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TCC Ana Paula
TCC Ana Paula
FACULDADE DIADEMA
DIADEMA – 2007
ANA PAULA BATISTA PEREIRA DE MORAES
FAD - DIADEMA
2007
Monografia apresentada e aprovada em 30 de Março de 2008 pela banca
constituída pelos professores:
____________________________________________________________
Prof. Dra. Valéria Jacó Monteiro
Orientadora
____________________________________________________________
Prof. Ms. Maria de Lourdes
Convidada
Que nasci no ano de 1908, você já sabe (...) Minha biografia
literária não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não
têm tempo, não tem princípio nem fim. E meus livros são
aventuras, para mim são minha maior aventura. Escrevendo
descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito, o
momento não conta. Vou-lhe revelar um segredo: creio já ter
vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me
chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo repito o que
já vivi antes (...)Como escritor, não posso seguir a receita de
Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo
limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir:
não do ponto de vista filosófico e sim do metafísico, no sertão
fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o
sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o
homem é o 'eu' que ainda não encontrou um 'tu’. Por ali os
anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.
J. Guimarães Rosa
À minha mãe, Luzia Natalina Batista,
Pelo amor, luta e paciência com que sempre está ao meu lado. Nosso amor transcende essa
realidade.
Agradecimentos
ajuda que demonstrou desde o início nessa jornada: confianças que se deram entre olhares
À Professora Ms. Gláucia Silva pelos primeiros norteamentos que precisei para a
Aos colegas de classe, em especial Anderson, Cláudio, Márcia e Sérgio pela troca e
experiência de vida convivida nesses três anos de curso. Tecemos olhares, experiências: há
À minha tia, Rosa Batista, que repercute beleza não só no nome, mas na
RESUMO.............................................................................................................................9
INTRODUÇÃO.................................................................................................................10
1.1 “A menina de lá” e sua relação com o mundo: a palavra que transcende...................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................45
REFERÊNCIAS.............................................................................................................................47
MORAES, Ana Paula B. P. de. O mito e seu nascimento através da fala da personagem
Nhinhinha, no conto “A menina de lá, de Guimarães Rosa. 2007. 45 f. Trabalho de
Conclusão de Curso – Curso de Letras da Faculdade Diadema. São Paulo. 2007
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar o mito e seu nascimento através da
fala da personagem Nhinhinha, no conto “A Menina de Lá”, do escritor João
Guimarães Rosa, em “Primeiras Estórias” (1962).
Meu interesse por esse assunto surgiu quando tive meu primeiro contato com o
conto de nossa análise na aula de Literatura Brasileira. Através da maravilhosa leitura
da professora Maria de Lourdes,1 e agarrei-me ao sentimento e reconhecimento da fala
da principal personagem. Essa menina me disse algo mais do que a fala truncada -
porém não menos instigante - dos vaqueiros de Sagarana (1946), já experimentada por
mim antes, me tocando de forma emocionante: não era só o lirismo de Nhinhinha, mas
algo além da obviedade, algo que se expressava em muito nas poucas palavras da
menina. Essa familiaridade para com o conto fez me refletir sobre os dizeres de nossa
personagem quanto sua percepção de mundo; o romper de suas metáforas
desordenadas, mas, no entanto, significativas aos sentidos, que tocam a alma da gente,
nos trazendo não sei de onde um misto de confirmação e perplexidade.
Fui buscar respostas para minhas indagações e lembrei então do livro “O Poder
dos Mitos”, 1990, de Joseph Campbell, em entrevista com Bill Moyers, onde esse
último indaga à Campbell quanto ao mito ser uma “pista”, para as respostas do homem
frente ao mundo, e o historiador responde: Mitos são pistas para as potencialidades
espirituais da vida humana. (1990: 5)
1
Maria de Lourdes Ruegger Silva, 5º semestre do curso de letras pela Faculdade Diadema (FAD), ano
2007.
No primeiro capítulo serão estudas informações sobre o próprio conto, além de
toda teoria envolvendo mitos – do conceito à sua ligação na linguagem. Também
levantaremos a importância da fabulação para o mito. No segundo capítulo, trataremos
de analisar o conto propriamente dito, confrontando o discurso com a teoria. No
terceiro capítulo, buscamos distanciar nossos olhares para a questão do sagrado na
obra. Por último, analisaremos a linguagem na construção do conto a fim de
respondermos: Como se apresenta o mito e seu nascimento na linguagem através da
fala da personagem Nhinhinha, no conto de Guimarães Rosa, “A menina de Lá?”?
CAPÍTULO I – DA NARRATIVA E DO MITO
Estudar Guimarães Rosa é estudar o inesgotável! Tão profundas são as palavras de que se
serve este reinventor de nossa literatura. Reinventor de significantes, da palavra renovada,
expandindo-a sob um olhar perspicaz e legítimo quanto às suas funções em sua obra. Vacas,
bois fazem-se personagens juntamente com seus vaqueiros em Sagarana (1943), sua obra de
estreia, trazendo poeticidade e inovação através das analogias construídas pelo escritor,
recorrentes em toda sua produção literária, além de sua extrema sensibilidade em captar “só a
pura vida” que se esconde sobre o plano da linguagem.
Na quarta obra de Guimarães Rosa, “Primeiras Estórias” (1962), temos o que o próprio autor
denominou como “uma obra da metafísica”. Em sua quarta estória se encontra nosso objeto de
análise.
2
G.S.V., p.142. Utilizo-me da 13a da José Olympio Editora, 1979.
é aí, na retidão de seu silêncio, que se inscreve tanto sua sabedoria, em sentir a realidade
tocante expressa por suas metáforas, quanto o mistério acerca de si, uma vez que, quando,
através de sua fala deseja algo, e o desejado se realiza, envolvendo a personagem numa aura
mítico-mágica, numa aura de “causos”, “estórias”.
Nossa protagonista se elucida na descrição feita por Paulo Rónai sobre os personagens de
“Primeiras Estórias”, 1972, no prefácio da obra:
(...) entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela
civilização, guindados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na
sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a
intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo,
os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe
dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória
do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.”
(1972:32)
Essa poesia em dizer muitas vezes o indizível, como observado por Rónai, ocorre por ainda
faltar a esses personagens “o domínio da linguagem abstrata”. Isto faz com que nos
apeguemos a uma linguagem que transcende o plano real das coisas, onde a fala de nossa
menina é justamente isso: palavras “desconexas”, quanto ao momento em que essas se
apresentam.
Nhinhinha tem uma querência em ir “pra lá”; e nós de “cá” queremos descobrir ao longo do
estudo do conto, sua aventura no mundo dos vivos (cá) para sua passagem ao mundo dos
mortos (lá). Esse descobrimento se fará através dos mitos e sua conexão com a linguagem.
Embarquemos nessa jornada rumo ao descobrimento do universo da menina de Rosa.3
3
Referimo-nos à personagem Nhinhinha como a “menina de Rosa” fazendo uma referência não só ao
às práticas semelhantes que ambos, Nhinhinha e Guimarães Rosa, se irmanam ao listar as coisas, mas
também pelo sobrenome do criador de nossa menina fazer parte do último desejo da personagem: a cor
de seu caixãozinho.
Os mitos revelam significados, valores e modelos para vida humana. As manifestações desses
significados para expressar questões primordiais como a morte, o alimento, o sagrado, são
encontradas em diversas culturas através de imagens, símbolos, tendo sua expansão para as
áreas da linguagem, arte e ciência.
Em “Mito e realidade”, 2006, Mircea Eliade começa por explicar o significado da palavra
mito, empregado tanto no sentido de "fábula", "ficção" quanto para designar um "modelo
exemplar". O mito tem sua interpretação na cultura grega, que o transformou e o racionalizou,
não se atentando para seu significado até chegar à religião judaico-cristã, onde os mitos são
vistos como uma mentira por não serem autenticados em seus dois testamentos, uma vez que
não foram inseridos pelos membros da igreja.
Assim, Eliade explica que seus estudos baseiam-se nos mitos das sociedades arcaicas, onde
estas revelam um estado primordial, influenciando e justificando “todo comportamento e toda
a atividade do homem” (2006:10). Desta forma, Eliade o define em “Mito e realidade”:
Eliade esclarece que o mito, por ser considerado sagrado, desempenha um papel dentro da
estrutura social, portanto, é uma história verdadeira criada em um atempo. Como explica o
historiador, o “mito cosmogônico é 'verdadeiro' porque a existência do mundo aí esta para
prová-lo, o mito da origem da morte é, igualmente 'verdadeiro' porque é provado pela
mortalidade do homem, e assim por diante (2006:12)”. Por manifestar uma essência primeira,
“o mito se torna modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas (2006:12)”.
Os exemplos que o autor ilustra de várias tribos quanto aos seus comportamentos, rituais, se
justificam a luz dos mitos. Para esses rituais, a frequente resposta é: “porque é assim que os
deuses/povos sagrados fizeram (no princípio) (p.12)”. Contudo, o mito não é qualquer
história: sempre se refere ao sagrado, ao sobrenatural, aos mitos da cosmogonia, a um
acontecimento primeiro ligado a existência do homem, e justamente por conter um caráter
sagrado, distingue de histórias falsas: estas não modificam - e explicam - as condições
humanas. Ao discorrer sobre o caráter constitutivo do mito, Eliade afirma que assim como a
História está para o homem moderno, o mito está para o do homem primitivo. Porém, a
História figura-se como algo linear, irreversível, enquanto a narrativa mítica instaura-se em
um atempo, onde é possível reatualizá-la através de rituais. Toda vez que acontece um ritual
retoma-se ao tempo primeiro, onde o mito surgiu: é possível repetir o que os Deuses fizeram
neste tempo primordial, obtendo respostas para a vida, para as coisas que se apresentam na
realidade sob tal forma. Portanto, tudo aquilo que se revela sagrado ao homem arcaico, como
o céu, as águas, a vegetação, faz parte do conteúdo mitológico que irá se manifestar em
diversos campos do conhecimento.
Essa busca de sentido para as coisas do mundo através do mito faz com que respostas sejam
obtidas para as experiências que vivemos, explicam o inexplicável. Os mitos vêm através de
suas imagens e símbolos para ressignificar as vivências que experimentamos, e porque (re)
significa, através dos rituais, repete o ato primeiro dos “entes sobrenaturais”. Assim, os ritos
de passagem existentes em culturas africanas ou australianas e em certo ponto se assemelham:
os pontos no qual o mito toca são sempre os mesmos (ritos de nascimento, morte, ascensão
aos céus, cultos da vegetação, etc.) nas diversas culturas, se diferenciado quanto ao grau de
ação ou de iluminação.
Em “Tratado de história das religiões”, 1998 Mircea Eliade estende o porquê desses rituais,
dessas repetições:
A maioria dos atos realizados pelo homem das culturas arcaicas não é mais,
no seu pensamento, do que a repetição de um gesto primordial realizado no
princípio do tempo por um ser divino ou por uma figura mítica. O ato só
encerra certo sentido na medida em que repete um modelo transcendente, um
arquétipo. Por isso a finalidade dessa repetição é a de assegurar a
normalidade do ato, de legalizar concedendo-lhe um estatuto ontológico; pois,
se esse ato se torna real, é unicamente porque repete um arquétipo. (1998: 38,
grifos nossos).
Inserido dentro de uma visão holística, Eliade (1998) compreende as semelhanças que estes
rituais têm, trazendo o inconsciente coletivo para simbolizar as experiências primeiras do
homem. Este conteúdo da psique é o responsável por garantir os ritos (de nascimento,
passagem para a vida adulta, casamento morte, etc.) tão semelhantes em culturas extremas.
Esta pequena introdução ao mito nos suporta para que possamos seguir adiante em nossos
estudos acerca da relação entre a linguagem e o mito, pois é necessário compreendermos que
os mitos, os símbolos encontram-se neste instante primeiro da existência humana: antes de
sermos seres históricos, antes desta parte da consciência acerca de si mesmos, o homem
possui em detrimento com o sagrado, experiências e manifestações que se tornam
significativas quando o mesmo as reconhece como parte da sua história, encontrando
explicação do seu estar no mundo através dos mitos.
Com base nos estudos de Ernst Cassirer e de sua teoria de que mito e linguagem nascem
juntos, prosseguiremos na análise do conto de Guimarães Rosa, “A menina de lá”,
fundamentando-nos nas obras: “A filosofia das formas simbólicas – I – A Linguagem”
(2001), e “Linguagem e mito” (2006).
Através dos estudos com o teórico Usener em “Os nomes divinos”, onde este vai traçar um
paralelismo entre a história e filosofia das religiões através de estudos comparativos de
linguística e filologia, Cassirer (2006), percebendo a semelhança do nascimento de diversos
deuses em distantes culturas, afirma sobre uma lei geral da formação de conceitos na religião
e na linguagem, um estado fundido na consciência linguística primordial, saindo do estudo
comparado histórico para refugiar-se em uma fenomenologia do espírito. As palavras
originar-se-iam de uma conexão entre o objeto e a palavra que o designa, advinda das
impressões sensoriais e dos sentimentos. Nesse ponto é importante salientarmos dentro dos
estudos do mito a questão mítico-religiosa que o fundamenta: esta questão serve não só à
linguagem, mas a criação de símbolos, infiltrando-se na cultura religiosa, nos valores que esta
acarreta para os povos, nos sentimentos exauridos ao meio, enfim, tudo aquilo que é
denominado sagrado que, por ser novo, diferente, significativo, vem carregado de valor
mítico-religioso, podendo ser um lugar, objeto, pessoa, nome, etc.. Apresenta-se em diversas
culturas para justamente designar este sagrado, sob os mesmos aspectos e condições para seu
nascimento.
Tendo o sagrado como questão a priori para a criação da linguagem, observa-se que esta
linguagem ilustra como de um “fenômeno” isolado partimos para uma ideia geral, isto é, um
conceito. Cassirer (2006) refere-se a este processo como um modo “individualizador” da
conceituação histórica em face do modo “generalizador” da conceituação. O filósofo expõe a
precariedade em justamente “validar” o que é agora, no sentido que para ser aceito pela
ciência histórica, pois para esta, “o fato particular só adquire significado em virtude das
conexões que vai estabelecendo” (p.47) quando devem ser levadas em conta as condições nas
quais nos encontramos frente ao mundo para a formação da consciência. A linguagem
organiza e classifica o real conforme é percebida e apreendida. Cassirer explica que uma
mesma palavra tem diversos significados para “designar” a mesma coisa em tribos distintas.
Como explica o filósofo, “a diversidade entre as várias línguas, não é uma questão de sons e
signos distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo” (2006:50). Através deste
pensamento, clareia-se o quanto o mito responde à questão primordial da linguagem:
Esta abrangência distancia o sensível, elevando todo seu potencial em uma esfera
conceituada, classificada, onde o pensamento mítico coloca-se como a essência a priori no
momento em que se apresenta ao indivíduo. Para Cassirer (2006), a percepção científica
alarga, enquanto o pensamento mitológico estreita e aprofunda. É a percepção primeira,
tocante, atrelada ao sagrado e religioso sobre a realidade que o mito se faz presente.
Capítulo. 2: Da palavra proferida de Nhinhinha
Joseph Campbell
(...) a palavra, como se fosse uma estrutura de outra ordem, de uma nova
dimensão intelectual, interpõe-se, por assim dizer, entre os diferentes
conteúdos perceptivos, tais como se impõem à consciência no seu imediato
aqui e agora; e, precisamente esta interposição, este sobressair-se da esfera
da existência imediata, é que lhe confere a liberdade e agilidade que lhe
permite mover-se entre um conteúdo e outro e conectá-los entre si. (...). Aqui,
de nada vale o simples 'referir' ou 'significar', mas todo conteúdo, para o qual
tende e se projeta a consciência, é transformado imediatamente em forma da
existência e na do atuar" (2006:74)
4
CAMPBELL, Joseph. O Poder dos Mitos com Bill Moyers – Organização: Betty Sue Flowers.
Tradução de Carlos Felipe Moisés. 13ª ed. São Paulo: Palas Athena, 1995.p. 62
Esta primeira manifestação generalizadora da palavra sob uma apreensão religiosa encontra-
se no Mana da Melanésia. Esse representa um “campo de forças” mítico (2006:82) sobre o
mundo, encontrado nas coisas e na atividade humana. Aplica-se tanto ao material quanto ao
espiritual, onde “o Mana torna-se uma espécie de substância que representa a essência e a
símile de todos os poderes mágicos contidos nas coisas individuais. Constitui uma unidade
por si existente, que, no entanto, pode repartir-se por numerosos seres e objetos” (2006:86).
Esse conceito de Mana também é encontrado não apenas nos povos da Oceania, mas também
América, Austrália e África, onde as palavras assumidas para designar esse mesmo poder
universal para com as coisas, atividades, adquirem outros nomes (manitu para as tribos dos
Algonquinos, wakanda na tribo dos Sioux, mulungu no dialeto Banto). Esse conceito difunde-
se a toda uma esfera do novo, sagrado, impessoal e indefinível, sendo, portanto, uma palavra
que expressa muitas vezes algo que não se pode expressar, como um Deus, a realidade, seus
fenômenos. Portanto o Mana permitiria essa transição a tudo que não pode atribuir qualquer
significação; é o estágio da consciência mística mais arcaica e também da conceituação onde,
depois desse, dar-se-iam os deuses fugazes, os especiais, os pessoais e, por fim, o Deus uno,
isto é, lugar em que se figuraria divindades definidas para cada atividade ou manifestação do
homem frente à realidade sendo o responsável por generalizar essas atividades, manifestações,
uma vez que não atribui nome, e sim essência e que depois, com a prática da linguagem passa
pelos estágios míticos até o conceito formal.
Mediante a este modo arcaico de agir sobre a realidade frente a um conteúdo linguístico,
temos uma raiz comum de onde mito e linguagem tenham surgido, uma vez que atua em
ambos uma mesma “forma de concepção mental”. Essa “concepção mental” denomina-se
pensar metafórico. O mito refletido na linguagem, metáfora, dar-se-ia através de um
movimento concentrador de percepção e intuição frente ao objeto. A metáfora como uma
necessidade do espírito, causada pela tensão existente entre o sentir e o nomear.
Aqui, a intuição não é ampliada, mas sim comprimida, concentrada, por assim
dizer, em um só ponto. É neste processo de compreensão, que efetivamente se
destaca aquele momento sobre o qual recai o acento da ‘significação’.
(2006:108)
Esse movimento concentrador, segundo Cassirer, é “a conexão e a coesão mais imediata que
a linguagem é capaz, em geral, de proporcionar” (p.112). Aqui não é levado em conta o
significado, mas sim o significante como forma “qualitativa” de representação significativa da
realidade.
O pensar metafórico para os povos antigos acha-se nos próprios sons da natureza –
onomatopeias - onde o homem foi levado a falar através de metáforas para justamente poder
expressar-se no mundo; uma vez que intuídas impressões sensíveis, onde sua gênese de daria
com os deuses instantâneos, revelando-se como uma força inteligível, correspondente a sua
percepção frente ao material fônico-linguístico proferido.
Através dos sons articulados (não podemos deixar de escrever que nosso objeto de estudo se
dá através de uma personagem de nem bem quatro anos) no qual é extraído da realidade um
conteúdo significativo para entender, interpretar e significar essa realidade.
A simples interjeição, o som isolado que expressa uma emoção e uma exaltação, e
que resulta de uma expressão momentânea arrebatadora, passa a fazer parte de uma
sequência fonética corrente e ordenada no qual se refletem a coerência e a ordem da
ação (A Filosofia das Formas Simbólicas - I – A Linguagem, 2001:186).
Mia Couto
Em seu artigo "Mito e linguagem infantil em Guimarães Rosa" (2003), Clotilde Passos de
Souza Favalli discute, justamente com as teorias de Ernest Cassirer, a ligação entre o mito e a
5
COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991, p.21.
6
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. A educação do ser poético. Rio de Janeiro, ano 3, n.15,
1974.
linguagem nos contos "A menina de lá" e "A partida do audaz navegante", ambos de
"Primeiras Estórias" (1962). Ambas as personagens, por serem crianças, tornam-se exemplos
primordiais do estágio pré-mítico no qual a criança passa a adquirir a conceituação abstrata da
língua. Para Favalli (2003), as fabulações e construções de jogos são condições para o
surgimento dos mitos, uma vez que “a criança crê na realidade do que inventa ao brincar ou
narrar” (p.51). Essa realidade se faz através da ligação entre jogo (fabulação) e linguagem.
O alimento para as fabulações de Brejeirinha está justamente no universo que essa cria ao
vestir a sua brincadeira com a roupagem da linguagem: o “Audaz Navegante”, assim que
toma forma concreta, nutre os novos passos da história que a menina conta: são práticas, jogo
e linguagem, onde ambas se estimulam entrelaçadas em um liame que já não se separam, mas
se completam. Nosso narrador nos deixa ciente quanto ao fabular - que como esse denomina
“esquisito do juízo ou enfeitado do sentido” - de nossa menina, Nhinhinha:
Ou referia estórias absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou
para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa
de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; (p. 22).
A apreensão dos pensamentos de Nhinhinha, com suas estórias "absurdas", "vagas", fazem
parte desse jogo lúdico de “brincar” com as palavras, onde o que é imaginado é falado. Em
nossa menina, testemunhamos o ato de imaginar assim como em Brejeirinha, que recria um
mundo dentro deste mundo - o esterco que vira seu valente navegante. Mesmo a última tendo
uma conceituação mais abrangente da linguagem, lendo "35 palavras no rótulo da caixa de
fósforos", conforme aponta Favalli (2003), ambas as estórias fazem correspondências por
assinalarem personagens onde se presencia o nascimento da palavra frente à realidade sob um
conteúdo sensitivo, estimulado pelo inventar que ambas assumem nos contos. Brejeirinha
exterioriza o que vê, sente, ao presenciar o afastamento do casal de primos enamorados.
Nossa menina, com sua intensidade no viver, transpõe seu desejo e suas experiências por
metáforas que apreendem o momento mais primitivo da sua relação/experiência com a
palavra.
Essa "transposição" do sentir de Nhinhinha por conteúdos significantes, para Cassirer (2001)
não acontece apenas no desenvolvimento da linguagem infantil, mas também na linguagem
dos "primitivos".
Nos meses iniciais, ao expressar emoções por sons inatirculados, esses não
aportam alterações nos sentimentos do recém-nascido. Algo diverso ocorre
quando a linguagem evolui para os primeiros termos e frases, ao ligar cada
coisa a um signo sonoro. Enriquece-se então o vocabulário, mobilizada a
criança pela necessidade de sistematizar/controlar a realidade. Sua tendência,
portanto, a apoderar-se do mundo pela linguagem está na base e é condição
do estágio posterior do conceito genérico, fonte das abstrações que hão de
constituir as formas simbólicas da sua maturidade espiritual. Os primitivos
sentimentos exacerbados apreendidos nos primeiros termos linguísticos
perdem paulatinamente a onipotência, pois cada vez mais discriminada como
objeto e não mais vivida como sujeito que a emoção, através da palavra,
retorna à subjetividade de onde emergiu (2003:32)
Nessa exposição do processo de pensamento infantil, verificamos como, à medida que ocorre
o exercício da linguagem, uma vez que a linguagem não pertence somente ao “reino” dos
mitos, mas também faz parte do poder do logos, a criança desprende-se do invólucro da
palavra sensitiva, imediata, para dar lugar à palavra abstrata, “larga”.
Adentremos no conto de Guimarães Rosa "A menina de lá". Maria dita Nhinhinha, é uma
garotinha "com seus nem quatros anos" que mora em um espaço interiorano, atrás da Serra do
Mim, no Temor de Deus. Quieta, "pouco se mexia". É “pela entranhes das palavras” que
profere que se dá a sua relação para com o mundo. Nhinhinha, com sua mansidão, ri,
deslumbra-se sempre, ao disparar suas metáforas, ora abrangentes e externas “Tatu não vê a
lua", "A gente não vê quando o vento se acaba", "Alturas de urubu não ir”. Ora, há palavras
concentradas em seu sentir "Eeu? Tou fazendo saudade". A sua imobilidade, retidão faz com
que se saiba pouco sobre ela. É em seu silêncio que Nhinhinha mostra sua "sabedoria" diante
da vida. Mesmo sabendo pouco de seus gostos o narrador revela: "E Nhinhinha gostava de
mim". Ao se depararem com noite ela exclama "Cheiinhas", referindo-se as estrelas e mais
adiante “estrelinhas pia-pia" e ainda "tudo nascendo". A grande plasticidade da vida é
apresenta para a menina aonde "o dedinho chegava quase no céu".
Mas não é só aqui, (afinal, ela é de lá) que Nhinhinha se interessa: ela pede para nosso
narrador: "Eu quero ir pra lá. - Aonde? - Não Sei”. Em Nhinhinha exerce-se um poder que
transcende a ordem objetiva das coisas, ela quer ir a um lugar onde lhe falta conceituar, mas
que sabe que existe. É como se este plano a limitasse, quando falava de parentes mortos dizia:
"Vou visitar eles”.
Em meio a isso, Nhinhinha realiza milagres. Quando deseja algo, de pronto este acontece.
Quando diz: "Eu queria o sapo vir aqui", ou "Eu queria uma pamoinha de goiaba" logo seus
pedidos tornam-se realidade: aparece a rã verde, o doce de milho trazido por uma dona. A
família espanta-se com os poderes. De modo que quando a mãe de Nhinhinha adoece, seu pai
pedindo para que a menina falasse a cura, esta não fala, mas devolve a saúde da mãe após
beijá-la onde em seguida esta melhora, o que os pais compreendem que seus "poderes" vão
além das palavras. Mais adiante no conto, quando o brejo onde a menina mora sofre por causa
da seca, os pais pedem para que essa faça chover: "Mas não pode, ué..." Porém, a menina,
dois dias depois, deseja ver o arco-íris e com isso a chuva cai sobre o brejo, sobressaindo em
verde e o vermelho que era mais um vivo cor-de-rosa (p.25) o arco-da-velha. E num
rompante, Nhinhinha adoece e morre, e o narrador esclarece: “diz-se que da má água desses
ares. Todos os vivos atos se passam longe demais” (p.25). A dor da mãe é expressa pela cena
em que esta com seu terço, mas ao invés das ave-marias, só consegue pronunciar palavras da
filha. O pai, alisando o tamboretinho da filha, Tiantônia, sentindo-se “metade” morta. Essa, ao
final, faz uma revelação surpreendente aos pais de Nhinhinha: que no dia do arco-íris, a
menina solicitou um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.
Os pais atribuem isso a agouraria. Em meio a repulsa do pai em atender o desejo da menina, a
mãe de Nhinhinha entende que assim seria, pois como desejo da filha, este se cumpriria,
santificando-a como Santa Nhinhinha.
As palavras primitivas, para Vico, ter-se-iam originadas de raízes de uma única sílaba, sob
forma de onomatopeia, os sons "objetivos” da natureza, que depois originariam os pronomes,
seguindo-se de raízes monossilábicas, substantivos, verbos e, por fim, a linguagem.
7
Os negritos a seguir são nossos por não fazerem parte do original.
8
Grifo nosso.
9
Nesse momento do conto temos um processo de aglutinação: o narrador explica que a sentença
proferida por Nhinhinha. “Alturas de urubuir” é na verdade “altura de urubu não ir” e justifica: “O que
falava, ás vezes era comum, a gente ouvia exagerado(...)” (p. 23)
10
Nesta frase ocorre o processo inverso ao anterior, ou seja, uma desaglutinação: ao referir-se sobre
um pássaro que voltava a cantar, o narrador diz “A Avezinha”. No entanto, Nhinhinha passa a chamar
o sabiá de “Senhora Vizinha”, isto é, nossa menina separa a frase através da segmentação apresentada
aos seus ouvidos.
(des) ordenadas de entendimento, reconhecemos seus significantes. Assim, penetremos (mais)
surdamente no reino das palavras. 11
Na palavra acima (xurugou) temos o que talvez seja a mais instigante do conto pois, além de
seu significado limitar-se somente a imagem acústica, uma vez que não se sabe seu conceito
objetivo, Nhinhinha apresenta tal palavra duas vezes. A primeira é quando nosso narrador
quer exemplificar o que o pai de nossa menina afirma quanto às palavras que Nhinhinha
profere: Ninguém entende muita coisa que ela fala... Menos pela estranheza das palavras,
pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - 'Ele xurugou?' - e, vai ver, quem e o quê,
jamais se saberia (p. 22) Outra é quando fala com nosso narrador, após ser repreendida por
esse por querer “visitar parentes já mortos”. Olhando “zombasmente” para o narrador,
dispara: Ele te xurugou (p. 24) Ele te chamou? Abençoou? Encantou? Falou? Quem é “Ele”,
se no universo familiar de nossa menina só se compunha Pai, Mãe, Tiantônia e em rápido
momento, narrador? Quem é “Ele” que está fora e tão dentro da vida de Nhinhinha e da
onisciência de nosso narrador?
Aqui não nos interessa saber, não nos caberia. O mistério faz parte das coisas do mundo, faz
parte das palavras nas obras de Guimarães Rosa. O que podemos notar é que a estranheza da
palavra “xurugou” está para “lá” do entendimento de nossa menina. Ela parece entender a sua
funcionalidade ao apropriar-se do vocábulo em diferentes momentos, estando em contato com
diferentes pessoas. Essas ao seu redor não sabem sobre o significado do termo, e o narrador
explica: Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. (p. 22). Esquisito do juízo ou
ainda não de todo dele, do juízo, do intelecto, raciocínio. Recorremos novamente aos mitos
para saber o que eles nos esclarecem.
Com a palavra "xurugar", por tratar-se de um verbo devido à sua conjugação que aparece no
conto, “xurugou”, conforme os estudos mítico-linguísticos, as vogais u e a, com a expressão
em sua forma infinitiva e respectivamente o e u em sua forma flexionada, remetem justamente
às distâncias, alturas em que Nhinhinha não pode (por enquanto) ir. Nhinhinha aprecia o que
está para além de si mesma, o que está para “lá”. No conto, as dimensões desejadas por nossa
personagem refletem-se no léxico da estória: lua12, abelha, nuvem, casacão da noite, estrelas,
urubu, céu, passarinho, sabiá, andorinhas, arco-íris, anjos. Conforme a teoria defendida pelo
filósofo, percebemos que todas as palavras que significam alturas conservam, a partir do
princípio onomatopaico, as mesmas vogais: vestígios do espanto de Nhinhinha frente àquilo
que a razão não pode definir, mas somente seu sentir pode “comprimir/exprimir” a essência
das impressões recebidas por ela: experiências linguísticas de quem só a capta mediante a
pura vida.
12
Grifo nosso
Capítulo 3: O SAGRADO EM “A MENINA DE LÁ”
No sertão, quase no meio de um brejo de água limpa (p. 22), mais precisamente no Temor-de-
Deus, encontra-se Nhinhinha, que como na maioria dos personagens das obras roseanas, está -
mergulhada na ambiguidade de sua vivência no mundo. Com sua linguagem metafórica que
transcende a descrição da experiência, transforma suas percepções com olhar de poesia
sensível.
Para Eliade (2002), os estudos das hierofanias podem se dar desde os ritos, mitos, formas
divinas, de objetos sagrados e venerados, de símbolos de animais, de plantas, de lugares.
Nesse último temos o reconhecimento do local que abriga Nhinhinha como um lugar sagrado,
ou seja, na definição do dicionário, a que se deve o maior respeito.
A casa de Nhinhinha, em meio às “águas” de seu brejo, suscita por si só a importância dessa
simbologia em nossa estória: a água como símbolo da vida, que traz para a família de nossa
menina o alimento, fazendo com que o pai trabalhe e viva da terra (e que também tema de não
viver, caso essa, a água, acabe com a grande seca que assola seu pequeno sítio, ameaçando
estorricar o brejo); assim como a mãe, que lida com criação; a água que traz para nossa
menina sua rã brejeira, a chuva para seu posterior arco-íris.
No alto é onde encontramos o prelúdio para o “lá” de Nhinhinha. Quando sua morada é
acometida pela seca, pondo em risco toda vida existente, inclusive a de seus familiares, seu
pai pede para que a menina quisesse chuva. No entanto, ela responde: Mas, não pode, ué...
(p.25) permanecendo “repousada”, sem se importar com as necessidades mundanas, da
mesma forma quando a mãe adoece e a menina não fala a cura. Mas, “daí a duas manhãs”,
deseja ver o arco-íris, ocasionando a chuva em Temor-de-Deus. Nesse momento, temos a
única exaltação de nossa menina. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a
refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. (p. 25). Era a
despedida de Nhinhinha... O arco-da-velha simboliza um sinal para nossa menina: o
13
Léxico sobre as “alturas” desejadas por Nhinhinha já citadas na análise mítica: lua, abelha, nuvem,
casacão da noite, estrelas, urubu, céu, passarinho, sabiá, andorinhas, arco-íris, anjos.
cumprimento de sua vontade em visitar os “parentes já mortos”; as cores sobressaídas do
círculo colorido (verde e rosa) são as cores que a menina deseja em seu caixãozinho, “cor-de-
rosa com enfeites verdes brilhantes” 14.
Como bem expõe Eduardo Teixeira em sua tese de doutorado “A reabilitação do sagrado nas
estórias de João Guimarães Rosa e Mia Couto” (2005), o arco-íris, além de estabelecer uma
fugaz ponte entre terra e céu, simboliza, na concepção do homem religioso, com amparo nas
escrituras, a aliança entre Deus e Noé de que a Terra não seria mais destruída por dilúvios.
(2005:06)
A vida religiosa é também perceptível no real nome de Nhinhinha, Maria, que evoca a “santa
mãe de Deus”, a virgem sem pecados, um ser especial que tem uma missão no mundo: dar à
luz, através do espírito santo de Deus ao filho primogênito e redentor do mundo, Jesus Cristo.
Quando Nhinhinha morre, sua mãe a promove-a como “Santa Nhinhinha”.
Retornemos ao estudo de Eduardo Teixeira quando recorre à análise de Alfredo Bosi para
explicar a promoção à Santa atribuída pela mãe de Nhinhinha à sua filha:
Como explica Teixeira, o nome Maria tem seu significado redimensionado. Não bastasse esse
sentido “sagrado”, “Maria” é um nome atrelado na hagiografia católica às santas mártires.
(p. 3). Isto é, não só o nome de nossa menina, mas todas as condições que envolvem sua
existência: os milagres que opera, sua morte prematura, o fato ser única filha. Todos esses
elementos tornam Nhinhinha uma pessoa venerada, santificada; acentua a pureza e lirismo de
nossa menina a fazer alusão a Maria, a “virgem santa”.
Porém, em nossa estória, Maria ganha a alcunha de Nhinhinha, menininha, pequenina; como o
nosso narrador a descreve, nascera já muito para miúda, cabeçudota (p.22). Seu nome,
corrompido e ajustado à sua forma “reduzida”, como todo o corpo da obra com palavras
abundantes no diminutivo: sentadinha, tolinha, cheiinhas, estrelinhas pia-pia, vestidinha,
dedinho, passarinho, avezinha, pulinhos, pamonhinha. Nessa sequência, há uma ênfase no
universo da criança, no universo de nossa santa, onde as coisas assumem sua forma, tem essa
forma, como sua “pamonhinha”, seu “tamboretinho”, seu “caixãozinho”. A oralidade, tão
destacada nas palavras que possuem o mesmo sufixo inho(a), mostra o quanto Nhinhinha faz
parte de uma cadeia de significantes, que posteriormente, assumem significados. Além disso,
essas confluências de palavras trazem um tom de simplicidade (mineirez) do sertão, onde Pai,
Mãe, são assim apenas identificados pelos lugares que ocupam na vida de nossa menina.
Contudo, a "tolerância” que tem para com esses não é a mesma que pela Tiantonia, única a
receber nome no conto, a primeira a testemunhar seus poderes; é a que repreende a menina ao
saber de seus anseios de morte.
Aí, Tiantonia tomou coragem, carecia de contar que, naquele dia, do arco-íris
da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositadamente desatino,
por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa,
com enfeites verdes brilhantes... agouraria! Agora, era para se encomendar o
caixãozinho assim, sua vontade? (p.25)
Embora Nhinhinha expresse a pureza e inocência da criança, não nos enganemos quanto à
nossa personagem: a força dela permanece mesmo depois de sua partida, significando os atos
de seus pais: a mãe, ao invés de rezar suas “ave-marias”, evoca as palavras da menina; o pai,
que no começo da narrativa é descrito como cultivador da terra, agora cultiva o
“tamboretinho” de sua filha, o objeto que essa “se sentava tanto” alisando-o, já que sentar não
podia, devido ao seu “peso de homem”; sentar não podia devido à falta de pureza e inocência
que não possuía. - o “peso” de ser adulto. Sua força maior é expressa pelo seu último desejo
realizado, afirmando seu milagre, sua santidade.
Nossa menina tem em seus nem bem quatros anos a sabedoria e perspicácia tão atribuída à
mulher ao longo da história: dissimulada em suas ações, fala pouco com os adultos, observa
mais e fabula muito sozinha, captando "só a pura vida". É uma menina das essencialidades,
tanto, que com boa saúde, nos pega na contramão com sua morte. Não que não fossemos
avisados: "lá" é onde encontramos os motivos, mas não as respostas.
A personagem tem sua ligação com o “obscuro” ao referir como "feitiço" sua primeira
adivinhação: E ela riu: - ‘Está trabalhando um feitiço... ’ Os outros se pasmaram;
silenciaram demais. (p.24 - grifo nosso). No Mana, os “feitiços” de nossa menina seria a
manifestações de seus poderes. Mas a aura religiosa do conto é católica, sacra: a mãe da
menina, com suas ave-marias, a própria Nhinhinha que deixa a vida para entrar na morte
como “santa”. Por isso, temos a questão do sagrado como uma linha dúbia: ao mesmo tempo
em que os pais “veneram” sua filha, também querem "esconder" da sociedade os "poderes” da
menina, transformando seu contato em tabu.
Mircea Eliade (2002) explica esse movimento dual recorrente com o sagrado.
A estranheza acerca do discurso, das palavras proferidas por Nhinhinha não se limita somente
às suas adivinhações; ao seu mundo “proibido”. No início da narrativa, ao narrar a quietude da
menina, o narrador diz que essa não queria nada, que não queria saber de "bruxas de pano", o
que nos leva a fazer uma alusão à era medieval, onde as mulheres eram acusadas de bruxarias.
A estranheza da palavra bruxa ao invés de boneca, traz uma aura de misticismo, magia; ecoa
sobre os “poderes” de nossa menina. Mesmo sendo seus desejos simples, "só que queria
muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita" (p. 24),
porém, a própria denominação desses pela personagem como feitiços, vai caracterizá-la como
uma bruxa do bem.
Em "Guimarães Rosa do feminino e suas histórias", Cleusa Rios Passos (2001) acompanha a
trajetória assumida pelas mulheres nos contos roseanos, buscando rastrear representações do
feminino em tempos distintos por vezes, finalmente combinados. Em se tratando das
mulheres-feiticeiras, Cleusa Passos explica que na antiguidade a ideia da ação mágica
benéfica justifica a existência da boa feiticeira (2001:110). Por duas vezes, Nhinhinha acaba
por fazer “feitiço” para benefício de seus familiares. O primeiro é quando a mãe adoece
quando nenhum remédio poderia curar. Nhinhinha também não fala como curar a mãe, dizia
apenas "Deixa, Deixa...", porém com um abraço devolve a saúde da mãe, quando fica-se
sabendo de seus outros modos de cura. O segundo é quando Temor-de-Deus se encontra em
grande seca. “Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. - 'mas, não pode, ué'
ela sacudiu a cabecinha”. (1962:25). Contudo deseja ver o arco-íris, e assim chove no sertão,
para em seguida aparecer o arco-íris de Nhinhinha.
O duplo significado do sagrado é tão intrínseco quanto a questão do mito e da linguagem. Sua
indivisibilidade, sua dicotomia, se faz com nossa menina que, ao mesmo tempo, é "viçosa em
saúde", mas que pertence ao mundo dos mortos.
A morte, tema recorrente nos estudos míticos por tratar-se de algo, em sua máxima,
misterioso e, portanto, transformador para a consciência humana, logo sagrado: a morte como
um processo cíclico, necessário; morte para a vida, que dá lugar ao novo. Talvez essa, a
morte, seja a responsável pelo tom no qual Nhinhinha vive e sente a vida. É sobre esta que se
estrutura, ora consciente, ora inconsciente de sua condição. A vida e seu destino são questões
recorrentes na obra do escritor. Com a ruptura desta vida para “lá”, para o desconhecido,
Nhinhinha nos deixa impotentes perante sua certeza, seu desejo.
No livro "Morte e Alteridade em Estas Estórias" (2001), Edna Tarabori Calobrezi analisa a
questão da morte e sua composição nos personagens da obra póstuma de Guimarães Rosa
"Estas Estórias", onde verificamos que essa se estenda aos demais trabalhos roseanos:
A tensão entre os opostos - como vida e morte - é perceptível também pelas características
constitutivas de nossa menina: Nhinhinha nasce “miúda”, “cabeçudota”, mas com olhos
enormes, o que lhe concede um ar de estranheza. Porém, a cada fala da menina, o narrador
atribui-lhe graciosidade com o riso da menina: esse tom faceiro, de sorrir sempre, ora
compreendendo as coisas com “riso imprevisto”, ora atribuindo-o ao seu pedir, pedindo.
Aqui, o riso como símbolo da criança, da essência. “Suasibilíssima” 15, persuade-nos
com seus risos, suas “estórias, absurdas”, com todo fabular de criança, contudo não se anima
com brincadeiras, brinquedos; é calma, “inábil como uma flor”. Entre um silêncio e outro, o
narrador rompe com uma pergunta: “Seria mesmo seu tanto tolinha?”. Nhinhinha chama o pai
de menino pidão, a mãe de menina grande. Zangavam-se, mas a verdade é que Nhinhinha não
se distingue frente aos pais: iguala-se com esses, não os diferenciando quanto à postura que
assumem na casa. (...) o respeito que tinha por Mãe e Pai pareciam mais uma engraçada
espécie de tolerância (p. 23) Ora, mas não são os pais que precisam ser tolerantes com as
crianças frente àquilo que elas não entendem?
Nhinhinha deixa-se observar pelo mundo ao invés de ser observada. Como já mencionamos,
nosso narrador afirma: “Só a pura vida” é com o que Nhinhinha perde tempo; “fazer listas das
coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo” mostra mais uma vez o que já
afirmamos: a essência do mundo está a serviço da menina. Até para comer, Nhinhinha opta
pelo gosto maior das coisas: prefere do prato aquilo que é mais prazeroso, “mais gostoso e
atraente”, para depois comer o restante.
15
Conforme define Nilce Sant Anna em sua obra “O léxico de Guimarães Rosa”, a palavra “suasibilíssima” vem
de “suasível”, variante de “suasivo”, “próprio para persuadir” 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 470
afirmava da menina. Fugacidade à parte, começa o narrador por contar seu contato com a
menina ao observar a noite. Flagra para nós, leitores, o momento em que a sonoridade guia os
ouvidos e logo, as significações de Nhinhinha para com mundo: o narrador, ao se dirigir sobre
o pássaro que tinha parado de cantador diz “A Avezinha”, Nhinhinha passa a chamar o sabiá
de “Senhora Vizinha”. Nessa hora presenciamos a fala reticente, passageira, para falas longas:
Eeu? Tou fazendo saudade. (p. 23)
Nosso narrador também (de “lá”?) apresenta - se tão próxima de nossa menina quanto Tia
Antônia. Ao falar que queria visitar os mortos, o narrador repreende a menina. “Ralhei, dei
conselhos, disse que ela estava com a lua”. (p. 24). Não, nossa menina de nem bem quatro
anos, que escuta conselhos de outrem não é tolinha; com “seus olhos muito perspectivos”
observam a tudo e a todos. O narrador distancia-se de nossa personagem. Todavia começa por
narrar seus “milagres”. Quando expõe a alegria dos pais, uma vez esses planejam no futuro a
ajuda que Nhinhinha dará a eles, o narrador despeja a morte repentina da menina, explicando:
Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais (p. 25).
Não há um motivo consistente para a morte de Nhinhinha, e sua ambiguidade, como um ser
tanto para a vida quanto para a morte, dividido de forma eloquente nesses dois mundos, faz
com que a sua misteriosa ida para o lado de “lá” seja “necessária” para compor a personagem.
Este é o momento de glória da “Santa Nhinhinha!”!
Refletindo sobre a morte, destacamos Vera Novis em “Tutaméia: Engenho e arte” (1989).
Seja metaforicamente, como já apontamos por Edna Calobrezi (2001), ou como momento de
iluminação trazido por Vera Novis (1989), a morte como a única concretude da vida circunda
toda a produção de Guimarães Rosa. O conto encerra-se com essa certeza que muitas vezes
oscila diante de nosso narrador que atribui vivacidade, saúde à menina, e que subitamente
depois lhe tira de nós. Ela se vai tendo seu último desejo revelado só ao final: um caixãozinho
cor-de-rosa com enfeites verdes brilhantes. Retomando o comentário do narrador, “Só a pura
vida”!
Levantaremos certas categorias poéticas do conto. Os procedimentos aqui expostos têm por
objetivo permitir a apreciação mais meticulosa de como o conto fez-se estória:
OS NEOLOGISMOS
Por aglutinação:
(...) o que falava às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado:- 'alturas
de urubuir’... Não, dissera só: -'altura de urubu não ir. ' (p. 23)
Na fala de nossa menina, sua linguagem revela justamente a condição infantil que esta sujeita
sua oralidade: Nhinhinha junta as palavras, pois é assim que essa se apresenta aos seus
ouvidos.
Por desaglutinação:
Nessa frase ocorre o processo oposto ao anterior, isto é , uma desaglutinação: em decorrência
de ouvir do narrador “A Avezinha”, Nhinhinha, guiada pela a oralidade, infere outra palavra
separando o “a” da “avezinha” e “transformando-o” em artigo, ou seja, é como se entendesse
“A Vizinha”, que é como passa a chamar o sabiá: “Senhora Vizinha”.
Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para os pés de Nhinhinha - e
não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima
(p. 24)
Verduroso: relativo a verde, o uso dessa palavra não dicionarizada, tem no sufixo "oso" a base
de sua formação, algo típico da fala popular.
(...) que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem
assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser!
(p. 26)
Justaposições
“Limpa lugar”, “Pai pequeno”, “mão mesmo”, “Maria Nhinhinha”, “propósito parava”,
“sempre sentadinha”, “palavras pois”, “comprida comprida”, “vai ver”, “quem ou o quê”,
“gostar ou desgostar”, “colo comia”, “perpétua e impertubada”, “fazendo fazia”, “tanto
tolinha”, “coasse café comentava”, “deixa...deixa”, “alturas de urubuir”, “vou visitar”, “só
sentada”, “vinda verduroso verdíssima visita”, “adoecer de dores”, “veio vagarosa”, “tinha
também”, “versar conversas”, “poucos pegava”, “quis queria”, “cochichavam contentes”,
“diversas dores”, “de de – repente”, “despropositado desatino”, “a agouraria agora”, “bruscas
lágrimas”, “se serenou sorriso”, “santa nhinhinha”.
Os jogos fônicos dão ritmo ao conto roseano: trazem poeticidade e harmonia ao texto.
(...) a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando passando
descompostura em alguém (p. 22)
17
Adotamos o termo usado por Avani Souza Silva em sua tese “Guimarães Rosa e Mia Couto:
ecos do imaginário infantil”, tese defendida pela Universidade de São Paulo em 2006.
Sorria apenas, segredando seu -'Deixa...Deixa...'-não a podiam despersuadir.
(p. 24)
E mais para repassar o coração, de se ver quando a mãe desfiava o terço (...)
(p.25).
Os prefixos indicam uma ação contrária à sua raiz. Em grande decorrência na obra de
Guimarães Rosa, demonstram a operância que o escritor assume ao usá-los, comprimindo
ideias a partir da construção das palavras frente a esse recurso linguístico.
Considerações Finais
A proposta de nossa análise foi a de discutir o mito e a linguagem, ambos em seu nascimento,
por meio da fala da personagem Nhinhinha de forma a examinar o seu discurso e o processo
de significação de suas expressões.
A criança aqui assume um papel essencial para o surgimento do mito na fala: suas frases não
concentram o pensamento científico como forma de organizar e classificar a realidade. O que
prevalece são os sons e sua identidade de essência para com a coisa nomeada.
Com a análise dos termos pronunciados por Nhinhinha, conferimos como eles contêm
vestígios de seus anseios: palavras, sons, vogais que se aproximam ao sentido, impressão em
que se prestam. Contudo, a exposição apresentada por nós é iniciatória: exige olhares mais
demorados, aprofundados, portanto, para outros momentos também maiores.
Dessa forma, Nhinhinha sensibiliza-nos com seu olhar/linguagem sobre os enigmas da vida.
O mito e linguagem se servem um do outro para justamente transpassar a conceituação desses
mistérios: transcendendo essas, tornam-se estórias, poesias, vida que se concretiza pelas
palavras que escondem algo maias grave, profundo...Só a pura vida!
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. A educação do ser poético. Arte e educação. Rio de
Janeiro, ano 3, n.15, 1974.
BRAIT, Beth. Literatura Comentada: Guimarães Rosa. 2º edição. São Paulo: Nova
Cultural, 1988
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira – São Paulo: Culteux, 1994
CAMPBELL, Joseph. O Poder dos Mitos com Bill Moyers – Organização: Betty Sue
Flowers. Tradução de Carlos Felipe Moisés. 13ª ed. São Paulo: Palas Athena, 1995.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade – Coleção Debates. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MARTINS, Nilce Sant’ Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2ª ed. São Paulo: EDUSP,
2001.
NOVIS, Vera. Tutaméia: Engenho e Arte. – Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1989.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 13ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1979
Primeiras Estórias. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972
Artigos
Teses
SILVA, Avani Souza. Guimarães Rosa e Mia Couto: ecos do imaginário infantil. Tese
defendida pela Universidade de São Paulo em 2006.