Você está na página 1de 8

STALINISMO E TROTSKISMO

Paul Mattick (1947)

Trotsky tinha, quando redigiu a biografia de Stálin, um objetivo: mostrar “como uma tal
personalidade pôde se desenvolver e como finalmente usurpou uma situação excepcional”.
Este é o objetivo confessado. Mas o objetivo real é bem outro. Trata-se de explicar porque
Trotsky perdeu a posição de força que foi sua, num determinado momento, quando era ele
quem devia suceder Lênin, por ser mais digno desse legado que Stálin. Não era o que se dizia,
antes da morte de Lênin? Não se colocava sistematicamente o nome de Stálin no fim, até
mesmo no último lugar, nas listas de dirigentes bolcheviques? Não se via, em tal ou qual
ocasião, Lênin propor que a assinatura de Trotsky viesse antes da sua? Em resumo, o livro nos
permite compreender porque. De fato, é uma dupla biografia: a de Stálin e a de Trotsky.
No entanto, seria necessário fazer uma diferença entre leninismo e stalinismo se quisermos
compreender o que Trotsky chama de “ética”. Com a condição, bem entendido, de admitir que
aconteceu um certo termidor. Assinalemos, então, que Trotsky fornece quatro avaliações
diferentes da época em que esse termidor teria ocorrido. Na sua biografia de Stálin, ele
escamoteia essa questão. Limita-se apenas a constatar que o termidor soviético está ligado ao
“crescimento dos privilégios da burocracia”. Mas essa constatação nos leva a períodos da
ditadura bolchevique anteriores ao stalinismo, aqueles em que justamente Lênin e Trotsky,
tanto um quanto outro, são levados a desempenhar um papel na criação da burocracia de
Estado, aumentando-lhe os privilégios com o objetivo de aumentar sua eficácia.

A luta pelo poder


Quando examinamos o que aconteceu realmente, isto é, o que se manifestou depois da morte
de Lênin, somos forçados a suspeitar de algo bem diferente de um termidor soviético.
Torna-se evidente que, nessa época, o estado bolchevique era já suficientemente forte, ou pelo
menos se encontrava numa situação tal que lhe permitia, até certo ponto, ignorar as exigências
das massas russas e as da burguesia internacional. A burocracia ascendente começava a se
sentir proprietária da Rússia: a luta pelos despojos da revolução entrava em sua fase mais geral
e aguda.
Todos os participantes dessa luta gostavam de lembrar que foi necessário recorrer à ditadura
para resolver, entre “operários” e “camponeses”, os problemas decorrentes do atraso
econômico do país e o perigo, sempre renovado, de um ataque externo. E, para justificar a
ditadura, qualquer argumento servia. A luta pelo poder que se desenrolava no interior do
partido traduzia-se em programas políticos: a favor ou contra os interesses dos camponeses, a
favor ou contra o esvaziamento dos conselhos operários, a favor ou contra uma ofensiva
política no cenário internacional. Pomposas teorias são elaboradas para obter a boa vontade do
campesinato, para administrar as relações entre burocracia e revolução, a questão do partido,
etc. O apogeu foi alcançado por ocasião da polêmica entre a “revolução permanente” e o
“socialismo num só país”.
É possível que acreditassem no que estavam dizendo. Mas - apesar de suas belas divergências
teóricas - todos se comportavam da mesma maneira, pois estavam diante da mesma situação
prática. Bem entendido, segundo as necessidades de sua causa, eles apresentavam os mesmos
fatos sob enfoques muito diferentes. Assim, ficamos sabendo que quando Trotsky percorria a
frente de batalha – todas as frentes – era em defesa da pátria, nada mais. Mas Stálin foi
enviado à frente porque “lá, pela primeira vez, ele podia trabalhar com a máquina
administrativa mais completa, a máquina militar” – máquina da qual, diga-se de passagem,
Trotsky se atribui todo o mérito. Desse modo, quando Trotsky exige disciplina, ele mostra sua
“mão de ferro”; quando Stálin faz o mesmo, ele apenas mostra sua brutalidade. O sanguinário
esmagamento da rebelião de Kronstadt nos é apresentado como uma “trágica necessidade”,
mas a aniquilação do movimento nacional georgiano por Stálin como a “russificação forçada
que se abate sobre um povo, sem considerar seus direitos de nação”. Inversamente: os
seguidores de Stálin denunciam as propostas de Trotsky como errôneas e
contra-revolucionárias, mas quando as mesmas propostas são formuladas por Stálin eles as
vêem como provas da sabedoria do grande chefe.
Para compreender o bolchevismo, e mais particularmente o stalinismo, de nada adianta seguir
e prolongar a polêmica, superficial e freqüentemente estúpida, entre stalinistas e trotskistas. O
fundamental é ver que a revolução russa não é só o partido bolchevique. Antes de tudo, a
revolução nem sequer começou por iniciativa de grupos políticos organizados. Muito pelo
contrário. A revolução foi o resultado das respostas espontâneas das massas diante do colapso
de um sistema econômico fortemente abalado pela derrota militar. A insurreição de fevereiro
começou com as rebeliões contra a fome, com as greves de protesto nas usinas e as
proclamações de solidariedade dos soldados com os manifestantes. Contudo, na história
moderna, todos os movimentos espontâneos são acompanhados por forças organizadas. Logo
que o csarismo foi ameaçado de morte, as organizações invadiram o teatro de operações com
suas palavras de ordem, pondo à frente seus objetivos políticos próprios.
O novo governo liberal, saído da revolução de fevereiro de 1917, queria continuar a guerra.
Mas tinha sido justamente contra as condições impostas pela guerra que as massas se
revoltaram. Todas as promessas de reformas na situação da Rússia naquele momento, com a
manutenção das relações com as potências imperialistas, tornaram-se palavras vazias. Era
absolutamente impossível canalizar os movimentos espontâneos na direção que o governo
pretendia. Depois de uma nova insurreição, os bolcheviques tomam o poder. Não era, de fato,
uma “segunda revolução”, mas uma simples mudança de governo, feita à força. Essa tomada
de poder pelos bolcheviques foi facilitada pelo fato de que as massas em ebulição não tinham
qualquer interesse no governo existente. Como disse Lênin, o golpe de estado de outubro foi
“mais fácil de realizar do que levantar uma pluma”. A vitória definitiva foi “praticamente
obtida por omissão... Nem um só regimento se apresentou para defender a democracia russa...
A luta pelo poder supremo, num império que abrangia um sexto do planeta, desenrolou-se
entre forças espantosamente fracas, de um lado como de outro, no interior e nas duas capitais.”
Os bolcheviques não tentaram restabelecer a velha situação para, depois, fazer as reformas.
Eles se declararam a favor do que os movimentos espontâneos haviam reivindicado, para não
serem ultrapassados pelas massas. Os bolcheviques defenderam o fim da guerra, o controle
operário na indústria, a expropriação da classe dominante, a distribuição das terras. Foi assim
que conseguiram permanecer no poder.

Os bolcheviques e a espontaneidade das massas


Os bolcheviques jamais pretenderam ser os únicos responsáveis pela revolução russa. Eles
levaram totalmente em conta a existência de movimentos espontâneos. Com naturalidade,
acentuaram o fato evidente de que a história passada da Rússia – durante a qual o partido
bolchevique havia desempenhado seu papel – havia permitido que as massas inorganizadas
pudessem atingir uma vaga consciência revolucionária. Mas não hesitaram tampouco em
pretender que, sem a sua direção, a revolução teria seguido um outro curso e desembocado na
contra-revolução. “Se os bolcheviques não tivessem tomado o poder, escreveu Trotsky, o
mundo teria conhecido uma versão russa do ‘fascismo’ cinco anos antes da marcha sobre
Roma.” No entanto, as tentativas contra-revolucionárias das forças tradicionais não foram
abortadas por uma (qualquer que fosse) direção consciente do movimento espontâneo, nem
pela direção de Lênin, que, “graças a seu olhar treinado, teve uma correta visão da situação”:
essas tentativas fracassaram porque era impossível desviar o movimento espontâneo de seus
objetivos próprios. Se tivermos que utilizar o conceito de contra-revolução, podemos dizer que
a única contra-revolução possível na Rússia de 1917 foi aquela que os bolcheviques fizeram.
Dito de outra maneira, a revolução ofereceu aos bolcheviques a possibilidade de criar uma
ordem social centralizada que permitia manter a separação capitalista entre operários e meios
de produção e refazer da Rússia uma potência imperialista.
Durante a revolução, os interesses das massas revoltadas e dos bolcheviques coincidiram de
forma verdadeiramente notável. Além dessa temporária identidade de interesses, havia uma
profunda correspondência entre a concepção bolchevique do socialismo e as conseqüências do
movimento espontâneo. Muito “atrasada” do ponto de vista do socialismo, mas demasiado
“avançada” do ponto de vista do capitalismo liberal, a revolução só podia levar a essa forma
de capitalismo na qual os bolcheviques acreditavam estar os pressupostos à instauração do
socialismo: o capitalismo de estado.
Identificando-se com o movimento espontâneo que não podiam controlar, os bolcheviques se
encontraram na posição de dominá-lo, desde que ele se esgotasse na busca de seus objetivos
imediatos. E havia muitos objetivos, que podiam ser atingidos de maneiras diversas nos
inúmeros domínios. As diferentes camadas do campesinato queriam satisfazer necessidades
diferentes, tinham objetivos diferentes, os quais atingiriam ou não. Seus interesses, contudo,
não tinham nenhuma ligação real com os do proletariado. A classe operária se dividia em
numerosos grupos, apresentava todo um leque de necessidades específicas e de concepções
gerais. A pequena burguesia tinha outros problemas. Resumindo, se a união contra as
condições impostas pelo csarismo e a guerra foi obtida mais ou menos espontaneamente, não
havia qualquer unidade real, nem quanto aos objetivos imediatos nem tampouco quanto à
política a longo prazo. Os bolcheviques não tiveram a menor dificuldade em tirar proveito das
separações sociais para tomar o poder, consolidá-lo e torná-lo mais forte que todas as forças
sociais porque eles nunca tiveram de enfrentar a sociedade como um todo.
Como todos os outros grupos que desempenharam um papel durante a revolução, os
bolcheviques avançaram, perseguindo seu próprio objetivo: apossar-se do governo. Era um
objetivo estratégico, comparado com a visão dos outros grupos. Os bolcheviques mantiveram
uma luta constante: a conquista, a perda, a reconquista de posições de força. As camadas
camponesas se acalmaram depois da partilha das terras. Os operários se reintegraram às usinas
enquanto assalariados. Os soldados retornaram à vida civil, retomando sua antiga condição de
camponeses ou operários: já não lhes era possível continuar vagando pelo país. Para os
bolcheviques, só então tem início o combate, com a vitória da revolução. Como todo governo,
o dos bolcheviques exigia submissão de todas as classes sociais à sua autoridade.
Concentrando paulatinamente todo o poder em suas mãos, centralizando todos os órgãos de
controle, os bolcheviques se capacitaram para determinar a política.
Mais uma vez, a Rússia estava completamente organizada conforme os interesses de uma
classe bem determinada: a classe privilegiada do sistema capitalista de estado nascente.

A máquina do partido
Tudo isso nada tem a ver, nem com o stalinismo nem com qualquer “termidor”. O importante
é a política de Lênin e Trotsky depois da tomada do poder. Num informe ao VI congresso dos
sovietes (1918), Trotsky ameaça: “ nem todos os operários soviéticos compreenderam que
nosso governo é um governo centralizado e que todas as decisões tomadas devem ser
obedecidas... Nós seremos implacáveis com os operários soviéticos que ainda não
compreenderam: nós os submeteremos, eliminaremos de nossas fileiras e faremos com que
sintam o peso da repressão.” Trotsky nos explica que essas palavras visavam a Stálin, porque
ele não coordenava bem suas atividades ligadas à continuação da guerra. Nós até que
gostaríamos de acreditar, mas essas palavras são ainda mais aplicáveis àqueles que jamais
pertenceram à “segunda elite”, ou que nem mesmo pertenciam à hierarquia soviética! Como
sublinha Trotsky, já havia “uma separação profunda entre as classes em movimento e os
interesses do aparato do partido. Mesmo os quadros do partido bolchevique que se
vangloriavam de cumprir uma tarefa revolucionária excepcional estavam muito inclinados a
desprezar as massas e a identificar seus interesses particulares com os do aparato, e isso desde
o fim da monarquia.”
Trotsky se apressa a esclarecer que os perigos inerentes a essa situação eram contrabalançados
pela vigilância de Lênin e pelas condições objetivas que faziam com que “as massas fossem
mais revolucionárias do que o partido e que o partido mais revolucionário do que o aparato.”
Contudo, o aparato era dirigido por Lênin! Antes da revolução, o comitê central do partido – e
Trotsky nos explica em seus mínimos detalhes – funcionava de maneira quase regulada e
inteiramente subordinada a Lênin. Depois da revolução, essa situação de fato se reforçou. Na
primavera de 1918, “o ideal do centralismo democrático sofreu novas revisões, no sentido de
que, efetivamente, o poder no governo e no partido se concentrou nas mãos de Lênin e seus
colaboradores diretos. Estes raramente divergiam do líder bolchevique e executavam
rigorosamente suas ordens.” Como a burocracia continuou progredindo, o aparato de Stálin
deve ser o fruto de uma deficiência que remonta aos tempos de Lênin.
Para fazer uma diferença entre o senhor do aparato e o aparato, como a que faz entre o aparato
e as massas, Trotsky deve subentender que somente as massas e seu líder mais avançado eram
verdadeiramente revolucionários, e que Lênin e as massas revolucionárias foram traídos pelo
aparato staliniano que, por assim dizer, fez-se por si mesmo. Sem dúvida, Trotsky necessita de
fazer essa diferença para justificar suas próprias escolhas políticas, mas essa diferença não tem
um fundamento real. Excetuadas algumas observações feitas aqui e lá sobre o perigo da
burocratização – equivalente, nos bolcheviques, aos discursos que de tempos em tempos os
políticos burgueses fazem em defesa de um orçamento equilibrado – Lênin jamais criticou
verdadeiramente o aparato do partido e sua direção. Dito de outra maneira, Lênin jamais
criticou a si mesmo. Qualquer que tenha sido a política encaminhada, ela sempre recebeu a
bênção de Lênin, durante todo o tempo em que ele permaneceu à frente do aparato. E é
importante lembrar que Lênin morreu ocupando a chefia do partido.
As aspirações “democráticas” de Lênin nada mais são do que balelas. Sem dúvida, o
capitalismo de estado sob Lênin era diferente do capitalismo de estado sob Stálin, mas
somente porque o poder ditatorial staliniano foi mais vigoroso, reforçando-se na medida em
que levava às últimas conseqüências os esforços de Lênin para impor sua própria ditadura.
Que Lênin tenha sido menos “terrorista” que Stálin é duvidoso. Como Stálin, ele rotulou todas
as suas vítimas como “contra-revolucionários”. Sem querer comparar as estatísticas sobre o
número de torturados e assassinados sob os dois regimes, basta assinalar que, sob Lênin e
Trotsky, o regime bolchevique ainda não era forte o suficiente para empreender operações do
porte das que seriam desfechadas por Stálin, como a coletivização forçada e os campos de
trabalho, base da direção estatal da economia e da política. Não são suas concepções e seus
objetivos, mas suas debilidades que constrangem Lênin e Trotsky a implantar uma pretensa
nova política econômica (N.E.P.), isto é, a fazer concessões reais à propriedade privada,
fazendo concessões verbais à democracia. A “tolerância” exibida pelos bolcheviques com
relação às organizações não bolcheviques, como os social-revolucionários (S.R.), nos
primeiros anos do domínio de Lênin, não provêm, como pretende Trotsky, do gosto de Lênin
pela democracia, mas do simples fato de que os bolcheviques eram ainda incapazes de
aniquilar imediatamente todas as organizações não bolcheviques. Os traços totalitários do
bolchevismo de Lênin foram se acentuando na proporção em que aumentava o seu controle
sobre o estado e seu poder político. Trotsky afirma que os traços totalitários foram impostos
pela atividade “contra-revolucionária” de todas as organizações operárias não bolcheviques,
mas fica difícil invocar essa atividade para explicar a manutenção e o agravamento desses
traços depois da completa anulação de todas as organizações não bolcheviques.

Trotsky apologista do stalinismo


Não podendo lançar totalmente nas costas das organizações não bolcheviques a
responsabilidade pela ditadura exercida por Lênin, Trotsky usa outro argumento. “Os teóricos
que tentam provar que o sistema totalitário, que atualmente existe em Rússia, é conseqüência
da horrível natureza do bolchevismo” esquecem os anos de guerra civil que “marcaram o
governo soviético de forma indelével. Muitos administradores, uma quantidade considerável
deles, habituaram-se a comandar e exigir uma obediência incondicional às suas ordens”.
Stálin, também, nos diz ele, “ficou marcado pelas condições dessa guerra civil, e com ele todo
esse grupo que, mais tarde, iria ajudá-lo a impor sua ditadura pessoal”. Além disso, a guerra
civil foi conduzida pela burguesia internacional, donde resulta que a face desagradável do
bolchevismo, sob Lênin e depois sob Stálin, tem como razão principal e fundamental a
hostilidade do capitalismo. Todavia, o bolchevismo não se tornou uma monstruosidade apenas
porque tinha de se defender, e sim porque recorreu ao assassinato e à tortura sob o pretexto de
se defender.
Por conseguinte, o bolchevismo de Trotsky, apesar de seu ódio por Stálin, obriga-o a uma
laboriosa defesa do stalinismo, única possibilidade que ele tem de defender a si mesmo. Eis o
que explica o caráter superficial das diferenças ideológicas entre stalinismo e trotskismo. A
impossibilidade em que se encontra de atacar Stálin sem, com o mesmo golpe, atingir Lênin,
permite-nos compreender as enormes dificuldades em que Trotsky se debate, enquanto
opositor. Seu passado e suas teorias o impedem de suscitar um movimento que se situe à
esquerda do stalinismo. O “trotskismo” se vê assim condenado a não ser mais do que uma
simples agência de reagrupamento de bolcheviques descontentes. Sem dúvida, ele poderia
desempenhar esse papel, no exterior da Rússia, tendo em vista o incessante combate pelo
poder e pela direção do pretenso movimento “comunista” internacional. Mas, de fato, ele não
pode ter qualquer importância verdadeira, nada podendo oferecer que não seja a substituição
de uma oligarquia por outra. A defesa da Rússia pelos trotskistas, durante a segunda guerra
mundial, nada mais é do que uma extensão da política encaminhada anteriormente por esses
adversários – jurados, sem dúvida, mas ao mesmo tempo os mais leais - de Stálin.
Em sua defesa do stalinismo, Trotsky não se limita a mostrar como a guerra civil transformou
os bolcheviques de servidores em senhores da classe operária. Alerta-nos sobretudo para um
fato dos mais importantes, na sua opinião: “é uma questão de vida ou morte para a burocracia
conservar a nacionalização dos meios de produção e da terra” , o que, ainda segundo Trotsky,
significa que “apesar da deformação burocrática, por mais horrível que seja, a base de classe
da U.R.S.S. continua proletária”. Podemos, então, notar que, num certo momento, Stálin
incomoda Trotsky. Em 1921, Lênin se atormentava: será que a N.E. P. é somente um recuo
“tático” ou uma verdadeira “evolução”? E Trotsky, sabendo que a N.E.P. havia reforçado as
tendências ao capitalismo privado, não quis ver inicialmente no desenvolvimento da
burocracia staliniana “nada mais do que um primeiro passo no sentido de uma restauração
burguesa”. Mas não passavam de temores sem fundamento. “A luta contra a igualdade, as
tentativas de estabelecer profundas diferenças sociais ainda não tinham conseguido eliminar a
consciência socialista das massas, nem suprimir a nacionalização dos meios de produção e da
terra, essas conquistas fundamentais da revolução.” Evidentemente, Stálin não tinha nada a ver
com tudo isso, porque o termidor russo teria, sem qualquer dúvida, aberto o caminho para uma
nova era de dominação da burguesia, se essa dominação não se tivesse mostrado ultrapassada
no mundo inteiro.

O resultado: capitalismo de estado


Com essa última observação de Trotsky, chegamos enfim ao fundamento do que discutimos
aqui. Como já dissemos claramente mais acima, o resultado concreto da revolução de 1917
não foi um regime proletário nem burguês, mas capitalista de estado. Segundo Trotsky, Stálin
teria pretendido substituir o capitalismo de estado da sociedade russa por uma economia
burguesa. Este seria o significado do termidor russo. Somente o declínio da ordem econômica
burguesa no mundo inteiro teria impedido e continuaria impedindo Stálin de alcançar sua
meta. Tudo que ele podia fazer era impor a sua execrável ditadura pessoal à sociedade
construída por Lênin e Trotsky. Neste sentido, o trotskismo teria vencido o stalinismo, não
obstante Stálin continuar no Kremlin!
Toda a argumentação de Trotsky se apóia sobre a identificação entre capitalismo de estado e
socialismo. Se alguns de seus discípulos recentemente descobriram que é impossível continuar
defendendo tal identificação, Trotsky jamais a modificou. Porque nela reside o alfa e ômega
do leninismo e, genericamente, de todo o movimento social-democrata mundial, do qual o
leninismo é apenas a parte mais realista; realista quando se trata da Rússia. Esse movimento
entendia e ainda entende por “Estado Operário” o reino do Partido, e, por socialismo, a
nacionalização dos meios de produção. Ora, à medida que o controle político do governo se
junta ao controle da economia, delineia-se claramente a dominação totalitária sobre a
sociedade em seu conjunto. O governo asseguraria a dominação totalitária por meio do
partido, que restauraria a hierarquia social, sendo ele mesmo uma instituição hierárquica.
Essa concepção do socialismo começa a ser desconsiderada, mas somente ao tomar como
ponto de partida a experiência russa e, em menor grau, a de outros países. Antes de 1914,
entendia-se por tomar o poder – pacífica ou violentamentamente – a tomada da máquina
governamental, substituindo um grupo de administradores e legisladores por outro. Do ponto
de vista econômico, tratava-se de suprimir a “anarquia” do mercado capitalista e implantar
uma produção planificada sob o controle do estado. Como, por definição, o estado socialista
era um estado “justo” , controlado pelas massas no curso de um processo democrático, não
poderia haver qualquer contradição entre as decisões desse estado e o ideal socialista. Tal foi a
teoria que bastou para organizar as frações da classe operária em partidos mais ou menos
poderosos.
A teoria do socialismo que acabamos de expor nasceu da exigência de uma planificação
econômica centralizada no interesse de todos os que se encontravam embaixo, na escala
social. O processo de centralização que se desenvolvera com a acumulação do capital era,
portanto, considerado uma tendência socialista. A crescente influência do “trabalho” no
aparelho de estado era saudada como um passo no sentido do socialismo. Mas, na realidade, o
processo de centralização se mostrou bem diferente do esperado. Ele nada mais era do que a
dissolução da economia concorrencial e o fim dos ciclos econômicos tradicionais, reguladores
da economia. Com o início do século XX, o capitalismo muda de natureza, ingressando em
condições de crise permanente que não mais encontram solução no automatismo das relações
mercantis. Regulamentações monopolísticas, intervenção do estado, política econômica
internacional lançam o fardo da crise sobre os países mais fracos, do ponto de vista capitalista,
no interior da economia capitalista mundial. Todas as políticas econômicas tornaram-se
políticas imperialistas. Por duas vezes seus objetivos foram atingidos mediante guerras
mundiais.
Ninguém duvida de que os bolcheviques estavam convencidos de que edificavam na Rússia,
se não o socialismo, pelo menos algo que lhe era muito próximo, pois estavam levando a
termo um processo que, nas nações ocidentais, era apenas a tendência principal do
desenvolvimento. Não tinham eles abolido a economia de mercado, expropriado a burguesia,
tomado o governo?
Para os operários russos, no entanto, nada havia mudado: o que eles viam era um novo grupo
de patrões, de políticos, de ideólogos que os dominavam. Sua situação era cada vez mais
parecida com a dos trabalhadores dos países capitalistas em tempo de guerra. O capitalismo de
estado é uma economia de guerra e, em outros lugares, todos os sistemas econômicos fora da
Rússia se transformaram também em economias de guerra, em capitalismos de estado
adaptados às necessidades imperialistas do capitalismo moderno. As outras nações não
imitaram todas as inovações do capitalismo de estado russo, aproveitaram somente aquelas
que melhor correspondiam às suas necessidades. A segunda guerra mundial teve como
resultado um desenvolvimento do capitalismo de estado em escala planetária. As
particularidades das diversas nações, suas situações específicas deram origem à grande
variedade de processos de desenvolvimento do capitalismo de estado.
Tomando por base o fato de que o capitalismo de estado e o fascismo não se desenvolveram
nem se desenvolvem em todos os lugares da mesma maneira, Trotsky afirma que as diferenças
entre bolchevismo, fascismo e capitalismo são fáceis de verificar. Mas o que ele faz é exagerar
arbitrariamente algumas diferenças superficiais no desenvolvimento social, para atender as
necessidades da causa que defende. Em todos os aspectos fundamentais, os três sistemas são
idênticos e representam etapas diferentes de um mesmo desenvolvimento: tentar manter e
reforçar - pela manipulação das massas e através de um governo ditatorial mais ou menos
autoritário – os privilégios da oligarquia que esse governo protege, e tornar o governo capaz
de desempenhar seu papel no cenário econômico internacional, preparando-se para, na
eventualidade de uma guerra, tirar o máximo de vantagens da situação.
Trotsky não podia se permitir ver no bolchevismo uma simples manifestação da tendência
mundial para uma economia fascistizante. Em 1940, ele defendia ainda a opinião segundo a
qual o bolchevismo tinha, em 1917, evitado a vitória do fascismo na Rússia. No entanto, o que
hoje deveria estar bem claro – de fato, já devia estar há muito tempo – é que tudo que Lênin e
Trotsky conseguiram impedir foi a utilização de uma ideologia não marxista para mascarar
uma reconstrução fascista da Rússia. Tendo servido apenas aos objetivos do capitalismo de
estado, a ideologia marxista do bolchevismo está desacreditada. Qualquer que seja a
perspectiva de ultrapassar o sistema capitalista de exploração, trotskismo e stalinismo nada
mais são do que relíquias do passado.

Nota: Este texto foi traduzido do francês, tomando por base um fragmento extraído de
Trotsky le Staline Manqué de Willy Huhn, Spartacus, Octobre-Novembre 1981 Série
B-N.113. Traduzido do inglês por Daniel Saint-James

Você também pode gostar