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POEMAS DO AMAR DEMAIS

Edição do Autor
Autor
Tatiano Maviton

Capa e diagramação
Simon Taylor | Ctrl S Comunicação (www.ctrlscomunicacao.com.br)

Revisão
Francis Beheregaray

http://www.poemaselamurias.com

Maviton, Tatiano, 1976-


Poemas do Amar Demais / Tatiano
Maviton – Curitiba: Edição do autor, 2012.
108p. ; 21cm.

Fundação Biblioteca Nacional


Registro: 503.245 Livro: 952 Folha: 461

1. Poesia brasileira – Paraná. I. Título.


Poeta sente dor pungente,
volúpia ardente e trata o amor
no vocativo.
Põe-se na torre a sonhar,
vendo uma lua no céu e outra
lua no mar.

Tatiano Maviton
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Índice
La mer ...............................................................................................................................................11
Parto...................................................................................................................................................13
Vade Mecum.....................................................................................................................................15
Adágio................................................................................................................................................17
Irmã da minh’alma...........................................................................................................................20
Um blues etílico................................................................................................................................22
do inacessível....................................................................................................................................24
Inevitável (O Amor, A Razão e os seus atos). ..............................................................................25
Revés .................................................................................................................................................33
Ode ao poeta ou, Cântico dos pesares...........................................................................................35
Verbo ad verbum..............................................................................................................................42
Tigre, tigre, tigre...............................................................................................................................44
Tempo perdido.................................................................................................................................47
Sou ela................................................................................................................................................49
Negue-me..........................................................................................................................................52
Eu sei hoje em dia.............................................................................................................................54
Usura renitente.................................................................................................................................59
Antagônico........................................................................................................................................63
Abreviação.........................................................................................................................................65
A maciez da seda, a rigidez do tempo...........................................................................................66
Perséfone............................................................................................................................................67
Velho bandônion..............................................................................................................................69
Mandacaru versificado....................................................................................................................71
Na ordem transversa das coisas......................................................................................................75
Musa...................................................................................................................................................77
Eu te amei, tu foste minha...............................................................................................................79
Charneca em flor..............................................................................................................................81
Relicário.............................................................................................................................................83
Quando fala mais alto......................................................................................................................85
Charneca em flor II..........................................................................................................................88
do impossível....................................................................................................................................89
Lírio alvo............................................................................................................................................90
Por sobre a terra, na imensidão do universo................................................................................92
do inacessível II................................................................................................................................94
do amar demais.................................................................................................................................95
Por te amar tanto assim...................................................................................................................97
Nada há além do teu amor..............................................................................................................98
Nada há além do teu amor II..........................................................................................................100
Poeminha chatinho..........................................................................................................................102
Gosto quando me olhas...................................................................................................................104

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Prefácio

E
ste Poemas do amar demais, de Tatiano Maviton, não é a primeira publi-
cação do poeta, que em Poemas e Lamúrias fez sua estreia.
Apesar do ainda curto percurso, já se notam algumas diferenças entre
os dois livros, um certo amadurecimento no trato com as palavras, embora um
clima noir envolva as duas obras e se encontre também em seu blog, tornando-
-se marca e estilo reconhecido em sua produção poética.
A poesia de Tatiano Maviton nos remete ao Romantismo influenciado
por Byron, de onde vem uma visão de mundo envolta em tristeza, solidão e
sofrimento.
Seus poemas de amor não são alegres, não lembram o Amor/Humor
oswaldiano. A relação estreita é entre Eros e Tânatos, como nos versos “esta do-
ença que tanto, tanto/tanto me faz querer-te mais/Desaperceba-se, e me deixe
em paz morrer”, do poema Verbo ad verbum.
No entanto, se essa ligação com a dor e com a morte nos remete ao Ro-
mantismo, é na presença do amor que esse romântico extemporâneo se realiza
poeticamente. Esse é o fio que liga todos os seus poemas: a perda do amor, a
saudade do amor, o desejo do amor... O amor, sempre o amor...
Para isso Tatiano dialoga com obras basilares, como Tristão e Isolda, já
a partir da epigrafe La Mer, em que um dos casais mais famosos da literatura
universal assinala a dor que brota da ausência, de um e de outro. Essa é a mola
propulsora da poesia de Tatiano, que visita vários outros poetas, como Florbela
Espanca (Charneca em flor), Fernando Pessoa, Castro Alves e Vinícius de Mo-
raes- o eco do Soneto do amor total (Amo-te tanto, meu amor...) presente em
vários poemas de Tatiano, é bastante visível no também soneto Do inacessível,
que inicia com os versos “amo-te tanto, amor, que nem sei quanto:/Amo-te
com íntima alegria suntuosa e breve” em que o amar é, assim como para Viní-
cius, a fonte de vida, mas também de sofrimento.

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Todo esse amor transborda em textos bem diversos uns dos outros, seja
pela linguagem - às vezes rebuscada, como em “ao poeta/ um beijo ébrio em
despautério (p.32), seja pela alternância da forma, que varia desde o tamanho
dos poemas - alguns longuíssimos, à moda de Claudel, com versos também
longos- outros em versos curtos, dispostos na folha às vezes por meio de uma
única palavra, que sobe ou desce, dependendo de onde se olhe, e que nos re-
mete ao Concretismo.
A obra de Tatiano é assim: uma procura incessante pelo amor e pela
poesia, que neste caso, são exatamente a mesma coisa: amar é viver e é também
poetar.
Que você continue a poetar, Tatiano, a gritar para o mundo a beleza e a
dor do amor, que embalaram tantos poetas antes e hoje te inspiram, para fazer
a felicidade de seus leitores, que também querem amar demais.

Evoé, Tatiano!

Por Cátia Toledo Mendonça


Ctba, 20 de novembro de 2010.

* Cátia Toledo Mendonça é doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná e


professora da Universidade Estadual do Paraná, FAFIPAR.

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La mer.
Isolda: Sur le sable en face de la mer dans la nuit sans toi.

Tristão: Tu ne m’écoutas pas.


J’ère l’urle du vent, seulement, t’appeler.
Et ton regard direct, incisive il atteignait l’horizon noir,
inhérent à ce qui conspirait, peut-être à la solitude,
il m’ignorait. Sans attention tu étais,
et moi j’etais perdu, dans l’horizont de la mer à tes pied.

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Parto
Enfim...
Está lá, inerte em cima da minha mesa.
Formas quadradas cheias de sentimentos,
Parido, como a uma criança prematura,
Imaturo, mas calejado de dores,
De amores, de sonhos e angústias,
Inexperiente, inseguro, saído do casulo.

Enfim...
Pari, concebi a semente já vencida,
Saiu de mim,
Doeu em mim,
Sangrou em mim...
Lacrimejava feito orvalho
Vindo de um carvalho,
De cerne cheio de nódoas,
De folhas cinzas,
De caule roxo,
De sonhos frouxos,
De olhos negros.

Enfim,
Sou pai, um pai órfão,
Um pai perdido, desconsertado
arranjo de um adágio dissonante,
Entoando alegrias efêmeras,
Andante, trepidante,
Pai poeta, poeta só,
Poeta metade.

13
Enfim...
Eu tenho um filho,
Eu tenho linhas, palavras,
Reticências ensandecidas de mim,
Criadas, inventadas, sonhadas,
Por mim...
E não me arrependo de nada!

Enfim, eu tenho um filho.

É surreal, como se o sol nascesse da lua,


Como se o mar brotasse das minhas lágrimas,
Como se as gérberas pendessem dos meus dedos,
Como se a noite fosse um inteiro dia,
E como se tu, nua, langorosa dormisses ao meu lado.

14
Vade Mecum.
O olhar jamais mente,
E se mente, vem da dor demente,
Tão logo se esta dor é tua, deveras sentes,
Ao que me cria uma sensação revoluta entorpecente.

E se tua boca condiz com o teu olhar frio e lerdo,


É quando me calho torto, de joelhos citando o credo,
A asfixia me cega os olhos, não sei onde estás ao certo...
Mas sei, tua ira se alastra, e sinto teu furor tão de mim perto.

É o teu arfar que sinto aqui, nem forças mais eu tenho,


Gélido pavor vem de tu, cria maldita! Pesadelo ferrenho...
Não me toques! Não me toques, te suplico,
Abstenho-me do teu beijo algoz, e o teu abraço eu desdenho.

É que em tu viver, não quero me aplicar!


Jamais! A ti com prazer e alegria irei novamente me entregar!
E corro! Para que seja impossível me alcançar!
Cruzarei a terra, os mares, sem cansar, sem naufragar!

Mas que tolo eu sou...


Tão logo, foi certo, sem esforço algum me alcançaste,
Cansado, exaurido de fugir, como um pássaro que tanto voou,
Estou aqui, perfeita presa, alma caída maltratada, e me levas.

Levaste-me, sim, anjo maldito, caído da noite,


Tuas vestes surrupiadas, de crateras urbanas, num açoite,
Decaio adormecido, vencido, puído, à meia-noite,
As badaladas por ti falam, e em mim se calam, e foste.

Morte, dor, sangue, sal, areia, trovões, amor!


Arqueia-se o corpo em torpor,
A palavra se basta: amor, dor...? Horror!
Horrível, são juntas! Traspassam a pele a queimar em furor,
Conjuntando-se no cheiro de mágoas,
do criminoso mar requebrado de langor.

15
Anjo caído, síndrome do meu medo,
Vida apagada, como a uma rasura sem enredo,
Entre os dedos,
Não dá mais! Não dá! Foi-se a noite,
Vieste cedo.

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Adágio
Se o sol se o sol se o sol
Num ímpeto me falar do azul do teu céu,
É límpido, é claro como ele mesmo?
Ou soturno nefasto parco de sorriso,
Como a tardinha que se aflora atrás da colina,
Em mim.

Se a colina me disser onde se esconde


À beira do rio, de noite, o que tanto procuro,
A sensação que me fale e que me envolva,
Que me destoe, que me invada e que me rasgue!

Crie-me o viço, o julgo, a forma, a sábia harmonia


Da alegria, da normalidade em um nível mais profundo
De intimidade comigo mesmo.
E me faça ver, além do meu pesaroso pesar,
Além do séqüito ouvinte parte de mim...
Obrigado, não!

Se o dia, ao início do abrir dos meus olhos me falasse,


Desse-me a coordenada da sensação servida,
Retida em tantos olhos da rua pela qual ando,
E me mostrasse o mapa do tesouro que roubaram de mim.

E a noite como companheira de tantos choros e soluços,


Se ela não fosse essa escuridão total que me vem até o dia,
Seria mais fácil, em mim, o sol aferir um amanhecer,
Seria mais fácil, em mim, encaixar a alma no corpo.

Mas o que vejo são musgos em pedras frias,


São sequóias gélidas más negras inertes no tempo,
A flutuar no vácuo do meu desespero,
Por onde ando sobre um chão refletidor,
Do qual escondo o rosto para não me ver...
Obrigado, não.

17
Mas o que vejo é um sol derramado em sangue,
Intercalado entre tempestade de lágrimas
E soluço em desalento sem fim, rarefeito, que se alastra
Dentro da minh’alma peregrina,
Vivo, sou um estorvo ambulante.

Sem mais preâmbulos...


Obrigado, não!

Mas o que vejo são epitáfios talhados em mármore de Páros,


De um cadáver que dorme sorrindo de braços cruzados,
À espera do áspero julgamento final,
Encarniçado, entornado em um perfume de cravo pérfido e podre.

Mas o que ouço, não enxergo, apenas sinto,


Um murmúrio repetido, de palavras mal contadas,
Que ecoam como cortante navalha na pele morta.
Em mim em mim em mim

É largo o caminho onde não vejo ninguém,


É largo. O rio é fundo, o qual não me atrevo atravessar,
É fundo. A margem, do outro lado também é igual,
Sem novidades, sem sensatez prevenida.

Em mim em mim em mim


Não há alguém que valha ou algo, ou outrem,
Há somente um servo em mim
Cansado da vassalagem,
Cansado da parceria e dos açoites da vida.

Sozinho como o término de um adágio,


Padecido como um resto ébrio no balcão
De um bar, de pés desconsertados,
De mãos fatigadas, sem carinho e sem resposta,
Numa disritmia pesada nos ombros,
Onde não se vale nem de um trago pouco.

Tudo, tudo isso aqui, predestinado à perpetuidade além-morte,


Mas mesmo assim...
Obrigado, não!

18
E se nos ventos uivantes não há
A pista do caminho do “eu” que em mim
Procuro, não sei ao certo se vencerei
A trilha dúbia que me leva a tal jardim.

Se já perdi, não sei, antes desisto.

E na confusão que me reparo louco,


A escrita em desatina taquicardia,
Sem sentido sem forma sem métrica,
Acrescenta-se ao novelo subjetivo das minhas estórias...
Obrigado, não!

Em mim em mim em mim em mim


Um fraqueiro suspiro se desponta,
Persiste, rompendo-me a pleura, definhando os pulmões.

E me colocando à parte de tudo do que se fez em mim,


Abuso da minha própria quadratura versificada incompta,
Sem mais compreensão,
Obrigado, não.

19
Irmã da
minh’alma
Para Iaiá
Se o sangue fala, aqui dentro escuto.
E a vivência retrata-se
Nas horas solidárias, tristes ou felizes.

A convivência para mim não foi tanto,


Tanto quanto me bastasse,
Mas a voz da necessidade de ter-te aqui,
Retumba como trovões em meu peito.

No cântaro do sangue: o amor.


Derramado sobre nossas cabeças,
Pelo sangue, em nós foi herdado o elo.
Bebo da tua irmandade,

Da tua aprazível escolha de me abastar,


De serdes de mim, irmã além-sangue,
Riqueza da qual fui agraciado.

Se o sangue fala, muito mais


O grito da tua alma eu escuto.

Todos falam, todos sinto,


Mesmo os que não me declaram,
Sei que no alvéolo, descansando o elo materno resiste.

Mas só tu, ó ausência forte


Que me devasta cheia saudades,
Enche-me o peito de ânsia e de vazio,
E quero dizer-te, e quero abraçar-te.

20
És tu, ausência quem acompanha em mim a falta,
Peregrina alma, onde me acolho,
Trocando contigo pensamentos de saudades,
Transcendendo a ausência e a distância.

Amarga irrisão!
Peço notícias tua aos ventos, aos pássaros,
Ao chão imploro a trilha que me leve para ti.
Tu, irmã da minh’alma!

És, além do sangue o qual escuto,


Algo mais forte, que fala muito mais alto,
Por quem me desnorteio de saudades.

És, a quem enlinhado de saudades


e desventuras, afirmo com certeza:
É certo que és tu a irmã da minh’alma!

21
Um Blues
etílico
“Alguém falou que, escutar vozes
no meio de um solo de guitarra,
isso é solidão”.

O teu velório eu o presenciei por inteiro...


Foi no tempo de um cigarro.

Transformei-te em uma pétala etílica


Que roubei de uma decaída coroa de flores do teu velório,
E a coloquei na página, bem no meio,
No tinir dos ferros do Navio Negreiro:

“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!


Desce mais... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame! E vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

Sorvi nos meus soluços da solidão de um botequim,


Em um trago só a tua estupidez em me abandonar!
Enxuguei com o guardanapo de papel as minhas lágrimas,
Que se misturaram com esse poema o qual acabo de naufragar
Insigne assinatura da minha depara constatação:
__Eu mesmo te matei, – Foi bem assim, rápido!

Canetas voadoras planam em um céu cor de chumbo,


Cortam as nuvens de lama como navalha cega,
De uma chuva de gotas de ácido,
Que injeto na minha própria veia para esquecer,
Que assinaram o teu nome na palma da minha mão.

22
...

Aonde quer que eu vá, estás comigo,


Não me largas um só segundo,
Não me deixas nem sequer comer em paz,
Chorar em paz, morrer em paz.

E mesmo assim como quem anda a vagar pela noite,


Convivo com a tua presença de cadáver de desterro,
Por penitência de agravar a tua doença de me ignorar,
Aceito a condenação feita: Réu insano.

E depois do espetáculo, apagaram-se as luzes...


Vai-se embora o público que me lançou à cara
O opróbrio injusto crime de te maltratar,
E mesmo no escuro, por causa da minha timidez,
Escutei teus pés no tablado.

Foi-se embora...
Eu fiquei enquanto ainda fechavam as cortinas,
Ouvi meus dedos batucar um “Cartola”.
Constato que isso também é solidão.

Foi-se embora...
Eu fiquei enquanto ainda fechavam as cortinas,
Ouvi meus dedos batucar um “Cartola”.
Constato que isso é solidão,
Verdade é que solidão em mim expira inspiração.

Lembrei de reler Maiakóvski enquanto você dorme.


23
do inacessível
I
Amo-te tanto, amor, que nem sei quanto;
Amo-te com íntima alegria suntuosa e breve,
Amo-te neste real valor que não se mede ou se escreve,
Sente-se apenas, em suspiros, desespero e pranto.

Amo-te como as estrelas que pintam a noite atordoada,


Amo-te assim, como a pele ao perfume,
Amo-te numa mania desejosa, fiável costume,
Veementemente te amo, em um sacerdócio indubitável.

Amo-te tanto que chego a exalar tua forte presença,


Amo-te sem restrições, à parte de todo o mundo,
Amo-te com pressa, tenho fome de ti a cada segundo.

Amo-te derramado em conta-gotas todo o meu ser,


Amo-te tanto amor, que pela grandeza deste que me sujeito,
Seria de bom senso não guardá-lo dentro do peito.

24
Inevitável
(O Amor,
A Razão
e os seus atos).
Até parece a ponta do enlinhado de um novelo.

Incoerência.

Suspiro breve que merece desatenção,


Uma entoação de palavras que ainda não decifro,
um gesto maldizente.

Até parece...
Até totalmente aparecer.

Assim,

I-ne-vi-tá-vel!

Logo de início saber,


E por hora já basta um sorriso e um dar desentendido,
Uma fábula que se desenrola, disfarça os sentidos,
Inebria, rapta, e torna a razão desconexa.

Evoé, meu caro!

Esta valsa vienense... Desloca-se...


Não, não eu.

25
Um dia,
é apenas um pensamento esparso,
Noutro,
é um passarinho pela segunda vez na tua janela,
Noutro,
transforma-se em uma paciente espera,
E no mais,
Transforma-se em forma mordaz e insaciável.

O corpo...
Nódoa.
Grão.
Infecundo.

O que não se desprende de mim?


E faz esse turbilhão de ondas que exaure toda a alma,
O léxico que retumba em chuva sem nexo,
Um corpo inerte que transige esticado no metal frio,

Inciso quatro, parágrafo nove.

O corpo. Feito tango.

Zanza zanza, Zanza,


Zanza, zanza,
Zanza...

Tomba morto!

Com olhos semicerrados,


Que ainda escorrem lágrimas feito branco voal,
Tilintando os ossos no nascer da alvorada malfadada,
E que termina sempre, sempre,
No côncavo das minhas mãos unidas,

A esconder o estertor síndrome do teu descaso.

Teu nada.
Tão plácido.

26
E enfim me vejo mal dizer o teu sorriso,
Achar em ti defeitos que possam me afastar,
O que tento é em vão, é desperdício,
Nesse martírio descubro o vício a me matar.

Às vezes eu tenho a certeza que isso vai passar,


E das tuas manhãs eu vou não saber.

Mas a força é contrária aos meus sentidos,


Eu fico feito menino em desatino,
Erro na busca doutro convívio,
E vejo ser a dor desta vida, tu meu destino.

E quanto mais pratico o desapego a ti, fracasso.


É o amar sozinho o que me maltrata e me deixa absorto,
É sentir teus beijos em versos desmanchados,
Vindo das tuas palavras cheias de desconforto.

Um estrondo. Verte das veias... gota a gota, até


formarem o teu nome.

Infração!

Quem sabe o murmúrio das estrelas que sai da tua boca,


[Que tanto me encantam,

Quem sabe o vento que galopa em teus cabelos,


[Que tanto me fascinam,

Quem sabe esse teu perfume de açucena,


Que reverbera e dopa os meus sentidos,
Não prevalecesse em meu peito...
Quem sabe assim,
quem sabe.

Então eu me canso, grito, teimo


E bato o pé feito menino teimoso,
Mas continuo assim, sangrando, sibilando,
[sem freio no peito,

27
Ah, me deixa em paz!
Essa demência.
Por favor, retira, tempo, retira de mim!
Eu me dou por covarde e peço clemência.

Teimosia.
Na janela.
Meu quinhão.

Senhor juiz:

Já paguei com versos. Fracos e finos. Reconheço.


Mas vieram de nascente crua e desperta,
Veio do berço das intenções de louvor,
Veio do peito que amou jamais assim na vida,
[Há tempos que eu já paguei.

Já não basta?

Essa sentença:

Sem você meu bem, eu me dano!

Já arrastei por onde quer que eu fosse,


O tilintar nos ladrilhos da rua,
Essa ave madrilenha que não sabe voar,
E não quer aprender,
Já supliquei saciar minha sede desta tua alma nua.

Já não basta?

E vem, cá... Vou por lá.


Um livro na mão, na outra uma caneta...
Corpo arqueado.
No peito, meio metro de diâmetro de coração.
E uma ponta de imaturo cansaço.

Ah, que faça então! Assim seja. E dou-me nesta amência.


Até venero a tua adaga.

Amém.
28
Leva, tempo voa e leva daqui.
Aniquile e leva daqui!

Mas penso...
É inevitável a existência dos astros,
E suas nascentes estrelas de cada dia,
É inevitável que as cachoeiras me gritem teu corpo,
Até meus ouvidos desvirtuados escutarem teus passos,
No cair de uma tarde ferina e vazia.

É inevitável tentar adivinhar qual será o dia de amanhã,


Sem à noite imaginar estar ao teu lado,
É inevitável sentir sede dessa coisa meio céu, meio pagã,
Fome frustração do que não é fato consumado.

Reza breve, mãos juntas.

Milagres não existem.

Aponta para a tua crença, e atira!

É inevitável que em ti eu seja totalmente ausente


[e filho do descaso,
Sou para ti a significância do peso de uma pedra-pome,
[Exasperada,
Sou forma de dor que do peito entorna
[Dosada.

É inevitável essa loucura que tanto estranho,


[Fora da razão;
[Da lógica;

da tua lógica que não condiz com os meus domínios,


É inevitável que, quando tu me olhas teu sorriso
Ser flecha de inocência, simpatia que me fere a malgrado.

Qual sabe nada.

Sabe não. Pagão!

29
É inevitável, inevitável.

Aqui, assim, irrequieto, não se desprende de mim,


por medo de naufragar na imensidão pálida da folha.

É inevitável sentir que te amo,


E isso se transformar no que sou porque não me amo,
[Não me amo.
Porque se te amo, sou o que não posso ser,
Sem viver o que tenho pensar sentir.

É inevitável não sofrer o peso da minha própria existência.

O que vejo no espelho é a verdade que desagrada,


Puída, rasgada, maltrapilha e castigada,
A pele que se declara,
Os óculos que (me) se escondem.

É a mente que me tortura,


É o andar que me cambaleia,
São as mãos perdidas quando soltas,
Disforme do ritmo das minhas pernas alheias.

Junto. O coração. Erro crasso. Destacado. E me entrega,

Sempre!
Cambaio!

Porto fechado, navio atracado.


Evazão!

Lacaio!

Inevitável, sou eu invejar o homem do espelho


que noutra dimensão vive, livre de você.

De fim, o que é inevitável?


É o vivo desejo do que não posso viver?!

30
Basta querer?
Sei não...
Sei sim!

O inevitável é saber que essa súplica afônica por ti


Não me vai ser atendida.
olha ai...
toma de mim essa sina,
Afasta de mim esse cravo carmim,
Que fenece no peito e deteriora o corpo.

Tempo de febre
terçã.
Ter fé.

O meu pedido é que esse cálice de mim se afaste,


olha aí...
[Inevitável vem daí.

O que me resta além dessa voz pouca que salta?

De pés juntos.

Tu és minha súplica ferrenha.

Inevitável me restar apenas migalhas de teus gestos,


Inevitável é a luta do não querer e
do mais que bem querer dentro de mim indigesto.

Página branca e rota.

Desgosto de mim.

Dá por si.
Um pêndulo que rouba, torpe o tempo que se esvai,
Sem cálculos prévios de onde resultar e eliminar,
Esta inquietação diária sem sentido,
Esta nuvem densa nos olhos que não se aclara.

31
E quando um dia essa febre terçã passar,
Não voltará mais o que me era de direito viver,
Aquele sossego em desapego,
Um andar que mesmo torto era o meu compasso querer.

Torto, incerto...
Esquadro.
Desenquadro!

Inevitável
É eu saber que entre o amar e o teu não amar, há um
extenso abismo que me impede de atravessar.

Inevitável
É eu hastear a bandeira no topo do farol de poesias desse
mar de imaginação infante e romântica, e você nem me
notar.

Inevitável
Vejo que terei que apontar para o horizonte
além mar,

Pés descalços, mãos soltas...


Remarei para o máximo distante de mim.

Apenas me alimentarei dos cacos desta sólida poesia.

Cá entre nós... Poderíamos ter vivido um grande amor?

MENTIRA!

32
Revés
Abracei o teu silêncio...
Pensei em tudo o que é possível falar,
Num tempo em que a ausência fala mais alto,
E o teu corpo não mais responde ao meu toque.

Treinei ante ao espelho tantas vezes...


Este encontro que me desvia e me faz se perder,
Sem fazer possível tudo o que eu queria te falar,
Falar apenas de nós dois.

A chuva rebate na janela,


E faz barulho de cacos de vidro partindo-se ao chão,
Tento juntar um a um,
Quem sabe assim tu me percebas.

Dos pequenos fragmentos que eu recolho,


Penso ver neles sinais dos teus olhos,
Aquele brilho que antecedia o epitáfio do nosso amor,
Quando ainda não vias tudo monocromático.

Era quando eu te amava em segredo,


No tempo em que nem eu mesmo o sabia;
Enquanto assim o era,
O mar dançava com a barcarola do teu coração.

No tempo em que meu corpo e o teu se pediam,


No tempo em que a tua boca me desejava,
E eu te desejava, eu te queria para a minha forma,
Para a minha alma.

A lua te embalava, acariciando-te na janela,


Enquanto eu era o dono da minha noite,
Enquanto eu não percebia estar sozinho
Escasso e alheio a tudo, ou quase tudo,
Há momentos que tenho um relapso balbuciar do teu nome.

33
Enquanto a premissa resumia-se em teu sorriso,
Assim tu foste feliz. Uma boneca de porcelana,
Delicada, ingênua, afável...
E assim, ainda eu era inocente,
Até virar um anjo desiludido de asas quebradas.

Agora percebo que ando sem você,


Às vezes a minha memória me pega desprevenido,
Enquanto os meus dedos te desenham no ar.
Sonhar-te já não mais me basta.

Nossas vidas era um revés oposto,


Sem máscaras;
Sem culpa;
Sem dolo.

Antes, o sentimento que tu nutrias


Era a sensação de sempre o sol vir depois da chuva...
Agora, a árvore da tua esperança calha-se torta, seca e falha,
Não responde mais a primavera, nem ao outono.

Depois disso, pequenos fragmentos se juntaram,


Transformando-se em rosas de pétalas de agruras,
Bem daquelas de quando nos separamos,
Bem daquelas que em minhas mãos se esfacelaram,
E que furaram meus lábios tentando te beijar.

Enquanto você não volta,


(Se é que um dia isso possa vir a acontecer),
Eu corro para tirar fotos dos teus temporais,
Embaixo do céu de abril,
Reveladas já de início corroídas,
Do tempo em que nunca fomos felizes.

Hoje, ainda me lembro das coisas que você nunca viu.

34
Ode ao poeta
ou, Cântico
dos Pesares
Spiritus meus attenuabitur,
dies meibreviabuntur, et solum mihi
superest sepulchrum... Jó 17:01.

Ao poeta,
O que vem do norte.
Ao poeta,
O presente do vento,
A convidativa brisa do sul.

Ao poeta à sorte:
O tempo.
Ao poeta atento,
O clima do azul.

Ao poeta,
A incerteza do amanhã,
Ao poeta,
O tempo inesperado.

[Correm os ventos, uivam as noites,


Sonham os sonhos, Morrem as almas.
Vastos os campos, fenda nos sonhos,
Tensos desastres motejam a calma.]

35
Ao poeta,
O depois
de algo que não veio.
Ao poeta,
A certeza atroz,
de incerto, cálidas mãos nos teus seios.

Ao poeta,
A manhã
do amanhã exasperado.
Ao poeta,
O depois
da certeza de um beijo malogrado.

Ao poeta,
A tristeza
da alegria rotineira.
Ao poeta,
A destreza,
de sorver uma lágrima verdadeira.

[musa dos meus sonhos, minha vida apartada,


síndrome da minha abstinência, minha agrura malfadada.]

Ao poeta,
Um soneto
de versos fortes.
Ao poeta,
Braços ternos,
Calor de beijo úmido
e desespero ensandecido.

[Ama-me, mas depois não me deixe;


Que poderei eu fazer no descanso depois de ti? ]

Ao poeta,
A alma de senhor do seu destino,
em sonhos intrépidos.
Ao poeta,
Um lúgubre ressoar das águas,
onde navegam piratas de amores.

36
Ao poeta, o segredo
da alquimia dos universos.

[Sorte ou sacrilégio:
Sonhos de imensidão.
Vidas passadas, vinho tinto entornado,
Ode à morte, ou à solidão.]

Ao poeta,
A perdição do mar.
Ao poeta,
O amor das sereias,
O mistério das águas.
Ao poeta,
A brisa naufragada,
O enlaçar das madrugadas.

Ao poeta,
A lágrima da chuva,
O estalido do sol.
Ao poeta,
Um forte sorriso,
O cheiro da terra,
O vermelho do arrebol.

Ao poeta,
A beleza das horas,
O fado da espera juíza.
Ao poeta,
A origem das letras,
A declaração que escandaliza.

[Corre o tempo, sorve o tempo,


beija o tempo, vaga ao vento.
Vive o tempo no teu impreciso tempo,
Gasta-se o tempo, no teu vívido tempo.]

Ao poeta,
A catarse, a dor.
Ao poeta,
O conhecimento empírico,

37
O abalo sísmico,
A sina do solitário amor.

Ao poeta,
O cântico das vidas,
Das almas passadas,
Das mulheres apaixonadas,
Soterradas em seu corpo deserto.

Ao poeta,
Um homem morto,
Um coração vivo.
Ao poeta,
O reles desgosto,
de ser mal compreendido.

Ao poeta,
As legendas,
dos créditos de seus romances interrompidos.
Ao poeta,
As lendas, a febre voluptuosa,
das princesas dos castelos perdidos.

Ao poeta,
O sonho do bem.
Ao poeta,
O pesar do seu próprio mal.

Ao poeta do amor,
O incerto censo.
Ao poeta da estrada,
A vociferação das hordas,
do mal que lhe consome,
do mal que lhe agrada.

[Vem... entra, senta, come e dorme;


Vem... beija, santa incólume;
Vem... Inefável pudor. Oh! Não tremas!]

38
Ao poeta dos becos,
A noite forte em tormento.
Ao poeta dos bares,
A puta pudica, quase santa,
Para incessante acalento.

Ao poeta enfermo,
A herança solidão.
Ao poeta libertino,
A posse da devassidão.

[Se o bem e o mal existe,


Se a morte é a íntima amiga das almas,
Se o céu cinza é tão triste,
Onde encontrar nesta atrocidade
Sem ti a minha calma?]

Ao poeta,
A insensatez
de morrer a cada dia.
Ao poeta,
A estupidez
de pensar não precisar de companhia.

Ao poeta,
O amor, filho da sobrevivência,
Que não se realiza concreto em ninguém.
Ao poeta,
A musa no pedestal, em sensível diferença,
Encoberta de desdém.

[O fardo dos versos estarrecidos n’alma];


O peito aberto por lança, à espera do carma.
Antes esteja o verso estarrecido,
Soterrado na volúpia dos teus lençóis negros.]

39
Ao poeta,
A lealdade de uma amizade.
Ao poeta,
A cumplicidade da mão no ombro,
Ao poeta,
O beijo amigo e condizente.

Ao poeta,
Os versos escandalizados e concretos.

Ao poeta a caridade,
O aceitar no desentender.
Ao poeta,
A sinceridade com a persuasão,
Para poder decapitá-lo, sem o fazer sofrer.

[Batentes do sacrilégio,
Porão dos escarnecidos,
A aorta aberta, caminhos etéreos,
Sangue se esvaindo!]

Ao poeta,
Uma sepultura num desconhecido cemitério.
Ao poeta,
A lua como esposa,
Velando-o como verdadeira viúva.

Ao poeta,
Um beijo ébrio em despautério,
Ao poeta,
Uma imagem duvidosa.

[Não acrescentes zombaria em mim,


Eu hei de punir-te. Rogo-te a Ades,
Lançar-te ao peito um amor eterno a abrasar-te.]

40
Ao poeta,
O dom de conversar com o amor.
Ao poeta,
A paixão merencória,
Ao poeta,
A intimidade com a dor.

[Um ser disperso, sem tom de vida,


Um sofrer excessivo, efêmero e surreal.
Em termos: nele nada se há crido,
É somente um pobre bardo, que se desfigura além do horizonte.
Perdido marginal.]

Ao poeta que ama... suplício de tântalo.

[Tão somente um credo mal rezado,


um sussurro mal escutado,
Uma página virada, gasta e rota,
Excluso do cotidiano da normalidade,
Prescrito, autobiografado, não reconhecido
Um fogo-fátuo, exorcizado em seus próprios
versos de melâncolia].

Ao poeta que não morre,


A eternidade dos seus sonhos...

[A voz prescrita, a carne regurgitada,


O silêncio atemporal da vida que já lhe foi tomada!]

Ao poeta
Insigne cavaleiro das letras:
Uma mulher eloqüente e cálida.
Ao poeta
Bravio guerreiro das almas perdidas:
Um colo onde descansar,
Um abraço para afagá-lo
Um beijo para morrer em cada despedida.

41
Verbo ad
verbum
Mandei um pássaro velho e cansado
Ir ter notícias tuas – Não tive.
Mandei o vento trazer num sopro em minha face
teu aroma dos campos. -- Voltou gelado, – senti teu medo.

Enviei canções para te acordar nas manhãs tristes...


Os violoncelos regressaram, e, em meus braços choraram.
A noite me acordou, -- Ela estava com um semblante
amargurado!
Lá fora, o fogo. Labaredas que me acalentaram um dia em afagos,
Estanca! Em chama dissolúvel. -- É mister não saber de
tantas coisas.

Quem me dera o espelho do lago


me confessar o tom dos sóis dos teus olhos...
Quem me dera nuvens do céu me dizer em desenhos,
tua face viajante.
Por onde andarás ninfa das águas?
Deveras ser por entre os beijos que a brisa rouba dos mares.

Eu queria sentir-te na ponta


dos meus dedos sedentos do teu corpo.
(esta dor que me consome e me amordaça),
Eu queria não sentir esta dor atroz que não sei de onde vem,
Não sei para aonde vai, nem como canta, nem como passa.

Não sei da nebulosa nuvem dos astros,


Não sei da noite que pousa nas árvores,
Nem do fogo da tua paixão, eu o sei,
Somente que, ele sói relutar nos escombros
do teu jardim bendito.

42
Não me importa o segredo do universo,
Nem a fórmula da alquimia do ouro ou da prata!
Nem do balé do mar a me consolar no vai e vem com as rochas,
É dor em que não me atenho perceber nada ao meu lado,
É dor que me torpe e vicia,
vivificando em meus braços o teu nome.

Eu queria ter tua essência a correr por dentro de mim.


Somente uma última vez,
Engalfinhar-me nos teus cabelos, sorvendo tua pele,
Teu cheiro, te tatuar em mim!
E não poder ir embora, sem saber quem és tu, quem sou eu.

Eu queria atirar-te a rosa de pendão derrocado,


Quem sabe assim, ela reviveria teu perfume.
Eu queria ser deus senhor dos tempos,
Quem sabe assim, o criador e a criatura tivessem um tempo,
Serenos, em horas mágicas e esparsas.

Durante a eternidade do teu silêncio:


Farei uma fogueira das lembranças mal vividas,
Ficarei nu, talharei o meu corpo e me cobrirei de cinzas,
Quem sabe assim, a sentença que se apetece em meu peito,
Da dor ferida, corroída, torne extinta,

Esta dor que me castiga feito uma verruma em madeira verde.


Deixe-me, deixe-me, esqueça-me!
Desgoverne-se,
E viva a perambular esquecida na eternidade!

E esta força-dor incognoscível,


Que governa esta doença que tanto, tanto,
tanto me faz querer-te mais,
Desaperceba-me, e me deixe em paz morrer.

Sem um sonhar, sem ao menos ter,


Tudo o que faço hoje em dia se parece comigo!
Restando-me apenas esta alegria triste;
Tendo em vida, um negro e etéreo jazigo.

43
Tigre,
tigre, tigre.
Quem vem caminhar por sobre as minhas pálpebras
Onde melancólicas orquídeas estão a brincar?
Desafio a dizer. Quem vem lá?
Mergulhar em meu poço de tristes amálgamas.

Este ser intransigente e sem pudor,


Quem é? Quem vem lá?
Que respira por mim e arremata minha língua,
Adentra e toma minha calma sem pedir, por favor?

Quem é que quer dominar a minha mente,


E que vem na calada das horas serenas
Embebedar-me. Quem vem lá?
Vens dominar minha perdida lua,
Onde almas adormecidas estão a sonhar?

Que ser supremo estranho arquitetou invisível


Tuas vestes e depôs a clemência?
Fez-te insaciável e sem decoro!
E dos teus olhos dimensões implausíveis.

Tigre, tigre, tigre,


Máquina de algoz simetria,
Guerreiro de porte altivo e perspicaz,
Armas natas forjadas em grilhões de desespero,
E o coração é pedra de moinho.

...

44
E tem esse traço de brilho que me olha nos olhos;
Tem vez que sinto nariz com nariz;
Hálito no meu hálito.
Eu, presa do medo.

Fero domínio,
Em quais alcovas tu descansas?
Em quais ciprestes tu te escondes?
Diz-me a colina onde guardas os teus segredos,
Por qual mordaz semblante tu te tomas?

Quantos homens fiéis nasceram das tuas garras?


Com os corações já esfacelados a jorrar tua vitória,
Esmagaste-os, um a um com imensurável alegria,
Sentindo o gosto prensado por entre tuas gargalhadas.

Tigre, tigre, tigre,


Tuas espáduas exclamam
e intercalam-se sorrateiras,
Num movimento cúmplice e milimétrico,
E eis-me aqui empunhando a tua bandeira.

Tigre, tigre, tigre,


O teu natural disfarce,
Do teu sem igual compasso,
Lanças que afiadas esperam se fartar
Em músculos defraudados.

Tigre, tigre, tigre,


Minha alma que tu visitas,
No ocaso de inevitável destino,
Mistura-se por entre lágrimas variantes,
Que é desperta quando a tua calda flameja.

Eu, esse espelho, essa imagem...


Essa prata que me oxida pelos cantos,
Deflagra o que me traspassa e não termina,
Revela dentro de mim o que me derrota.

45
Lá ao longe, a rodear meu coração,
Tu, fero domínio, ao meu encontro,
Cavalgando pelo meu mar,
Caçando minhas angústias.

E nesse mistério em que me calho torto,


Revela-se a correr por entre mundos,
Anunciando de sobressalto a chegada,
Um bardo perdido cavalgando com tal fera.

E mesmo nesta hora que me dou por vencido,


Interrogo, ainda, no presságio do meu cárcere:
Quem vem lá se apoderar da minha dor?
Bardo perdido diz: Eu sou o amante.
Tigre domínio proclama: Eu sou o amor!

46
Tempo
perdido
Vejo.
O tempo arde em meu rosto,
Não há como retomar e refazer o meu passado,
Nem recuperar o que tanto procuro e já perdi tantas vezes.

Abro.
Quem sabe há alguma porta a qual eu tenha esquecido de ver,
E se lá, onde eu não sei, nem vi, estiver a juventude que perdi,
Por não ter experiência, nem sabedoria,
Eu hei de partir, sem saber quem estava ali.

Vejo.
Entre fendas os deslizes que palpo em minhas mãos,
Há de ter a história que ainda não vivi,
O cheiro em canto nas manhãs que nasce em teu jardim,
A essência que formula o meu novo corpo.

Mas a ardência do tempo é cruel, fria e distante;


A efervescência que eu antes tinha acordou de mim,
Hoje sou uma árvore velha, sem frutos e sem folhas,
Onde estão as minhas folhas? Que frio levou-as de mim?

A cada momento que olho minhas mãos vejo que perdi,


Não só o tempo, mas sim, também o meu sorriso.
Que sorriso? Não me lembro dele, -- nem como era o ter em mim,
Vejo em meu corpo estradas viscerais,
caminhos do ditador tempo.

Não me atrevo a desbravá-los novamente,


Já me atormentaram o bastante,
Nem os quais me deram prazer quero...

47
São muito efêmeros.
E os dias que demoravam a chegar,
hoje nem se despedem de mim.
De mim, de mim, de mim, somente eu, nada de tu ou vós.

Como pode assim viver a alma doendo no corpo?


Não há língua que o corpo fale que a alma entenda,
Na há gestos que a alma expresse que o corpo compreenda.
E vivo assim a amainar a nervosidade dos dois,
Entre duas divisões frementes de mim.

O corpo já sabe de cor a dor,


Onde ela começa e se finda,
Quando exaurido pelo tempo, total e moribundo,
Saberá aonde ir, sem partir, só fluir para chegar.

E fico aqui bicolor, entre o roxo e o preto,


A passar por entre mãos, como um níquel sem rosto,
Um barco furado a presenciar o seu próprio naufrágio,
Que vê lentamente, gota a gota, o desespero do passo a passo.

Termino.
Hoje me resto e termino como um simples tronco...
Pensando ainda ser uma árvore,
Pensando que ainda dou frutos,
Pensando que os pássaros descansam nos meus galhos,
gorjeando,
Pensando que ainda tenho o viço de antes,
Vivendo das lembranças de quando eu tinha folhas nobres.

48
Sou Ela
Para a Sabrina.
Tem vez que escrevo poemas que é Ela escrevendo;
Tem vez que escuto músicas que é Ela chorando;
Tem vez que escrevo poemas que sou eu mesmo,
Mas que poderia ser Ela. Uma infindável confusão
Que nem eu mesmo entendo, sinto-me Ela. Ela sou eu.

Às vezes, nem sempre, somente às vezes sou Ela,


Ela, eu entre nós, quase sentindo neste sentido sempre.

E neste sentido de sentir-se Ela, vou me encontrando,


Sou Ela, sou eu, e não mais saio daqui, de dentro de mim.
Sou fera, sou bicho solto, domesticado por tua paixão.
Sou tua jornada sem fim, e Tu, és meu fio de cetim.

Tem vez que Ela se transforma, e me escreve,


Recebo-a. Leio amando-a tantas vezes, em todas as vírgulas,
Em todos os parágrafos, em todas as estrofes do seu amor,
Todas as vezes que ela verseja, poderia ser sempre.
Por entre os seus devaneios caminho, a lhe fitar,
Tem vez também que por ser curioso,
mergulho em sua alma,
Navego por dentro do seu corpo,
entre a sua pele, seu coração.

Vejo pelos seus olhos, sinto seu gosto pela sua própria boca,
Sinto a sutileza do impacto no seu andar,
Por esses passos caminho levemente feito brisa ao mar,
E me desloco do meu canto,

49
Perdendo-me em seus pensamentos,
Nos versos dos seus quadris,
e quando isso acontece, me acho nas estrofes dos seus beijos,
deslizo na métrica do cheiro dos seus cabelos,
Amando-a nas estrofes dos seus seios,
Navego por entre o labirinto da sua alma,
E me respaldo no acalanto do seu colo. Meu balaústre.

Se nEla está meu eu, não me importo em me perder,


Contanto que me ache em seu corpo, amando seus olhos.
Se Ela sou eu, colido invariavelmente em sua boca,
Numa suspiração involuntária,
De sonhos e sentidos confusos, frementes, lascivos,
Dardos de desejos, brasa a queimar na pele.

E no intervalo desta minha exasperada transfusão,


No seu corpo escrevo minhas palavras,
Para que sempre e tanto eu possa voltar,
E lê-la será minha pertinente rotina,
Sempre prazerosa, sem comedimento.

Poemas e poemas fixos, outros a desbravar,


Navegando por entre Ela,
Outros perdidos, – E gostam disso –;
Não mais que isso, gera-se mais e mais poemas.

Se Ela sou eu, nos meus próprios versos sou crivo


Onde escoam agrados e carinhos verdadeiros,
Que brotam dela.
Se Ela sou eu, vejo as cores da aurora,
Sem meu cinza absoluto, sem a noite solitária dos poetas.

Sem Ela em mim, sou um pecador pertinente,


A rezar de joelhos a prece de versos cravos em seu corpo,
Findando-me numa linha de traços solutos, confusos,
Mas sabendo que só nEla é que eu me encontro.

50
Se não sou Ela, nem Ela eu, mato-me, transformando-me
num espectro, deslizando por sobre o seu corpo-mapa
como uma amálgama fria.

Se não sou Ela, transformo-me em uma essência sólida,


Híbrida, difusa, um talho em mármore sem viço.

Nela escrevo meus versos, e assim ela se transcreve,


Quando posso, releio-a, sempre que posso,
e tanto mais que quero,
Gravo meus dedos nela, como a rasurar um palimpsesto
agravado por inúmeras vezes que eu mesmo registrei,
Entre versos que se perdem, entre versos que me formam.

E num solilóquio pungente, de asas brancas ao vento,


Um tanto em desequilíbrio, por vários tempos tosadas,
Agora aprende a desenvolver-se, voando sem vento,
Voando, voando, voando... Assim nos entendemos.

Se Ela sou eu, sinto seus desejos,


Se Ela sou eu, calo-me em seus beijos,
Se Ela sou eu, não sou musa nem poeta,
Não sou admirador nem admirada,
Sou um simples soar de sorrisos ao meio dia.

Se Ela sou eu, sou sol a pino, estrela da manhã,


Colisão de astros, tempero de harmonia,
Se Ela sou eu, torno mar revolto apaixonado,
Sou embriagado pássaro de quatro asas.

51
Negue-me
De ti, não tenho nada que me valha um pouco,
Nem deste teu novo olhar que eu já o sabia.
O sol foram tantas vezes que o fraldei,
Para que este olhar desviado, sozinho brilhasse.

E me negastes um sorriso, novamente me negastes, um sorriso


Que de leve poderia a dor em meu peito atenuar.
E meu coração singelo e sem presunção alguma
Tornou-se presa fácil como a uma janela aberta
à mercê da multidão.

Deste olhar que me negastes, deste olhar fino e profundo,


Deste olhar que a dor meu peito não entende,
Triste amor meiado vingou, porém rechaçado,
Ilhou-se por entre sobreviventes do sol, nos juncos.

Triste lamento, triste:

“Não só de viver sozinho é o que se espera”.

Por entre as razões que dormem,


Só, de viver querendo,
Por entre os corredores de florais,
Sem poder tocar, uma sequer rosa de veludo.

52
Ando, sem rebuço, querendo viver do peito abrasado,
Sonhando a beijar os lábios que nunca me quiseram.
E esta dor é um vinco no papel,
De um alguém, que nem sequer abriu o bilhete para o ler.

Para esta dor eu preciso gritar,


Mas ela não me escuta: – é surda –
Não me escuta!

É como se eu estivesse no vácuo, no espaço sideral,


Onde o som não se propaga, à beira de um buraco negro
Onde se excede a velocidade da luz, mas perde para minha
Estranheza, diante do testemunho de milhões de astros.

_Insensatos!
O complexo desta dor não está no sentir,
Está no saber.
Não está ela somente no corte e na ruptura dos tecidos,
A dor não está nem no sangrar aberto das minhas veias,
A dor que me consome, está no meu ver.

E esta dor somente eu a entendo, sinto, me compadeço,


Pois dela sei que em parte está: – Surtindo efeito;
E esta dor vem, e quando me vê, surta!

Ela me maltrata. E eu? – Eu a relato, à minha teogonia.

Às vezes, no espelho a dor fala-me numa jura secreta,


No franzir das minhas impiedosas rugas,
Do tempo que não me deparei passar...
Agora, muito mais árduo, sem o ar do teu sorriso.

53
Eu sei
hoje em dia
Faço refaço palavras sem rumo
Com regras impróprias com pouco pudor
Não sigo uma linha amasso o papel
Talvez o coração disperse esta dor.

O breve pode durar para sempre...

Sou lacônica pedra perdida


Sem cria de limo a rolar pelo chão.

Escrevo não sei se palavras cansadas puídas


Sou frases sórdidas perdidas desvalidas
Rimas, e sei da poeira de todos os teus passos
Que ignora meu lirismo morto de hoje sem saída.

Sou pedra perdida de lirismo morto.

Cansei ser silêncio não sei nem porquê


Sou versos num grito
de velhos velórios afônicos
destoados na multidão a viver.

Uma hecatombe silenciosa em mim mesmo


[que implode
Que sai
Que cai
Feito pena sem barulho a bater pelo chão
[que cansa.
Cansei em algum dia,
não sei qual o dia
Que a cor da minha roupa

54
preteou
o jeito que sou
[se sou.

Cansei da canção
que não envolve meus medos
Cansei da harmonia
de meu andar contramão.

Sou pedra perdida


Caída
Vencida
Puída
Rendida
A perder meu granito

Morrer sem quinhão.

Dos meus ais


Teus mais
Não sei do meu risco
Não conheço o meu chão
Perdi a harmonia
da tua canção.

Pensei na tua hora


Na hora do adeus
Sorvi minhas lágrimas
[foi duro
Perdi o meu chão
Chorei como Orfeu
[no escuro.

Há vida lá fora
Há dias sem fim
Resguardei-me
Degradando tuas pistas
Tuas falsas verdades.

55
Sou pedra perdida
Jogada do muro
Tristesse rendida
Um fio no escuro.

Eu sou uma metade, derradeira e sobreira


E se fui algum dia
Tormento de alguém
Não tenho mais nada que um reles cigarro.

Não tenho mais nada, nem eira nem beira


Nem terra batida
E das minhas saudades, ganhei teu escarro.

A menina que dorme


No quarto ao lado
Um mundo que esqueço
Irrecuperado.

Se eu falo atrapalho não condiz


E sei do teu pífio opróbrio
Que o teu amor bem se quis
Do meu não saber
E dele o dizer não foi tão notório.

Vestiste de santa e queres morrer-me!

E a velha canseira
O espírito que dorme
Por cima de arrulhos
Minha alma trancada
Cresci sempre assim.

No leito me deito
Sou pedra perdida
Poema sem efeito
Depois que escrevo:
Morri!

Não volto sem medo

56
Não volto, porque assim não me quis
Não volto não acho não volto
São portas de sonhos
Eu sei do que diz.

Escrevo com sangue do pulso escorrendo


Batendo no peito o punho cerrado
Disfarço meus medos, se ainda há tempo
Exijo proponho de ti um legado.

Não tenho mais tempo,


Trinta e um anos!
Lanço-os à sorte em uma jangada...
Nestes parcos e serenos anos
Passaram-se as vidas setenta vezes
[sete
Quais tantas se ainda tenho se queres te dou.

Mato-me no ato
Do traço perfeito
Porém me refaço
Eu sei do teu jeito.

Do escombro sou pedra perdida


Um pouco do troco
Restou do teu gosto bandida
Um resto entornado dum louco.

Não sei nem ao menos


Se em alguma lembrança
Farei meus poemas
Contigo esperança.

Sou pedra perdida


Que rola sem limo
Na água rasante
Retém meus respingos.

O breve é para sempre...

57
Sou pedra perdida enfim sou:
[anseio
Restei-me em raspas das paredes
que cobriam teus medos.

E por tu, mera santa


Sou pedra perdida
Que atiras à frente.

Sou pedra perdida


Sem limo...
Múrmuro
Roleio.

58
Usura
Renitente
Eu não me conformei com os caminhos,
Então me entreguei aos atalhos;
Deparei-me com as escadas, tão íngremes
Que me falavam de ser fraco e impossibilitado.

Nas ruas, onde eu achava uma moedinha aqui,


Outra ali acolá, bem no meio da estrada,
Colocava-as nos bolsos, que se fartavam e regurgitavam-nas,
Tantos preços e não me sobrava um valor rentável.

Nas ruas de sentido único,


Onde os carros dormiam andando, sem prumo,
Onde haviam motoristas inertes, exacerbadamente vis,
Sem notoriedade alguma.

Entre eles, eu era apenas um passageiro sem nome,


Um número sem enleio, fumaça leve;
Um contemplativo véu que próprio se obstrui,
Desestabilizando-se por completo.

Andava, passo a passo, moroso,


Garoando nas ruas de Curitiba,
Como a uma pluma molhada que insiste em planar,
Acreditando que o sol virá pela manhã
Reformar-lhe o viço, esperanças de voar,
Mas em que vento?
Se não havia espaço vazio, nem campo.

59
O hálito do último vinho tinha o gosto de um nome,
Entre o ar sonâmbulo do Largo, onde o cavalo me encarava,
Forçando um ressolhar da boca maldizente,
Querendo me dizer algo
com os seus olhos vazios e sombrios.
Se a outra metade do seu corpo existisse...

Cavalgaríamos pelas noites e afins de Curitiba,


Um cavalo de chumbo e um poeta de papel,
Ele, cheio de versos súbitos troteados, enclausurados,
Avante! Avante!

A noite é nossa e a madrugada é dos poetas,


Cavalo que chora, avante!
Com o teu porte altivo e austero,
Avante! Avante!
Que a poesia não se findou... ainda.

Sentado tantas vezes no banco, eu acordava


Com o rechiar da água a cair da boca do cavalo,
O cigarro queimando os dedos, de soslaio o via ali,
A cascata de sua boca, ele uma metade,
Mesmo assim ainda era de chumbo, e o poeta de papel.

Descia, imaginando se em vez de água fosse vinho


A jorrar da sua boca, preciosa rubra divina;
E se caísse dos olhos?

Um cavalo só metade, assim como o poeta de papel,


No caminhar pela ladeira, cabisbaixo penoso,
Eu não era herói e nem ele falava inglês,
Combinávamos apenas o andar com o trote,

Contando as pedras cinza do Largo,


Pesadas e da cor de chumbo,
Ornando com a minha Curitiba,
Assim como o cavalo de cachoeira na boca,
Assim como a cor dos meus dois olhos esquerdos.

60
Antes, o perfume furtivo das flores silvestres do relógio,
Que impregnavam a madrugada
com o cheiro de paixão etérea,
Assombrava a relva esquecida num Largo desamparado,
Nas horas que não marcavam e não me diziam nada.

Hoje, ainda ando, garoando fino e persistente,


Como uma encharcada garoa lesa,
Porém o que cai da minha totalidade não refresca,
Mas enfim, água ácida, vezes gosto salobro.

O impar se compadece e faz a quem precisa companhia.


Outros dias, a alusão de sentir-me sozinho,
Não mais era um fardo,
E sim um furtivo momento de complacência.

Vi e aprendi que às vezes, ser só eu é melhor,


Não há forte compromisso,
Não há erros a serem reparados,
Aprendi assim ser o primeiro de mim mesmo.

Durante isso, sempre no fim das horas,


Quando o sol se importa um pouco comigo,
Alegra-me em absorver na pele,
O orvalhado cheiro chumbo declinado do Largo da Ordem.

Mas e o meu caminho? Continua daqui!


No monte dos castanheiros,
Onde o chão é parco e sem viço,
Inútil descanso por sobre as folhas sem sorrisos.

A terra. Eu a via de longe,


Daqui de onde o fim se esconde,
Onde a maravilha da natureza é absorta,
Desvencilhada de toda a furta politizada demagogia.

61
A terra brilha sob a lua fátua,
Seduzindo meus dois olhos esquerdos,
Ainda persisto, resvalando-me dos meus sonhos,
Que ficaram somente em meus medos,
Em estado rotativo, numa alforra que me consome.

Mas prefiro somente a esta terra em que irei morar,


Sem que ninguém me perturbe, nem me tolere,
E dos que fui algum dia, lembrado serei em versos vagos,
E longe eu vou estar,
Mesmo que sendo apenas a sete palmos do chão.

62
Antagônico
No arco do teu silêncio cravei o meu peito,
Sedento do teu corpo. Meus laços de beijos
Passam na vida sem mais te ver, por causa de um adeus
Que não me esquece.

Por sobre as lembranças que ainda tenho:


Vagas.
Por sobre o concreto que manejo
Para ocultar meu amor por ti:
Vagas.

Percebes?
O quanto mais eu tenho que te falar,
O quanto mais eu tenho que sofrer,
Tantas vezes mais eu tenho de morrer.

É em vão o ato. O fato da sentença que me marca,


Desajeitado, conto as pedras do caminho,
Da trilha que me foi sentenciada,
A escutar o clamor carrasco do tempo que não volta.

É simples a saudade matar meu eu,


Sem ti sempre fui só, sem ti sempre fui eu,
Um cerne de uma árvore que só aflora quando choras,
É quando brota uma flor perdida e insatisfeita.

Percebes?

Vou viajar por sobre as águas, rumar nos ventos,


Fugir da chama intrínseca, instransponível e imaculada
Do teu cheiro de flor de laranjeira,
Da tua mágoa que habita nas águas escuras,
Do poço dos teus ressentimentos.

63
Vivo um viajante pássaro de asas cansadas,
Assobiando por entre as árvores,
Pousando em ninhos inacabados,
A dar psiu para as flores,
E nenhuma me responde.

Um canto solo;
Um vôo sem rumo;
Um pouso desconsertado...
Um desconforto de esquerda.

Percebes?

64
Abreviação
Insone...
O canto que me ciranda e me enternece a alma,
Vagueia pelo meu sangue.
Canto porque há vida aqui em mim,
Que ainda persevera e resiste.

O coração fraco ainda gorjeia,


E nos meus punhos ainda tremula,
O pulso símil a uma dose de soro nas veias.

Um velho centro de um moço,


Águas turvas, marolando...
Uma vida que precede uma voz,
Como a um navio a se aproximar para aportar,
E que por entre uma névoa branca e densa, nunca chega.

Uma vida que planejei e sonhei,


Um sonho que se findou, soprado ao vento,
Esvai-se gota a gota como o gelo lento ao sol de setembro,
Perjurando a aurora que precede a sólida madrugada.

Quanto mais tardo, ardo, o fim não se acaba,


Há de se agüentar sem a tua física presença,
Um assobio do vento que se escapa no silvo da janela,
A debruçar-se no farfalhar das folhas lânguidas.

E quando a hora se aproxima,


Mais curvas se mostram em minha jornada,
Enodadas de célebres esperanças sintetizadas,
Com palavras mancomunadas com o destino,
Entrelaçadas nos mistérios da minh’alma.

65
A maciez da
seda, a rigidez
do tempo
Se só eu sempre fui, ao só serei fiel.
Em ti, vivi momentos de intermináveis solilóquios;
Banhei-me na aspereza. Tu: meu vício, meu ópio,
Contigo o ardor do silêncio é prêmio de fel.

Sem ti, eu amanheço em sóis escarlates,


Perto, a noite fenece, e chora o mais triste vento,
Tu és a maciez da seda, a rigidez do tempo,
Um fino fio de coser, arquejado em meus instantes.

E dos teus olhos d’água que abarrotam sádicos anseios,


Chuva de mágoas marca-me tuas pegadas;
Insistes a se perder do peito que suplantaste teus devaneios.

E nesta jornada de contas que palpo teu corpo em preces,


Diz o coração: -- Quero-te perto...
Constata a razão: -- Tu não me mereces!

66
Perséfone
Quando a neblina desliza como a um tapete,
O âmbar quase que sólido do teu cheiro
Ciranda as minhas pernas,
Hora a estender-se, hora a retrair-se,
Tempos em tracejo, tempos em revés,
A extasiar-me em tuas curvas.

Fito a tua silhueta na sombra através da vela,


Quer inquietar-me pelos poros,
Quer suspirar-te em meus ouvidos,
Envolvendo-me em teus desejos.

Sinto o palor recostar-me à parede,


Tombo como um cerne cortado e velho,
O coração acelerado, sem tempo de respirar,
Estás enfim nas minhas veias.

Os meus olhos surgem cheios de intento,


Surtindo o efeito do vinho, te contemplo,
Invento um caminho por entre as tuas veredas,
Na garoa embriagada dos teus lascivos desejos.

Amo-te, tanto que nem sei como;


É como um rio que vaga em cálido curso,
Eu te amo tanto que me atordoa,
E atordoado na noite me dano.

Amo-te tanto, que por dentro recolho-me em sonhos


Epicuristas. Desgovernas a minha morada,
E um grito desumano desata-se em chuva,
Amo-te tanto, que me perco em teu juízo.

67
Amo-te tanto, tal qual uma semente libertina,
Filha dos horizontes e dos ventos,
Parte pagã, parte celeste, píncaro suicida;
Amo-te na medida desproporcional à matéria,
Sentindo gota a gota o morrer das horas em tuas pernas.

Amo-te: sem saber para onde eu vou, nem como fico;


Amo-te: na identidade híbrida dos nossos corpos;
Amo-te, queimando em ardente chama que não cessa;
Amo-te sendo servo absoluto. Um beijo em suplício.

Amo-te: com a minha alma a acumpliciar o teu corpo;


Amo-te, e teu desejo é o meu desejo sendo exorcizado,
E a tua voz rouca sai da minha boca transbordada,
E o teu desespero me exaspera uma suspiração rouca.

Amo-te, revelando-me em sete mil dores,


Entre sete mãos espalmadas,
Por sete preçes inacabadas,
Por sete mil vidas de ciclos incompletos,
E por sete mil beijos flagelados,
faz-me o drama!

Aninhando-me em teu corpo despetalado,


Amo-te. Revelando-me em castos sorrisos,
Amo-te. Consolidando-me em teu regaço nítido,
Amo-te. Então explodo em versos mil de amores.

Amo-te, perdendo-me entre os teus negros cabelos,


Amo-te, lendo-te com as pontas dos meus dedos,
Amo-te, embriagando-me nas tuas mãos,
Como a brisa a se enroscar nas folhagens melindradas.

Amo-te, enquanto o teu corpo inibido


Desliza por sobre as nuvens,
Amo-te a cada peça desvencilhada do teu quebra-cabeça,
Envolto em um círculo dum mar que nunca se acaba.

68
Velho
bandônion
Qual o tempo do cair de uma lágrima?
Quanto tempo é preciso para partir?
Qual o tempo do morrer da noite?
Quanto tempo o tempo leva para se extinguir?

Qual o tempo do cair de uma lágrima?


É o frio, a noite, a súbita razão da existência...
Vejo a tv pelo lado de fora através da janela,
A fumaça do cigarro que embassa o vidro.

Ainda encoberto, mesmo quando a fumaça se dissipa,


A sombra na parede à luz contra, fala em mim dos
Contornos que se devastaram;
E penso: qual o tempo do cair de uma lágrima?

A barba longa e áspera perpassa a sombra longe e fina,


Vejo fios passar a linha do meu rosto, inválido e pálido,
Impalpável, sonolento rio de águas profundas.
Incubro-me no viés da porta, que se fecha.

Sinto falta de poemas...


havia um tempo em que eu os sabia,
Eram forte presença a implorar direitos dentro de mim,
A me fazer sonhar em ser quem não sou.
Hoje, presente definitivo.
Uma chama fraca de azeite de fatigada lamparina.

Pego o caderno, hesito, tenho medo de não conseguir,


Abro-o pelo verso. Vejo versos, inúmeros inversos,
Uma folha, verso. Outra folha.
Verso no inverso do meu papel,
Verso no verso do caderno circuncidado, versosinversos...
Não quero perder estas idéias que fogem dos olhos.

69
Elas dançam no escuro, e meus olhos míopes atordoados,
Irritadando-as, vão-se embora, numa trama infecunda.

Uma folha, mais uma folha, outra folha,


Eclodindo um verso solitário, um menino delirante,
Embarcado de subjetividade intransigente.
Versos, tantos versos, Inversamentos versificantes,
Erros crassos.

Qual o tempo do cair de uma lágrima?


A escorrer pelo chão, sem rumo...
Decai-se em uma valsa crua, eterna,
Fecho a cortina... incomoda-me o ranger dos trilhos,
É madrugada e faz frio, aqui, dentro de mim.

Um pavoroso ressoar geado vai-me até a barba.


Conto os meus passos até a cama, como menino disperso,
Qual o tempo do cair de uma lágrima? – penso.
Meus passos são pesados como nunca antes
Houveram de ser. Sou pés-bigorna.

Versos deixaram de vir, deixaram de me querer,


Versos de inversos, da alma contíguos...
Versos que se arrastam por entre minada mente,
Tristonhos e demarcados como a um velho bandônion
solitário, depois do fim de um tango desesperado.

Apago a luz, fecho as cortinas.


Ante ao meu rosto o quarto volta a dormir.

70
Mandacaru
versificado
I
Queria ter o sol em mim, mas só tenho a noite.
Hoje, testemunhei o dia envelhecer,
E eu me pergunto,
Como é que eu fico?

Canso de ser disso, aquilo, nisso...


Sei o que é ser pó, ser junco,
Barragem à mingua,
Banhando-me nos tempos incertos.

Transbordo em várias águas,


Acima de paradigmas,
E vejo um poeta, descubro um poeta,
Um coração no cadafalso,
Conotativo amor desnudo e ensombreado.

II
Poeta de coração irrequieto,
A alma faminta dos cosmos,
Das plagas virgens sob o eclipse,
Das cores de amores viscerais,
Poeta de sombras multiplicadas,

71
Insatisfações redobradas,
Uma dúvida da vida. Ser água de infinitos cursos,
E que vai, que cai em córrego sem destino,
Ebulindo em torpor comprazido pela poesia,
Que se entorna no chão.

Ser homem não é acertar sempre,


É errar sempre, enquanto o poeta assiste,
A insatisfação crescida e garantida,
Perdido em cardumes de palavras,
Ser, tão logo existir, mas por que aceitar?

Ser poeta é ser disforme e leso pelas regras.


Surto de vidas passadas,
Muro de cimo tácito,
Uma manhã no tapete atrás da porta.

III
Hoje, o dia antes de mim envelheceu...
E eu me pergunto:
Como é que eu fico?
Provavelmente cerceando a noite.

Depois de testemunhar o nascer


de cristais trincados,
Que se moldaram em versos tristes,
Versos de Van Gogh,
Em transe,
E logo feneço,
E cerro-me neles.

72
IV
Dentro do poeta há um canto,
Em desespero, retumbar da contramão,
Sempre em cacos. Navio no fundo do mar.
Não se sabe em que forma,
Do que se forma e irá chegar,
Quem dirá em qual sorte se aventura,
Em que veias perdidas perambula e irá brotar.

Deve ser um cepo ressecado,


Petrificado, feio e sem regaço,
Por vezes forte e teimoso,
Intrépido reluzente.

Mandacaru versificado.

Por vezes, fino lento inválido,


Bobeando bebendo a tempestade,
Vezes, imperceptível como o sereno,
Que banha a noite dos desapercebidos.

Mandrágora do campo de batalha.

V
Poeta uma maneira de ser, sem ser.
Escutando vozes em si mesmo,
Na conversa de vários personagens,
De um só lado, uma tormenta,
Batendo e rebatendo em uma só margem.

Uma maneira de estar, sem permanecer,


Uma maneira de chover se estiando,
Uma maneira de tropear se silenciando,
Uma maneira de aceitar ser sozinho.

73
Hoje, quando acordei o dia já havia envelhecido,
E eu me pergunto:
Como é que eu fico?

Balbucia-me o vento, de que tempos havia de


lindo sol imperar absoluto nas relvas úmidas e verdejantes,
Um reino de sonhos, intrépidos meninos a escalar
Montanhas, serrados, corridos rios...

VI
A punção na agonia lesa.

Alma casada com a própria sombra,


Lida por entre os próprios dedos,
Escondida entre as lentes vítreas turvas de si,
Entre a prensa das regras draconianas da própria sina,

Que se enrosca e se refugia no ímpeto dos postes,


Das ruas que nascem em lugar algum,
Cavalgando pela síntese das lacunas versais,
Emitindo díspares pensamentos,
De que a vida pode esperar.

Uma maneira de inventar-se aos poucos,


Uma maneira de deslocar-se sem ser notado,
Uma maneira de ser triste sem sentir culpa,
Uma maneira de chorar sempre sorrindo.

Se o dia novamente envelhecer,


Como é que eu fico?

Depus a máscara,
E volto à vida.

74
Na ordem
transversa
das coisas
A manhã atordoa a noite.

Enquanto a lua antes nasce do sol,


Ao nascer do dia, o homem se desencontra.
À manhã, acalentam-se os catres.
Os cimos escondem a brisa dos arvoredos.

Sem.
O teu amor é um roseiral de espinhos
Afinados e atentos,
A água que evita a sede,
A fome que regurgita o que saciaria,
No mar, velho lobo que se adentra no nada...
Turva-se no cineral de um pobre dia.

Na ordem transversa das coisas,


O que nasceria morre;
Do que se viveria, parte;
O que se teria, sofre;
Ao que sozinho ama... sorte.

Mãos síncopes
Tremulam incontentes,
É próprio que se fecham,
Abraçando a ardil ausência.

75
O tempo se demora,
Ao revés do salto dos teus lábios,
A flor que nata é bela,
Murcha, entre o brotar e a secura.

Assim é o amor que vive a te sombrear,


Galgando nas paredes frias do teu corpo,
Teus passos em circunlóquios,
E quem dirá à ausência, nada adianta,
As adjacentes manhãs do teu jasmim.
Oh bela!
Oh bela! Que só destrata e oculta!

Sem ti tudo é tão real e lerdo,


Como o suor de um sonho distorcido,
Nobreza sem linho,
Algodoal purpúreo.

Sinceramente?
Viver sem ti, o teu amor a me nutrir,
São os olhos a verem somente a si mesmos,
A solidão a sentir o castigo da própria voz.

76
Musa
Foi nas espumas do mar que tu nasceste,
Leve, instantânea rosa branca em harmonia
Com os tempos, com os ventos, as sinagogas.
Sóis nascem virgens e são teus seios.

Os horizontes te contemplam,
Os dias se atrasam, as noites se esbaldam,
Semideuses em teu nome pregam palavras de desejo;
Por ti, deusa silvestre, sorte da minha vida,
Espectros desejam encarnar novamente.

Em tu, impera a perfeição,


Como contornos esculpidos em mármore fino.
Teu corpo é denso e misterioso labirinto de Creta,
Onde Teseu enfeitiçado na eternidade desejaria ficar,
Escravo da tua visão feiticeira, teu brilho inebriante.

Porque é uma tentação a cascata de estrelas


Que caem dos teus cabelos atemporais,
E a lua ao longe enciumada ao ver-te passar,
Corpo lânguido ao vento,
Trava batalhas de brilhos incomparáveis,
Por entre as cordilheiras das curvas do teu corpo.

Eu te assisto e te admiro daqui, ninfa das primaveras,


Como o marinheiro em deriva a fitar o lampejo do farol,
Imerso num mar negro, nebuloso e revoluto.
Sereia contra o vento,

É dos teus cantos que sai


O frescor das manhãs de inverno,
E o rubor que da tua linda face me atropela,
Roubaste sei que das maçãs serranas.

77
És o anjo bendito que em poder
numa das mãos tem o meu julgo,
E noutra, espada flamejante que cravaste em meu peito,
Cego de amor sou prisioneiro dos teus astutos redemoinhos,
E vivo a roubar tua imagem para os meus olhos alimentar.

Eu renasço para ti, sempre, dia-a-dia,


Beijo em sonho a tua boca, e assim me alimento,
No frescor do teu suspiro recomponho-me,
E nas veredas da tua existência ressuscito.

Como me desfazer de ti, se minhas forças galgam


Caminhos que me levam a lampejos de esperanças,
De trilhar contigo inacabáveis desejos de amores,
Em gondoleiros que se põem em tardes despertas.

Eu quero, necessito,
Na sombra da tua árvore descansar,
E nas ventanias intransponíveis do teu andar,
Que me traspassa sem dó nem piedade,
Morrer, ...a alma presa,
Feito barco que quer naufragar.

78
Eu te amei,
tu foste minha
Eu te amei, tu me amaste, tu foste minha, eu fui teu.
Eu me entreguei,
como quem caminha na beira das falésias de Sorrento,
de olhos vendados, ébrio, desatento. Manso te galguei,
Eu te amei. Tu foste minha, nada mais eu sei.

Eu te amei como a lua ser mais intensa que a noite,


Eu te avistava e admirava, logo te desejava,
penso que foste minha...
Mas por entre os teus olhos turvos feito dois aquários cheios
de amônia,
A tua alma não sabe se me amou, nem se assim teu corpo
foi inteiro meu.

Mas verdadeiramente, meu corpo e minha alma


Naquele momento, foram somente teus,
Eu me alimentei de teus olhares lúgubres e melancólicos,
Eu me aventurei por entre as veredas da tua espádua nua,
Rezei a prece desdita que ressoava em teu pagão balbucio.

Eu te amei, é verdade, com o clamor de um mar revolto,


Eu te amei, assim só eu sei, sem reconhecer-me em mim,
Caminhando a tocar as papoulas por entre o trigal do teu
corpo dourado,
Eu te amei, e foste minha, mas também não sei se te sonhei,
Em mim, depois eu te amei, mais uma vez profundamente
em silêncio,
Depois descansei, como um milenar vulcão adormecido.

79
É fato que passaste em minha vida como uma estrela,
Que risca os céus em noite límpida de verão em Capri,
E eu te guardei aqui, por que te amei, e tu foste minha.

Eu te amei, tu foste minha, na ordem variável das coisas, eu sei,


Não me importa quando, em que século, de que forma,
Eu te amei, verdadeiramente te amei e foste minha, ressalvo.

Antes de amar-te, esqueci-me dos teus beijos,


E a minha boca se vencia nas linhas dos teus lábios
indissolutos,
E no teu corpo, uma tarde de primavera onde os sinos dobram,
As minhas mãos segregadas
cheias do teu cheiro partiram marcadas.

Como convêm, ao longe, o amante acena ao amor que parte,


No coração, em prantos com pouca força ainda afirmo:
Eu te amei, tu me amaste, eu fui teu e tu foste minha!

Em resposta, a tua boca ao longe, balbucia-me


desordenadamente,
Ainda como fachos de lampejo leio em teus lábios,
Coisas que nem sei o quê, indiscerníveis,
Como o rechiar das ondas ao vento na matina bravia,
Tu, ao longe.
Eu, nada escuto, nada escuto...

80
Charneca
em flor
Teus olhos, cisnes puros!
Nascente de águas escuras,
Turmalina negra,
Síndrome da minha convalescença.
Se te vejo, e teu olhar fito,
É a sensação de estar rente a um despenhadeiro.

Já nem sei mais lidar com o ar rarefeito,


E o corpo trêmulo, meu Deus, meu Deus,
Por que me deixaste tornar-me prisioneiro?
Como apenas uma mulher é capaz de tal feito?
Teus olhos, arma lenta e tênue, cegam-me os meus.

Mas teus olhos esgueiram-se de mim,


Inocente, os meus... – Ausentes da liberdade!
Enquanto num desejo mágico e fremente,
Ama-te amiúde, num suplício de Tântalo.

Teus olhos, pequenos seres angelicais,


Flor de perfume quente, marcante,
Esbarram-se nos meus,
Num sorriso terno e simpático.

Ei-lo assim:
O qual eu não quero,
No qual eu sofro,
Pelo qual eu ardo,
Pelo tal eu morro.

81
Teus olhos são uma noite de verão sem vento,
A qual me dopa.
Teus olhos enfeitiçam-me feito âmbar vespertino,
E vem do teu corpo uma graça pousada,
Uma ópera para o deleite da minh’alma.

A vociferação dos perfeitos ventos sulinos,


Que se transformam em odes e cantatas,
Quando se engraçam e bailam dentre os teus cabelos,
Em sincronia com a tua boca repleta de orvalho.

Meu deleite mais poético:


Teus olhos.
E se assim os teus encantos fossem meus,
É doído dizer que já não mais eu te queria,
Porque assim em meu ser tudo estaria terminado,
Seria enfim o acúmulo da fé dos desesperançados.

Miras, eu sei,
Quando assim o faz por curiosidade,
Absorta no desacaso, ao tempo, ao teu vagar,
Ou se de vontade que não se alimenta,
Passas lento, beleza a afogar meus olhos.
Teus olhos, duas portas de um santo templo.

Miras, eu sei,
E nestes lampejos entre trocas de nossos olhares,
Minha vontade do que não se pode ter sido,
Alimenta-se dos faróis do teu corpo.

O olhar um no outro:
Um, o amor antes de ser feto, morto,
Peças do atraso.
O outro, musa graciosa, uma sensível nuvem,
Perfeição rarefeita de traços incontáveis,
Linda, caminhando por sobre os astros.

82
Relicário
Ante aos meus olhos iconoclastas,
Acendeu-se a chama.
Dize, dize o que eu faço agora?
E mais e bem, de repente, surge como uma lança,
A serenidade lacônica dos teus olhos.

Somente o que eu lembro,


É de até hoje, minha alma presa,
Por tuas palavras de amor mornas e lentas,
De um olhar que não mais brilha,
E quanto a mim, eu, por final nunca amado.

E dos lábios frêmitos, fez-se o drama,


Das mãos que entoaram sinfonias de carinhos,
Cerram-se dois caminhos.
Dize, dize para mim, por que assim?
Por que esse engodo?
Se não me percebes mais por inteiro?

Este perfume à natureza,


Numa forma de mulher, cheia de trejeitos,
Amar-te era como flutuar nas procelas,
Em febre lestada.

Eu morro ontem, e renasço amanhã,


Sobre a cama desvanecida.

Tu és a minha agonia presa,


Senhora e tutora de todos os beijos
Que nunca haverei de dar,
És o tremer de toda a nudez inconformada,

83
És detentora de todos os laços indubitáveis
de minhas memórias,
És a que transforma todos os meus desejos em abandono...
Tu és uma ponte sobre o sol,
De olhos sujos de um amanhã que nunca morre,
Raiando na palma da minha mão, quente,
Lascivamente quente.
Tu és o fim trágico de todas as histórias de amor.

Dê-me mais uma chance,


Deixe-me começar novamente,
Dar-te-ei uma pérola de presente,
Por tanto quanto és minha,
Quanto tanto és ausente.

E de repente, no mais que se faz presente,


Os erros suplicam os perdões,
O fracasso, uma nova chance,
E para o amor ferido, o tempo,
Somente o tempo, moroso e pertinente tempo,
Para me livrar dos pesarosos grilhões.

E de repente, não mais só que de repente,


Nossas bocas nunca se apartaram,
Porque não viveram,
Nossos olhos não se esqueceram,
Porque nunca se entreolharam,
Nossos corpos língua estrangeira falam,
Enquanto a lágrima toma posse do último estertor.

E de repente, não mais que de repente,


Vivo o hoje de mim sem (com) você,
Como uma fome repentina que não sacia,
Um choro com riso por primeiro,
Um riso de clamor e desespero.

84
Quando fala
mais alto
Eu não consigo dar forma à beleza que tu és,
Sei apenas que habitas no meu desejo de mulher.
Às vezes, te penso ser uma ninfa alada,
Que voa ignorando os homens, imune ao amor,
Planando por sobre a ventania dos meus suspiros.

Em outras, te vejo flutuar, brincando nos meus sonhos,


Meu anjo de quatro asas,
Ingênuo, de uma forma beleza nunca descrita,
Penso que tu não és um corpo, tu és só um sentimento.

Tu és tão real que me machuca o peito,


Dói, que posso esbarrar-me em ti, mas não te tocar;
Aliviaria-me se fostes apenas invenção da minha parte,
Letras inventadas do jardim da rósea flor,
Suspiros de sonhos inconstantes,
Uma romã que pende invadindo a minha poesia.

Ah, como dói!


Tu és de mim tão perto, que me machuca,
Tua carne me fere, teu sangue me lastima,
A tua fala é meu suplício,
A agonia numa bandeja de prata,
Como dói...

Dói tanto,
A dor da ilusão concretiza o que me prega enfermo,
Tão perto és que me flagelas,
Tu existes, sei... tanto é que dói em mim.

85
Tão perto que me machuca,
Teu cheiro que me alucina,
Tua boca é o meu anseio,
Incólume, o teu corpo é devaneio.

A dor da paixão é tão sofrida e injusta...


Não se respira sem que não sangre,
Nem que se pense sem que se consuma,
A alma ardente dói, borbulha,
Tifo sem cura. Larva de pendores.
Um breu algoz nas docas de minh’alma.

Dói, tanto amor que não morre,


Dói, desejo cheio de pulso desesperado,
Dói, complacência que se revolta em mim,
Dói, por tanto é peito despedaçado.

Quisera eu poder te aprisionar


Por entre os meus versos,
Tu reinarias, rainha absoluta dos meus vales e reinos,
Tu serias dona absoluta do meu mundo de palavras,
Porque tu és a minha própria palavra.

Tu és o que o poeta tem por sina e sentença,


Um coração desesperançado, desacreditado,
Dentro de um armário embutido e escuro,
Numa casa sem paredes, mas cheia de portas.

Poderias viver dentro dos meus versos,


Todas as manhãs o sol beijaria o teu rosto,
E as flores com seus néctares te alimentariam,
Eu viria disfarçado num céu azul para te admirar,
Ordenaria os girassóis te reverenciarem,
Enquanto as estrelas te banhariam à tarde.

86
Por entre os meus versos te faria mais minha,
Pois quando te escrevo é quando és minha,
E tu caminharias por sobre os horizontes,
Abençoada pelo crepúsculo.

A lua pousaria por sobre os teus cabelos,


Num brilho eterno e majestoso,
E o sol dormiria no teu regaço,
E cada flor teria o gosto dos teus beijos,
Enquanto rouxinóis cantariam na eternidade,
Ela é linda! Ela é linda!
O resplandecer que seduz!

Tu, lúgubre ao luar,


No teu corpo eu escreveria,
Eu o cobriria feito tatuagem com versos de amor,
E te leria a cada instante,
Traço por traço, linha por linha,
Beijo por sobre beijos,
Vou-te de capa à contracapa,
Eu, terra de lua minguante.

Eu quisera poder te aprisionar nos meus versos,


Assim, eu viveria mais tu,
Desvestindo a carne, compactuando a alma,
E essa ponte que nos separa,
E esse mar que me afoga,
Uma sede que não se exaure,
Fome alucinógena, mater-angústia,

Testemunharia um amor que nunca se acaba,


Porém não se completa,
Porque o universo é o início de tudo o que nos separa,
E mesmo que haja você sem mim,
Eu nunca haverei de existir sem você.

87
Charneca
em flor II
Miras, eu sei...
Com estes teus olhos feito dois círios atordoados,
Eu vou mais alto, -- quando me olhas.
Mais alto, um pouco mais, vai ser meu fim, mais alto,
-- Eu quero morrer de olhar-te.

Miras, eu sei.
Qual é a curiosidade que te toma?
Pensas: Que homem mais sem forma,
Não há gracejo em sua face,
Há um descaso da natureza que o engloba.

Pois eu, cavalheiro sem expressão alguma,


Plácido no porte, armadura e face opaca,
Pensa em tuas demasiadas virtudes,
Como ela é linda! Ela é tão linda!
E morreria por tua beleza.

Teus olhos lindos e absortos,


Um céu dentro de um lago,
Meu peito marejante e aflito,
Cárcere privado.

88
do impossível
Eu vim de tão longe somente para te amar,
Vim de onde os cisnes dançam tua memória,
Vim de onde os rouxinóis cantam tua história,
Eu vim de longe só para te admirar.

Eu vim dos sítios das selvagens orquídeas,


Onde tu, mulher, delas é o supremo ser;
Eu vim de onde o amor se faz você,
Caminhei na noite onde em teu nome tilintam as estrelas.

Eu vim para testificar o teu sorriso.


Árduo trabalho, num gesto louco de bravura,
Roubar-te um beijo, morrer depois se preciso.

Puro desdém. Amar-me jamais tu poderias,


Meu coração uma inocência pura,
Pobre tolo que sou,
Vivo a contar tua ausência em meus dias.

89
Lírio alvo
Tentando te esquecer, pintei o teu rosto em preto,
Como o breu que tende a engolir a noite.
Em reluta, o amor que se fez parte de mim,
Vence-me a cada instante que esperneio.

A tua imagem que não consigo esquecer,


Sou miserável ante os teus encantos,
Os teus contornos que refletem tuas armas,
E expandem em raios o teu ser,
Ante ao sol faz-se um fraco carmim.

Teu corpo é base de uma aquarela de cores,


Fonte de mel. Os nenúfares de Monet.
Cores que de ti se alimentam, se transmutam,
Espargem e formam meu universo, e encantam-me
Como o oboé que reina na sinfonia de Strauss.

O teu rosto gravado nas manhãs serenas,


É como um lírio cândido ao vento,
Um crepe de seda, a tez do pêssego;
Sabor de tâmaras, tua pele.

Teus olhos caídos, lorde que resiste às horas,


Vence-me sobre as letras pelas quais eu te aprecio,
Pois todas as minhas letras são tuas prisioneiras,
Alimentam-se de você, necessitam de você,
Em variáveis círculos.

Você de mim sempre se esquiva,


Em espiral, nobre, pura e absoluta,
Caminhando imponente no horizonte,
Feito uma gôndola de ponta de bronze,
Tu és uma ladra! Roubas o meu ar.

90
E quando eu penso em você,
Mãos dadas a caminhar na areia,
O mar a testemunhar,
Algo imprevisível a se formar,
Mas não consigo dizer,
Mal eu consigo pensar.

Pobre de mim, poeta pequeno que sou.

Deixa-me poder ver-te por entre os lençóis,


Mesmo sem poder te tocar,
Nutrir-me da seiva deste lírio alvo
Que é você, menina dos meus poemas.

Daria o meu sangue para velar teu sono,


Meus sonhos para acabar teus medos,
Meu silêncio para guardar teu rosto,
Minha vida para satisfazer teus desejos.

Pequeno lírio alvo,


A eternidade da minha alma para te ver acordar,
Teus beijos de rósea boca voraz para eu morrer,
Tua pele para me cobrir, me acalentar,
Teu amor para eu me perder.

91
Por sobre
a terra, na
imensidão
do universo
Amo-te tanto meu amor,
Que nem sei como,
Amo-te. Mas desse total valor não se escreve,
Nem uma linha se mede, sente-se apenas,
Em imensidão e desespero.

Amo-te tanto, meu amor,


Que por assim ser não deveria guardá-lo,
Pois o peito enternecido e deslumbrado,
Tamanho seu esplendor pode não suportá-lo.

Amo-te tanto, tanto!


Amo-te como no corpo as veias ao sangue,
Amo-te como o barco ama as marolas,
Amo-te como o pensamento ao vento.

Amo-te! Profiro sem medo, amo, amo, amo,


muito, eu amo. Imensas vezes, sem temer eu amo,
É tanto que hei de me consumar feito um vassalo;
Em desordem celeste, ciente calvário.

Amo-te como as pedras ao cursivo rio,


Amo-te mais que o sol ama lua,
Amo-te como a pele ao perfume,
Como o coração aos olhos,
Apaixonadamente, em incessante entrega,
Somando-te em todo o meu ser.

92
Amo-te com cada partícula do meu corpo,
Por cada átomo de minha existência que habitas,
Amo-te com cada molécula por ti enfeitiçada,
Que em memória me sussurram e em teu nome, frutifico.

Amo-te como a brisa às manhãs de inverno,


Amo-te como a maltratada rosa que ainda assim,
Sonha casar com o desgostoso cravo,
Amo-te tanto que não se pode contar e medir,
Assim como as folhas que caem no outono selvagerio.

Amo-te tanto, e isso dói e ao mesmo tempo me seda.


Como as estrelas apaixonadas que pintam a noite,
Amo-te veementemente, por sobre o meu próprio corpo,
Além de minhas mãos e olhos, amo-te;
Amo-te com o ofício de um sacerdócio indubitável.

Amo-te tanto, tanto!


Mas por assim tanto te amar,
E este ser perfeito que se formou dentro de mim,
Inspira tanta poesia,

Numa imensa e quântica verdade, Amo-te!


Amo-te tanto que aos teus pés, os astros
E a Via-láctea se prostram ínfimos,
É tanto, tanto, que ao certo assim e por completo,
Amar-te e continuar a viver eu não poderia!

93
do inacessível
II
Amo-te a cada dia, sete vezes mais quanto se expande,
Amo-te a cada suspiro que envolve a tua boca,
Amo-te como as montanhas ao crepúsculo,
Amo-te como no corpo, as veias ao sangue.

Amo-te amor, como as pedras ao cursivo rio,


Amo-te mais do que o sol ama a lua,
Amo-te com cada partícula, cada átomo desesperado,
Com cada molécula minha que sussurra o teu nome.

Amo-te tanto amor, que contá-lo eu não poderia,


Assim como as folhas das árvores somam-se,
São tantas, são íntimas, caem do outono em selvageria.

Se este ser que dentro de mim inspira tanta poesia


E se faz assim, tanto tanto a ti eu me entregar,
Certo que te amar e continuar a viver eu não suportaria.

94
do amar
demais
Como eu posso ser livre se tolheste minhas venturas?
Cortaste minhas asas, mentiste minhas alegrias,
Venceste a briga sem lutar, e ainda dou-te aplausos.

Já vivi mil anos antes de te ver chegar,


Corria a te buscar, sem saber que eras
Não só um corpo, sim o sentimento
Vagando pelos meus sonhos.

À beira do acaso eu encontrei você,


Fez-se Incontroláveis versos,
Sem perceber eu te amei, vi e te amei,
Ávido por um beijo teu,
Tanto lutei, tanto desejei, tanto perdi...

Então o amor em mim significava apenas olhar você,


Somente desejar você, sem ter retorno,
baixinho, como se reza;
Depois dele, veio o medo do amar que eu tenho,
Medo do amar demais, de quem nunca se fez.

E o que se desloca de mim,


Não sei ao certo se me abandona
ou só me fere...
Sei apenas que atrás se arrasta,
Feito uma sombra de corpo quando se caminha,
Em traços desencontrados.

De repente vejo o teu rosto e teu cheiro me faz corar,


Sorvo então a última quimera dos meus sonhos:
Os teus olhos e o teu sorriso.

95
Então me conforto porque em mim,
Sei que não mais habita somente eu,
Alegro-me porque em mim,
Compartilho a porção da forma desejada,
De minhas horas sempre distante.

É bem verdade que por causa de você,


Hoje, a paixão que tomou o meu caminho
Perdura, e me regaça, e ninguém me salva,
Deixam-me à revelia.

Mas eu sei que


Quando se morre de amor,
Renasce noutra alma,
Vê-se noutros olhos,
Outra maneira inovadora de ser sem fim.

96
Por te amar
tanto assim
Foram tantas vidas que vivi
Em tão pouco que te amei
Sozinho, como um claustro senti
Tão a insígnia que eu te dei.

Foram tantos sonhos, tantas esperanças


Um sentimento cravado feito lança
Uma carne cingida, um espírito andaluz
Velho torpor em pujança, tanto que eu te amei.

Há um poeta em mim que Deus me disse


Somente assim para suportar esse amor
Que em me castigar ainda persiste
Sou ainda uma alma em claustro sóror saudade
Tísica dor pranto amor que de sina herdei.

Mas que poema canto para que lhe fale à alma?


Para te amar tanto assim
Foi preciso separar o corpo do espírito
E o coração naufraguei
Mas que fazer se hei-lo assim
Em doce suplício há tempos te entreguei?

97
Nada há além
do teu amor
O que há além do teu amor?
Além, muito além do que se possa imaginar?
Sem o teu amor, não há rosas. São espinhos.
Sol a pino sem cessar.

Não há imponência no sol, nem charme na lua,


Nada há além do teu amor que valha,
Sinto absoluto fogo arder sem cessar,
Não há água que refresque nem sede que sacie,
Nem o vento que para a brisa enroscar existe.

Nada há além do teu amor.

Tantas vezes vi o sol se por e nascer,


E nada ver, além de um pobre horizonte,
A sombra do espectro, a fronte,
Ampliando cada vez mais a noite dentro de mim.

Incauto, fui à procura do que me faltava,


Um andarilho sem rumo e sem vestes fortes,
Só uma fome de sentimento que eu ainda suporte,
Visão vaga, andar contínuo.

98
Fui tão longe, sem pensar em parar,
Corri montanhas, vales e mares,
Sem uma objeção, sem um titubear,
Senti o peso do cansaço nos calcanhares.

Tantos anos... A vida marcada nas mãos,


Tantos sonhos e anseios prestes a descartar,
Tantas foram as vezes que eu fui fraudado,
Vezes, pensei que havia conhecido, havia chegado.

Mas não, tal forma se desmanchava no encontro,


Forçado a continuar a procurar,
E esse isso que me atormenta,
Tem misto de desejo e repúdio.

Nada há além do teu amor?

99
Nada há além
do teu amor II
É que sem você as horas não passam,
São mudos os pássaros,
E as folhas caem,
E o fruto é sem viço, pobre.
É que sem você os dias ficam, e nas noites, ardo.

Nunca desisti, porque sem você o amor é amargo,


E nas manhãs de frio, que acordava sozinho,
Sonhava com os teus beijos cálidos. Como seriam?
Gostaria de saber.

Mas em verdade, em verdade digo


O que minha boca não quer dizer,
Chamo-te pelo nome e atendes, atendes!
Eu não acredito, tens enfim um nome,
E eu o sei, e repito-o inúmeras vezes para acreditar,

O que fazer se é você, bem que poderia não ser,


Eu ainda poderia ter você fantasiada em meus sonhos,
E nas guerras da minha alma
contra o cansaço do meu corpo,
Eu poderia acabar-me de solidão
e de quimeras de um sonho.

Mas a tua alma, gentil pesar, existe,


E atende por um nome,
O que me faz envelhecer dia após dia,
O que me faz morrer de fome sem querer comer.

100
Tens um aroma doce de frutas,
Tens uma boca de morte,
Mãos de seda caseadas em fios de ouro,
São ternos os teus sorrisos,
E a tua beleza é o precipício dos meus olhos,
Teu corpo é a ardência que me chama a me matar.

O fato é que te vejo sem poder te tocar,


Sinto sem poder amar,
Amo sem poder sentir,
E morro a cada dia ao te ver partir.

Nunca sequer imaginei que poderias existir realmente,


No fundo de minha busca da tua alma, eu tinha a certeza,
Não te encontrarias, ao menos neste irreal mundo,
E morreria sem te ver aqui, fora dos meus poemas.

Mas a vida, essa atrocidade me fez cair em prantos,


E de pesaroso encanto me adormeço mais de amor,
Sei de quanta dor ensandecida se faz um encanto,
Ainda mais quando se sabe da forma e o encaixe.

Agora, sei para quem escrevo,


O rosto que me faz menino,
O desejo que tanto a minha alma ansiou,
O sorriso que me faz peregrino.

Não se pode dizer de alegria ou tristeza,


Nem de amor ou angústia,
Sei que existes, e a minha jornada cessou,
E o meu peito bate em pedaços.

101
Poeminha
chatinho
Passo passo passo,
Ando penso passo vago
Ando passo cada calço
Passa falso passo largo.

Passo repasso passo traço


Passo passo confiro compasso
Passo passo refiro enfado passo
Vou contínuo pesado passo.

Tanto passo, tanto passo, aço,


Metal cozido, traspasso,
Tanto passo, tanto vago, tanto faço.

Escasso passo, passo a passo, Nasço


Tanto passo tanto faço tanto traço, refaço,
Ando passo penso o passo... Transato!

Passo em passo refugo o passo


Pulo o traço translado o passo
Passo tanto passo passo, ralasso
Não passo passo, deslasso
À parte o passo. Repasso, lembro o Lácio.

Passo eu passo, passo eu crasso


Passo passo ardil... Laço!
Paço passo, Paço o traço
Passo pago passa o Paço

102
Tantos passos, tantos traços...
Tanto passo, tanto canso,
Tanto passo, não alcanço,

Passo tantas vezes. Tu vês?

Vou passado, fora ao tempo, acorçoado,


alheado...

E o teu amor, o fervor dos meus sonhos,


Deixa-me ir embora...
Neste rio selvagem dessa estranha vida,
Debatendo-me em estranhos passos.
Passo!

103
Gosto quando
me olhas
Gosto quando me olhas,
E a noite sobressai da penumbra dos meus cantos
E feito gélidos galhos secos
Tornam-se minhas mãos absortas.

Gosto quando me olhas,


E eu tenho essa certeza que te amo
E sinto que te desejo feito prisioneiro fugitivo
de ordens contrárias à liberdade.

Gosto quando me olhas,


Um estrondo em meu peito
E não mais que de repente
Eu vejo os céus se abrirem

E o mar cantar na amplidão dos teus olhos


Chuva de cílios florescerem
E miríades de estrelas fulgem do teu rosto
É quando o amor me adota.

Gosto quando me olhas,


Mesmo que eu me sinta inválido,
Mesmo que eu me consuma em anseios,
Mesmo que eu me sinta toda vez
Um nauta perdido na sombra portuária.

Gosto quando me olhas


Porque minha boca fica morta
Esvaeço em peculiar sede
E então de contra ao contraponto
Meus ouvidos se encantam em teus instantes.

104
E uma sensação de alma roubada
Toma-me sorrateiramente,
Carregando-me para uma porta de anseios
Numa forte sinestesia incalculável.

Gosto quando me olhas,


E o meu mundo inteiro sucumbe aos teus pés
Minha mente, minha força, meu destino...
Sentenças de que me perco na razão do coração.

Teu olhar há de ainda me deixar marcas.

Gosto quando me olhas:


São duas ternas barcarolas
Com dois imensos círios tácitos
Que incendeiam o pretume da minha noite.

Gosto quando me olhas,


E estas flechas incandescentes
De pontas ardis mortifica o meu peito
Enveredado por teu mistério perfume.

Gosto quando me olhas,


Porque fico a calcular
Quanto tempo levaria minha boca
Para selar a tua.

Mulher de mãos de labirinto,


É quando me olhas
Que me refugio nestes olhos
Intrépidos e cheios de mistérios.

Eu amo quando me olhas,


Porque teu é o meu nome.

Gosto tanto disso: Quando olhas.


Olhas, olhas, olhas..., penso tanto.
E no silêncio não sei o que pensas
Faz-me compulsivamente forçar.

105
Gosto tanto, tanto quando me olhas
Aproveito o teu em meu olhar
A glória nasce em minha boca
E uma cantata mira os olhos teus.

Gosto tanto quando me olhas,


Mesmo que eu desabe por dentro
E enfim antes que as cortinas do teu rosto se fechem
Eu possa escrever o que poderá te manter calada.

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