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(UFBA)
f.yansa@gmail.com
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Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN (GT 36).
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Resumo
No horizonte do Candomblé da Bahia, a ordem de determinados eventos que marcam as
biografias dos adeptos é dissociada da intencionalidade humana e pensada em continuidade
com materialidades (alimentos, substancias e artefatos), sendo tais materialidades
conectadas com as capacidades intencionais de subjetividades não-humanas (Orixás, Odus,
Eguns etc.). Elementos, cromatismos e substâncias podem ser significativamente
associados às sensibilidade do corpo, mobilizando-se assim, ao mesmo tempo, a memória
mítica, as diversas intencionalidades dos não-humanos. Os eventos são portanto
pensáveis como agencias que expressam relações. Além disso, o antropomorfismo
atribuído aos elementos e artefatos (oferendas) convertem as ‘affordances’, dando
relevância cognitiva especial e eficácia aos contextos rituais e terapêuticos específicos.
2 O trabalho de campo foi efetuado em terreiros de candomblé (Nagô) de Salvador e Itaparica (Bahia).
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existencial onde eventos, ainda velados, já são predeterminados?
De fato, os eventos não são pensados como acontecimentos ex novo, eles são
potencialmente presentes, situados em domínios do mundo, isto é, em ‘caminhos’ virtuais a
serem percorridos (LACOURSE 1981), sendo associados a certas essências ou princípios
capazes de fazê-los desencadear. A eficácia do destino pode ser inativa (como dizem os
filhos-de-santo isto é, a energia associada ao caminho pode estar “dormindo”), portanto
deve-se bem interpretar os signos (odu) para amenizar os determinismos negativos, fazendo
“despertar”, com o trabalho ritual, somente os efeitos positivos.
Esta arregimento de eventos e essências (BASTIDE 1973), é alistada com as
anedotas de tempo mítico, quando gestos e aventuras dos primeiros ancestrais divinizados
(orixás) envolveram os não-humanos (alimentos, cromatismo, objetos, substâncias e
elementos naturais, etc.), produzindo eventos ‘protótipos’, definíveis como um conjunto
ações e reações entre os existentes (entre entidades antropomorfas e outros existentes quais
plantas, animais, substancias, lugares, etc.). Assim, segundo uma abordagem
essencializada, num nível arquetípico de eventos (categorias de acontecimentos míticos),
um tempo paradigmático constitui-se como um horizonte tanto para pensar as relações entre
existentes quanto para formar um referencial operatório para o controle ritual do destino
pessoal.
No jogo de búzios, na busca desses determinismos existenciais, o pai/mãe de santo
(exercendo a função de adivinho), desvenda o signo do destino (odu) que exerce influencias
evocando eventos míticos analógicos à situação atual da pessoa que consulta (AQUINO
2005). Segue portanto a conexão entre categorias de eventos, agencias dos seres do tempo
primordial e aqueles existentes não-humanos (animais, elementos do mundo, substâncias,
etc.) implicados nesses eventos míticos. Eles se convertem em mediadores eficazes e
substitutos sensíveis dessas intencionalidades invisíveis. O acesso aos seres invisíveis se
coloca, portanto, no candomblé, em relação a investigações sobre os objetos associados a
intencionalidades e a protótipos de eventos. Isso indica também que os eventos são, de
alguma forma, o resultado de agências objetiváveis (que podem ser ritualmente
controladas). Assim, a partir da relação entre os objetos, elementos e artefatos de todos os
tipos, por um lado, e as categorias de eventos e intencionalidades, por outro lado, a
atividade ritual e terapêutica pode ser estabelecida.
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Os caminhos e os elementos do mundo
Os dezesseis Odus são príncipes e eles tem uma família. Eles são o destino. Os
orixás também estão sujeitos ao destino. Vemos isso quando os orixás não tem
escutado o adivinho. Oxalá, por exemplo, começou uma viajem memorável para o
reino de Xangô : o babalaô (adivinho) lhe tinha advertido que sua viagem seria
lamentável (Cici de Oxalá).
Cada orixá tem diferentes “caminhos”, por isso muda seu nome dependendo da
qualidade. Quando o bebê nasce, ele já tem o seu anjo-da-guarda. O anjo-da- guarda
pode ser bom ou ruim, pode ser “pesado” ou “leve”. Ele espera para o bebê e ele já
está lá desde o nascimento. Às vezes, o anjo-da-guarda vem com orixá, porque
quando orixá é encantado por uma pessoa, ele se encosta e quer ser ‘feito’. Quando
vejo uma pessoa com problemas, uma pessoa com vícios, uma pessoa doente por
causa de seus maus hábitos, eu acho que um destino infeliz acompanha. Ela não
teve a chance de ter um bom anjo-da-guarda. Ao nascer, ela teve um anjo-da-
guarda pesado (Rosamunda de Ogun).
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Este envolvimento no destino compreende, assim, uma associação analógica entre
os acontecimentos da existência da pessoa e a categorização de eventos míticos (os mitos
relatam doenças, infortúnios, brigas, etc.). O determinismo, portanto, marca a pessoa,
assim como marcou os Orixás, também incluídos nos caminhos do mundo desse tempo
primordial. Segundo Beniste (1999), a noção Yoruba de Eleda corresponde aos orixás que
“falam” no jogo : eles se manifestam como protetores da pessoa. Este conceito é um pouco
controverso porque, de acordo com Rosamunda e outros filhos-de-santo, Eleda é tanto o
orixá protetor quanto o destino atribuído à pessoa (odu). No entanto, si se considera que
também os orixás estão envolvidos nos odus, não é de estranhar que Rosamunda usa o
mesmo termo (anjo-de-guarda) para significar o destino e os orixás protetores associados.
Isto faz que a pessoa seja incluída, segundo formas personalizadas, num destino objetivado
nos caminhos do mundo. Esta noção de destino é tanto cosmológica quanto ontológica e
antropológica, combinando essências e eventos, intencionalidades e agencias. Assim, a
cada uma das minhas perguntas, este conceito complexo de destino, ligado à noção de
‘caminho’, ou seja à existência que acontece aqui e agora, mas que pode ser enxergada
como uma “história de vida já traçada”, voltou à superfície, apesar de alguns ajustes
sincréticos que emerge no emprego dos termos.
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agencias, os elementos de contaminação, as doenças etc. Os pais/mães de santo devem
levar em conta todas as relações entre as entidades, os elementos, os acontecimentos
míticos e a situação atual do adepto durante as práticas rituais e terapêuticas.
Conclusão
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que é negativo : “Devemos levar apenas as energias positivas dele . Como você faz ? Tem
é o corpo ... Devemos, então, fazer um ebó (conjunto de limpeza ritual e oferendas).
Devemos passar um charuto ou outros elementos no corpo para remover toda a
negatividade que existe no caminho, mentalizando que assim queremos passar tudo isso
com nos elementos que passamos no corpo... é a mesma coisa no caso das comidas a ser
dadas às energia ... é a mesma coisa no caso de Exu” (Neivaldo, pai de santo). Os odus,
evidentemente, não podem ser exorcizados, pois são os ‘príncipes’ do mundo, isto é,
domínios do cosmo.
Podemos portanto colocar algumas questões finais que merecem ser discutidas
nesta apresentação: i) o destino da pessoa é definido e redefinido quando os eventos que a
afetam precisam ser entendidos; ii) os eventos são índices de agencias (ZEMPLÉNI 1995)
mais ou menos antropomórficas (orixás, odu) e são situados em dimensões naturalizadas e
cosmológicas; iii) segundo esta visão cosmológica, o ‘mal’ (perigos, doenças) pode ser
neutralizado e o lado negativo do odu pode voltar a ser inócuo, uma vez ‘alimentada’ e
recolocada sua energia no seu domínio natural, isto é, no seu lugar de origem (HERTZ
1922); iv) os elementos do mundo restituem mediações que fluem entre níveis
cosmológicos e antropológicos, entre objetos e sujeitos, entre essencias e eventos, entre
agencias e intenções, num circuito de troca entre dimensões visíveis e invisíveis.
Em definitiva, as materialidades e os corpos são mediadores sensíveis de
intencionalidades invisíveis (orixás e odus, notadamente), assim que os rituais produzem
transformações eficazes e propiciam eventos positivos, criando contextos para ação
altamente simbólicos e paradoxais, favoráveis a suscitar saliência cognitiva (HALLOY
2005) e a adesão dos adeptos. São assim criados efeitos contra-intuitivos em contextos
rituais específicos, isto é, são mobilizados elementos e materialidades de forma dissociada
do valor objetivo de uso e associadas a evocações variadas (SMITH 1979).
Bibliografia
AQUINO, Patricia de. (2005), “ Paroles d’objets ou le carrefour des coquillages
divinatoires du Candomblé”. Le rite à l’oeuvre. Perspectives afro-cubaines et afro
brésiliennes -Systèmes de pensée en Afrique noire, n. 16, pp. 11-47. -Systèmes de pensée
en Afrique noire, n. 16, pp. 11-47.
ZEMPLÉNI, Andras. (1995), « How to say things with assertive acts? ». In : Bibeau
G.; Corin E. (eds.). Beyond textuality. Berlin : Mouton de Gruyter.
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