Você está na página 1de 4

O fim dos Soviets e a queda da URSS

Todo livro didático informa que em 1917, na Rússia, em Fevereiro uma revolução colocou fim aos
300 anos da monarquia dos Romanov, instaurando uma República, e em Outubro uma segunda
revolução, orientada por um dos dois Partidos Operários Social Democratas da Rússia, o chamado
Bolchevique, entregou todo o poder aos Soviets. Daí o nome Revolução Soviética. Em alguns
livros é possível saber que em russo soviet é conselho, e que essa forma específica de Conselho,
originalmente reunindo os operários de todas as empresas de uma cidade, e posteriormente
incorporando estudantes, camponeses, soldados e marinheiros (que acabariam formando seus
próprios Conselhos), surgiu em 1905, em uma pequena cidade russa quase equidistante de
Petrogrado e Moscou (Ivanovo-Vosnesensk). Mais tardar em 1907, esses primeiros Soviets foram
fechados pela monarquia, e voltaram a se reunir logo que esta caiu em Fevereiro de 1917. Já em
Abril, Lênin, principal teórico bolchevique, defendeu que o poder dos Soviets seria um poder do
povo trabalhador, e a mais ampla e eficiente democracia que a Rússia já tivera, portanto equivalente
ao que Marx chamou de Ditadura do Proletariado, e também o equivalente russo da Comuna de
Paris, embora o funcionamento desses dois parlamentos, um Soviet russo e a Comuna parisiense de
1971, não fosse exatamente igual. Essa ideia, adotada pelo Partido Bolchevique, atraiu para essa
organização forças suficientes para o levante de Outubro.

Mas depois disso, o que aconteceu com os Soviets? Existiram até 1889? Foram dominados ou
substituídos pelo Partido Comunista? Qual a relação entre os Soviets e as lutas políticas, as
reformas econômicas e a ditadura?

Nos primeiros dez anos de poder soviético, 12,5 milhões de trabalhadores chegaram a participar
como deputados aos Soviets. De 1924 a 1934, o número de deputados multiplicou-se por doze. A
participação era efetiva e vigilante, funcionando a deposição de deputados. Nos Soviets urbanos,
entre 1931 a 1934, só na Rússia, foram derrubados 18% dos deputados. A participação popular,
desde a revolução, cresceu espetacularmente. No biênio 24-25 o número de eleitores foi de 37
milhões, sendo que metade dos mesmos participou das reuniões preparatórias. Passados dez anos,
no biênio 34-35, o número de eleitores já era de 77,4 milhões, sendo que 85% participaram das
reuniões preparatórias, que eram debates anteriores à eleição. A relação do Partido com os Soviets
se guiava pela proposta por Lênin - “O Partido deve levar à prática suas decisões pelo conduto dos
soviets e nos marcos da Constituição soviética. O partido se esforça para dirigir a atividade dos
soviets e não por suplantá-los.” Mas isso nem sempre foi possível, uma vez que na prática o poder
e o prestígio do Partido cresceram além do controle dos próprios comunistas.

Porém, os Soviets só existiram até 1936, quando uma Constituinte os liquidou na forma como eram
e os substituiu por parlamentos eleitos com a forma dos parlamentos burgueses, embora mantendo
o mesmo nome. Traduzindo para o português do Brasil, criaram câmaras de vereadores,
assembléias legislativas e uma câmara de deputados, mas com os nomes de soviet municipal,
regionais e nacionais e de toda a União. A mudança da forma, nesse caso, muda todo o conteúdo,
pois não havia mais representantes de cada empresa, cada escola, cada quartel, cada navio, cada
fazenda, nem revogabilidade dos mandatos, mas políticos eleitos em grandes eleições diretas,
portanto mercantilizadas.

Essa Constituição de 1936, embora tenha sido jogada às costas de Stálin e de seu grupo, foi uma
derrota dessa facção bolchevique e de todos os comunistas. Para quem observa de longe, parece
uma derrota previsível. Ainda em 1934, enquanto nos soviets urbanos a proporção de comunistas
atingiu a média 45,3% em toda a URSS, nos soviets rurais, representantes da maioria absoluta do
povo da URSS, chegou somente a 18,9%! Sete anos antes dessa Constituinte, os comunistas tinham
iniciado a socialização das terras, atropelando a aliança com os camponeses e as decisões do último
congresso dos soviets. Pagaram esse preço porque previam uma guerra para breve, e se deram outro
passo tão perigoso para um Estado quanto convocar uma Constituinte, foi pelo mesmo motivo – a
guerra prevista com a Alemanha nazista – e a necessidade de reunificar o povo soviético.

Ao invés de renovar e melhorar, a Constituinte de 1936 colocou fim ao período propriamente


soviético. Os comunistas, cientes da derrota que sofreram, apelaram para ditadura. Entre os
fuzilados, que foram sobretudo membros do alto escalão do Partido e do Estado, estavam todos os
principais responsáveis pela Constituição de 1936, inclusive o favorito para o posto de primeiro
ministro em caso de acontecerem as eleições diretas previstas pela nova carta – Bukharin!

Essa ditadura não teve campos de concentração, nem fuzilamentos sem julgamento, nem atingiu
milhões, nem muitos milhares, ao contrário do que afirmam a maioria dos livros didáticos. Mas foi
sim uma ditadura, pois o principal canal de participação popular, os soviets, estavam extintos e a
Constituinte de 1936 foi engavetada. Também o Partido, o outro grande canal de participação,
deixou de reunir seus fóruns, provando que a derrota de 1936 fora de grande envergadura, tendo os
bolcheviques perdido o controle do seu próprio Partido.

Se não foi o inferno que pinta a propaganda capitalista, também não foi vitoriosa essa ditadura cujo
porta-voz era Stálin. Sob ela a URSS riscou a Alemanha nazista do mapa, tornou-se uma grande
potência econômica e científica. Teve progressos sociais imensos. Mas a ditadura não conseguiu
manter o poder nas mãos do povo trabalhador! Em 1953, quando morreu Stálin, os contra-
revolucionários já tinham o controle quase completo do Estado e do Partido. Houve uma resistência
de velhos bolcheviques até 1959, quando foram presos e expulsos do Comitê Central pelo Golpe de
Moscou.

Ou seja, à ditadura comunista seguiu-se uma ditadura contra-revolucionária. Foi essa ditadura
contra-revolucionária que criou o Muro de Berlin, que invadiu a Hungria, a Theco-Eslováquia e o
Afeganistão. Essa ditadura, sim, matava sem julgamento, e internava opositores nos hospícios pois
não tinha como julga-los.

Pode-se afirmar que se tratava da contra-revolução quando se analisa diversas de suas


características. Comprometeu o planejamento econômico com diversas reformas burocráticas,
dispensáveis e até absurdas, como dividir a URSS em 50 regiões com autonomia de planejamento.
Entrou na corrida armanentista provocada pelos capitalistas, o que dentro da URSS significava
verbas secretas, portanto corrupção. Aumentou o poder dos administradores constantemente,
reduzindo tanto o controle dos trabalhadores quanto da própria administração central, também
estimulando a corrupção. Privatizou as máquinas e tratores do campo. Esses fatores somados a
outras reformas econômicas de cunho liberal fizeram com que a economia soviética, até a década
de 1950 a mais dinâmica do mundo, passasse a ter índices de crescimento cada ano menores.
Embora ainda se afirmando marxistas, as declarações dos líderes “soviéticos” de então manifestam
enorme ignorância a respeito do marxismo.

Em 1989, o que aconteceu não foi uma grande ruptura na história russa, mas a conclusão lógica dos
trinta anos precedentes. Oficialmente caída, a União Soviética se torna a grande escola para o
socialismo científico, como não poderia ser de pé, quando a derrota ainda não era aceita pela
grande maioria dos que a estudavam. Mas as versões dominantes entre os marxistas para explicar
essa derrota não têm levado em conta os Soviets.

A mais difundida versão sobre a história soviética a reduz à luta entre as lideranças bolcheviques,
com destaque para a dualidade Stálin e Trotski, e com um pouco menos fama (embora tenha sido
uma luta mais difícil, demorada e fatal), entre Stálin e Bukharin. A história da Revolução Soviética
é assim reduzida à ação dos figurões, como se fosse escrita não por marxistas, mas pelos
historiadores tradicionais ou por positivistas, ainda apegados aos governantes. É como se não
tivesse existido o poder dos Soviets, só a ditadura. Essa é a versão mais difundida pelos meios
capitalistas, pois ideal para amedrontar os ignorantes.

Como nem todo mundo é parvo ao ponto de acreditar em maniqueísmos, existe uma outra versão
compartilhada por “marxistas” e capitalistas. Dizem os capitalistas que a URSS caíu porque
economicamente era ineficiente, sendo prova portanto da superioridade da economia de mercado
sobre a economia planejada. Os “marxistas” que aceitam essa versão explicam que o URSS teve
sucesso durante um período de crescimento extensivo, ou seja, em quantidade, aproveitando os
exuberantes recursos naturais herdados do império Romanov, e crescimentos da indústria pesada.
Não teria conseguido, porém, avançar para uma fase de crescimento intensivo, ou seja,
aproveitando melhor os mesmos recursos, e de crescimento da indústria leve. Em outras palavras
essa versão dita marxista não é mais que um detalhamento da versão capitalista. Nota-se a
despreocupação com os Soviets, mesmo entre os autores que se atentam para o caráter nada
revolucionário da organização fordista da indústria soviética.

Essa versão economicista é desmentida pelos estudos da economia da URSS em comparação com
sua história política. Até a década de 1950, o crescimento dessa economia foi o maior do mundo,
não superado sequer pelos índices recentes de crescimento chinês. Vimos que no final da década de
1950 a contra-revolução inicia reformas econômicas de destruição do socialismo. Ora, somente
depois dessas reformas os índices de crescimento da URSS começaram a declinar, mesmo assim
demorando para cair abaixo dos índices de crescimento normais das economias de mercado, o que
só aconteceu nos anos 1980, chegando a zero em 1989. Sendo assim, o que fracassou na economia
da URSS não foi o planejamento, nem a socialização, mas sim as reformas capitalistas, tanto que na
década de 1990, na continuidade dessas reformas capitalistas, a economia russa chegou a cair até a
metade do que fora! O que é necessário explicar é a origem dessas reformas, ou seja, a origem da
contra-revolução, e não tentar explicar a contra-revolução pela decadência econômica que ela
mesma gerou. E claro, essa versão não leva em conta que a contra-revolução se iniciou exatamente
em um período de enorme sucesso econômico, assim como em outros casos, como a naturalmente
pobre ilha de Cuba, o socialismo é capaz de avançar sobre a pobreza!

Por fim, exclusivamente marxista, existe uma explicação culturalista. O socialismo teria sido
derrotado na URSS porque os comunistas deixaram de lado a luta de ideias para se dedicarem à
administração dos negócios públicos. Existe um pouco de verdade nesse quadro, uma vez que
realmente caíram sobre os ombros dos comunistas uma infinidade de tarefas cotidianas, que se eram
indispensáveis, por outro lado não tinham nada de ação política e menos ainda de luta de ideias.
Além disso, a formação política e teórica dos trabalhadores foi prejudicada por dois erros bem
naturais. Primeiro, porque acreditavam os soviéticos que o poder dos operários e camponeses era
inclusive ocupar os postos de administração e do Estado com pessoas oriundas dos meios operários
e camponeses. Embora pareça óbvio, isso significou a constante extração das pessoas mais
politizadas e preparadas dos meios operários e camponeses, ou seja, o verdadeiro empobrecimento
políticos de ambos! Segundo, como até hoje dizemos de bricadeira que os burgueses tem que ser
postos a trabalhar, os soviéticos colocaram em prática, criando a figura dos ZEKs, que podiam ser
criminosos ou contra-revolucionários. Ou seja, os operários foram privados constantemente de suas
lideranças mais preparadas e receberam em troca os ZEKs! Porém, apesar desses e diversos outros
problemas, os contra-revolucionários demoraram trinta anos no poder para poderem deixar de se
dizerem marxistas. Ainda em 1968, para abafar a Primavera de Praga, tiveram que forjar
documentos para convencer o povo da URSS de que eram os operários thecos que imploravam pela
intervenção militar. Ainda em 1989, a opinião pública da URSS não era majoritariamente contrária
ao socialismo, e hoje os capitalistas são uma parcela menor ainda da população. Essa versão
culturalista também não leva em conta os Soviets, como se sua extinção não fosse o fim de uma
escola de poder para o povo russo.
Devemos concluir que o debate sobre o Estado tem sido sistematicamente abafado e abandonado,
embora tanto a vitória quanto a derrota da URSS, a nosso ver, tenham se decidido nesse terreno.
Não só na URSS, mas em todo canto e época – na Inglaterra o auge do movimento operário foi o
Cartismo, um movimento por reformas políticas; Na França, foi a Comuna de Paris, o primeiro
Estado dos trabalhadores, a governo mais democrático que já teve Paris; Na China a vitória da
Revolução esteve ligada às Comunas Populares e a um exército democrático, assim como no
Vietnã, e agora que não se ouve falar mais das Comunas, também não se fala mais de socialismo;
Em Cuba é óbvio que só a participação popular sustenta o socialismo, e as revoluções que se
iniciam nos países bolivarianos se fortalecem com plebiscitos revogatórios e constituições que
ampliam o poder popular.

Você também pode gostar