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Divindades astrais e poderes

mágicos em Ugarit e seus reflexos


no Primeiro Testamento
Astral deities and magical powers in Ugarit
and their influences in the Old Testament

Divinidades astrales y poderes mágicos en


Ugarit y su reflejo en el Primer Testamento

Patricia Guernelli Palazzo Tsai* * Doutoranda em Ciências da Religião na


Universidade Metodista de São Paulo
Submetido em: 16-11-2021
(Umesp)
Aceito em: 5-12-2022
patriciagpalazzotsai.adv@gmail.com

RESUMO
O presente artigo busca inicialmente localizar as divindades astrais dentro do panteão de
Ugarit, trazendo suas características e influências dentro de sua cultura. Em um segundo
momento, será feita a análise sobre os tipos de poderes das divindades ugaríticas e suas
distinções, especialmente em uma breve discussão entre poderes divinos e mágicos, diante
do uso de tais vocábulos em pesquisas sobre o tema. Por fim, ainda será analisada a ques-
tão da possibilidade de influência dessas divindades astrais no arcabouço cultural e social
dos povos semitas, que podem ser encontradas através de nomes e palavras que remetem
aos astros no texto bíblico, notadamente nos livros que compõem o Primeiro Testamento.
Palavras-chave: Antigo Oriente Próximo; Ugarit; divindades astrais; poderes mágicos.

ABSTRACT
The present paper aims to initially locate the astral deities within the Ugarit pantheon,
mentioning their characteristics and influences within that culture. In a second moment,
an analysis regarding the types of powers of the Ugaritic deities and their distinctions will
be done, especially on a brief discussion between divine and magical powers, considering
the use of such words in researches on the subject. Finally, the question concerning the
possible influence of these astral divinities on the cultural and social framework of the
Semitic peoples will also be analyzed, which can be found through names and words
that refer to celestial bodies in the biblical text, especially in the books that compose
the Old Testament.
Keywords: Ancient Near East; Ugarit; astral deities; magic powers.

RESUMEN
El presente trabajo busca, en un primer momento, situar a las deidades astrales dentro
del panteón de Ugarit, aportando sus características e influencias dentro de su cultura.
En un segundo momento, se hará el análisis sobre los tipos de poderes de las deidades
ugaríticas y sus distinciones, especialmente en una breve discusión entre poderes divinos y
mágicos, de cara al uso de tales palabras en las investigaciones sobre el tema. Por último,
analizaremos la posibilidad de la influencia de estas deidades astrales en el entramado
cultural y social de los pueblos semíticos, que se encuentra a través de nombres y pa-
labras que hacen referencia a los astros en el texto bíblico, especialmente en los libros
que componen el Primer Testamento.
Palabras clave: Antiguo Oriente Próximo; Ugarit; deidades astrales; poderes mágicos.

Revista Caminhando v. 27, p. 1-18, jan./dez. 2022 • https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v27e022023 1


Introdução

O ato de olhar os céus durante a noite e buscar identificar nos astros


sinais, além de interpretá-los e mesmo transmitir os significados a outros,
parece ser algo que não se limita apenas a um grupo determinado de se-
res humanos dentro de um espaço ou tempo também determinados, mas
perpassa os séculos, desenvolvendo culturas e trazendo discussões sobre
sua natureza e importância ainda hoje.
Os astros podem ser consultados para encontrar o caminho de volta
a casa, no caso de marinheiros, mas também podem ser invocados para a
realização de pedidos, por meio de cultos específicos. As artes divinató-
rias, análises científicas sobre os astros, fotografias populares e cerimônias
religiosas, possuem em comum – quando realizadas durante o período
noturno – a importância que nossas culturas dão aos astros, ainda que
pouco seja refletido a esse respeito.
Apesar de uma distância temporal de mais de mais trinta e cinco
séculos, seres humanos de nosso tempo e os do tempo de Ugarit buscam
saber sobre essa vida, sobre solucionar conflitos e encontrar felicidade,
estando ligados pelo interesse em compreender o mistério que nos re-
servam os astros, e isso inclui a maneira pela qual podemos entender e
analisar os versos bíblicos que também referenciam esses fenômenos que
identificamos nos céus.
A cultura de Ugarit é rica e importante para compor a compreensão
das trocas culturais e religiosas ocorridas na Antiguidade, e principalmente
suas influências no processo de construção da religiosidade e cultura dos
primórdios de Antigo Israel.1
A importância das divindades astrais ou celestiais e o seu culto podem
ser percebidas através da força oponente vigorosa em algumas passagens
bíblicas, como as narradas em Dt 4,15-19 e em 2Rs 21,3-5, além de outros
que serão mais adiante mencionados e analisados. Além disso, pode ser
percebida a importância dessas divindades através dos achados arqueoló-
gicos das civilizações da Babilônia, Mesopotâmia, Assíria e Ugarit.2
O objetivo do presente artigo é localizar algumas das divindades as-
trais e sua importância em Ugarit, trazendo em primeiro plano – e de ma-

1
Importante pontuar que Israel é um nome identitário muito posterior, após a consolidação entre
Judá e os povos que compunham o que se chama de Israel Norte. Utilizamos Antigo Israel por
ser assim referida por pesquisadores como John Cooley e outros.
2
As divindades astrais ou celestes também eram cultuadas entre os povos que hoje chamamos de
árabes, assim como outros povos e culturas.

2 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
neira breve – a possibilidade de associação do mistério dessas divindades
com as artes mágicas, que poderiam até se referir a poderes cujos demais
deuses não possuiriam, bem como a influência desses cultos e divindades
astrais no pensamento bíblico no escopo do Primeiro Testamento.

Divindades astrais no panteão ugarítico

De forma geral, as divindades mais conhecidas e pesquisadas referen-


tes ao panteão de Ugarit são as que possuem mais destaque na literatura até
hoje encontrada nas escavações. Esse destaque ocorre mais para divindades
como El, Asherah, Baal e Anat. Em contrapartida, as divindades astrais se
encontram cercadas de mistérios, como aponta Page (1996, p. 60):

[...] os papéis que muitas das divindades menores desempenham no panteão não
foram suficientemente investigados. Destas divindades, as categorizadas pelos estu-
diosos como “deidades astrais” (ou seja, aqueles identificáveis com corpos celestes)
merecem uma atenção especial.3

Essas divindades astrais também podem ser chamadas de divindades


noturnas, com exceção do Sol, Šapšu, existindo uma interessante relação
entre a divindade solar e os astros noturnos, que será mais adiante ex-
plorada. A veneração dos astros parece estar mais relacionada a povos e
culturas seminômades, ou de agricultores, como analisado por Page, ao
trazer elementos de outros autores sobre o tema em sua nota de rodapé n.
137 (1996, p. 98):

Roberts sugeriu - em acordo com Jacobsen (1968), Nielsen (1942), e Gray (1949),
que propuseram que a veneração astral é típica dos pastores seminômades - que
o culto astral deve ter sido de grande importância no início do período semítico,
particularmente se se assumir um fundo seminômade para os primeiros semitas.4

A vida cotidiana de pastores, agricultores e povos seminômades de-


pende grandemente da análise dos sinais externos, como os céus, a questão
dos ventos e chuvas. Isso poderia indicar que, mesmo em uma situação de

3
Todas as traduções são autorais. No original: “[…] the roles that many of the minor deities play in
the pantheon have not been sufficiently investigated. Of these gods, those categorized by scholars
as “astral deities” (i.e., those identifiable with celestial bodies) are deserving of special attention.”
4
No original: “Roberts suggested-in agreement with Jacobsen (1968), Nielsen (1942), and Gray
(1949), who have proposed that astral veneration is typical of semi-nomadic herdsmen and
shepherds-that astral worship must have been of great importance in the early Semitic period,
particularly if a semi-nomadic background is assumed for the early Semites.”

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povos já assentados em um único local, ainda haveria importância na obser-
vação dos astros para as decisões tanto em uma escala governamental com
a questão dos sacerdotes e rituais, assim como para o povo de forma geral.
Olhar para os céus buscando sinais passíveis de interpretação era
também uma característica de Ugarit, como notado por Cooley, não ape-
nas pelos poderosos, mas de forma geral pela população (2013, p. 180):

A religião astral foi incorporada sem quaisquer obstáculos na vida religiosa da antiga
Ugarit. O povo de Ugarit, tal como os seus vizinhos no Iraque antigo, observava o
céu com finalidade devocional. Algumas características astrais eram consideradas
manifestações visíveis das divindades e eram, portanto, objetos apropriados de ve-
neração através do culto.5

Essa finalidade devocional no observar o céu por pistas de como


interpretar acontecimentos cotidianos ou mesmo tomar decisões que afe-
tam plantio ou colher, cuidar das plantações, ou identificar perigo para os
rebanhos, ou mesmo para outras questões existenciais é algo que pode vir
a passar despercebido quando analisamos os textos fora de seus contextos
histórico-sociais.
Dentro do panteão de deuses de Ugarit há uma ordem de deuses, não
apenas como hierarquia, mas mais voltada a uma divisão em “funções
sociais” distintas, que por sua vez levariam a uma ordem natural ou cós-
mica, o equilíbrio (OLMO LETE, 2014, p. 90):

Dentro destes âmbitos, os demais deuses, também filhos do casal primordial, possuem
o seu próprio lugar, seja na terra ou acima, no céu. São as chamadas divindades as-
trais (Sol, Lua, Aurora e Crepúsculo, Kaṯirātu e as “Estrelas estáveis” [KTU 1.24:54]).
Algumas delas, acima de tudo o Sol (Šapšu), colaboram com as três divindades
principais na manutenção do cosmos tripartido.6

Ainda, Olmo Lete faz alusão ao fato de Ugarit ter sido mantida em
harmonia através da ordem das três forças – natureza, magia e poderes divi-
nos/demoníacos – que acabam por controlar toda a realidade (2014, p. 90):

5
No original: “Astral religion was seamlessly incorporated into the religious life of ancient Ugarit.
The people of Ugarit, like their neighbors in ancient Iraq, observed the sky for devotional purpo-
ses. Some astral features were considered visible manifestations of the gods and were therefore
appropriate objects of veneration through cultus.”
6
No original: “Within these ambits the rest of the gods, also sons of the primordial couple, possess
their own place, either on earth or above in the sky. Those are the so called astral deities (Sun,
Moon, Dawn and Dusk, the Kaṯirātu and the “steady Stars” [KTU 1.24:54]). Some of them, above
all the Sun (Šapšu), collaborate with the three main deities in maintaining the tripartite cosmos.”

4 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


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Dentro desse quadro, preces e sacrifícios podem ser direcionadas aos deuses, e eles
respondem com suas “bênçãos”, sobretudo em relação à fertilidade, o objetivo último
do Cosmos organizado de Ugarit. Três tipos de forças se apresentam e controlam
a realidade a partir desse quadro: as forças da natureza, a efetividade da magia e o
poder dos deuses/demônios.7

Cada divindade possuía seu papel, assim como cada elemento possuía
sua ordem e momento, sendo o mundo então um equilibrar de forças, de
forma que a ordem possa sempre ser mantida. Interessante notar que o
objetivo último das bênçãos divinas aos adeptos é a fertilidade – enten-
dendo-se a fertilidade tanto em termos do cultivo de alimentos, quanto
a produção de filhos e filhas. Dentre uma ideia de universo de pedidos
feitos às divindades, é bem provável que fecundidade e colheita abundante
provavelmente fossem os mais suplicados, com a promoção de sacrifícios
em prol desses objetivos.
As divindades também se relacionam entre si, sendo bastante im-
portante analisar essas relações entre divindades, tanto sob o prisma da
colaboração, mas também da ambivalência (OLMO LETE, 2014, p. 90):

Por sua vez, cada um desses deuses mostra a sua própria polarização e ambivalência
de forças. Mas é sobretudo o deus Šapšu, o Sol, a divindade que melhor exemplifica
esta ambiguidade do divino, como já foi mencionado. Ela (o Sol é feminino em Uga-
rit) é decididamente uma colaboradora de Baˁlu, da vida (KTU 1.6 I 8- 15, IV 17-20,
VI 22-29), e doadora de vida aos mortos (KTU 1.6 VI 45-48; 1.161:18- 19), mas ao
mesmo tempo uma colaboradora manifesta e necessária da morte, de Môtu, desem-
penhando a sua função de destruidora da vida (KTU 1.4 VIII 21-24; 1.6 II 24–25).8

Porém, como mencionado por Olmo Lete, as divindades não seriam


apenas unidimensionais, podendo ao mesmo tempo tanto abençoar quanto
amaldiçoar, e por essa razão não poderiam ser compreendidas analisando
uma única característica (2014, p. 90):

7
No original: “Within this frame, the gods can be prayed to and propitiated by sacrifices, and they
answer with their “blessing”, above all in respect of fertility, the ultimate goal of the organised
Ugaritic Cosmos. Three kinds of forces present in and controlling the reality emerge from this
frame: the forces of nature, the effectiveness of the magic and the power of the gods/devils.”
8
No original: “In their turn, each of those gods shows his own polarisation and ambivalence of
forces. But it is above all the god Šapšu, the Sun, the deity that best exemplifies this ambiguity of
the divine, as already mentioned. She (the Sun is feminine in Ugarit) is decidedly a collaborator
of Baˁlu, of life (KTU 1.6 I 8–15, IV 17–20, VI 22–29), and life-giver to the dead (KTU 1.6 VI
45–48; 1.161:18–19), but at the same time a manifest and necessary collaborator of death, of Môtu,
carrying out his function of destroyer of life (KTU 1.4 VIII 21–24; 1.6 II 24–25).

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O Sol amadurece as sementes e os frutos, mas ao mesmo tempo que queima as
plantas e os campos; ela causa tanto a colheita como a seca. Ambas as funções são
intrinsecamente correlativas a um ponto tal que uma não pode existir sem a outra.9

De forma geral, quando associamos as divindades de Ugarit com os


achados arqueológicos, podemos perceber que há iconografia típica para
cada divindade. Há símbolos associados à Baal, à Asherah e El, 10 por
exemplo, mas e com relação às divindades astrais? Essa pergunta nos leva
a buscar como o povo – compreendendo tanto o povo comum quanto as
classes mais abastadas – se relacionariam com os corpos celestes.
Buscando mapear sobre os achados arqueológicos em Ugarit, a partir
da iconografia até então encontrada, as produções bibliográficas se concen-
tram grandemente nas representações mais antropomórficas das divindades
ou ainda em sua representação como animais.
Como apontado por Cooley (2011, p. 282) há uma grande quantidade
de achados que incluem símbolos de luas crescentes ou ainda outras formas
para representar os astros, inclusive em selos na região do Levante, desde
o período da Idade do Ferro.
Apesar de existir abundantes achados arqueológicos com símbolos dos
astros, desde outros momentos históricos, Cooley percebe e destaca que
não há imagens cultuais representando os corpos celestes (2011, p. 285):

Este culto ocorre nos telhados das casas, presumivelmente porque as divindades
astrais são totalmente visíveis a partir dali. Estes dois atos específicos de culto tam-
bém estão associados à Rainha dos Céus (Jr 7,18 e 44,18), embora, curiosamente, o
seu culto nunca esteja especificamente localizado nos telhados. Em qualquer caso, o
local ser o telhado implica que, pelo menos em alguns casos, a Hoste do Céu não foi
retratada sob a forma de imagens cultuais, mas sim adorada no seu estado natural,
as estrelas e planetas reais.11

9
No original: “The Sun ripens the seeds and the fruits, but at the same time scorches the plants and
the fields; she causes both harvest and drought. Both functions are intrinsically correlative to such
a point that one cannot exist without the other.”
10
Sobre a transcrição dos nomes das divindades que compõem o panteão de Ugarit há mais de uma
forma, e por essa razão as formas aqui utilizadas podem ou não coincidir com a de alguns pes-
quisadores e diferir de outros.
11
No original: “This cultus takes place on the roofs of homes, presumably because the astral deities
are fully visible from there. These two specific acts of worship are also associated with the Queen of
Heaven (Jer 7:18; 44:18), though, interestingly, her worship is never specifically located on rooftops.
In any case, this rooftop locus implies that, in some instances at least, the Host of Heaven were not
depicted in the form of cult images, but were, rather, worshiped in their natural state, the actual stars
and planets.” Cooley fundamenta suas considerações nos trabalhos realizados por J. Smith et al., A
Critical and Exegetical Commentary on Micah, Zephaniah, Nahum, Habakkuk, Obadiah and Joel
(1911, p. 188) e de maneira mais recente, J. Vlaardingerbroek, Zephaniah (1999, p. 68).

6 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


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Em Ugarit, os textos referentes a cultos e rituais também identificam
de forma clara as divindades astrais, como é o caso do KTU 1.43, que
traz a descrição de um grupo de deuses, ʿAttartu, Ḫurri e os Gaṯarūma, 12
que se deslocam para o ‘templo das divindades estelares’ (bt ilm kbkbm),
possivelmente um templo dentro da estrutura do palácio real (COOLEY,
2011, p. 282).
Sobre os Gaṯarūma, Cooley também identifica como sendo uma
coletividade composta por quatro deuses, porém, apenas dois são mais
imediatamente identificáveis (2011, p. 282 e 283):

Ali, as divindades visitantes entregam ofertas e fazem sacrifícios para as divindades


estelares, que são identificadas como Šapšu, Yariḫu, Gaṯaru e ʿAnatu. Šapšu e Yariḫu
são obviamente o sol e a lua. Gaṯaru e ʿAnatu devem ser identificados com outras
características celestiais (quer planetas, estrelas notáveis, ou constelações) uma vez
que, naturalmente, são cultuados no mesmo bt ilm kbkbm.13

Dentre os elementos apresentados por Cooley, há uma questão im-


portante para pesquisas que lidam com povos e civilizações da Antiguidade,
que é a de buscar evidências e pensar as formas de culto e religiosidade 14
como praticadas pelo povo comum, saindo dos portões dos palácios e
templos. É possível de pensar essa religiosidade popular através da ideia
do culto das divindades astrais nos telhados das casas, ou mesmo em sua
contemplação fora das casas, a céu aberto.

12
Os Gaṯarūma aparecem nos textos na forma plural, e de acordo com a pesquisa de Gertz Jr., cujas
referências completas se encontram nas Referências Bibliográficas, seriam as seguintes divindades
(p. 78): The plural Gaṯarūma are mentioned in CAT 1.43:9 where they are identified as Šapšu,
Yariḫu, Gaṯaru and possibly ʿAnatu [...]”. Gertz menciona que tanto Gaṯaru quanto ‘Anatu devem
ser identificados em outro texto.
13
No original: “There, the visiting deities deliver offerings and make sacrifices for the star gods, who
are identified as Šapšu, Yariḫu, Gaṯaru, and ʿAnatu. Šapšu and Yariḫu are obviously the sun and
moon. Gaṯaru and ʿAnatu must be identified with other celestial features (either planets, conspicuous
stars, or constellations) since, of course, they are being worshiped in the same bt ilm kbkbm.”
14
Importante salientar que o termo “religião” e “religiosidade” não são os mais apropriados para se
referir a fenômenos culturais e sociais de outros contextos que o cristão, porém, há o encobrimento
das expressões cultuais por um método e forma cristão Ocidental de catalogar, analisar e se referir
ao ‘outro’. Todo o desenvolvimento ocidental teve por base a ideia de um “religião”, usando do
mesmo termos para períodos nos quais não haveria possibilidade de enxergar uma “religião”.
Para aprofundar essa questão, vide: CARDOSO, Silas Klein. Redes mágico-míticas no alvorecer
de Israel: “religião” no platô de Benjamin no Ferro I–IIA (Tese de Doutorado). Universidade
Metodista de São Paulo, 2019, 450p.

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Poderes divinos e poderes mágicos: limites e distinções

Há uma tênue linha que separa o que seriam poderes divinos e magia.
Ainda mais quando não se possui consenso com relação à definição sobre
o que seria magia. A ideia de diferenciação entre um tripé de antagonismos
entre ciência – religião – magia, como analisado por Hanegraaff, em que
o Ocidente buscou analisar essas categorias, acabou por tornar a palavra
magia como um grande problema, supersticioso e mesmo irracional ou
não científico, mas ao mesmo tempo a palavra ressurge das cinzas em
novas discussões, sem que seja possível uma definição satisfatória do
termo (2016, p. 393).
O uso da palavra magia nas traduções e interpretações – não apenas
nos textos de Ugarit – acaba por trazer uma oposição entre algo científico e
não científico (magia), ou religioso e não religioso (magia), ou vice-versa.
Com isso, há a necessidade de discutir o que poderia ser entendido
com a noção de poderes mágicos.15 Hanegraaff traz que da maneira pela
qual o Ocidente trata a palavra magia, o que ocorre é a junção de palavras
problemáticas em uma mesma categoria, sem que qualquer sentido possa
ser disso extraído (2016, p. 396):

Junto ao termo “magia”, eles vêm sendo referidos ou associados a toda uma série de
conceitos generalizados como “o ocultismo” (respectivamente, “ocultismo”, “ciência
oculta”), “superstição”, “misticismo”, “esoterismo”, “o irracional”, “pensamento
primitivo”, “paganismo”, “idolatria”, “fetichismo”, e assim por diante.16

Hanegraaff explora então uma lista inicial de categorias pelas quais


magia é definida, tais como “sabedoria antiga”, “adoração a demônios”,
“filosofia e ciência naturais”, “filosofia oculta”, “pseudociência”, “visão
de mundo encantada” e “psicologia” (2016, p. 399), porém, mesmo essas
categorias não conseguem ser completas para abordar o que seria magia.
Magia então é algo indefinível sem compreender as fundações contextuais
e circunstâncias transformativas históricas, além disso o termo é crucial na
compreensão da formação da identidade ocidental (2016, p. 403).

15
A discussão sobre magia e seus limites é rica e necessária quando analisamos sociedades – sejam elas
antigas ou contemporâneas – mas não é a intenção do presente tratar o tema com aprofundamento,
mas sim uma contribuição para pensar essa categoria nos estudos sobre Ugarit em solo nacional.
16
No original: “Next to the term ‘magic,’ they have been referred to, or associated with, a whole
series of generalizing concepts such as ‘the occult’ (respectively, ‘occultism,’ ‘occult science’),
‘superstition,’ ‘mysticism,’ ‘esotericism,’ ‘the irrational,’ ‘primitive thought,’ ‘paganism,’ ‘idolatry,’
‘fetishism,’ and so on”.

8 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
Tendo dito isto, é necessário compreender que o termo magia quando
utilizado no contexto de Ugarit pode significar variadas noções diferentes.
Olmo Lete explica que a palavra ḥbr seria possível de entender como ma-
gia e além disso, ḥbr(m) pode ser um termo genérico para mago ou maga
(2014, p. 33). Mas não é a única palavra que traz esse sentido, podendo
ser pensada a questão de magia relacionada também às ações divinatórias
– pela “visão” – e também as ações por meio de encantações por palavras
– relacionados à fórmulas mágicas (OLMO LETE, 2014, p. 33 e 34).
Há ainda uma correlação interessante levantada por Olmo Lete sobre
magia e conhecimento ou sabedoria, sendo importante destacar que ma-
gia e sabedoria, por sua vez estariam relacionadas às divindades astrais e
observação dos sinais dados pelos astros (2014, p. 26):

É interessante mencionar, neste contexto, o epíteto da filha de Danˀilu, Puġatu a


maga, a saber ydʕt hlk kbkbm, “ela que sabe o curso das estrelas” (KTU 1.19 II 7).
Ela antecipa por muitos séculos a estreita conexão entre magia e a astrologia que
atingiria seu clímax na era selêucida. Por sua vez, esta tem sido uma característica
explícita dos textos de magia mesopotâmicos e de encantamento anti-feitiçaria. As
divindades astrais, especialmente Šamaš, preside os rituais mágicos e recebe as
orações do āšipu.17

O epíteto acima mencionado traz bastante elementos para considerar


a questão dos agentes humanos e seu papel no contexto da magia, tanto
em termos de “visão” ou “previsão”, quanto em termos de rituais que
dependem de poderes mágicos, e as relações com os astros.
Entretanto, agentes humanos não seriam os únicos passíveis de utilizar
de poderes mágicos. Dentro do contexto dos textos de Ugarit, a princípio
haveria apenas uma única divindade que seria reconhecida como um mago,
para Olmo Lete, que seria El, o patriarca de todo o panteão (2014, p. 30):

Quanto aos textos de Ugarit, vimos que o único deus ugarítico que atua como mágico
nos textos mitológicos é o deus supremo ˀIlu. É ele quem controla este sistema de
forças, embora indiretamente, por meios “mágicos”, autônomos.18

17
No original: “It is interesting to mention, in this connection, the epithet of Danˀilu’s daughter,
Puġatu the magician, namely ydʕt hlk kbkbm, ‘she who knows the course of the stars’ (KTU 1.19
II 7). It anticipates by many centuries the close connection between magic and astrology that was
to reach its climax in the Seleucid era. In turn, this has long been an explicit feature of Mesopo-
tamian magic and anti-witchcraft incantation texts. The astral deities, especially Šamaš, preside
over the magical rituals and receive the prayers of the āšipu”.
18
No original: “As for the Ugaritic consonantal texts, we have seen that the only Ugaritic god who
acts as a magician in the mythological texts is the supreme god ˀIlu. It is he who controls this
system of forces, although indirectly, by ‘magical’, autonomous means”.

Revista Caminhando v. 27, p. 1-18, jan./dez. 2022 • https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v27e022023 9


Porém, ao levantar a pergunta sobre El, Olmo Lete já afirma que
tanto El quanto as divindades principais do panteão não teriam poderes
mágicos (2014, p. 30):

Seria ˀIlu, então, o deus ugarítico da magia? Como veremos mais adiante, ˀIlu tam-
bém é declarado incapaz, como os outros deuses principais, de defender os homens
contra mordidas de cobra: ele também não tem conhecimento da fórmula exigida.19

Com relação às fórmulas mágicas e encantações, Olmo Lete faz uma


análise sobre o KTU 1.179 que trata justamente de um texto sobre o que
deveria ser feito em casos de mordidas de cobras e traz como ponto chave
a ideia da participação das divindades astrais (2014, p. 100):

Até mesmo a menção persistente dos “astros” poderia ser tomada como uma confir-
mação de uma característica muito bem conhecida deste tipo de textos na literatura
mesopotâmica: a frequente recitação necessária do encantamento diante das deidades/
estrelas astrais em um ritual obviamente noturno.20

Os poderes mágicos podem estar presentes nos poderes divinos das


divindades do panteão de Ugarit, mas também podem não estar em outros
textos. Com isso, há elementos para considerar os poderes mágicos como
parte das atribuições divinas, porém, ao observar os textos relacionados à
enfermidades causadas por cobras, como analisado por Olmo Lete, parece
que as principais divindades se tornam incapazes, sem conhecimento para
poder resolver essas mazelas.
Os poderes divinos, il então seriam aqueles voltados à questão do
abençoar e do amaldiçoar, de conceder fertilidade ou destruir a fertilidade
tanto dos campos quanto das populações. De também influenciar as forças
da natureza, seja na forma de chuvas boas para as plantações, quanto de
tempestades que destroem tudo que tocam, entre outras mais.
É sob essa perspectiva de uma possível diferenciação entre poderes
que se torna relevante analisar a associação dos poderes mágicos com os
rituais e fórmulas, sacrifícios e procedimentos específicos, realizados à noi-
te para as divindades astrais. Então, os poderes divinos podem se associar
por vezes, mas não se confundem com poderes mágicos, e o equilíbrio do

19
No original: “Is ˀIlu, then, the Ugaritic god of magic? As we shall see later on, ˀIlu is also declared
unable, like the other principal gods, to defend men against snakebite: he too is ignorant of the
required formula”.
20
No original: “Even the persistent mention of the ‘stars’ could be taken as a confirmation of a
very well-attested feature of this kind of texts in Mesopotamian literature: the frequent required
recitation of the incantation before the astral deities/stars in an obviously nocturnal ritual”.

10 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
cosmos em Ugarit dependeria não apenas das “bênçãos” e “maldições”
de divindades ambivalentes, mas também contaria com a dimensão dos
poderes advindos da aplicação correta das fórmulas mágicas, bem como
do conhecimento dos astros, que seriam poderes mágicos. E para que
pudessem ser executados haveria a necessidade de agentes humanos como
mediadores entre essas “forças”.
O próximo tópico será uma exposição breve sobre as principais
divindades astrais presentes no panteão de Ugarit, e quais as suas princi-
pais características. Será possível perceber a dinâmica que ocorre entre
a noção dos poderes divinos e poderes mágicos, e em especial, perceber
características interessante notada por Page sobre uma diferença importante
entre Baal e Athtar – e que entendemos ser possível estender às divindades
principais e as astrais – que é a previsibilidade de Baal (e das divindades
principais), que precisa de “autorização” para agir, enquanto Athtar (e as
divindades astrais) seriam envoltas em mistério, não precisando de auto-
rização para fazer como desejam – como no exemplo de Athtar no Ciclo
de Baal [KTU 1.1–1.6] (PAGE, 1996, p. 78).

Cada divindade em seu lugar (Quais seriam as divindades astrais?)


Dentro do panteão divino de Ugarit, cada divindade possuía seu lu-
gar, e não era diferente com as divindades astrais, que são elencadas por
Olmo Lete como principais representantes da categoria Sol, Lua, Aurora
e Entardecer (Crepúsculo), as Kaṯirātu e as “estrelas estáveis” descritas
no KTU 1.24 (2014, p. 16).
Sol, Lua e Vênus são as mais conhecidas divindades astrais no mundo
antigo, e no caso dos povos semíticos antigos há influência nos nomes de
pessoas, inspiradas em nomes antigos mesopotâmicos que se referem aos
astros (PAGE, 1996, p. 98).
No caso da divindade astral Sol, Šapšu, para Olmo Lete se trata de
uma divindade feminina e isso também está presente em Page, por força
da análise do KTU 1.100 (1996, p. 103). Observando o texto do KTU
1.100, em especial há um trecho recorrente em que é dito “špš.ủm.ql.bl”,
sendo “ủm” a palavra correspondente à mãe. Ainda, há a menção ao lon-
go das várias linhas, os nomes de divindades astrais para o feitiço contra
mordidas de cobra.21

21
Especificamente nas linhas 25, 51 e 77, mencionando os astros Yariḫ, Athtart/Athtar e Šaḫar e
Šalim. A tradução do KTU 1.100 pode ser encontrada em texto de Olmo Lete, ỉl and ḥrn: Divine
Power vs. Magic. A New Look at KTU 1.100, Aula Orientalis 31/1, 2013, p. 39-61.

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Šapšu é uma importante divindade no panteão de Ugarit, e guarda
interessantes relações tanto com o raiar do dia – e com isso o nascimento
– quanto com o cair do sol – a morte, Mot (Motu). Suas relações trazem
muito destaque ao equilíbrio do dia, da proteção da vida e sua manuten-
ção, quanto as condições para o término da vida, além de seus poderes e
proteção para casos de mordidas de cobra.
No caso da Lua há de forma geral a noção de ser apenas uma divin-
dade, Yariḫ (Yrḫ), entretanto veremos em um tópico mais adiante a questão
do casamento entre duas divindades lunares. Aqui então, veremos apenas
a divindade Yariḫ, que representa a Lua no panteão de Ugarit, sendo uma
divindade masculina.
No caso das divindades ligadas com o nascer e o cair do sol, não
seriam dois astros distintos, mas sim apenas única estrela, Vênus. Porém,
em Ugarit é possível encontrar menção a dois nomes – um masculino e
um feminino – ligados ao mesmo astro: Athtar e Athart. No caso do nome
masculino, Athtar, haveria ligação com o chefe do panteão divino do que
hoje conhecemos por Arábia Saudita.
Page, mencionando a pesquisa de Dahood, traz uma perspectiva
diferente sobre a leitura do KTU 1.46.9 em que ao invés de duas di-
vindades distintas, poderia ser compreendida como uma dualidade de
gênero (1996, p. 53):

[...] ˀθtr ab “Athtar é meu pai” e ˀθtr um “Athtar é minha mãe” sugerem que já no
século XIV a.C., os cananeus e a primeira onda de semitas que entraram na Meso-
potâmia em tempos mais antigos acreditavam que Athtar era andrógino.22

Porém, ainda há outros autores que consideram existir duas divindades


distintas que representam esses momentos da manhã e entardecer, uma de
forma masculina e a outra feminina (PAGE, 1996, p. 56):

O estudo de Roberts (1972:37-40) sobre o panteão semítico primitivo, embora antigo,


ainda é considerado por muitos como sendo o padrão sobre o assunto. Ele concluiu
que os nomes Athtar e Athtart originalmente designavam Vênus como as estrelas da
manhã e da noite – sendo o primeiro masculino e o segundo feminino.23

22
No original: “[…] ‘Athtar is my father’ and ‘Athtar is my mother’ suggest that as early as the
fourteenth century B.C.E., Canaanites and the first wave of Semites entering Mesopotamia in more
ancient times believed Athtar to be androgynous”.
23
No original: “Roberts’ (1972: 37-40) study of the early Semitic pantheon, though dated, is still
considered by many to be the standard on the subject. He concluded that the names Athtar and
Athtart originally designated Venus as the morning and evening stars-the former being male and
the latter female”.

12 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
Há pesquisas que direcionam comparações entre a divindade astral
Athtar (e ainda outras divindades) com o Lúcifer bíblico, utilizando como
fundamento as comparações entre o KTU 1.23 e o texto bíblico (com
possíveis pontos de contato em Is 14,12 por exemplo). Page acaba por
trazer considerações sobre essas comparações em uma parte de sua obra,
citando autores e os argumentos (PAGE, 1996, p. 30).
Não há consenso sobre essas comparações, e por essa razão há um
fértil campo para buscar quem seriam as divindades ligadas com o mito
da rebelião dos anjos na Bíblia, porém, por não ser o foco do presente não
nos ateremos nessa discussão.
A próxima divindade astral que mencionaremos são as Kaṯirātu
(Kaṯirāt, kṯrt), que seriam filhas da Lua, filhas de Yariḫ, e seriam as divin-
dades responsáveis pelas bênçãos voltadas a casamentos e a nascimentos,
mais especificamente ao parto com êxito (GOETZE, 1941, p. 360). Para
Shipp, as Kaṯirātu não poderiam ser assumidas filhas de Yariḫ, uma vez que
não há exata correlação entre hll e Yariḫ (p. 75-76).24 Por terem um papel
um tanto quanto secundário nos textos até então encontrados de Ugarit,
pouco material de pesquisa fora produzido sobre elas e por essa razão o
que se encontra sobre essas divindades está relacionado ao KTU 1.24.
As “estrelas estáveis” é referência direta a duas divindades celestiais,
que possuem como pai El, e também são chamadas de “divindades recém-
-nascidas” ou mesmo “divindades graciosas” (PAGE, 1996, p. 96), como
aparece no KTU 1.23. Essas divindades são reveladas através da linha 53
do texto como o par de recém-nascidos “yldy šḥr wšl[m]” Šaḫar e Šalim
(šḫr-šlm).
Na descrição do nascimento dessas duas divindades, Page traz uma
importante característica que ambos compartilham (1996, p. 102):

Os deuses recém-nascidos são descritos como tendo enormes bocas e apetites vora-
zes. Gaster (1950: 234, 254-255) interpretou esta fome insaciável como um sinal da
origem divina dos deuses recém-nascidos [...].25

No KTU 1.23, nas linhas 61 a 64 é que há essa descrição acima


mencionada, através das frases em verso “št špt/lʾarṣ / špt lšmm” e “wndd

24
Shipp traz as dificuldades em entender a passagem que introduz as Kaṯirātu no KTU 1.24, linhas
40 a 42: “[bn]t hll.snnt / bnt hll bˀl gml”. Para ele, hll não poderia ser entendido como uma ligação
genealógica, mas sim uma relação de dependência para que o casal tenha as bençãos da fertilidade.
25
No original: “The newborn gods are described as having enormous mouths and ravenous appetites.
Gaster (1950: 234, 254-255) interpreted this insatiable hunger as a sign of the divine origin of the
newborn gods […]”.

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gzr l<g>zr / yʿdb ʾuymn/ʾušmʾal / bphm wl tšbʿn”. 26 O fato de possuírem
bocas tão vastas e extensas, que de um lado tocam o céu e de outro a
terra assim como apetites insaciáveis, não apenas pode demonstrar a ca-
racterística divina que possuem, mas pode ser também uma ponte para a
comparação com Mot, uma vez que Mot também é descrito de maneira
similar nos textos ugaríticos. A insaciabilidade pode indicar a necessidade
de sacrifícios para aplacar as vontades de tais divindades, como apontado
por Page (1996, p. 102):

A implicação do final do texto (linhas 64–76) seria de que os deuses necessitariam


da humanidade para o sustento, sob a forma de sacrifício a fim de sobreviverem,
sendo sua fome insaciável pela provisão da ordem criada.27

Mot é tratado no Ciclo de Baal como uma divindade insaciável, che-


gando até mesmo a devorar Baal. Wikander trata dessa similaridade nas
descrições e aponta o seguinte (2014, p. 93):

Um dos traços mais definidores do deus da morte no Ciclo de Baal é, afinal, sua
enorme mandíbula engolidora e apetite insaciável. A descrição em forma de topos
das mandíbulas abertas de Mot com “um lábio na terra, um lábio no céu” (CAT 1.5
II 2) ecoa na narração sobre as duas crianças vorazes em O Nascimento dos Deuses
Bons e Graciosos (CAT 1.23 61-62) [...].28

É possível fazer análises sobre as relações entre as divindades


astrais e os demais do panteão, bem como paralelos com o mundo bíblico,
especialmente com o Primeiro Testamento. Tendo passado de maneira
breve pelas descrições mais fundamentais das divindades astrais recorta-
das, passaremos ao próximo tópico, que tratará dos indícios e possíveis
influências dessas divindades no mundo semítico.

26
A transcrição do texto verso a verso pode ser encontrado na obra de Mark Smith, logo na introdu-
ção. SMITH, Mark. The rituals and myths of the feast of the goodly Gods of KTU/CAT 1.23: Royal
constructions of opposition, intersection,iIntegration, and domination. Atlanta: SBL Press, 2006.
27
No original: “The implication from the end of the text (lines 64–76) would be that the gods require
humanity for sustenance in the form of sacrifice in order to survive, their hunger being unsated
by the provision of the created order”.
28
No original: “One of the most defining traits of the god of Death in the Baal Cycle is, after all,
his enormous, swallowing maw and insatiable appetite. The topos-like description of Mot’s gaping
jaws as putting ‘a lip to earth, a lip to heaven’ (CAT 1.5 II 2) is echoed in the narration about the
two ravenous children in The Birth of the Good and Gracious Gods (CAT 1.23 61-62) […]”.

14 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
Relações entre divindades astrais e o “mundo bíblico”

Podemos nos perguntar se por algum acaso as divindades astrais de


Ugarit teriam tido algum papel nas realidades sociais e nos debates entre
diferentes grupos que se tornaram imortalizados nos livros que compõem
a Bíblia tal como a conhecemos hoje. O tópico não busca fazer um esgota-
mento de todas as ocorrências bíblicas relacionada aos astros, mas trazer as
referências e buscar possibilitar novas discussões sobre essas divindades.
Desde as origens da humanidade os astros são considerados como
referenciais para distinguir o dia da noite, para o deslocamento marítimo e
terrestre, bem como para buscar os melhores momentos para plantio e para
a colheita. Essa ideia de referencial ou de guia está presente em Gn 1,14.
A ideia presente nesse trecho bíblico é o surgimento do Sol, Lua e
estrelas – considerando estrelas os planetas mais facilmente identificáveis
a olho nu – que também guardam relação com a percepção sobre Deus no
Primeiro Testamento, referido em algumas passagens como “Deus do céu”,
que poderia indicar o pertencimento à categoria astral. Tal possibilidade
merece um estudo mais aprofundado, sob uma perspectiva linguística e
fundamentada em maiores dados arqueológicos.
Sobre as ocorrências de “Deus do céu” no Primeiro Testamento, por
não ser o objetivo esgotar os livros bíblicos, focamos em alguns apenas. No
livro de Esdras a expressão aparece quatro vezes – Esd 5,11-12 e 7,12.21.
Em Neemias aparece também quatro vezes – Ne 1,4-5 e 2,4.20. E no livro
de Daniel aparece cinco vezes – Dn 2,18-19; 28; 37; 44.
No caso de Dn 2,18-19 é importante mencionar que a expressão “Deus
do céu” está relacionada com a visão noturna de Daniel, o que pode indicar
ser resultado de um sonho ou algum acontecimento sobrenatural ligado à
noite, momento preferencial para os rituais aos astros. A ligação do mo-
mento do dia com a expressão “Deus do céu” passa a ser um interessante
ponto para analisar também a questão dos poderes mágicos anteriormente
trabalhados, em especial os poderes divinatórios.
Há em diversos momentos do Primeiro Testamento referências aos
cultos para as divindades astrais, no contexto do Antigo Israel, especial-
mente os já mencionados Dt 4,15-19 e 2Rs 21,3-5, mas também o presente
em Sf 1,5 realizados nos telhados das casas, além dos templos erigidos
em prol de tais divindades.
No que chamamos de “cidade” de Jerusalém, há grande presença do
culto de divindades astrais, notadamente por força da existência de templos
dedicados aos astros, além da possibilidade de cultuá-los nos telhados e

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mesmo a céu aberto, uma vez que eram visíveis a olho nu, como já men-
cionado ao longo do presente.
O próprio nome da cidade – Urušlmm – parece ter influência dos
astros, uma vez que šlm se referiria aos astros, fundamentando-se em
pesquisas que trabalharam a associação do nome encontrado nos textos de
execração egípcios com o da cidade Jerusalém (MB IIA), como é o caso
de Gray. Ele traz também a relação dos nomes dos dois filhos de Davi com
o elemento šlm, indicativo de divindades astrais (1965, p. 173):

The fact that the names of two of David’s sons, Absalom and Solomon, should
both contain the element šlm, which appears again in the name of the city itself,
suggests the probability that Šalem was the local god of Jerusalem domiciled there
since the time of the Egyptian Execration Texts at least, which cite the name of the
city Urušlmm.

Apesar de existir esses indícios que podem vir a conectar a impor-


tância de divindades astrais com o contexto semita, não há consenso entre
pesquisadores sobre se os textos de execração tratam ou não da cidade de
Jerusalém, existindo posicionamentos contrários aos de Gray.29
Ainda, pode parecer algo sem muita importância, mas as divindades
astrais de Ugarit parecem ter expandido suas influências, em especial Yariḫ,
na atribuição de palavras para o uso cotidiano semita, sendo um exemplo
a passagem presente em Ecl. 43,6-8 30, em que a palavra hebraica yerah
designa tanto lua quanto o mês.
Outro exemplo seria a conexão entre Josué e Sansão com a divindade
Sol, Šapšu ou Shams, como pontuado por Seitz (2007, p. 89):

É evidente que existe uma ligação especial entre Josué e o sol. Josué vai embora
para Timnath-serah, de acordo com o texto; a última parte do nome deste lugar é
outra palavra para “sol” usada pelo redator/es para evitar a utilização da “heras”
hebraica, que parece ter sido relacionada com as tradições de adoração astral que
o redator queria editar. (Pode ser vista a palavra ‘heras’ usada em Juízes 14,18,

29
Amnon Ben-Tor traça alguns pesquisadores contrários a essa interpretação dos textos de execração
egípcios, como Na’aman e Malon, entre outros ainda. Vide: BEN-TOR, Amnon. Do the Execration
Texts Reflect an Accurate Picture of the Contemporary Settlement Map of Palestine? In: Academia.
edu. O texto de Ben-Tor pode ser lido pelo seguinte link:
https://www.academia.edu/25340113/Do_the_Execration_Texts_Reflect_an_Accurate_Picture_of_
the_Contemporary_Settlement_Map_of_Palestine
30
A versão presente na Bíblia de Jerusalém, nesse exato trecho mencionado, a palavra yerah, como
pontuado na nota A.

16 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI
num segmento relacionado com Sansão, em hebraico: “shamson”, relacionado com
“shams” ou “sol”).31

O uso de nomes de astros dados a pessoas parece indicar a grande


importância dessas divindades na vida cotidiana tanto em Ugarit, quanto
sua influência na construção do arcabouço cultural dos povos semitas,
como trazido pelas passagens bíblicas selecionadas.

Considerações finais

Ainda há muito o que se descobrir e pesquisar sobre as divindades


astrais, especialmente no contexto histórico-social de Ugarit e as suas
influências para as regiões vizinhas. Desde os mistérios que envolvem as
práticas cultuais aos astros, locais, símbolos e suas relações com as demais
divindades do panteão ugarítico, além das possíveis diferenciações entre
poderes divinos e poderes mágicos, definindo o que seria cada um dentro
dos limites das descobertas arqueológicas e traduções das estelas.
As divindades astrais de Ugarit parecem ter influenciado inclusive
a construção de palavras e uso cotidiano nos povos semitas, e por isso
buscamos apresentar algumas passagens bíblicas selecionadas, de forma
que a estimular que mais pesquisas possam ser realizadas nesse sentido.
Pode parecer insignificante as similaridades notadas entre os nomes
de divindades astrais e seu uso cotidiano, porém, se trouxermos a refle-
xão para os dias de hoje, em que há o hábito de dar nomes a crianças a
partir de nomes bíblicos, talvez seja possível compreender essa dimensão
humana de se inspirar e nomear algo ou alguém a partir de um modelo
de valor e virtude.
Por fim, a presença de nomes e palavras com influências das divin-
dades astrais sobrevive até os dias de hoje, gravadas nos versos bíblicos
e mesmo nos costumes individuais e coletivos que temos de direcionar
nossas vidas através dos sinais dos astros.

31
No original: “It is clear that a special connection exists between Joshua and the sun. Joshua retires
in Timnath-serah, according to the text; the latter part of this place name is another word for ‘sun’
used by redactor/s to avoid using the Hebrew ‘heras’, which seems to have been related to traditions
of astral worship that the redactor wanted to edit out. (One can see ‘heras’ used in Judges 14:18, in
a segment related to Samson – i.e., Hebrew: ‘shamson’, related to ‘shams’ or ‘sun’.)”.

Revista Caminhando v. 27, p. 1-18, jan./dez. 2022 • https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v27e022023 17


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18 Divindades astrais e poderes mágicos em Ugarit e seus reflexos no Primeiro Testamento:


Patricia Guernelli Palazzo TSAI

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