 1997, p. 147). Esses aspectos questões eram muito mais que um interesse pela
sensorial e motor correspondem às funções psi- pesquisa teórica. Seu olhar era prospectivo, pre-
cológicas elementares, com as quais nascemos, cisava conhecer para compreender os processos
e, por isso, orgânico. Desse modo, a ação peda- educativos para assim desenvolver intervenções
gógica reduz ao orgânico, algo que precisa dos como no caso de como trabalhar os comporta-
aspectos sócio-culturais para se desenvolver e mentos fossilizados. Nesse sentido, ao considerar
tende a não surtir o efeito desejado que é disponi- a pessoa com necessidades especiais, trabalhava
bilizar estratégias para o outro se desenvolver. A muito além da característica descritiva e quanti-
intervenção pedagógica, ao incidir nos processos tativa, assumindo um “enfoque qualitativo, que
orgânicos, atua em uma área menos favorável de trata de captar a organização peculiar de suas
modificação e, por isso, menos favorável a edu- funções e condutas” (RIVIÈRE, 1988, p. 68).
cação, por ser mais resistente a mudança e sem Na década de 20 do século XX, após o pe-
acesso ao desenvolvimento. ríodo que abrangeu a primeira guerra mundial,
No livro Fundamentos de Defectologia que a Revolução Russa e a Guerra Civil, existia na
integra as obras completas de Lev Vigotski, esse Rússia um número muito grande de crianças e
autor reúne vários escritos acerca da criança jovens abandonados que perderam seus familia-
deficiente e a sua educação. São várias as con- res na guerra. Era grande o número de órfãos, ou
tribuições que possibilitam esse autor à pessoa desligados da família que apresentavam doenças
deficiente, como as noções de “caminhos alter- decorrentes de desnutrição, deficiência e prosti-
nativos” e “recursos especiais” para o seu de- tuição. O que se revestia em um cenário desafian-
senvolvimento e educação. Faz, por exemplo, te frente às questões dessa realidade, sobretudo
indicações específicas ao sistema Braille, aponta nas áreas de educação e saúde. Crescia, assim, a
técnicas e procedimentos especiais para surdos, busca pela compreensão de que se precisava tra-
como os métodos sintéticos e analíticos para o balhar para resolver as questões sociais.
ensino da fala e para a deficiência mental (hoje, Nesse contexto, era intensa a atividade inte-
intelectual), explicita que “deve ser criado algo lectual, as teorias explicativas para reverter a si-
que lembre as letras formadas por pontos em tuação. No bojo dessas preocupações intelectuais
relevo – segundo sistema Braille para a crian- emergiram uma melhor compreensão “das defici-
ça cega ou a datilografia para a criança surda” ências, que teve escassa atenção na Rússia impe-
(VYGOTSKY, 1987, p.153). rial, passou a ocupar maior espaço nas esferas de
As ideias e proposições teóricas de Vi- investigações e de ações práticas, em tentativas
gotski são melhor entendidas quando articula- inovadoras (GÓES, [19--?], p. 02).
das ao momento histórico em que ele viveu. Vigotski estudou profundamente essa proble-
Faz-se necessário situar os estudos desse autor mática do pós-guerra, e se envolveu com o grande
no contexto em que foram produzidos. Nesse problema social de seu país. Com essa preocu-
aspecto, nos valeremos de dados bibliográficos pação, realizou estudos relativos à psicologia da
e de comentários a respeito do seu viés teórico, criança com deficiência, dos aspectos neurológi-
considerando o relato de autores, como: Góes, cos, da psicopatologia de adultos e de outros cam-
Rivière, entre outros. pos relacionados à compreensão dos processos
Segundo Góes ([19--?]), Vigotski era um te- humanos pautados no desenvolvimento da apren-
órico dedicado aos campos que, à época, eram dizagem, do afeto, entre outros. A situação exigia
denominados de “pedologia” ( estudo interdis- um enfrentamento aos problemas sociais da épo-
ciplinar da criança), e “defectologia” (estudo de ca, terminando assim, por traçar linhas gerais re-
pessoas com deficiência ou transtornos de desen- lacionado à área da deficiência, e por extensão da
volvimento). Ele trabalhava muito nessa temáti- Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem.
ca e ocupou cargos nessa área ou ligado a outros É inegável sua expressiva atuação, pois são muitas
campos, seja, em institutos, em departamentos ou produções relativas à Psicologia da Criança com
comitês. Em todas as instâncias realizou investi- Deficiência, apontando caminhos para melhor li-
gações, discussões teóricas, trabalhos educativos dar com a situação dessa clientela.

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Para ele, o modo como a pessoa com defici- os significados que foram produzidos e acumu-
ência era olhada, pouco ou nada contribuía para lados historicamente pela cultura humana, e ao
o seu desenvolvimento. Era preciso buscar “ca- se constitui como pessoa “ocorre justamente com
minhos alternativos” e “recursos especiais” de sua aprendizagem como membro da cultura, os
forma a perceber prospectivamente suas poten- seja, o desenvolvimento implica o enraizamento
cialidades e fazê-las emergir. Cabe registrar que, na cultura” (GÓES, [19--?], p.03).
ainda assim, suas críticas as teorias e práticas a Para Vigotski, a compensação “é um processo
pedologia e a defectologia da época, foram “um fundamental do desenvolvimento do individuo
dos motivos para acusação de ter assumido uma com deficiência” (GÓES, [19--?], p.03), e se faz
orientação ideológica incompatível com a “ciên- presente em qualquer pessoa e mais amplamente
cia oficial”, o que redundou na proibição de sua em qualquer matéria viva. No ser humano
obra, em 1936” (GÓES, [19--?], p.03). Com se ocorrem compensações de ordem orgâni-
pode observar, pouco tempo após sua morte. ca, pelas quais um órgão substitui outro,
Nas proposições de Vigotski sobre o de- ou realizar as funções deste. Mas para
senvolvimento, um aspecto relevante de sua compreender o funcionamento humano, é
teoria que faz interface com a psicologia da essencial considerar as compensações so-
criança está relacionado à questão de que os ciopsicológicas, que são distintas (embora
processos humanos têm gênese no social, ou possam ser vistas como análogas) às orgâ-
melhor, nas relações sociais, o que equiva- nicas. (GÓES, [19--?], p.03).
le dizer, nas relações com o outro, em inte- É que as relações com o outro emergem do
rações intersubjetivas. Compreendido, então, plano sociopsicológico e são nessas trocas inte-
o caráter histórico-cultural da constituição da rativas que se localizam as instâncias deflagrado-
pessoa humana como um ser social. O que ras das possibilidades compensadoras capazes de
significa dizer que nós, seres humanos, sig- estabelecer o potencial e promover o desenvolvi-
nificamos o mundo para nós, pelo outro, pela mento da criança,
mediação do outro.
Fica claro então que o mundo não é signifi- o desenvolvimento constitui-se, então
cado por nós de forma direta, mas por meio da com base na qualidade destas vivências.
experiência social, o que vale dizer que, de uma Assim, o funcionamento humano vincu-
lado a alguma deficiência depende das
forma intersubjetiva, é dessa forma intersubje-
condições concretas oferecidas pelo gru-
tiva que chegamos à compreensão da realidade.
po social, que podem ser adequadas ou
Os modos de agir, de pensar e de dizer são me-
empobrecidas. (GÓES, [19--?], p.03).
diados pelo outro, por meio dos signos e instru-
mentos. Este processo ocorre na internalização, Nesse contexto, podemos dizer que o desen-
que é um fenômeno mental construído de forma volvimento constitui-se com base na qualidade
duplamente significada, no primeiro caso inter- das mediações do outro em viabilizar vivências
subjetivamente e no segundo subjetivamente. É de qualidade e assim atingir o nível de desenvol-
uma reconstrução de algo externo em interno, vimento potencial.
por meio da reconstrução e conversão no plano Assim, ao considerarmos o funcionamento
inter e intramental do sujeito. da pessoa deficiente, é preciso considerar certas
Constamos, então, em suas formulações, a condições concretas oferecida pelo grupo so-
não redução do desenvolvimento a um curso li- cial ao qual pertence, ou do qual faz parte. Estas
near, de avanços e progressos em uma só dire- precisam ser adequadas e jamais empobrecidas,
ção. Para ele, o desenvolvimento é um processo pois, segundo a teoria vigotskiana, não é o défi-
dialético complexo, ou seja, “implica revolução, cit que traça o desenvolvimento da criança. Es-
evolução, crises, mudanças desiguais de diferen- sas condições podem ser alteradas, dependendo
tes funções, incrementos e transformações quali- do modo como a deficiência é significada, pelas
tativas de capacidades” (GÓES, [19--?], p. 03). condições de atendimento, ou seja, pela experi-
E é nessa perspectiva que a criança desde que ência que são propiciadas a pessoa deficiência.
nasce é um ser social que vai se singularizando Para Vigotski, um ponto a ser considerado
e nesse movimento em que vai compartilhado ao se trabalhar o desenvolvimento de qualquer
com o adulto seus modos de viver, internaliza criança, é considerarmos a vida social e sua emer-

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gência na cultura. Com a pessoa deficiente não é de aprendizagens baseadas nas funções senso-
diferente. Por essa razão, ao nos depararmos com riais. Os sentidos fazem parte das funções psi-
deficiência da criança, há necessidade de se criar cológicas elementares do ser humano. A criança
formas culturais alternativas de desenvolvimen- deficiente não opera satisfatoriamente os conte-
to que implicam no uso de recursos especiais. údos ensinados dessa forma, ela precisa de ca-
O déficit orgânico não pode ser ignorado, pois minhos alternativos baseados em metodologias
está presente e nos desafia, entretanto, é a vida interativas que façam brotar algo em maturação
social que abre possibilidades ilimitadas a pessoa e desenvolver sua potencialidade. Vale lembrar,
com algum déficit, implicando que o desenvol- por exemplo, que os efeitos dessas estratégias
vimento cultural é muito importante e deve ser equivocadas podem estar presentes em qualquer
considerado com prioridade, uma vez que “borra intervenção a qualquer tipo de deficiência, mas
a dominação natural da insuficiência orgânica, são mais aplicadas na educação da criança com
ou, falando mais exatamente, torna-a histórica” deficiência intelectual “de quem não se espera
(VYGOTKY,1989, p.153). que aprenda a pensar, mas a distinguir odores,
A argumentação nos faz inferir que, na matizes de cor, sons etc.” (VIGOTSKY, 1989,
educação da pessoa com deficiência, devemos p. 181). Para essas pessoas precisamos fazê-las
fazer intervenções na construção das suas fun- aprender não só distinguindo odores, matizes de
ções psicológicas superiores, e não privilegiar cor, sons, etc., mas trabalhar técnicas de ensino
as funções elementares. Isso porque as funções interativas que aumente as possibilidades para
psicológicas superiores desencadeiam a apren- fazê-las pensar, pois com essas estratégias alter-
dizagem e possibilitam avanços significativos nativas baseadas na interação, no envolvimento
no desenvolvimento. Enquanto que o núcleo da eu-outro há grande probabilidade que o desen-
deficiência não sofre ação educativa, “as fun- volvimento seja deflagrado.
ções elementares prejudicadas são sintomas que Outro aspecto relevante a ser colocado nessa
derivam diretamente desse núcleo, e por isso, linha de pensamento é a priorização do déficit.
são menos flexíveis” (GÓES, [19--?], p.05), ao Quando priorizamos o déficit, estamos, muitas
passo que estando às intervenções, baseadas no vezes, colocando em segundo plano a criança
funcionamento das funções superiores, é pos- em si. Dar prioridade ao déficit aponta uma con-
sível mais flexibilidade de ocorrências sujeitas tradição porque a complexidade que é o funcio-
às possibilidades de compensações deflagradas namento de uma pessoa – seja ela “normal” ou
pelo grupo social e, por isso, intervenções mais “deficiente”–, visto que as possibilidades de de-
suscetíveis às ações educativas. senvolvimento e aprendizagem são enormes a se
Nesse sentido, segundo essa teoria, a edu- considerar, quando a pessoa é olhada como um
cação da pessoa cega ou do sujeito surdo, por todo, e não apenas o déficit do qual é portador,
exemplo, jamais deve ser na falta de audição, ou pois este é apenas uma parte da criança. Assim,
da visão, mas pelo contrário, a educação dessas esse viés teórico chama atenção para não deixar-
pessoas deficientes deve incidir no potencial de mos de olhar as condições especiais da qual uma
desenvolvimento das funções psicológicas supe- criança é portadora, mas alerta para a necessida-
riores, como exemplo, a linguagem de sinais e a de de educá-la, pois, antes de tudo, a criança é
leitura em Braille. uma pessoa em desenvolvimento e não apenas
Nossa ideia é que, trabalhando assim a edu- uma criança deficiente.
cação especial, construindo caminhos diferentes, No que se refere ao diagnóstico esse autor,
estamos investindo na pessoa deficiente. Nesse como tantos outros, propõe uma visão pros-
sentido, devemos envolver o deficiente em dife- pectiva, privilegiando potenciais e talentos da
rentes espaços de atividades do cotidiano, bus- criança. Relacionado a isso, uma criança com
cando assim sua inserção social “a peculiaridade deficiência intelectual pode precisar de um
da educação especial está em promover experi- ensino sistemático por mais tempo, e precisar
ências que, por caminhos diferentes, invistam nas concomitantemente de ensino de atendimen-
mesmas metas gerais, o que é indispensável para to especializado, e, mesmo assim, pode alcan-
o desenvolvimento cultural da criança” (GÓES, çar um nível menor de aprendizagem, sendo
[19--?], p. 05). que os conteúdos trabalhados serão os mesmo
Vigotski opunha-se as formas e estratégias para toda a classe, mesmo que sejam adaptados.

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Elas “aprenderão o mesmo que todas as demais Quando focaliza a cegueira, Vigotski enfatiza
crianças e receberão a mesma preparação” ( VI- que ler com a mão é apenas uma das atividades
GOTSKY, 1989, p. 181). propiciadoras e necessárias aos desenvolvimen-
Não queremos dizer com isso, que a pessoa tos sócio-psicológicos. Melhor seria buscar ou-
deficiente intelectual, ou outra pessoa com outro tros caminhos alternativos aumentando sua ca-
tipo de deficiência chegara a obter capacidades pacidade de comunicação para melhor lidar com
iguais as pessoas consideradas normais. Não es- suas tarefas da vida diária.
tamos afirmando isso, queremos sim explicitar, Não queremos dizer aqui que os estudos de
com essa argumentação, que não há limite pre- Vigotski no campo da deficiência, como os “ca-
determinado do que uma criança deficiente pode minhos alternativos e “recursos especiais” se-
alcançar, e, por isso, as metas jamais podem ser jam os mais indicados, ou os mais importantes
subestimadas. Diante do exposto, reforçamos para a época atual. Há nos seus livros sobre a
a existência de diretrizes propiciadoras de de- Defectologia, informações datadas e superadas
senvolvimento orientadas para a compensação, que necessariamente precisam ser abandonadas,
a plasticidade dos processos sócio-psicológicos ou reformuladas para a atualidade. Entretanto, a
aponta para o que pensamos Vigotski chamar de nós parece que seus argumentos sobre a pessoa
“caminhos alternativos” ou “recursos especiais”, deficiente ainda hoje oferecem referenciais para
que em sua teoria são de grande relevância para a a compreensão dos problemas e indagações na
educação da pessoa deficiente. temática, mesmo no paradigma da inclusão.
No seu livro, Fundamentos de Defectologia, Hoje, obviamente, estamos em outros contextos.
as noções de “caminhos alternativos” e “recur- Há diretrizes oficiais e os discursos focalizam não a
sos especiais” aparecem com muita frequência e deficiência, mas a diferença ou a diversidade. Não é
de maneiras diversas. Nessas considerações há mais o aluno deficiente, e sim a pessoa com necessi-
indicações específicas ao sistema Braille, assim dades especiais. Os teóricos que trabalham a temáti-
como de procedimentos especiais da área de al- ca mostram grande oposição aos enfoques que redu-
fabetização, como o método sintético e analítico zem a deficiência ao biológico/orgânico/patológico,
no ensino da fala a pessoa surda, além de inúme- ou ao mesmo tempo em que não mais são aceitas
ros apontamentos quanto ao que seria “especial”, uma educação filantrópica, assistencialista e piedosa,
ilustrando casos, fazendo alusão a deficiência in- como meio de educar a pessoa deficiente.
telectual que para levá-la a aprender “deve ser A inclusão social e escolar está posta, as
criado algo que lembre as letras formadas por ações em que se encontram, ou se efetivam, mos-
pontos de relevo – seguindo o sistema Braille tram muitos desencontros e acertos. Em muitos
para a criança cega ou a datilografia para a crian- casos, a inclusão só ocorre com maior ênfase na
ça surda” (VIGOTSKY, 1989, p.153). escola e, esta, por sua vez, tem se concretizado
Na questão da pessoa deficiente intelectual, por meio da colocação de crianças com neces-
esses caminhos alternativos podem ser também sidades especiais em classes comuns, comum
técnicas e procedimentos em que o educador ensino geral para todos, deixando para as salas
possa apoiar-se para investir na compensação e multifuncionais à tarefa de criar os “caminhos
liberar a criança das impressões perceptuais con- alternativos” e os “recursos especiais” para con-
cretas, além de desafiar seu nível de capacidade, seguir a aprendizagem e desenvolvimento para
criando com ela jogos dinâmicos, intervindo na essas crianças. Entretanto, o outro, como, os
condução do pensamento de alta generalidade coleguinhas de turma estão na sala regular para
que é função psicológica superior. O educador, facilitarem a deflagração do processo inclusivo
diz esse autor, precisa privilegiar as potencialida- e, por isso, os “caminhos alternativos” e os “re-
des e talentos, recusando a suposição de limites cursos especiais” também precisam ser buscados
para alcançá-las. Mesmo nas limitações intelec- pelo professor da sala inclusiva ao efetivar me-
tuais mais graves, a visão do educador precisa ser diações pedagógicas.
prospectiva, e uma das diretrizes a seguir a com- As contribuições de Vigotski não podem ser
pensação, é ter como procedimento, atuações em utilizadas de forma equivocada, onde os “ca-
que o outro faz com a criança, o que ela não é ca- minhos alternativos” e os “recursos especiais”
paz de fazer sem sua ajuda, mas logo essa criança possam ser entendidos como atividades simpli-
fará sozinha, sem a sua ajuda. ficadas, geralmente mimeografadas, cujo desem-

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penho esperado é levar a criança a cobrir letras, sões, a nosso ver, convivem com uma práti-
ligar os tracejados do coelho a cenoura, enfim ca por vezes contraditória. Há muitos alunos
envolver a criança com atividades para passar o em uma sala inclusiva. Esse problema pare-
tempo, separar dos colegas ou deixá-la ‘as traças’ ce passar despercebido, mas como trabalhar
com atividades livres para brincar com a bone- inclusão em uma sala com muitos alunos?
ca no canto da sala. Isso significa que a base da Como buscar “caminhos alternativos” para
construção das tarefas assim realizadas são as incluir o aluno deficiente? Além disso, não se
funções psicológicas elementares, uma vez que deve esquecer o fato de que, muitas vezes, a
as funções mentais superiores são construídas ao professora da sala inclusiva em sua formação
mesmo tempo em que vão constituindo o sujei- inicial não recebeu nenhum, ou uma precária
to nas relações sociais e históricas, ou seja, nas formação sobre o paradigma da inclusão e,
relações com o outro, nas trocas intersubjetivas. por isso, precisa de formação continuada.
Vigotski não falou sobre inclusão, mas foi
Considerações Finais muito crítico ao atendimento disponibilizado na
escola especial de sua época. Entendemos que
Como se observa há muita coisa a ser feita, os “caminhos alternativos” e os “recursos espe-
como exemplo, citamos as adaptações curricula- ciais” são metas para o trabalho de inclusão, no
res que, apesar de já serem divulgadas as orienta- sentido de oferecimento de propostas que aten-
ções para essas adaptações, nos parece que estas dam o deficiente nas suas possibilidades.
estão se implantando gradualmente, ou não res- Em nossa opinião, as argumentações de Vi-
pondem aos problemas essenciais. gotski, embora não tematize a inclusão, expli-
Ainda são inúmeras as dificuldades a se- cita contribuições nesse debate e podem ajudar
rem vencidas. As argumentações giram em na prática de escolarização dessa clientela. Mas
torno das diferenças ou da diversidade e es- ainda precisamos de muitas coisas bem simples,
tas precisam ser rigorosamente estudadas. A e que estão contidas na afirmação que Vigotski
ótica a ser privilegiada é a pessoa com neces- fez sobre a cegueira, o deficiente intelectual, de-
sidades educacionais especiais. Tais discus- ficiências múltiplas, entre outras.

Referência

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