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A estrutura narrativa e o

contexto de produção do
romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo
Ana Paula Cantarelli
UFSM
Rosani Úrsula Ketzer Umbach
UFSM

RESUMO: Este trabalho propõe uma análise do romance Pedro Páramo, de Juan
Rulfo, destacando sua estrutura narrativa e seu contexto de produção. Para tanto,
busca-se aporte teórico nos estudos de Walter Benjamin sobre o autor, e de Ángel
Rama sobre o processo de transculturação.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa mexicana moderna. Juan Rulfo – Pedro Páramo.
Pedro Páramo – Crítica e interpretação.

ABSTRACT: This paper proposes an analysis of the novel Pedro Paramo, of Juan
Rulfo, emphasizing its narrative structure and its context of production. Therefore,
we seek theoretical support in the studies of Walter Benjamin about the author
and Angel Rama on the process of transculturation.
KEYWORDS: Modern Mexican Narrative. Juan Rulfo – Pedro Páramo. Pedro
Páramo – Critic and Interpretation.

Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi


padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo
prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera.
Juan Rulfo

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Introdução
Já decorreram décadas e décadas desde que a primeira edição de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, foi publicada. Entretanto, esse roman-
ce segue com aspectos ainda não explorados, com pontos a serem
desvendados. Neste trabalho, propomo-nos a fazer uma leitura desse
romance, dentre as muitas possíveis, enfatizando o autor e o contexto
em que foi produzido, sem desconsiderar a estrutura da narrativa.
A partir das considerações presentes no texto “O autor como pro-
dutor”, de Walter Benjamin, e no texto “Os processos de transcultu-
ração na narrativa latino-americana”, de Ángel Rama, tentaremos ali-
nhavar esses dois planos (estrutura narrativa e contexto de produção),
em busca da construção de uma possibilidade de compreensão da
obra que crie uma ponte entre eles, relacionando-os, permitindo que
um elucide o outro.

Organização do romance: estrutura da narrativa


Pedro Páramo foi o único romance escrito pelo mexicano
Juan Rulfo. Publicado pela primeira vez em 1955, Pedro Páramo
tem a maioria de suas ações ambientadas na cidade ficcional de
Comala. O romance inicia com o relato, em primeira pessoa, de
Juan Preciado que foi para Comala como cumprimento de uma
promessa feita a sua mãe, Dolores Preciado. Em seu leito de morte,
Dolores fez com que Juan lhe prometesse que procuraria por seu pai,
Pedro Páramo, e reclamaria tudo o que, por direito, lhe era devido.
Dolores, quando viva, descrevia Comala para seu filho como uma
espécie de paraíso para onde sempre almejou voltar. Juan confessa
que não tinha, inicialmente, a intenção de cumprir a promessa, até
que começou a ter visões de Comala e de seu pai que o levaram a
principiar a viagem: “não pensei em cumprir minha promessa. Até
agora há pouco, quando comecei a encher-me de sonhos, a dar asas

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às ilusões”1 (RULFO, 1980, p. 7, tradução nossa). A narração de Juan
Preciado, desde o início do texto, encontra-se fragmentada, sendo
constantemente interrompida por trechos de seus diálogos com sua
mãe e por trechos de uma linha narrativa em primeira pessoa que
podem ser atribuídos a Pedro Páramo.
Em sua viagem de ida para Comala, Juan conta com Abundio – que
também é filho de Pedro e, portanto, irmão de Juan – para orientá-lo
pelo caminho como um guia. Em Comala, Preciado encontra-se com
muitas pessoas que fizeram parte do passado de sua mãe, Dolores,
e de seu pai, Pedro: Eduviges Dyada, Abundio Martínez, Susana San
Juan, Damiana Cisneros, etc. Contudo, em determinado momento,
Juan percebe que seus interlocutores estão todos mortos. Presos à
cidade de Comala, esses habitantes surgem como sombras, como
vultos que vão ganhando voz e aparência à medida que a busca
empreendida por Juan os “invoca”, convidando-os a realizarem seus
relatos, a contarem suas histórias e, por conseguinte, auxiliarem na
composição da história de Pedro Páramo e de Comala.
A cidade, ao longo da narração de Juan, é assim caracterizada:
“povoado sem ruídos”2 (RULFO, 1980, p. 11); “casas vazias, portas
quebradas, invadidas por ervas”3 (RULFO, 1980, p. 11); “o ar era
escasso”4 (RULFO, 1980, p. 12); “um povoado solitário”5 (RULFO,
1980, p. 12). Somada a essas características, há ainda a presença de
vultos e a ausência de crianças, delineando um ambiente em ruínas,

1 “no pensé en cumplir mi promesa. Hasta ahora pronto que comencé a llenarme de sueños, a

darle vuelo a las ilusiones”.


2 “pueblo sin ruidos”.
3 “casas vacías, puertas desportilladas, invadidas de yerba”.
4 “el aire era escaso”.
5 “un pueblo solitário”.

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triste e silencioso, mostrando-se contrária à perspectiva de paraíso
delineada por Dolores em suas conversas com o filho.
Ao findar a primeira parte do romance, a narração de Juan é inter-
rompida com sua morte causada pelo excessivo calor e pela falta de
ar das noites de Comala: “Não havia ar. Tive que sorver o mesmo ar
que saia da minha boca, detendo-o com as mãos antes que escapasse.
Senti-o ir e vir, cada vez menos; até que se tornou tão fino que vazou
entre os meus dedos para sempre”6 (RULFO, 1980, p. 56). O filho de
Dolores morre quando estava decidido a partir, no dia seguinte, da
cidade, uma vez que sua busca pelo pai mostrou-se infrutífera, pois
o pai buscado está morto e o paraíso descrito pela mãe assemelha-
-se a uma espécie de purgatório com almas pecadoras, presas a uma
cidade vazia e deteriorada. A cidade e seus habitantes impedem que
Juan vá embora, convertendo-o em mais um dos seus; afinal fora em
Comala que ele nascera e para Comala que voltara para morrer.
Começa, então, uma narração em terceira pessoa, onisciente, que
retorna ao passado, quando Pedro ainda estava vivo. A maioria das
personagens da narração feita por Juan está presente também na segun-
da. Essas duas narrações apresentam visões diferentes de Comala: a de
Juan é de uma cidade árida, quente, sem vida, repleta de vultos e som-
bras; enquanto a outra apresenta uma cidade ainda viva, mas domina-
da pelos desmandos de Pedro Páramo. Somente na narração onisciente
temos acesso às descrições de Pedro, o pai que Juan está buscando.
Apresentado como um homem astuto, mas cruel, Pedro é também
mostrado como um homem que nutria carinho por Miguel Páramo,
um filho nascido fora do casamento, mas criado por Pedro – o único

6“No había aire. Tuve de sorber el mismo aire que salía de mi boca, deteniéndolo con las manos
antes que se fuera. Lo sentí ir y venir, cada vez menos; hasta que se hizo tan delgado que se filtró
entre mis dedos para siempre”.

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que recebeu o sobrenome do pai. Miguel é morto pelo cavalo que
tanto gostava, deixando uma lacuna no coração de Pedro. Além de
Miguel, Susana San Juan também recebe o carinho de Pedro. Apaixo-
nado por essa mulher, Pedro não é correspondido. Susana, depois da
morte de seu marido e com os constantes assédios de Pedro, principia
a enlouquecer. Vivendo em meio aos delírios, Susana vai enfraque-
cendo até o momento de sua morte. Pedro, sozinho, ameaçado por
guerrilheiros que querem o seu dinheiro para manter os constantes
ataques ao governo, acaba sendo morto pelo próprio filho Abundio,
que havia conduzido Juan a Comala no início do romance. Abundio
fora à casa do pai pedir-lhe dinheiro para sepultar a esposa que havia
morrido. Atordoado, sem saber ao certo o que fazia, Abundio ataca o
pai: “Deu uma batida seca contra a terra e foi desmoronando-se como
se fosse um monte de pedras”7 (RULFO, 1980, p. 118).
A significação do nome “Pedro Páramo” nos dá indícios do compor-
tamento dessa personagem ao longo da narrativa: Pedro (pedra) e Pára-
mo (deserto) simbolizam a morte e a deterioração que suscita o poder.
Essa significação delineia-se na morte de tudo aquilo que está próximo
a Pedro: Miguel, seu filho mais amado, é morto pelo cavalo dado por
Pedro; o amor que sente por Susana faz com que ela enlouqueça; o do-
mínio do povoado no qual vive conduz à gradual aniquilação do lugar;
o capataz que lhe é mais fiel é assassinado por trabalhar para Pedro; até
que o próprio Pedro desmorona como uma pilha de pedras ao final do
romance. Essa proximidade com a morte manifestada principalmente
por essa personagem reforça o caráter de vazio esboçado pelas des-
crições da cidade feitas por Juan Preciado, criando uma atmosfera de
abandono e de solidão que se intensifica ao longo do romance.

7 “Dio um golpe seco contra la tierra y se fue desmoronando como si fuera um montón de piedras”.

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A estrutura narrativa de Pedro Páramo contempla o que podería-
mos chamar de duas histórias centrais: a primeira é a narração de Juan
Preciado que vai a Comala em busca do pai e a segunda é a narração
em terceira pessoa que conta a história de Pedro Páramo. Assim, pai e
filho ocupam o primeiro plano da narração. O segundo plano é ocu-
pado por uma série de histórias menores que apresentam relação com
as duas histórias principais, como, por exemplo, a história de Miguel
Páramo; a relação de Eduviges Dyada com Dolores Preciado; a morte
da esposa de Abundio; a história de Damiana Cisneros; a história de
Susana San Juan; entre outras.
As histórias menores foram dispostas em lugares pontuais das his-
tórias centrais, ajudando a compô-las à medida que avançamos na
leitura. A mudança de narrador, de foco narrativo e de personagens
converte-se em uma constante ao longo da leitura até que o narra-
dor em terceira pessoa assuma, após a morte de Juan, o centro da
narração. A soma das histórias menores às histórias maiores permite
que se componha a história de Comala antes de Juan Preciado ter lá
chegado: a maneira como Pedro Páramo subjugou através da força e
da violência o pequeno povoado; como ele casou-se com Dolores;
como principiou a guerra de guerrilhas; enfim, acontecimentos que
permitiram que Comala ficasse da forma como Juan a encontrou: uma
cidade vazia, destruída pela ambição de Pedro.
A composição dessas histórias, ao longo do romance, contribui
para a fragmentação da narrativa, uma vez que as histórias menores
surgem em meio às maiores, rompendo com a linearidade destas.
Fragmentos de falas das personagens, frases proferidas por alguém
que, vivo ou morto, está relacionado à Comala implicam um maior
esforço do leitor para conseguir compor a trama narrativa e lograr
atribuir sentido e coerência ao romance lido. Além disso, a fragmen-
tação desse texto permite que diferentes dimensões de leitura sejam
possíveis, ampliando a significação desse texto.

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O autor e o contexto de produção
Walter Benjamin, em uma conferência pronunciada em 1934, afir-
mou que “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do
ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista
literário” (BENJAMIN, 1994, p. 121). O que há por trás dessa afir-
mação contempla uma discussão estabelecida por críticos literários
ao longo dos anos: afinal a qualidade da obra está em seu aspecto
genuinamente literário, ou seja, em sua estrutura, na organização dos
elementos que a compõem ou em sua vinculação com o social, em
sua capacidade de denúncia e de crítica à sociedade?
Benjamin resolve magistralmente essa questão ao afirmar que as
duas coisas (forma e conteúdo) estão interligadas: “é a tendência lite-
rária e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em toda
tendência política correta, que determina a qualidade da obra. Por-
tanto, a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade
literária, porque inclui sua tendência literária” (BENJAMIN, 1994, p.
121). Benjamin opta por uma forma dialética de abordar a obra literá-
ria, vendo-a não como um reflexo do contexto de produção ou como
uma mera organização de elementos em busca da construção de uma
estrutura, mas sim como um ato da produção humana, vinculado a
um contexto social vivo, sendo a obra percebida, então, como um
elemento constituinte da realidade. O autor, assim, é visto como um
sujeito localizado em um contexto social, mas que não é definido
apenas por esse contexto e pela sua posição no processo produtivo e
sim, também, pelas suas opiniões, convicções e disposições, ou seja,
pela maneira como é capaz de atuar no meio do qual faz parte.
A partir das considerações tecidas por Benjamin, surge a pergunta:
Como Pedro Páramo constitui-se em um ato de produção humana
vinculado a um contexto social? Para responder a essa interrogação
será preciso primeiro voltar nosso olhar para o autor Juan Rulfo. Nas-
cido em 16 de maio de 1917, em Jalisco, no México, Rulfo tornou-se

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órfão de pai (1923) e de mãe (1927) muito cedo, o que levou seus fa-
miliares a colocarem-no em um internato em Guadalajara, capital do
estado de Jalisco, onde viveu entre 1928 e 1932. Pertencente a uma
família de proprietários de terra que ficou arruinada pela Revolução
Mexicana, Rulfo perdeu seu pai e seus tios na época da Guerra de
Cristero. Após 1932, frequentou um seminário por um breve período
e mudou-se para a Cidade do México, a fim de estudar Direito. Não
pôde terminar os estudos e durante os vinte anos seguintes trabalhou:
primeiro como agente de imigração por todo o México e logo como
agente da empresa Goodrich-Euzkadi.
Em 1944, fundou a revista literária Pan. Durante a década de 1950,
Rulfo publicou El llano en llamas e Pedro Páramo. Apesar de ter aban-
donado a escrita de livros depois dessas publicações, continuou ati-
vo na cena literária mexicana, colaborando com outros escritores em
roteiros, escrevendo para a televisão e dedicando-se à fotografia. De
1962 até sua morte, Rulfo foi diretor do departamento de publicações
do Instituto Nacional Indígena do México. Foi membro da Academia
de Letras Mexicana e recebeu vários prêmios literários em vida. Fale-
ceu de câncer em oito de janeiro de 1986, na Cidade do México, no
México.
Ao longo de sua vida, Rulfo publicou apenas dois livros: o livro de
contos El llano en llamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955),
que foram traduzidos para vários idiomas. Contudo, sua influência
em outros escritores se fez notar, principalmente nos pertencentes ao
boom literário. Rulfo é considerado o principal precursor do chamado
Realismo Mágico latino-americano, um movimento que contou com
integrantes como García Márquez, Jorge Luís Borges e Julio Cortázar,
todos confessos admiradores do autor de Pedro Páramo. Sua pequena
e breve obra, de acordo com Ruffinelli (1977), basta para considerá-lo
um dos grandes escritores da língua espanhola: a maestria dos seus
contos e a temível beleza do mundo fantasmagórico de Pedro Páramo

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têm atraído a atenção durante décadas, induzindo, a cada nova leitura,
a descoberta de diferentes dimensões, estilísticas e significativas, de sua
narrativa.
As considerações tecidas por Ruffinelli (1977) auxiliam na com-
posição de parte da resposta de nossa pergunta. A estrutura narrativa
de Pedro Páramo deve muito de sua significação à fragmentação nela
presente. As várias histórias reunidas compõem uma espécie de que-
bra-cabeças que delineia a cidade de Comala. No entanto, à medida
que nos centramos em uma história de cada vez, percebemos mul-
tiplicidades de significações e de associações possíveis que somente
são aceitáveis devido à pluralidade propiciada pela fragmentação do
romance. Assim, a estrutura da narrativa ganha valor, sendo reconhe-
cida sua qualidade literária ou, nas palavras de Benjamin (1994), sua
tendência literária, uma vez que sua estrutura permite que a signifi-
cação seja construída mesmo com o passar do tempo, propiciando a
produção de novas leituras.
Ainda no que diz respeito à estrutura do romance, devemos desta-
car a presença do Realismo Mágico que se converte ao mesmo tempo
em elemento estrutural e vínculo com o contexto social de produção
do romance analisado. O Realismo Mágico apresentou-se na América
Latina como uma forma de preservar aspectos regionalistas das diver-
sas sociedades submetidas ao caráter universalizante que predomina-
va nas metrópoles ao redor do mundo. Nesse aspecto, aponta Rama
(2001, p. 212-213):
No variado panorama aculturante atual, testemunho
da dinâmica das sociedades latino-americanas con-
temporâneas, um extenso capítulo é ocupado pelos
conflitos das sociedades regionais que se deparam
com a modernização incorporada por intermédio
de cidades e portos, proclamada transmissora do
progresso e que as elites urbanas dominantes instru-
mentam. Como foi possível comprovar em inúmeros

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exemplos, esse processo de aculturação não respon-
de a um mero intercâmbio civilizado entre culturas,
mas é a única opção que se impõe para poder solu-
cionar um choque de forças culturais muito díspares,
uma das quais viria a ser previsivelmente destruída
no confronto, sendo simplesmente vencida em ter-
mos de um pacto. Os regionalistas respondem a esse
conflito: tentarão evitar a ruptura, que se aproxima,
entre os diferentes setores internos que compõem a
cultura latino-americana, devido à desigual evolu-
ção experimentada e aos diversos ingredientes ori-
ginários, enquanto assistem a uma aceleração mo-
dernizadora.

As afirmações feitas por Rama estão relacionadas, principalmente,


às produções artísticas desenvolvidas antes da metade do século XX,
contudo encontram fáceis ancoragens nas produções posteriores. Re-
gionalismo e universalismos não travam batalhas novas. Seus confli-
tos são antigos. Enquanto o primeiro busca proteger-se das mudanças
acarretadas pelo fenômeno globalizante e estimuladas pela sociedade
capitalista em busca de uma particularidade que o diferencie do res-
tante; o segundo tenta homogeneizar as sociedades ao redor do mun-
do, em nome uma conduta que tem como principal escudo o progres-
so e o desenvolvimento. Em busca da modernidade, quase sempre o
primeiro é derrotado pelo segundo, ou então sofre alterações que o
modificam radicalmente. Esse confronto conduz à assunção de postu-
ras normalmente extremadas, que, em nenhuma hipótese, concedem
um lugar confortável para os seus defensores, o que torna ainda mais
conturbada a relação entre eles.
Na América Latina, o regionalismo salientava as particularidades
culturais alimentadas em áreas ou sociedades internas, o que destacava
seu perfil diferencial. Também, estava propenso a conservar os elemen-
tos que, no passado, contribuíram para o processo de particularização,

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de singularização cultural, visando à transmissão futura como uma for-
ma de preservação. De acordo com Rama (2001, p. 211), “o elemento
tradição, incluído como um dos vários traços de toda definição de ‘cul-
tura’, era realçado pelo regionalismo tanto no campo dos valores como
no das expressões literárias”.
O processo de universalização torna os valores e as expressões par-
ticulares inválidos. Respaldada em fontes externas, a universalização
nega as pretensões regionalistas, desconsiderando-as, e, como conse-
quência, transfere para o interior da nação um sistema de dominação,
intensificando sua submissão. Em nome de uma modernização, de um
reconhecimento mundial, eternamente aspirado pelos Estados-nação,
o preço pago está na perda das individualidades, na subjugação dos
valores locais, substituídos pelos denominadores universais.
Contudo, como aponta Rama (2001, p. 213), apareceram na Amé-
rica Latina criadores literários capazes de construir

as pontes indispensáveis para resgatar as culturas


regionais. Manejando de um modo imprevisto e
original as contribuições artísticas da modernidade.
Mas, além disso, e o mais importante, é que revêem,
à luz que ela projeta, os próprios conteúdos culturais
regionais em busca de soluções artísticas que não
sejam contraditórias com a herança que devem
transmitir.

E Juan Rulfo certamente é um desses criadores. Considerado um


dos grandes precursores do Realismo Mágico, o escritor conseguiu
combinar aspectos universais e regionais em suas produções literá-
rias, das quais Pedro Páramo apresenta-se como o melhor exemplo.
Ao mesclar traços de um pequeno povoado ficcional localizado no
México, com aspectos universais, Rulfo consegue equilibrar os dois
pólos de oposição no romance aqui analisado. O plano do verossímil

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– retratado pela descrição das cidades abandonadas, pela dificuldade
de sobrevivência, pelos desmandos de um ditador local – funciona
paralelamente ao plano do fantástico, manifestado na presença dos
mortos que são “invocados” pela presença de Juan Preciado.
Como aponta Rama (2001, p. 235), o romance Pedro Páramo

mostra-nos o conflito cultural mexicano, porque


ali um setor majoritário da população, com
predominantemente assentamento rural, passou
por um processo de miscigenação que reuniu de
forma contraditória elementos do ramo indígena e
espanhol, porém forçosamente da perspectiva do
trauma sofrido. Por intermédio da política agrária
da revolução mexicana (Cárdenas), esse setor pôde
realizar progressos relativos onde se afirmaram
singularidades culturais novas, mas sua dependência
e retraimento foram ampliados pela expansão
industrial da burguesia urbana das últimas décadas.

A partir das considerações de Rama, podemos afirmar que Pedro


Páramo ilustra os conflitos culturais em dois níveis: os vivenciados
pelo autor no cenário mexicano e os vivenciados pela América Latina.
Dos últimos já falamos aqui ao enfocarmos os conflitos entre regiona-
lismo e universalismo. Quanto aos primeiros vale a pena retomarmos
as informações fornecidas anteriormente sobre o autor. A composição
da cidade de Comala, como aponta Ruffinelli (1977), não provém de
uma imaginação caprichosa, que representa de forma abstrata a ideia
da morte, mas sim da situação de erosão do solo de uma região de
Altos, pertencente a Jalisco; provém da diáspora de campesinos para
as cidades principais (Cidade do México, Guadalajara e Tijuana) onde
se esperava conseguir uma vida melhor: “efeitos negativos de uma
Revolução Mexicana que não alcançou verdadeiras reformas na es-

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trutura agrária8” (RUFFINELLI, 1977, p. xi). O cenário visto por Rulfo
era de desolação. A cada ano, mais campesinos mudavam-se para
outras cidades devido à carência econômica do campo, ao deficiente
planejamento agropecuário, à falta de dinheiro para investir (falta de
crédito), à insegurança com relação ao futuro. Essa mudança deixava
tanto povoados como cidades praticamente desertos, sendo ocupados
por uns poucos indivíduos que continuavam presos a sua terra sem
condições de partirem para outras cidades, ainda acreditando em seu
trabalho e na sua produção. Como afirma o próprio Rulfo, ao falar do
que motivou a sua construção literária:

Encontrei uma série de povoados fantasmas, onde


não só não havia habitante, mas também nada vi-
via, e em minha obra atribuí esse abandono a um
tirano, à tirania, que ainda persiste no México e que
também obrigou os indivíduos a abandonarem seus
lugares de origem. Isto foi o que me deu a chave9
(RULFO, 1997, p. 480).

A origem da violência muda, natural e espontânea de personagens


como Pedro Páramo também pode ser relacionada à realidade mexi-
cana durante o processo pós-revolucionário. Assim, podemos identifi-
car entre as histórias pequenas, que entrecortam as narrativas maiores
ao longo do romance, uma que encontra ancoragem na realidade
mexicana – a Rebelião Cristera:

8 “efectos negativos de una Revolución Mexicana que no logró verdaderas reformas en el reparo

agrario”.
9“Me encontré con una serie de pueblos fantasmas, donde no sólo no había habitantes, sino que
nada vivía, y en mi obra ese abandono lo achaqué a un cacique, el cacicazgo, que aún persiste
en México y que también ha obligado a la gente a abandonar sus lugares de origen. Esto fue lo
que me dio la clave”.

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Os anos de 1921 a 1924 tiveram como traço parti-
cular a “exaltação nacionalista”, como foi chamada
por Monsiváis, e foram seguidos de um “Período de
sepraração revolucionária” (1925-1934): assassinado
Carranza em Tlaxcalantongo em 1920, o país entrou,
com o general Obregón e pouco depois com Plutar-
co Elías Calles, em um caminho de afirmação e de
institucionalização que não implicou, contudo, na
imediata rendição de armas; ao contrário, foram múl-
tiplos, sucessivos e sangrentos os levantes militares,
e foi durante o período presidencial de Calles que
surgiu a “rebelião cristera”. Esta se estendeu como
um verdadeiro levante popular instigado pela igreja,
cujos interesses haviam sido prejudicados pelo pro-
cesso revolucionário e pela Constituição de 191710
(RUFFINELLI, 1977, p. xii-xiii, tradução nossa).

Pedro Páramo é o retrato de um proprietário de terras que dominou


e subjugou um povoado através da força e da violência e que, em suas
ações finais, conta com a incidência direta da Revolução Mexicana
e com a Rebelião Cristera. Esse romance mostra como o período
revolucionário passou sem produzir danos a muitos latifundiários de
grande porte graças à astúcia com a qual o poder feudal conseguiu
atuar a fim de usar em seu próprio proveito o movimento. Pedro
decide que a melhor maneira de combater o perigo consiste em

10 “Los años de 1921 a 1924 tuvieron por rasgo mayor la “exaltación nacionalista”, como la ha
llamado Monsiváis, y fueron seguidos de un “Período de decantación revolucionaria” (1925-
1934): asesinado Carranza en Tlaxcalantongo en 1920, el país entró, con el general Obregón y
poco después con Plutarco Elías Calles, en un sendero de afirmación e institucionalización que
no implicó, sin embargo, la inmediata rendición de las armas; al contrario, fueron múltiples,
sucesivos y sangrientos los levantamientos militares, y fue durante el período presidencial de
Calles que tuvo lugar la ‘rebelión cristera’. Esta se extendió como un verdadero levantamiento
popular instigado por la iglesia, cuyos intereses tan mal parados habían salido del proceso
revolucionario y de la Constitución de 1917”.

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ajudar os revolucionários, prometendo dinheiro (que nunca será
entregue) e homens para ampliar as tropas, utilizando, assim, a seu
favor a força popular. Contudo, não podemos tomar esse romance
como uma mera ilustração de conflitos regionais, pois seu autor
trabalha com uma intenção fundamentalmente artística, embora
não tenha deixado de contribuir ocasionalmente para propósitos
políticos ou sociais reivindicatórios, o que responde à segunda parte
de nossa pergunta.

Considerações Finais
A partir das considerações tecidas ao longo deste trabalho, reto-
memos a pergunta que nos norteou: Como Pedro Páramo constitui-se
em um ato de produção humana vinculado a um contexto social?
Pedro Páramo enquanto ato de produção humana é uma obra literária
e, portanto, possui uma estrutura particular que propicia a construção
de uma significação. A fragmentação desse romance e a presença do
Realismo Mágico são elementos que permitiram, ao longo de mais de
cinco décadas desde a sua publicação, novas leituras e a atribuição
de novos significados. Assim, podemos afirmar que essa obra de Rulfo
possui o que Benjamin (1994) chama de “tendência literária”, ou seja,
sua rica estrutura permite que significação e valor lhe sejam conferi-
dos através do tempo.
Enquanto ato de produção humana, Pedro Páramo está vinculado a
um contexto específico de produção, e por isso assume “tendência po-
lítica” (BENJAMIN, 1994). Nesse romance, podemos observar essa ten-
dência em dois níveis. O primeiro diz respeito ao emprego do Realismo
Mágico como uma solução para o confronto entre regionalismo e uni-
versalismo que era vivenciado por toda a América Latina, mesclando e
aproximando os dois, encontrando um equilíbrio, sem permitir que o
primeiro saísse prejudicado. O segundo nível diz respeito às vivências

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experienciadas pelo autor no contexto mexicano. A criação de Comala
e das personagens a ela vinculadas encontram ancoragens na realidade
mexicana vivenciada por Rulfo, no êxodo rural, na concentração de
poder financeiro e de decisão nas mãos dos grandes proprietários de
terra, na organização de guerrilhas que defendem a igreja posicionan-
do-se contra o governo.
Assim, a partir da figura do autor como um sujeito localizado em
um contexto social que cria um romance enquanto um ato de produ-
ção humana, vemos em Rulfo as duas tendências associadas: a política
e a literária criando uma obra ímpar, não apenas no contexto mexica-
no, mas em toda a América Latina. Percebemos Pedro Páramo como
uma estrutura que permite muitas significações, mas também como
uma contribuição para propósitos políticos ou sociais reivindicatórios,
que segue à espera de novas leituras e de novas construções de sentido.

Referências

BENJAMIN, Walter. O autor como produtor (1934). In: ______. Obras escolhidas
I: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 120-136.
RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana.
In: AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Org.). Ángel Rama:
Literatura e cultura na América Latina. Tradução de Raquel la Corte dos Santos e
Elza Gasparotto. São Paulo: Edusp, 2001.
RUFFINELLI, Jorge. Prólogo. In: RULFO, Juan. Pedro Paramo & El llano en llamas.
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RULFO, Juan. Juan Rulfo: retrato de un exnovelista. Entrevista con Ernesto Parra. In:
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RULFO, Juan. Pedro Páramo y El llano en llamas. Barcelona: Planeta, 1980.

Recebido em 8 de fevereiro de 2012


Aprovado em 10 de fevereiro de 2012

394 Revista Semestral do Programa de Pós-graduação em Letras - Ufes

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