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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE BELAS ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
DISCIPLINA: FOTOGRAFIAS NÔMADES: ENCONTROS ENTRE
ARTE E FOTOGRAFIA NO CONTEXTO DA ARTE
CONTEMPORÂNEA
Prof.: Adolfo Cifuentes

O CASO IPATINGA E A VISUALIDADE DA CIDADE INDUSTRIAL NA FOTOGRAFIA

Rodrigo dos Santos Zeferino


Março de 2021
1.1 Introdução:

Neste projeto apresento um estudo sobre a visualidade da cidade


industrial representada na fotografia contemporânea tomando como ponto de
partida a série “O Grande Vizinho”1, de minha autoria, produzida entre os anos
de 2016 e 2018. No trabalho, abordo o caso específico de Ipatinga, localizada
no Vale do Aço mineiro, que abriga uma grande usina siderúrgica, a Usiminas.
A presença da Usiminas no centro geográfico do município, que
atualmente tem uma população estimada de 265 mil habitantes2 (IBGE, 2020),
provoca forte impacto na paisagem local, onde arquiteturas urbana e industrial
são amalgamadas num só espaço visual. Assim, discuto a constituição de um
possível marco de visualidade para essa paisagem-problema expressada em
fotografias de minha autoria.

2.1 Sobre O Grande Vizinho:

Na construção da série “O Grande Vizinho”, faço uso de três recursos


narrativos que formam o alicerce estilístico do trabalho: o uso de lentes
teleobjetivas, capazes de aproximar os planos da imagem e evidenciar a
proximidade entre usina e comunidade; o emprego do recurso dramatúrgico,
com a inserção e a direção de personagens reais no enquadramento; e por fim
o uso da técnica de fotografia de longa exposição com objetivo de explorar o
excesso de luz artificial emitida pela fábrica durante a noite, que torna sua
presença na cidade ainda mais ostensiva. Trataremos essa abordagem de forma
detalhada adiante.

3.1 O caso Ipatinga:

1
A série é publicada em livro de fotografias em 2020, como resultado do prêmio Foto em
Pauta, oferecido pelo Festival de Fotografia de Tiradentes em parceria com a editora Tempo
d’Imagem e a Ipsis Gráfica.
2
A estimativa é feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística com base no censo
demográfico realizado em 2010, disponível em
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ipatinga/pesquisa/23/25207?tipo=ranking&ano=2010.
Entre os anos de 2016 e 2018 me dediquei à construção do projeto
fotográfico “O Grande Vizinho” (fotografias da série são mostradas no anexo I).
Estava determinado a compor uma forma de visualidade sobre minha cidade
natal, Ipatinga, um dos principais centros industriais do Estado de Minas Gerais.
Elevada à categoria de cidade em 1964, o município se torna em poucas
décadas o centro econômico da região que ficou conhecida como Vale do Aço.
Em seu estudo sobre o caso Ipatinga, Maria Isabel Chysostomo refere-se
à cidade como ícone do modelo nacional-desenvolvimentista “emblematizado
pelo otimismo, pela esperança e pelo desejo de modernização característicos do
governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira e seu convincente Plano de Metas
(1956-61)” (CHRYSOSTOMO, 2008, p. 109).
A cidade é erguida conforme um projeto arquitetônico que se orienta pela
instalação da usina siderúrgica. A partir da planta industrial, são construídos
bairros ao seu redor para abrigar os operários que foram atraídos para o lugar,
a fim de trabalhar na instalação da fábrica e, posteriormente, dos trabalhadores
que vieram a compor o quadro de funcionários metalúrgicos na empresa.
Ipatinga é fruto de um projeto excepcional e, portanto, deveria soar como
exemplo de produtividade e urbanidade. Assim, com objetivo de amenizar a
presença visual opressiva da usina no coração da cidade, o plano urbanístico,
elaborado por eminentes arquitetos da época, sendo Lúcio Costa seu mentor,
abrange o cultivo de um cinturão verde ao longo de todo o perímetro da planta.
Além disso, várias e extensas áreas espalhadas pela cidade se tornam bosques
urbanos. O projeto original incluía ainda a construção do Parque Ipanema, uma
proposta de parque urbano desenhado por Roberto Burle Marx.
Em poucas décadas, o município já é considerado um dos mais
arborizados do país. Atualmente o índice local de área verde por habitante é de
127 metros quadrados3.
Contudo, todo o trabalho ecológico desenvolvido não foi suficiente para
camuflar a imponência das estruturas monumentais, típicas da siderurgia, que
se projetam no skyline da região central. Chaminés, torres de dispersão, altos-

3
Dados da Prefeitura Municipal de Ipatinga (2019), que afirma que a recomendação da
Organização Mundial da Saúde é de pelo menos 12m2. Disponível em:
https://www.ipatinga.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/area-verde/95199>. Acesso em 1 de
março de 2021.
fornos e gasômetros se misturam aos prédios residenciais, comerciais e
públicos, além das casas e outras edificações presentes nos bairros que
circundam a planta, num amálgama de arquiteturas urbana e industrial.
Assim como boa parte da população nativa, minha relação com essa
paisagem singular se encerrava em um certo nível de normalização. Até o início
da minha juventude, olhava para aquele horizonte cravejado com longas
chaminés – tão próximas de minha casa – como quem acredita ser este o modelo
padrão das cidades modernas.
Mas os anos em que residi fora dali, na fase de transição entre a
adolescência e a vida adulta, transformaram este olhar. Retorno à cidade seis
anos mais tarde, em 2002, e agora minha atenção é magnetizada pelo vigorosa
incongruência visual que paira sobre o Vale do Aço.
E é da luminosidade noturna da cidade industrial que surge o estímulo
para que eu me pusesse a fotografá-la. Nos primeiros anos atuando como
fotógrafo, eu perambulava sem um destino certo ou ideia definida. Deixava-me
atrair inconscientemente pela luz excessiva emitida, tanto pela iluminação
urbana quanto pela usina, no espaço aéreo da cidade. Foram estes meus
primeiros registros.
O insight para que eu decidisse compenetrar dedicadamente o assunto
acontece quando me deparo com uma imagem de arquivo, datada de 2006, que
resume toda a ideia (anexo II).

3.2 Vigilância e devoção

Em 2016, portanto, inicio o trabalho de construção do ensaio fotográfico


“O Grande Vizinho”, (sendo o “vizinho” representado pela própria fábrica). O
título é inspirado na célebre novela de George Orwell, “1984” (1949) e seu
misterioso e soberano personagem Big Brother. Na sociedade descrita pelo
autor britânico, todos os cidadãos estão sob constante vigilância; mesmo dentro
de suas casas, eles assistem e são assistidos por suas indesligáveis teletelas.
A analogia com o caso Ipatinga se dá não só pela sensação de
patrulhamento constante que eu sentia enquanto circulava e fotografava as a
opulência da planta – acentuada depois de ser abordado, em três ocasiões, por
seguranças da empresa, incluindo um caso de perseguição automobilística,
quando me interpelaram para saber o que eu fazia, mesmo estando em área
pública.
“Big Brother is watching you”, diz a propaganda do governo na obra de
Orwell. Em Inglês, esta frase pode ser interpretada de duas formas: “o Grande
Irmão zela por ti”, ou “o Grande Irmão está te observando”. Dentro da percepção
que construí em minha vivência na cidade, ambos os sentidos podem ser
relacionados à postura da empresa (que permaneceu estatal até 1991) com
relação à comunidade ipatinguense. Nos primeiros anos de funcionamento da
fábrica, construíram-se escolas, clubes, hospital, centros culturais entre outras
instituições controladas pela empresa com vistas a atender seus funcionários e
familiares – que durante décadas representavam a maioria dos moradores da
cidade. E quanto mais a empresa estruturava e proporcionava melhorias em
qualidade de vida ao operário, mais comprometimento ela exigia em troca.
Variadas representações de ambientes urbanos erguidos a partir da
década de 1950 no Brasil partem de um modelo no qual os espaços da cidade
vão sendo tomados como objetos dos discursos produzidos pela Modernidade.
Chrysostomo analisa a implantação da siderurgia na região do Vale do Aço e
identifica uma prática hegemônica de criação de novos espaços e a manipulação
de papeis sociais com o objetivo de disseminar um modelo de civilização e
progresso efetivado por uma política de indução do uso dos espaços. Tal
estratégia teria resultado na construção de uma identidade espacial.

“Por meio da criação ou transformação das cidades, as ideias e concepções de


um plano urbano, apoiadas em um discurso de valorização/desvalorização dos
espaços, visaram à apropriação/dominação material e simbólica de um lugar e
também de sua gente” (CHRYSOSTOMO, 2008, p. 114).

A intervenção no espaço veio acompanhada de estratégias que


assinalavam a criação de um “colosso gigante”, “erguido em massa possante/Na
grandiosa Usiminas” (como versa o hino da cidade), em uma operação que
transformou a cidade “no próprio discurso da Modernidade” (CHRYSOSTOMO,
2008, p.117).
Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Sinara Sandri, ao citar o caso Ipatinga através da análise de dois
trabalhos fotográficos, “O Grande Vizinho”, de minha autoria, e “Balneário
4
Alegria” de Tiago Coelho (2018), também identifica estratégias de controle
social na concepção dos espaços da cidade.

“Ao requalificar os ideários de limpeza, higiene, beleza e funcionalidade, Ipatinga


funciona como espaço de controle e cenário de modernidade, naturalizando a
nova vocação industrial de uma área até então caracterizada pela atividade rural
e agrícola.” (SANDRI 2018).

Minha percepção sobre este universo metalúrgico – e todas as relações


de vigilância, interdependência e territórios compartilhados –, principalmente
quando começo a atuar dentro do contexto da fotografia e da arte
contemporânea, passa então a emergir nas imagens que vou construindo.
Já afeito, desde minha graduação na faculdade de Comunicação
Social/Jornalismo da Puc-Minas (2001), aos tópicos canônicos sobre a relação
intensa e controversa entre a fotografia e a “verdade”, durante minha carreira
empreguei por diversas vezes em meu trabalho o recurso da fotografia de longa
exposição. Queria, antes de mais nada, expor a falácia da fotografia enquanto
registro fiel da realidade. A partir da distorção de cores (saturadas e
notabilizadas pela exposição prolongada) e da mistura de luzes no espaço
urbano durante a noite, tento conceber trabalhos que suscitem o espectador a
questionar a veracidade das cenas registradas.
Em O Grande Vizinho, emprego os valores sociais absorvidos ao longo
de minha vivência para construir a narrativa fotográfica repleta da subjetividade
que meu repertório técnico é capaz de traduzir em imagem. Antes de propor um
documentário, minha intenção sempre foi a de produzir uma obra que levantasse
questões acerca da ocupação do espaço urbano e dos modos de produção
contemporâneos, mas que o fizesse distanciando-se de certos regimes de
verdade que ainda hoje lamentavelmente aderem-se a práticas estética
mediadas pelo mecanismo fotográfico. Como analisa Dubois:

“Existe uma espécie de consenso de princípio que pretende que o verdadeiro


documento fotográfico ‘presta contas do mundo com fidelidade’. Foi-lhe
atribuída uma credibilidade, um peso de real bem singular. E essa virtude
irredutível de testemunho baseia-se principalmente na consciência que se

4
COELHO. Tiago. Balneário Alegria, 2015. Disponível em:
<http://tiagocoelho.com.br/?fluxus_portfolio=balneario- alegria>. Acesso em 10 de fevereiro de
2021.
tem do processo mecânico de produção da imagem fotográfica, em seu
modo específico de constituição e existência: o que se chamou de
automatismo de sua gênese técnica” (DUBOIS, 1993, p. 25).

Joan Fontcuberta (1997), associa abertamente a fotografia com a mentira. Ele


afirma que toda fotografia é na verdade uma ficção que se apresenta como
verdadeira e não interessa mais o debate sobre o real e a verdade na imagem
fotográfica, tendo o fotógrafo que aprimorar sua capacidade “de mentir bem”:

“Contra o que nos tem inculcado, contra o que nós geralmente pensamos, a
fotografia sempre mente, mente por instinto, mente porque sua natureza não
permite que ela faça outra coisa. Mas o importante não é essa mentira
inevitável. O importante é como o fotógrafo a usa, a que intenções serve. O
importante, em suma, é o controle exercido pelo fotógrafo para impor uma
direção ética à sua mentira. O bom fotógrafo é o que mente bem a verdade.”
(FONTCUBERTA, 1997, p.15)

4.1 A poluição luminosa:

O fenômeno da poluição luminosa – um dos gatilhos para a construção


do conceito do projeto O Grande Vizinho – é inerente às cidades
contemporâneas. As lâmpadas que acendemos à noite para iluminar nosso
caminho são também as responsáveis por “apagar” o céu.
A observação do firmamento foi elemento essencial no desenvolvimento
das civilizações e base de avanços científicos. Ao longo dos tempos, o céu
noturno guiou navegadores e inspirou poetas. Mas, desde o início da Era
Moderna, a visibilidade do cosmos vem se deteriorando, e sua contemplação é
cada vez mais dificultada em muitas regiões do planeta. Na obstinação de
ampliar sua fatia de território, o homem acende novas luzes e invade o escuro
sem qualquer mesura.
A degradação da qualidade do céu noturno distancia a humanidade do
legado das luzes das estrelas. A poluição luminosa é um problema humano que
permanece às sombras das grandes questões sociais, daí surge meu interesse
em lançar outras luzes sobre a questão.
Pier Paolo Pasolini escreveu, em 1975, um texto que ficou conhecido
como “O artigo dos vagalumes”. No ensaio o cineasta parte do desaparecimento
dessa espécie de inseto dotado dos atributos da bioluminescência – visto por ele
como fulgurações representativas de momentos de graça que resistem ao terror
do mundo – para falar do contexto político da época, marcado pelo soerguimento
a partir da década de 1960, mesmo após a condenação de Mussolini, de um
“fascismo radicalmente, totalmente e imprevisivelmente novo” (PASOLINI, 1975,
p. 1), responsável por um tipo de genocídio cultural então em curso em seu país.
A metáfora dos vagalumes de Pasolini pode ser transmutada do contexto
político do século XX para o cenário de voracidade do capitalismo
contemporâneo. Aqui, porém, o crescente desaparecimento dos pirilampos
deriva desta contaminação lumínica do espaço. Muito mais que lumiar, a luz
pode se tornar elemento intrusivo, destruidor e mortífero.
Quase 50 anos depois, pesquisadores referendam hoje o que Pasolini
discutiu metaforicamente na década de 1970: os vagalumes estão, de fato, em
vias de desaparecimento e os cientistas colocam a poluição luminosa no banco
dos réus como principal acusada deste genocídio.
A biologia nos últimos anos vem constando que o excesso de luz artificial
dificulta a comunicação entre os pirilampos e consequentemente sua reprodução
(o brilho gerado por eles está relacionado ao ritual de acasalamento), uma vez
que a lanterna dos insetos não consegue competir com a luz emitida pelas
lâmpadas5.
Mas os problemas relativos ao clareamento desregrado da noite vão muito
além: estudos realizados por um grupo de cientistas da Itália, Alemanha, EUA e
Israel apontam que um terço da população mundial não pode ver a Via Láctea
devido ao excesso de luminosidade artificial produzida nos países mais
desenvolvidos. Esse número salta para 80% no caso dos estadunidenses e 60%
no dos europeus.
Os resultados dessa pesquisa estão registrados no “Novo atlas mundial
do brilho artificial no céu”6, publicado pela revista Science Advances (2016).
Ainda segundo a publicação, 83% da população mundial vive sob um céu com

5
Estudo “A global perspective on firefly extiction threats”, feito pelos biólogos Sara M. Lewis,
Choong Hay Wong, Avalon C. S Owens, Candace Fallon, Sarina Jepsen, Anchana
Tancharoen, Chiahsiung Wu, Raphael De Cock, Martin Novák, Tania Lopez, Palafox, Veronica
Khoo e J. Michael Reed, da Universidade de Tufts, Massachusetts, publicado na revista
Bioscience em fevereiro de 2020.
6
Os estudos para realização do “The new world atlas of artificial night sky brightness” foram
realizados pelos cientistas Fabio Falchi, Pierantonio Cinzano, Dan Duriscoe, Chistopher C. M.
Kyba, Christopher D. Elvidge, Kimberly Baugh, Boris A. Portnov, Natalya A. Rybnikova e
Riccardo Furgoni e publicado na revista Sciences Advances em 2016.
alta poluição luminosa, porcentagem que no caso dos americanos atinge 99%.
No Brasil, a porcentagem da população que vive sob céu extremamente brilhante
é de 32,3%. Vivemos, portanto, um processo acelerado de incapacitação da
experiência visual do firmamento.
Em seu “24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono” (2016), Jonathan
Crary assinala que o processo de clareamento da noite na Terra é fruto de um
projeto econômico-industrial que desde o início da Era Moderna tenta ampliar o
“tempo útil” da humanidade a partir do qual o sistema produtivo passa a funcionar
sem pausas, sem discernimento entre dia e noite.

“O regime 24/7 mina paulatinamente as distinções entre dia e noite, claro e


escuro, ação e repouso. É uma zona de insensibilidade, de amnésia, de tudo
que impede possibilidade de experiência” (CRARY, 2016, p.26).

O cineasta russo Andrei Tarkóvski aborda a questão em seu filme


“Solaris” (1972) aborda a questão dos distúrbios do sono causados por excessos
de luz. Numa nave espacial, um grupo de cientistas percorre a órbita de um
planeta fictício para investigar possíveis inconsistências em relação às teorias
científicas vigentes. Neste ambiente intensamente iluminado da estação
espacial, a insônia é uma condição crônica que leva ao desequilíbrio da saúde
mental dos tripulantes.

4.2 Luminosidade completa

A despeito de tudo isso, no final da década de 1990, um consórcio


espacial formado pela Rússia e países da Europa ocidental anunciou um plano
de colocar em órbita satélites projetados para refletir a luz solar para a Terra.
Esta cadeia de satélites sincronizada com o Sol giraria a uma altitude de 1,7 mil
km, cada um deles equipado com refletores retráteis de 200 metros de diâmetro
e teriam a capacidade para iluminar uma área de 25 km2 na superfície do planeta
com uma luminosidade quase 100 vezes maior que a Lua. O objetivo era
fornecer luz para a exploração industrial de recursos naturais em regiões
remotas com noites polares na Sibéria, permitindo atividade ao ar livre durante
as 24 horas do dia.
Contudo, o projeto logo foi expandido para a possibilidade de oferecer luz
noturna para regiões metropolitanas, levando a uma redução considerável dos
custos com energia elétrica.
Crary apresenta um panorama vertiginoso de um mundo cuja lógica não
se prende mais a limites de tempo e espaço, uma sociedade cuja ordem vigente
põe em cheque até a necessidade de repouso do ser humano, talvez a última
fronteira ainda não transposta pelo mercado.
Ao analisar a iniciativa do consórcio russo-europeu, que ao fim mostrou-
se inviável - em parte devido à oposição feita por cientistas e ambientalistas que
apontaram consequências fisiológicas tanto aos animais quanto aos humanos,
além dos efeitos desastrosos para os trabalhos de observação do espaço a partir
da Terra –, Crary aponta:

“O empreendimento ilustra o imaginário contemporâneo para o qual um estado


de iluminação contínua é inseparável da ininterrupta operação de troca e
circulação globais. Em seus excessos empresariais, o projeto é uma expressão
hiperbólica de uma intolerância institucional a tudo que obscureça ou impeça
uma situação de visibilidade instrumentalizada e constante” (CRARY, 2016, p.
14 e 15).

Os interesses intrínsecos a esse programa, trazem à tona um conjunto de


práticas panópticas desenvolvidas ao longo dos últimos dois séculos. “Remetem
à importância da iluminação no modelo original do Panóptico de Bentham7, que
propunha inundar de luzes os espaços a fim de suprimir as sombras e criar
condições de controle graças à visibilidade completa” (CRARY, 2016, p. 25).

4.3 Lenda urbana

No caso específico da proposta de visualidade apresentada na série “O


Grande Vizinho”, a opção por fotografar durante a noite está relacionada – para
além da discussão da poluição luminosa no âmbito planetário – também a
motivações pessoais ligadas ao mito do “monstro noturno”, consenso local criado
em torno da ideia-lenda de que a fábrica lançaria uma quantidade maior de

7
Termo utilizado para designar um modelo de penitenciária circular desenvolvido pelo filósofo e
jurista britânico Jeremy Bentham, a partir do qual um único vigilante, posicionado numa torre
central com visão de 360º é capaz de observar todos os prisioneiros. O modelo é estudado por
Foucault em “Vigiar e Punir” (1975).
resíduos no ar durante a noite, em uma suposta tentativa de aproveitar a
distração da população que dorme.
A lenda urbana pode, contudo, ser desmantelada a partir do exercício de
observação e do registro fotográfico. É perceptível o fato de que a poluição
luminosa é a responsável por dar destaque e volume à poluição atmosférica, a
partir do efeito de reflexão e refração nas massas de vapor e fumaça expelidos
nas chaminés. Além disso, os processos de produção em uma fábrica deste
porte são obviamente contínuos – a não ser em casos de exceção, como
manutenção de equipamentos, por exemplo –, o que torna absurda a ideia de
que durante a noite o grau de emissão de matéria particulada no ar seria
superior.
Seguindo essa investigação, a supracitada série fotográfica passa pela
abordagem dessa contaminação lumínica que a luz da cidade provoca em seu
entorno, trazendo questionamentos sobre como a presença desse gigantesco
parque industrial pode influenciar na concepção de uma paisagem local.

5.1 Planos e dramaturgia

Em O Grande Vizinho, ao me propor a constituir uma visualidade da


cidade-indústria, lanço mão ainda de dois outros importantes recursos de
linguagem com potencial para exacerbar o caráter ficcional das imagens
apresentadas: o uso de lentes teleobjetivas, capazes de aproximar os planos da
imagem e evidenciar a proximidade entre usina e comunidade; e o emprego de
certa dramaturgia, com a inserção e a direção de personagens reais no
enquadramento.
Ainda que certa verossimilhança se mantenha nas imagens, torna-se
tênue a fronteira entre verdade/indicialidade8 e subjetividade/fantasia. E é na
fragilidade dessa divisa que busco reforçar a capacidade do trabalho de chamar

8
Charles Sanders Peirce já havia assinalado em 1985 a condição indicial da fotografia, ou
seja, a continuidade física com seu referente no mundo visível. “As fotografias, e em particular
as fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos,
elas se parecem exatamente com os objetos que representam. Porém, essa semelhança deve-
se na realidade ao fato de que essas fotografias foram produzidas em tais circunstâncias que
eram fisicamente forçadas a corresponder detalhe por detalhe à natureza. Desse ponto de
vista, portanto, pertencem à nossa segunda classe de signos: os signos por conexão física
[índice]”(Peirce apud Dubois, 1994: 49).
atenção para a questão proposta: ao se deparar com uma prática estética que
rejeita a forma mecânica e respeitosa como em geral a paisagem é tratada na
fotografia, o espectador, em especial o nativo, confronta-se com uma realidade
conhecida que, contudo, apresenta-se estranhamente.
A crítica da fotografia Georgia Quintas ressalta a importância da
linguagem fotográfica na construção de visualidades alternativas que possam
enriquecer o olhar humano sobre seu território:

“Com os olhos bem abertos, podemos muito bem sonhar. Nem sempre
precisamos fechar os olhos para vivenciarmos histórias, sensações, idílios,
fugas, desejos, dores, solidão, alegrias, desencontros, vazios, exuberâncias,
esperanças… O mundo através da fotografia nos permite transcender as
supostas certezas da realidade. É quando a criação artística perturba os
paradigmas e faz da ideia o começo da invenção de novos mundos.”
(QUINTAS, 2001, p.121).

Acredito que uma imagem que se distancia daquela vista a olhos nus
dispõe de uma força maior de descondicionamento do olhar e de chamar
atenção para o objeto de estudo.
Ao optar pelo uso de lentes teleobjetivas nas fotografias d’O Grande
Vizinho, tento abalar os parâmetros do olho humano, já que esse tipo de objetiva
tende a aproximar os planos da imagem. Aplicada à paisagem de Ipatinga, o
resultado são imagens em que prédios, casas e outras construções aparecem
em primeiro plano, tendo as estruturas monumentais da usina no plano de fundo,
com a impressão de uma proximidade ainda maior que aquela percebida
naturalmente pelo mecanismo óptico biológico.
A dimensão humana nessa paisagem é ainda fundamental para a
produção de sentido na série. Ao compor cada cena escolhida para inserção no
projeto, realizo um trabalho de recrutamento de personagens reais para
participação no trabalho. Ao escolher uma edificação com potencial para uma
imagem equilibrada, convido o morador a se posicionar em uma de suas janelas,
varanda ou sacada. Indico onde ele ou ela devem ficar e como irá posar. Por fim,
oriento o personagem a permanecer imóvel para que resista à longa exposição
(que varia de 30 segundos a 3 minutos) de forma que a câmera possa registrar
sua imagem de forma nítida.
Parte dessas orientações são frisadas à distância, pelo telefone, após me
posicionar no patamar adequado para captar o instante. Muitas vezes o processo
de explanação e convencimento dos colaboradores tem de ser repetido, pois há
casos em que, para fotografar um personagem em sua casa, preciso adentrar o
domicílio de outra pessoa, do outro lado da rua ou do quarteirão.

6.1 Conclusão

A fotografia assume hoje um papel de sumária importância na geração de


formas de visualidade dentro do campo das artes visuais, seja por sua
consolidação, como aponta André Rouillé (2009) como uma das principais
linguagens adotadas por artistas em sua produção a partir da década de 1980,
ou mesmo pela difusão e popularização dos mecanismos portáteis de fotografia
digital, disseminando a prática dentro da sociedade, conforme observa o crítico
e curador de fotografia Éder Chiodetto:

“O fato é que entre 2001 e 2010 os efeitos das novas tecnologias, incluindo
a banda larga e o uso de programas de tratamento de imagens (...) atingiram
um primeiro momento de maturação em relação à aplicação por parte de
usuários, sobretudo na forma como induziram a reflexão, a produção e a
circulação de imagens” (CHIODETTO, 2010, p.10).

O trabalho desenvolvido na série O Grande Vizinho articula estratégias


diversas para apresentar uma proposta de visualidade da cidade-indústria a
partir do olhar de um nativo. Mas são notáveis também as questões subjetivas
que atravessam minha poética particular, que pressupõe um teor considerável
de fabulação na representação destes recortes no tempo e no espaço.
7.1 Referências bibliográficas

CHRYSOSTOMO, Maria Isabel. Um projeto de cidade-indústria no Brasil


moderno: o caso de Ipatinga (1950-1964). Cronos, Natal-RN, v. 9, n. 1, p. 109-
134, jan./jun. 2008. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/1812/pdf_56>. Acesso em 9 de
fevereiro de 2021.

COCK, Raphael De, A global perspective on firefly extiction threats, American


Institute of Biological Sciences. V. 70, nº 2, 3 de fev 2020. Disponível em:
https://academic.oup.com/bioscience/article/70/2/157/5715071. Acesso em 23
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CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu,
2016.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Papirus,


1994.

FALCHI, Fabio, et al. The new world atlas of artificial night sky brightness.
Science Advances, v.2, nº 6, 10 jun 2016. Disponível em:
https://advances.sciencemag.org/content/2/6/e1600377. Acesso em 24 de
fevereiro de 2021.

FONTCUBERTA, Joan. El beso de Judas: fotografia y verdad. Barcelona:


Editorial Gustavo Gili, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis:


Vozes, 1987.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico


Brasileiro 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012

PASOLINI, Pier Paolo, O vazio do poder na Itália. Disponível em:


https://www.academia.edu/39692396/PASOLINI_O_VAZIO_DO_PODER_NA_I
TÁLIA. Acesso em 24 de fevereiro de 2021.

ORWELL, George. 1984. 17ª ed. – São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Ed.


Vozes, 2009.

PREFEITURA MUNICIPAL DE IPATINGA. Ipatinga, 2019. Disponível em:


https://www.ipatinga.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/area-verde/95199>.
Acesso em 12 de fevereiro de 2021.
QUINTAS, Georgia. Inquietações fotográficas: narrativas poéticas e crítica
visual. Fortaleza: Tempo d’Imagem, 2014.

SANDRI, Sinara. Fotografia e conflito na cidade – Imagens de uma vizinhança.


VI Congresso Internacional de Comunicação e Cultura, 2018: vínculos, redes e
ambientes. Anais. Disponível em:
http://www.comcult.cisc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/GT5_Sinara-Sandri-
UFRGS.pdf. Acesso em 21 de dezembro de 2018.

ZEFERINO, Rodrigo. O Grande Vizinho. São Paulo: Tempo d’Imagem, 2020.

_________________. Revelações, Belo Horizonte, Palácio das Artes, 2007.


Catálogo de exposição, 14 páginas.
ANEXO I
ANEXO II

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