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ISSN: 2525-8761
DOI:10.34117/bjdv7n7-465
Salvatore Siciliano
Doutor em Zoologia
Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, Laboratório de Biodiversidade
Endereço: Av. Brasil 4.365, Pavilhão Mourisco, sala 217, Rio de Janeiro, RJ,
21040-900
E-mail: gemmlagos@gmail.com
RESUMO
Neste estudo são descritos itens alimentares, parasitas e plásticos recuperados em
conteúdo estomacal de carcaças de aves marinhas recolhidas em praias do estado do Rio
de Janeiro. As dez carcaças analisadas foram recolhidas entre 2009 e 2010, e pertenciam
as espécies oceânicas Calonectris borealis (n = 4), Puffinus puffinus (n = 3), P. gravis (n
= 1) e Sterna hirundo (n = 1), e a espécie costeira Anous stolidus (n = 1). As presas
identificadas nos conteúdos estomacais incluíram os cefalópodes Argonauta nodosa,
Doryteuthis plei e representantes da ordem Oegopsina, e os peixes ósseos Porichthys
porossissimus e Stellifer sp. Helmintos do filo Nematoda foram recuperados em dois
conteúdos estomacais de C. borealis e em A. stolidus. Fragmentos de plásticos rígidos e
flexíveis foram registrados em C. borealis (n = 2) e P. gravis. A presença de algumas
espécies de presas sugere o aproveitamento do descarte de pescarias na alimentação das
aves marinhas. Os fragmentos plásticos recuperados nos conteúdos estomacais reforçam
que a poluição por rejeitos sólidos no ambiente marinho é uma questão de conservação
que afeta esses vertebrados.
ABSTRACT
This study describes food items, parasites and plastics recovered from the stomach
contents of seabird carcasses collected from beaches in the state of Rio de Janeiro. The
ten carcasses analyzed were collected between 2009 and 2010, and belonged to the
oceanic species Calonectris borealis (n = 4), Puffinus puffinus (n = 3), P. gravis (n = 1)
and Sterna hirundo (n = 1), and the coastal species Anous stolidus (n = 1). Prey identified
in the stomach contents included the cephalopods Argonauta nodosa, Doryteuthis plei
and the order Oegopsina, and the bony fish Porichthys porossissimus and Stellifer sp.
Helminths of the phylum Nematoda were recovered from two stomach contents of C.
borealis and A. stolidus. Fragments of rigid and flexible plastics were recorded in C.
borealis (n = 2) and P. gravis. The presence of some prey species suggests the use of
fishery discards to seabirds feeding. The plastic fragments recovered in the stomach
contents reinforce that pollution by solid debris in the marine environment is a
conservation issue that affects these vertebrates.
1 INTRODUÇÃO
As aves marinhas são animais vertebrados adaptados ao voo e que dependem do
ambiente marinho (oceânico ou costeiro) para alimentação e reprodução (VOTIER;
SHERLEY, 2017). Algumas espécies têm área de uso restrita, que não ultrapassa 20 km,
por exemplo, enquanto outras realizam migrações entre os hemisférios norte e sul, se
deslocando por milhares de quilômetros (GUILFORD et al., 2009). As espécies que
realizam migrações têm maior gasto de energia, o que aumenta a demanda por alimento
e a vulnerabilidade dos indivíduos (GUILFORD et al., 2009). No litoral brasileiro já
foram registradas 92 espécies de aves marinhas entre residentes, migrantes e vagantes, o
que corresponde a 25% do total de espécies descritas (CROXALL et al., 2012).
A alimentação das aves marinhas varia de acordo com o táxon e pode incluir
grande diversidade de presas. Os grupos de presas ou itens alimentares são invertebrados,
tais como anelídeos, moluscos, crustáceos e equinodermas, e vertebrados, tais como
peixes, anfíbios, répteis, pequenos mamíferos terrestres e até ovos de outras aves (DEL
HOYO et al., 1996). Há espécies que são generalistas e incluem um diversificado
conjunto de presas em sua alimentação, enquanto outras se restringem a um determinado
tipo de presas (DEL HOYO et al., 1996; DI BENEDITTO et al., 2015). As estratégias de
captura das presas estão relacionadas as adaptações das espécies, incluindo formato das
asas e do bico, quantidade de tecido adiposo e anatomia do esterno (VOOREN;
FERNANDES, 1989).
Uma grande variedade de microparasitas (vírus, fungos, bactérias, protozoários) e
macroparasitas (helmintos e artrópodes) pode afetar as espécies de aves marinhas (KHAN
et al., 2019). Os parasitas estão presentes em todos os ecossistemas e vivem às custas de
seus hospedeiros, podendo causar efeitos negativos. No caso das aves marinhas, a
longevidade, o deslocamento por longas distâncias, principalmente durante a migração, e
os adensamentos populacionais em colônias aumentam sua exposição aos parasitas e a
2 PROCEDIMENTOS
Entre maio de 2009 e maio de 2010, 10 carcaças de aves marinhas foram
recolhidas na região centro-norte do estado do Rio de Janeiro (21ºS-23ºS), sudeste do
Brasil, a partir de monitoramentos de praia não sistematizados. Essas carcaças foram
selecionadas devido ao estágio de decomposição e, portanto, a possibilidade de avaliação
do conteúdo estomacal. As carcaças analisadas estavam completas, intactas e foram
classificadas como estágio 2 (‘fresco’) ou estágio 3 (‘pouco decomposto’), de acordo com
a escala ordinal proposta por Geraci e Lounsbury (2005).
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
As carcaças cujo conteúdo estomacal foi analisado pertenciam a cinco espécies de
aves marinhas (Tabela 1). As espécies incluíram quatro aves migratórias do hemisfério
norte (Calonectris borealis Cory, 1881, ou cagarra-grande; Puffinus puffinus Brünnich,
1764, ou pardela-sombria; P. gravis O’Reilly, 1818, ou pardela-de-bico-preto; e Sterna
hirundo Linnaeus, 1758, ou trinta-réis-boreal) e uma ave residente (Anous stolidus
Linnaeus, 1758, ou trinta-réis-escuro). Dentre essas espécies, somente S. hirundo é
reconhecida como ave costeira, enquanto as demais são aves oceânicas (MYERS et al.,
2021).
Os itens recuperados nos conteúdos estomacais incluíram cefalópodes, peixes
ósseos, parasitas e fragmentos plásticos rígidos e flexíveis (Tabela 1). Cefalópodes e
peixes estavam presentes em 70% e 30% dos conteúdos estomacais analisados,
respectivamente, e não houve co-ocorrência desses dois grupos de presas em nenhum
indivíduo analisado. O estado de conservação das mandíbulas dos cefalópodes e sua
coloração escura indicam que a ingestão das presas foi em ocasião bem anterior à data de
coleta e, muito provavelmente, a data de óbito das aves. O peixe Porichthys porossissimus
(20 cm de comprimento) estava parcialmente digerido no estômago de C. borealis,
indicando atividade alimentar recente. Em A. stolidus foram recuperados otólitos que
Tabela 1 - Itens recuperados no conteúdo estomacal de carcaças de aves marinhas no Rio de Janeiro (2009-
2010).
Espécie Data de Itens alimentares Parasitas Plásticos
coleta
Calonectris borealis 17/05/2009 3 Argonauta nodosa
16 cefalópodes da
subordem Oegopsina
Figura 1 - Parasitas do filo Nematoda (n= 31) recuperados no conteúdo estomacal de Calonectris borealis.
Figura 2 - Fragmentos de plásticos recuperados no conteúdo estomacal de: A) Calonectris borealis (n= 6)
e B) Puffinus gravis (n= 21).
cefalópodes foram reconhecidos somente pela presença de mandíbulas, que são estruturas
formadas de quitina resistentes ao processo de digestão dos predadores, permanecendo
no estômago por semanas ou até meses após a ingestão da presa (DI BENEDITTO et al.,
2001). Já no caso de otólitos, que são concreções de carbonato de cálcio, a digestão pelo
suco gástrico do estômago do predador ocorre mais rapidamente. Dessa forma, a
contribuição de cefalópodes e peixes ósseos na dieta das aves analisadas pode estar
superestimada e subestimada, respectivamente.
A prevalência de nematódeos nas aves marinhas foi muito variável (Tabela 1). A
revisão sobre o tema realizada por Khan et al. (2019) indicou que mesmo indivíduos que
nidificam em colônias próximas podem apresentar diferenças expressivas na carga
parasitária. Os autores atribuíram essas diferenças a variações na alimentação, ressaltando
que a dieta local pode ser um fator significativo para o parasitismo nas aves marinhas. O
ciclo de vida e as vias de transmissão de helmintos em aves marinhas são complexos, com
transmissão direta (i.e. de pais para filhotes durante a alimentação) e/ou indireta (i.e. por
meio de hospedeiros intermediários ou vetores) (TOURANGEAU et al., 2018).
A ingestão de rejeitos sólidos por aves marinhas, especialmente plásticos, é uma
questão de conservação grave e bem conhecida em todo mundo, com inúmeras espécies
envolvidas (e.g., AVERY-GOMM et al., 2013; VAN FRANEKER, 2015; TAVARES et
al. 2017). Provavelmente, esses rejeitos são ingeridos de forma incidental durante a
captura das presas (DI BENEDITTO et al., 2015; TAVARES et al., 2017), o que deve ter
ocorrido nas aves analisadas neste estudo. Tavares et al. (2017) constataram que tanto
aves que se alimentam na superfície quanto àquelas que capturam suas presas no
mergulho são suscetíveis de ingerir plásticos. Os autores registraram plásticos em
espécies costeiras e oceânicas, tanto migrantes quanto residentes, reforçando que esse é
um problema global que afeta as aves marinhas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As carcaças de aves marinhas recolhidas em praias são amostras importantes para
entender a biologia das espécies migrantes e residentes, tanto oceânicas quanto costeiras,
e as possíveis ameaças a que estão submetidas em seu hábitat. Os conteúdos estomacais
das cinco espécies de aves analisadas indicaram que cefalópodes, principalmente as lulas
Doryteuthis plei e representantes da ordem Oegopsina, são as principais presas
identificadas, seguidas de peixes ósseos. No entanto, a representatividade das presas pode
estar superestimada ou subestimada devido a taxa de digestão diferencial entre elas. Os
resultados sugerem que as aves também são oportunistas quanto à alimentação, com
aproveitamento do descarte de pescarias, e que a carga parasitária de helmintos registrada
em seu estômago é provavelmente proveniente de suas presas, sendo as aves hospedeiros
definitivos. Os fragmentos plásticos recuperados nos conteúdos estomacais reforçam que
a poluição por rejeitos sólidos no ambiente marinho é uma questão de conservação que
afeta as aves marinhas.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao fomento concedido pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ e INOVA Fiocruz.
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