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Fica decretado que, a partir deste instante, Não serei o poeta de um mundo caduco.

haverá girassóis em todas as janelas, Também não cantarei o mundo futuro. Estou
que os girassóis terão direito preso à vida e olho meus companheiros. Estão
taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
a abrir-se dentro da sombra;
Entre eles, considero a enorme realidade. O
e que as janelas devem permanecer, o dia presente é tão grande, não nos afastemos.
inteiro, Não nos afastemos muito, vamos de mãos
abertas para o verde onde cresce a esperança. dadas.

Meu Deus, por que me abandonaste


Como sei pouco, e sou pouco, se sabias que eu não era Deus
faço o pouco que me cabe se sabias que eu era fraco.
me dando inteiro. Mundo mundo vasto mundo,
Sabendo que não vou ver se eu me chamasse Raimundo
o homem que quero ser. seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem Na primeira noite eles se aproximam
na própria vida, a garra e roubam uma flor
da opressão, e nem sabem. do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
Já fiz mais do que podia matam nosso cão,
Nem sei como foi que fiz. e não dizemos nada.
Muita vez nem quis a vida Até que um dia,
o mais frágil deles
a vida foi quem me quis.
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
Para me ter como servo? conhecendo nosso medo,
Para acender um tição arranca-nos a voz da garganta.
na frágua da indiferença? E já não podemos dizer nada.
Para abrir um coração

Nós vos pedimos com insistência:


no fosso da inteligência?
Nunca digam - Isso é natural!
Não sei, nunca vou saber. Diante dos acontecimentos de cada dia,
Sei que de tanto me ter, Numa época em que corre o sangue
acabei amando a vida. Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
A fim de que nada passe por imutável.
A luz que me abriu os olhos
para a dor dos deserdados
e os feridos de injustiça,
não me permite fechá-los
Não há credo na natureza
nunca mais, enquanto viva. nem horrorosas descrenças
Mesmo que de asco ou fadiga os pássaros não são afirmativos
me disponha a não ver mais, em matéria de verdade
ainda que o medo costure ventura ou pesar...
os meus olhos, já não posso
deixar de ver: a verdade
me tocou, com sua lâmina
de amor, o centro do ser.
Lutar com palavras Por que levantar o braço
é a luta mais vã. para colher o fruto?
Entanto lutamos A máquina o fará por nós.
mal rompe a manhã. Por que labutar no campo, na cidade?
São muitas, eu pouco. A máquina o fará por nós.
Algumas, tão fortes Por que pensar, imaginar?
como o javali. A máquina o fará por nós.
Não me julgo louco. Por que fazer um poema?
Se o fosse, teria A máquina o fará por nós.
poder de encantá-las. Por que subir a escada de Jacó?
Mas lúcido e frio, A máquina o fará por nós.
apareço e tento Ó máquina, orai por nós.
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida. “Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
No fundo, no fundo, Entupo-me de ausências,
bem lá no fundo, Esvazio-me de excessos.
a gente gostaria Eu não caibo no estreito,
de ver nossos problemas eu só vivo nos extremos.
resolvidos por decreto Pouco não me serve,
médio não me satisfaz,
a partir desta data, metades nunca foram meu forte!
aquela mágoa sem remédio Todos os grandes e pequenos momentos,
é considerada nula feitos com amor e com carinho,
e sobre ela — silêncio perpétuo são pra mim recordações eternas.

Você nunca vai saber


quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado dentro
como fazer de um verso
um objeto sujeito
como passar do presente
para o pretérito perfeito
nunca saber direito

Diante de coisa tão doida


Conservemo-nos serenos

Cada minuto da vida


Nunca é mais, é sempre menos

Ser é apenas uma face


Do não ser, e não do ser

Desde o instante em que se nasce


Já se começa a morrer."

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