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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 293, 08 de Junho | 2016

História | Matéria de capa

A aula além das ideologias


Mais do que criar leis contra a doutrinação, mostrar diferentes visões de
mundo é a melhor saída para o ensino
Rodrigo Ratier
Pedro Annunciato
Patrick Cassimiro

Marxismo e liberalismo: o que dizem essas teorias sobre a redução da desigualdade social. O tema era
promessa de uma aula instigante no 3º ano do Ensino Médio do Instituto São José, no município
paulista de São José dos Campos. A coisa esquentou quando o professor Glauco Santos abriu um
debate. Fazendo uma defesa enfática do liberalismo, um dos estudantes apresentou a ditadura militar
como modelo. Glauco interveio. Reconheceu que parte da população havia avançado, mas pontuou os
graves problemas econômicos e a perseguição política. Foi quando o aluno afirmou - nas palavras do
professor - que quem morreu era bandido ou terrorista, e que bandido devia morrer.

"Naquele momento, encerrei o assunto", relembra. "Disse a ele que poderia ter a posição que quisesse,
mas jamais deveria justificar tortura e assassinato". O estudante se sentiu hostilizado e contou o caso
para a mãe. Indignada, ela foi à escola reclamar, dizendo que o filho tinha sido humilhado por suas
posições ideológicas.

A saia justa é um exemplo do temporal em torno de uma polêmica recente: a "ideologização" do


ensino. São as disciplinas de ciências humanas, especialmente História, que estão no olho do
furacão. A disputa tem efeitos na montagem da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e
motiva diversos projetos de lei que buscam um ensino neutro. O atual clima de polarização social não
ajuda a trazer luz para o debate: dá-lhe gritaria ("doutrinação!", "censura!") e confusão.

A agitação é compreensível. O tema se assenta sobre limites difíceis de delinear. É possível


ser imparcial? Qual a diferença entre emitir uma opinião e "fazer a cabeça" da turma? Como
conferir sentido a um fato histórico sem distorcê lo? Esta reportagem pretende atacar essas
questões, debater as controvérsias sobre ensino e ideologia e ajudar você a conseguir o essencial: levar
os alunos a pensar por conta própria.
Um primeiro passo é limpar o terreno da confusão conceitual. Mais do que um exercício
acadêmico, retomar o que significa ideologia é fundamental para elevar a qualidade do debate.
O clássico Dicionário de Política, dos italianos Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino, é uma boa referência. Os autores defendem que a palavra pode ter duas acepções.
A primeira, próxima do sentido negativo que ela tem na discussão atual, equivale a "crença
falsa", impactada sobretudo por convicções políticas.

Existe, porém, um outro significado mais neutro, que segundo os autores predomina na
ciência contemporânea. Ideologia seria simplesmente um conjunto de ideias e valores que nos
auxiliam a enxergar a realidade. Veja que interessante: pode-se pensar na ideologia como os olhos
que nos fazem ver o mundo. Há quatro séculos, o matemático e filósofo francês Blaise Pascal (1623-
1662) registrava essa percepção na frase "Vemos as coisas por lados diferentes e com olhos
diferentes", que acompanha o pôster desta edição. Dessa perspectiva, somos todos seres ideológicos,
com um jeito de enxergar a realidade moldado por ideias e valores particulares. Como ninguém
pode se considerar acima ou fora de algum tipo de molde, a neutralidade absoluta é uma ilusão.

Três olhares sobre a história

Como as ideologias estão esparramadas pela sociedade, elas impactaram também os modos de fazer
história. A operação de narrar fatos organizados num eixo de tempo (do mais antigo ao mais recente)
também não é neutra. Os critérios para definir o que é relevante e os métodos de construção e
interpretação desses fatos variam segundo a corrente teórica adotada.

Há três linhas principais. A mais antiga, do século 19, já superada na academia, é a metódica
ou positivista. Baseada na crença de uma ciência neutra, encarava documentos escritos como provas
e deu origem a uma história em que predominam datas e ação de indivíduos isolados - os "heróis".

A segunda, de larga tradição acadêmica, é a marxista, para quem o desenrolar da história se dá


principalmente pela luta de classes. Os mais ortodoxos enfatizam o embate entre burgueses
eproletários, enquanto a New Left, tendência surgida nos anos 1960 com representantes como
Eric Hobsbawm (1917-2012), amplia o conceito de classe para grupos como mulheres e negros.

A terceira é a chamada Escola de Annales. Derivada dos estudos da revista científica francesa Annales
d'Histoire Économique et Sociale, surgida em 1929, a corrente busca novos objetos de estudo, como
fenômenos culturais e seu papel no curso dos acontecimentos. Surgem a história dos costumes, da
sexualidade, da morte e do medo, só para ficar em alguns exemplos.
Daí decorre que um mesmo fato pode ser lido segundo diferentes perspectivas. Tomemos
como exemplo a colonização brasileira. Enquanto o modelo metódico explica de um ponto de
vista eurocêntrico a ação portuguesa, vendo-a como sinal de progresso rumo à civilização, o
marxismo evidencia a exploração econômica da colônia pela metrópole, e a Escola de Annales investiga
o papel dos costumes de escravos, índios e portugueses na formação da identidade nacional.

Valéria, de Juiz de Fora, abordou o surgimento do homem com narrativas tradicionais e científicas

Dúvidas na hora de ensinar

O professor pode revelar suas posições políticas aos alunos?

Sim. À medida que a relação pedagógica se estreita e ganha transparência, é desejável que tanto o
docente quanto os estudantes possam expor - civilizadamente - suas convicções pessoais. O
importante é não colocar a própria visão como a única correta e aprender a separar as coisas. "Ter
militância é um direito do professor, mas a sala de aula não é um lugar adequado para exercê-la", diz
Renato Janine Ribeiro, professor de ética da USP.

Os alunos precisam saber qual a corrente de pensamento do professor?

Não. Primeiro, porque muitas vezes as abordagens se misturam no dia a dia da sala de aula ? é difícil,
por exemplo, fazer uma interpretação 100% marxista da história. Segundo, porque a teoria da história
não faz parte dos currículos. Basta o compromisso de ser intelectualmente honesto e deixar claro
que existem outros pontos de vista, igualmente legítimos, além daquele que eventualmente será
mostrado com mais detalhe.

Fontes históricas são neutras? Como ajudar a interpretá-las?

Não são neutras. "Quem produz um documento escrito, por exemplo, o faz desde a sua perspectiva
histórica e social. Então, é preciso se perguntar como o tempo e o espaço impactaram o que aquela
pessoa escreveu", explica Helenice Ciampi, doutora em História pela PUC-SP. A sugestão é levar os
alunos a percerber isso com perguntas básicas: o que diz a fonte? Em que contexto foi produzida?
Como surgiu e com qual finalidade?

Como escolher reportagens equilibradas no trabalho com atualidades em aula?

Fique atento aos indícios evidentes de parcialidade: excesso de adjetivos, pouco uso de entrevistas e
falta de "outro lado" (quando o acusado se defende no texto). Vale, ainda, trazer reportagens com
diferentes pontos de vista para debater um assunto. No campo da história oral, pode-se
elaborar roteiros de entrevista para a turma sair a campo e ouvir, em primeira mão, o que as pessoas
pensam sobre os assuntos polêmicos.

Como lidar com familiares que dizem, por exemplo, que "na Ditadura era
melhor"?

Os alunos precisam ter clareza de que a memória é carregada de subjetividade e depende


de experiências pessoais, enquanto a História é uma ciência que almeja a objetividade e busca
analisar criticamente a memória. Eticamente, a escola deve ter valores inegociáveis, como a defesa da
vida. "Nada do que for condenado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos deve ser tolerado",
diz Janine Ribeiro.

O professor pode julgar se um determinado acontecimento foi "certo" ou


"errado"?

Julgar simplesmente, não - mas pode propor uma interpretação sobre um fato histórico. Perceba a
diferença: ser juiz do passado é emitir opiniões tendo por parâmetro os valores éticos e morais de
hoje. É grande o risco de uma análise subjetiva e pior, a-histórica (sem considerar as ideias que
circulavam no tempo dos acontecimentos). A interpretação de um episódio, por outro lado, leva em
conta causas, consequências e o contexto do fato.
Jair, do Recife, questionou a crença da turma de que a Idade Média seria apenas um período de trevas

Por isso, são tão problemáticos projetos de lei baseados na iniciativa Escola Sem Partido, que tramitam
em 13 municípios e sete estados. Em maio, Alagoas aprovou uma lei parecida, demandando um ensino
"imparcial", proibindo docentes de "abusar da inexperiência de alunos, com o objetivo de cooptá-los" e
prevendo punições como processos administrativos e demissão.

A dificuldade é como separar a apresentação de um ponto de vista histórico da doutrinação, palavra


que remete à pregação, algo inadequado em qualquer aula. Para os especialistas ouvidos por NOVA
ESCOLA, a alegação de que estaria havendo um esforço generalizado de doutrinação marxista nas
escolas não faz sentido. "Há uma ideia simplista de que se pode fabricar o posicionamento das pessoas
como se fabrica uma mesa. Os alunos, principalmente adolescentes, contestam o professor o tempo
todo", argumenta José Sérgio Fonseca de Carvalho, livre-docente em Filosofia da Educação na
Universidade de São Paulo. "É ingenuidade ou má-fé acreditar que a escola possua tanto poder",
completa Caroline Pacievitch, doutora em ensino de História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
Há casos ainda mais graves. Também em maio, um grupo de ONGs de direitos humanos
denunciou que várias escolas estariam recebendo notificações extrajudiciais intimidando
professores com processos na Justiça caso eles abordassem questões relacionadas à diversidade
sexual - pejorativamente chamadas de "ideologia de gênero". A ameaça, que segundo as ONGs é
amparada por grupos conservadores e religiosos, é ilegal e configura constrangimento ao exercício
profissional. "Sou contra doutrinação, de todo tipo. Justamente por isso, parece-me bom que os
professores proponham conteúdos diferentes do que os pais já pensam e já tentaram impor às
crianças", provocou o psicanalista Contardo Calligaris em sua coluna na Folha de S. Paulo.

Cruzar interpretações e questioná-las

A pluralidade de visões - e o questionamento de cada uma delas - é um caminho fértil mesmo para
abordar os assuntos mais espinhosos. Jair Santana, professor da EMTI Divino Espírito Santo, em Recife,
recorre a referências diversas para tratar da Idade Média, um dos períodos mais estigmatizados da
história europeia. Inspirado em historiadores como Jacques Le Goff, Jair tenta quebrar a ideia de "Idade
das Trevas", mostrando que também houve avanços no campo das ideias e da sociedade. "Um dos
conceitos que abordo é o de servidão, um regime de trabalho que substituiu a escravidão do Império
Romano. Pode não parecer, mas isso representou um salto importante na qualidade de vida: enquanto
o escravo era uma 'coisa', o servo estabelecia uma relação de direitos e deveres com o senhor feudal",
afirma.

Em Juiz de Fora, no interior mineiro, a professora Valéria Guimarães seguiu a mesma rota ao tratar do
surgimento da humanidade com a turma de 6º ano da EM João Guimarães Rosa. Ela propôs um estudo
de narrativas sobre a origem do Universo em diferentes épocas e culturas. Dividiu os alunos em
quartetos e distribuiu textos das mitologias chinesa e grega, do relato bíblico da criação e da teoria
evolucionista. Então, pediu que todos lessem e, em seguida, contassem para a turma. O passo seguinte
foi relacionar as histórias mitológicas e bíblicas com a cultura de cada povo. Por fim, Valéria distinguiu
as narrativas culturais da teoria evolucionista. "Quis que eles entendessem que a ciência histórica
funciona de forma diferente da mitologia e da religião. A história investiga os vestígios do passado em
busca de evidências, como num trabalho de detetive", explica.

Contemplar diferentes interpretações do passado não significa o fim das dificuldades. Quando se busca
uma abordagem plural, surge o risco de cair em outro extremo, que é o relativismo total - a ideia de
que, se não existe uma "verdade" com "V" maiúsculo, então todas as interpretações são válidas.
Segundo José Guilherme Zago, formador de professores de História pelo Pibid, o docente evita
problemas ao se apoiar em dois pilares: "O primeiro é assentar as afirmações em evidências históricas.
E o segundo é o consenso entre os historiadores. Quanto mais consensual a afirmação, mais sólida ela
tende a ser, mais testada pela comunidade científica ela foi."

Se já é difícil equilibrar visões científicas, metodológicas e políticas dentro de uma única sala de aula,
imagine o tamanho da encrenca quando se tenta estabelecer orientações para todo o país. É
justamente esse o desafio que o Brasil enfrenta atualmente ao formular a Base Nacional
Comum Curricular. Em setembro de 2015, o lançamento da primeira versão do documento causou
fortes reações pela exclusão de conteúdos da história clássica e um certo excesso, na visão dos
críticos, de tópicos relacionados ao Brasil contemporâneo. Para essas pessoas, a opção seria uma
iniciativa ideológica de "brasilcentrismo".

O desafio em escala nacional

Esse tipo de controvérsia não é exclusividade do nosso país. No Chile, grupos conservadores
reagiram mal à retirada das cruzadas da lista de temas de história europeia, um conteúdo caro à
tradição católica do país. Na Inglaterra, a crítica é a prioridade a conteúdos ligados à história nacional e
a presença tímida de assuntos relacionados a outras culturas. "O currículo de História será sempre
polêmico, porque ele tem a ver com o mito do que nós somos. É ali que se constrói, junto com
as outras ciências sociais, a autovisão que temos de nossos países", explica Maximiliano Moder,
mestre em liderança educacional, política e desenvolvimento pela Universidade de Bristol, na
Inglaterra. A Austrália fez essa discussão. O país adotou como estratégia geopolítica a aproximação
com a Ásia e decidiu incluir mais conteúdos sobre os países vizinhos no currículo. A alteração foi
bem aceita por pais e educadores.
Quanto ao Brasil, a questão é saber como a sociedade, democraticamente, decidirá qual caminho quer
seguir. Sem clareza do que devemos ser no futuro, não poderemos obter um consenso sobre como
olhar o passado. Um bom começo seria trabalhar um acordo acerca do tipo de cidadão que queremos
formar. O professor Glauco, do início do texto, dá uma boa lição sobre como chegar lá. Ao se colocar
contra a tortura, mostrou valores inegociáveis da escola - o respeito aos direitos humanos. E, ao
apresentar diferentes pontos de vista sobre um fato histórico, convidou a analisar a realidade por
múltiplas perspectivas - nenhuma delas neutra, mas capazes de, em conjunto, superar maniqueísmos e
ingenuidades. Mais calmo, o aluno que defendeu a ditadura aceitou conversar com o professor. Ele não
mudou de opinião, mas entendeu que Glauco estava cumprindo, na plenitude, a função de ensinar.

Glauco, de São José dos Campos, apresentou o crescimento econômico e a censura na Ditadura

Consultoria JOSÉ GUILHERME ZAGO, formador de professores pelo Pibid

Fotografia: Tomás Arthuzzi

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