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Pedro Páramo (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977), romance do

mexicano Juan Rulfo, apresenta várias ressonâncias do mito de Orfeu.


Assim como Orfeu desce ao Inferno para resgatar Eurídice, Juan
Preciado, o protagonista, vai a Comala, cidade "habitada" por mortos,
para resgatar seu passado, representado por seu pai, Pedro Páramo.
Comala liga-se, assim, ao Inferno, que, segundo a mitologia, é o lugar
para onde vão as almas dos mortos, exceto as de alguns eleitos. Lá, as
almas são julgadas antes de serem ou não condenadas ao castigo eterno.
É, portanto, o local de reflexão dos mortos sobre a vida. O Inferno está
associado ao fogo e ao calor, e o mesmo acontece com Comala, mas esta
cidade mostra-se ainda pior do que o Inferno: "Aquilo (Comala) está
sobre as brasas da terra (...) E posso até lhe dizer que muitos dos que
morrem por lá, ao chegarem ao Inferno, voltam para buscar o cobertor"
(p.11).

Pedro Páramo, como representante de Plutão, é o senhor absoluto


de Comala e dispõe da vida dos habitantes. Seu relacionamento com os
outros personagens é problemático, pois ele é tão árido quanto o que se
tornou Comala sob seu jugo. Esse personagem representa a própria
cidade, nos planos metafórico e metonímico.

Comala se nos apresenta como o mundo do silêncio, onde só se ouvem


os murmúrios do vento, recorrente em toda a narrativa, representando
o devir, a ida e a volta dos mistérios da vida e da morte, o passado e o
presente. O vento traz e leva as mensagens dos mortos: "– Pra que você
vem me visitar, se você já está morto? O padre Renteria fechou a porta e
saiu para o vento da noite. O vento continuava soprando" (p. 79).
No percurso de volta para o mundo dos vivos, Orfeu olha para trás,
por uma questão de fraqueza humana. A ida de Juan a Comala atualiza
esse olhar de Orfeu; porém, Juan volta-se para trás por uma questão de
honra, pois havia prometido a dolores, sua mãe, em seu leito de morte,
que procuraria Pedro Páramo. Dolores é, assim, o elo que liga o presente
e o passado de Juan. Esse passado pode estar concluído, visto que todos
os habitantes de Comala estão mortos, ou inconcluso, pois todos deixam
resquícios de suas dúvidas e contradições.
Orfeu é punido por ter desobedecido à ordem dada por Plutão (que
não olhasse para trás); Juan, por querer descobrir segredos guardados
no mundo dos mortos, cuja revelação lhe custa a própria vida. Orfeu
morre por não ter tido a possibilidade de escolher entre olhar e não
olhar, sendo traído por seu livre-arbítrio. Juan abdica de seu livre-
arbítrio ao acatar a vontade de sua mãe, e sua morte decorre do
cumprimento da promessa que fez: "Mas não pensei em cumprir minha
promessa. foi agora há pouco que comecei a me encher de sonhos (...)
Por isso vim a Comala".
Orfeu perde para sempre Eurídice; Juan jamais contempla a face de
seu pai, conhecendo-o, apenas, por meio de depoimentos dos outros
mortos. Ambos são, assim, frustrados na tentativa de resgatar o passado.
Apesar de tudo, Orfeu transmite a esperança de reverter as situações,
por mais desesperadoras que sejam, encantando, com sua lira, a tudo e
a todos. Em Pedro Páramo, essa esperança é visível em algumas
passagens, nas quais os personagens continuam, mesmo após a morte,
buscando suas soluções: "Há esperança para nós, contra o nosso pesar"
(p. 26).
A procura de Juan por seu passado representa a busca por si mesmo.
Esse personagem encarna a mesclagem de vida e morte nos
questionamentos ontológicos que perpassam as tensões humanas.

(Resenha publicada na coluna Hispano-América,


do jornal Correio Londrinense, em 20/10/1992.)

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