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https://novaescola.org.br/conteudo/8626/a-aula-alem-das-ideologias
Marxismo e liberalismo: o que dizem essas teorias sobre a redução da desigualdade social. O tema era
promessa de uma aula instigante no 3º ano do Ensino Médio do Instituto São José, no município
paulista de São José dos Campos. A coisa esquentou quando o professor Glauco Santos abriu um
debate. Fazendo uma defesa enfática do liberalismo, um dos estudantes apresentou a ditadura militar
como modelo. Glauco interveio. Reconheceu que parte da população havia avançado, mas pontuou os
graves problemas econômicos e a perseguição política. Foi quando o aluno afirmou - nas palavras do
professor - que quem morreu era bandido ou terrorista, e que bandido devia morrer.
"Naquele momento, encerrei o assunto", relembra. "Disse a ele que poderia ter a posição que quisesse,
mas jamais deveria justificar tortura e assassinato". O estudante se sentiu hostilizado e contou o caso
para a mãe. Indignada, ela foi à escola reclamar, dizendo que o filho tinha sido humilhado por suas
posições ideológicas.
Existe, porém, um outro significado mais neutro, que segundo os autores predomina na
ciência contemporânea. Ideologia seria simplesmente um conjunto de ideias e valores que nos
auxiliam a enxergar a realidade. Veja que interessante: pode-se pensar na ideologia como os olhos
que nos fazem ver o mundo. Há quatro séculos, o matemático e filósofo francês Blaise Pascal (1623-
1662) registrava essa percepção na frase "Vemos as coisas por lados diferentes e com olhos
diferentes", que acompanha o pôster desta edição. Dessa perspectiva, somos todos seres ideológicos,
com um jeito de enxergar a realidade moldado por ideias e valores particulares. Como ninguém
pode se considerar acima ou fora de algum tipo de molde, a neutralidade absoluta é uma ilusão.
Como as ideologias estão esparramadas pela sociedade, elas impactaram também os modos de fazer
história. A operação de narrar fatos organizados num eixo de tempo (do mais antigo ao mais recente)
também não é neutra. Os critérios para definir o que é relevante e os métodos de construção e
interpretação desses fatos variam segundo a corrente teórica adotada.
Há três linhas principais. A mais antiga, do século 19, já superada na academia, é a metódica
ou positivista. Baseada na crença de uma ciência neutra, encarava documentos escritos como provas
e deu origem a uma história em que predominam datas e ação de indivíduos isolados - os "heróis".
A terceira é a chamada Escola de Annales. Derivada dos estudos da revista científica francesa Annales
d'Histoire Économique et Sociale, surgida em 1929, a corrente busca novos objetos de estudo, como
fenômenos culturais e seu papel no curso dos acontecimentos. Surgem a história dos costumes, da
sexualidade, da morte e do medo, só para ficar em alguns exemplos.
Daí decorre que um mesmo fato pode ser lido segundo diferentes perspectivas. Tomemos
como exemplo a colonização brasileira. Enquanto o modelo metódico explica de um ponto de
vista eurocêntrico a ação portuguesa, vendo-a como sinal de progresso rumo à civilização, o
marxismo evidencia a exploração econômica da colônia pela metrópole, e a Escola de Annales investiga
o papel dos costumes de escravos, índios e portugueses na formação da identidade nacional.
Valéria, de Juiz de Fora, abordou o surgimento do homem com narrativas tradicionais e científicas
Sim. À medida que a relação pedagógica se estreita e ganha transparência, é desejável que tanto o
docente quanto os estudantes possam expor - civilizadamente - suas convicções pessoais. O
importante é não colocar a própria visão como a única correta e aprender a separar as coisas. "Ter
militância é um direito do professor, mas a sala de aula não é um lugar adequado para exercê-la", diz
Renato Janine Ribeiro, professor de ética da USP.
Não. Primeiro, porque muitas vezes as abordagens se misturam no dia a dia da sala de aula ? é difícil,
por exemplo, fazer uma interpretação 100% marxista da história. Segundo, porque a teoria da história
não faz parte dos currículos. Basta o compromisso de ser intelectualmente honesto e deixar claro
que existem outros pontos de vista, igualmente legítimos, além daquele que eventualmente será
mostrado com mais detalhe.
Não são neutras. "Quem produz um documento escrito, por exemplo, o faz desde a sua perspectiva
histórica e social. Então, é preciso se perguntar como o tempo e o espaço impactaram o que aquela
pessoa escreveu", explica Helenice Ciampi, doutora em História pela PUC-SP. A sugestão é levar os
alunos a percerber isso com perguntas básicas: o que diz a fonte? Em que contexto foi produzida?
Como surgiu e com qual finalidade?
Fique atento aos indícios evidentes de parcialidade: excesso de adjetivos, pouco uso de entrevistas e
falta de "outro lado" (quando o acusado se defende no texto). Vale, ainda, trazer reportagens com
diferentes pontos de vista para debater um assunto. No campo da história oral, pode-se
elaborar roteiros de entrevista para a turma sair a campo e ouvir, em primeira mão, o que as pessoas
pensam sobre os assuntos polêmicos.
Como lidar com familiares que dizem, por exemplo, que "na Ditadura era
melhor"?
Julgar simplesmente, não - mas pode propor uma interpretação sobre um fato histórico. Perceba a
diferença: ser juiz do passado é emitir opiniões tendo por parâmetro os valores éticos e morais de
hoje. É grande o risco de uma análise subjetiva e pior, a-histórica (sem considerar as ideias que
circulavam no tempo dos acontecimentos). A interpretação de um episódio, por outro lado, leva em
conta causas, consequências e o contexto do fato.
Jair, do Recife, questionou a crença da turma de que a Idade Média seria apenas um período de trevas
Por isso, são tão problemáticos projetos de lei baseados na iniciativa Escola Sem Partido, que tramitam
em 13 municípios e sete estados. Em maio, Alagoas aprovou uma lei parecida, demandando um ensino
"imparcial", proibindo docentes de "abusar da inexperiência de alunos, com o objetivo de cooptá-los" e
prevendo punições como processos administrativos e demissão.
A pluralidade de visões - e o questionamento de cada uma delas - é um caminho fértil mesmo para
abordar os assuntos mais espinhosos. Jair Santana, professor da EMTI Divino Espírito Santo, em Recife,
recorre a referências diversas para tratar da Idade Média, um dos períodos mais estigmatizados da
história europeia. Inspirado em historiadores como Jacques Le Goff, Jair tenta quebrar a ideia de "Idade
das Trevas", mostrando que também houve avanços no campo das ideias e da sociedade. "Um dos
conceitos que abordo é o de servidão, um regime de trabalho que substituiu a escravidão do Império
Romano. Pode não parecer, mas isso representou um salto importante na qualidade de vida: enquanto
o escravo era uma 'coisa', o servo estabelecia uma relação de direitos e deveres com o senhor feudal",
afirma.
Em Juiz de Fora, no interior mineiro, a professora Valéria Guimarães seguiu a mesma rota ao tratar do
surgimento da humanidade com a turma de 6º ano da EM João Guimarães Rosa. Ela propôs um estudo
de narrativas sobre a origem do Universo em diferentes épocas e culturas. Dividiu os alunos em
quartetos e distribuiu textos das mitologias chinesa e grega, do relato bíblico da criação e da teoria
evolucionista. Então, pediu que todos lessem e, em seguida, contassem para a turma. O passo seguinte
foi relacionar as histórias mitológicas e bíblicas com a cultura de cada povo. Por fim, Valéria distinguiu
as narrativas culturais da teoria evolucionista. "Quis que eles entendessem que a ciência histórica
funciona de forma diferente da mitologia e da religião. A história investiga os vestígios do passado em
busca de evidências, como num trabalho de detetive", explica.
Contemplar diferentes interpretações do passado não significa o fim das dificuldades. Quando se busca
uma abordagem plural, surge o risco de cair em outro extremo, que é o relativismo total - a ideia de
que, se não existe uma "verdade" com "V" maiúsculo, então todas as interpretações são válidas.
Segundo José Guilherme Zago, formador de professores de História pelo Pibid, o docente evita
problemas ao se apoiar em dois pilares: "O primeiro é assentar as afirmações em evidências históricas.
E o segundo é o consenso entre os historiadores. Quanto mais consensual a afirmação, mais sólida ela
tende a ser, mais testada pela comunidade científica ela foi."
Se já é difícil equilibrar visões científicas, metodológicas e políticas dentro de uma única sala de aula,
imagine o tamanho da encrenca quando se tenta estabelecer orientações para todo o país. É
justamente esse o desafio que o Brasil enfrenta atualmente ao formular a Base Nacional
Comum Curricular. Em setembro de 2015, o lançamento da primeira versão do documento causou
fortes reações pela exclusão de conteúdos da história clássica e um certo excesso, na visão dos
críticos, de tópicos relacionados ao Brasil contemporâneo. Para essas pessoas, a opção seria uma
iniciativa ideológica de "brasilcentrismo".
Esse tipo de controvérsia não é exclusividade do nosso país. No Chile, grupos conservadores
reagiram mal à retirada das cruzadas da lista de temas de história europeia, um conteúdo caro à
tradição católica do país. Na Inglaterra, a crítica é a prioridade a conteúdos ligados à história nacional e
a presença tímida de assuntos relacionados a outras culturas. "O currículo de História será sempre
polêmico, porque ele tem a ver com o mito do que nós somos. É ali que se constrói, junto com
as outras ciências sociais, a autovisão que temos de nossos países", explica Maximiliano Moder,
mestre em liderança educacional, política e desenvolvimento pela Universidade de Bristol, na
Inglaterra. A Austrália fez essa discussão. O país adotou como estratégia geopolítica a aproximação
com a Ásia e decidiu incluir mais conteúdos sobre os países vizinhos no currículo. A alteração foi
bem aceita por pais e educadores.
Quanto ao Brasil, a questão é saber como a sociedade, democraticamente, decidirá qual caminho quer
seguir. Sem clareza do que devemos ser no futuro, não poderemos obter um consenso sobre como
olhar o passado. Um bom começo seria trabalhar um acordo acerca do tipo de cidadão que queremos
formar. O professor Glauco, do início do texto, dá uma boa lição sobre como chegar lá. Ao se colocar
contra a tortura, mostrou valores inegociáveis da escola - o respeito aos direitos humanos. E, ao
apresentar diferentes pontos de vista sobre um fato histórico, convidou a analisar a realidade por
múltiplas perspectivas - nenhuma delas neutra, mas capazes de, em conjunto, superar maniqueísmos e
ingenuidades. Mais calmo, o aluno que defendeu a ditadura aceitou conversar com o professor. Ele não
mudou de opinião, mas entendeu que Glauco estava cumprindo, na plenitude, a função de ensinar.
Glauco, de São José dos Campos, apresentou o crescimento econômico e a censura na Ditadura