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Liberdade didática x doutrinação

ideológica
Autonomia didática é ilimitada? Um professor poderia defender os ideais nazistas em
sala?

 JEAN VILBERT

02/11/2018 06:48
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Ato na FFLCH, USP, em 2016. Foto: Paulo Pinto/Agencia PT/Fotos
Públicas

Em meio à campanha presidencial instaurou-se mais uma polêmica


(como se já não tivéssemos o suficiente): manifestações políticas nas
escolas e universidades – professores e alunos passaram a se
posicionar em prol de um dos candidatos, sob a bandeira da defesa do
sistema democrático e das minorias, contra o fascismo.

Com a aproximação do pleito, vários colegas juízes eleitorais


proferiram decisões proibitivas (sob fundamento de se evitar
influência nas eleições). A repercussão acabou sendo negativa:
críticas de ministros do STF, revisão de suas decisões pelo TSE e até
mesmo indicação de que o CNJ irá investigar eventuais abusos
cometidos.

Fora da grande mídia e das cortes de justiça, porém, nas rodas de


conversa entre pessoas comuns do povo, ouvi a indignação de muitos:
“estamos pagamos as escolas particulares para doutrinar nossos
filhos”; “sustentamos as universidades públicas para serem espaços
menos educacionais e mais políticos… vejam os maus resultados das
instituições brasileiras no plano internacional”.

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E veio o resultado: sagrou-se vencedor o candidato considerado


“antidemocrático”. Aí acabou? Acabou nada! As manifestações
continuaram e se intensificaram. Criou-se um movimento popular e
estudantil de “resistência”. Mais uma vez, houve contrarreação: uma
deputada estadual eleita por Santa Catarina incitou nas redes sociais
que os alunos gravassem seus professores acaso fizessem
manifestações político-ideológicas em sala de aula. Mexeu no
vespeiro!

Sem demora, as notas de repúdio despencaram dos céus: Sindicatos,


Secretaria da Educação, OAB, além de um abaixo-assinado de
professores. E não parou por aí: o Ministério Público Estadual
promoveu uma ação civil pública afirmando que a jovem
“implantou um abominável regime de delações informais,
anônimas, objetivando impor um regime de medo”. O Ministério
Público Federal não ficou para trás e abriu inquérito para investigar a
intimidação a professores.

Vamos tentar avaliar a questão sob os seus diversos aspectos.

Do ponto de vista jurídico, o primeiro argumento que surge é que as


instituições de ensino, em especial as universidades, gozam de
autonomia didático-científica, conforme expressa previsão do artigo
207 da Constituição Federal. Outra arguição sensível é que as
instituições de ensino servem justamente para o debate de ideias: “é
ali que se amplia a cabeça dos estudantes, preparando-os para a
participação cidadã. Limitar essa liberdade seria censura, repressão
ideológica, imposição cultural”, disse-me um amigo professor.
Mas pergunto: essa
autonomia didática é
ilimitada? Quer dizer, um
professor poderia defender
os ideais nazistas em sala?
A princípio, há sim limites à liberdade de cátedra, tanto que o
Conselho Nacional da Educação controla rigidamente os currículos
escolares (diz o que deve ser ensinado Brasil afora). Não há direito
absoluto – tanto que “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (artigo 187
do Código Civil).

Quanto ao segundo argumento (campo de debates), não é segredo


algum que há franca hegemonia das ideias (politicamente
consideradas) de esquerda nas escolas e universidades.
Normalmente, as discussões se dão no quadrado imposto pela
ideologia dominante (nada além disso). Os desvios dessa linha são
reprimidos (notas baixas, ridicularização nos debates e, até mesmo,
violência física).

Tenho um exemplo fático: professores de uma universidade pública


participaram ativamente do movimento de “resistência” (encabeçaram-
no?), incitando seus alunos a aderirem e, no dia seguinte, esses
alunos agrediram e expulsam do campus (a socos e gritos de ordem)
um grupo de estudantes que fazia uma manifestação contra o
Comunismo. Nesse caso: há responsabilidade dos professores? Onde
fica a liberdade (das ideias contrárias)? Por que o caso da expulsão
gerou tão pouca repercussão? Parece haver certa (ou muita)
seletividade naquilo que é considerado controle ideológico.

A constatação lógica (racional e empírica) é que não há efetivo espaço


para debate nas instituições de ensino. Há uma quase
homogeneidade de pensamento (ao menos é isso que se busca
impor), de modo que não são toleradas ideias contrárias, rapidamente
tachadas de retrógradas, fascistas, antidemocráticas, reacionárias – o
que se pode chamar de etiquetamento de ideias e de controle das
virtudes pelo grupo dominante.
“Ah, mas aqui onde eu estudo há professores e alunos de direita”, é
uma resposta comum e previsível. Está aí a exceção para comprovar
a regra esmagadora. De toda forma, é o caso de se reconhecer a
assimetria que existe no campo educacional: há uma disputa (se é
que há alguma) de gigante contra anão. Mesmo quando se permite
margem dialética, a competição de ideias é inviável (concorrência
desleal). A própria esquerda costuma referir que não é possível haver
debate entre minoria e maioria quando as posições em que estão os
debatedores são tão diversas (assimétricas).

Pois bem. O que se pretende é usar as instituições de ensino para se


debater ideias políticas (partidárias e ideológicas)? Certo! Entre
quem? Professores e professores? A hegemonia das ideias
socializantes já foi ressaltada e seria engraçado negá-la. O debate
então ocorreria entre professores e alunos (com as ideias que trazem
de casa)? Ou entre alunos (uns apoiados pelos professores e outros
não)? Quer apostar quem vai ganhar?

É manifesto que os professores têm uma enorme capacidade de


influência sobre a mente de seus alunos. Estão ali na condição de
sábios: tudo que falam é opinião de autoridade. Há patente
ascendência, o que é reconhecido pela própria lei: imagine-se o mais
abjeto dos constrangimentos (para obter vantagem sexual), se o
professor se prevalecer da sua condição prevalente para buscar esse
tipo de favorecimento, responderá criminalmente por assédio sexual
(artigo 216-A do Código Penal). Se é assim em matéria tão sensível e
íntima, podemos deduzir a influência vertical que se opera no campo
das ideias.

Então, por que tanta gritaria quando, pela primeira vez que se tem
notícia recentemente, as instituições de ensino são pressionadas pelo
posicionamento ideológico a que se ligam insidiosamente (ou nem
tanto)? Em tese seria normal que discutíssemos publicamente essas
questões (tão importantes para o futuro de nosso país), buscando
encontrar propostas melhores do que gravar professores e dedurá-los
– certamente pelo debate aberto poderíamos chegar a medidas de
autocontenção muito menos invasivas.

A revolta é porque o que há por trás dessa discussão toda é menos a


autonomia didático-científica do que a liberdade das instituições de
ensino de continuarem a atuar como aparelhos ideológicos. A questão
não é só jurídica, mas moral, política e ideológica.

Antônio Gramsci, teórico político italiano, estabeleceu o conceito de


hegemonia, que consiste na posição ideológica dominante. Segundo
ele, o principal aspecto de consolidação do poder é a hegemonia
cultural, exercida por intermédio do controle do sistema educacional,
das instituições religiosas e dos meios de comunicação, o que inibe a
potencialidade revolucionária. Em resumo: “quer chegar e se manter
no poder? Deixe os quartéis em paz e tome as escolas e
universidades”. Não à toa, ele e Louis Althusser, os maiores nomes do
marxismo cultural (revolução por meios pacíficos), posicionaram as
instituições educacionais como aparelhos ideológicos fundamentais.

Também não é sem razão (é pelas mesmas razões) que o tema


“escola sem partido” gera tantas discussões acaloradas e que o
ensino domiciliar (homeschooling) foi proibido no Brasil, com decisão
recente do STF nesse sentido (Recurso Extraordinário nº
888.815/RS).

Bem, é previsível que, ameaçados, os vencedores (os que até agora


estavam dominando o jogo) iriam tentar se fechar (dentro dos muros
físicos e jurídicos), cerrar as portas das escolas, esconder-se atrás da
autonomia didático-científica das universidades – quando o que se faz
no seio das instituições educacionais, há muitos anos, é política
partidária e ideológica (doutrinação).

Realmente, é custoso se abrir ao debate efetivo (externo), com


participação de todos, sobre os rumos que queremos para nossa
Nação (como pensarão nossos cidadãos de hoje e, especialmente, de
amanhã), ou seja, que tipo de educação queremos dar aos nossos
filhos (começando por ser partidária ou apartidária). Acontece que,
com ou sem choradeira, essa decisão não cabe isoladamente (e
dissimuladamente) aos professores e aos juristas, mas a toda a
sociedade. Ora, sejamos um pouco mais democráticos.

JEAN VILBERT – Juiz de Direito e Professor

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