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ANA PAULA BATISTA PEREIRA DE MORAES

O MITO E SEU NASCIMENTO ATRAVÉS DA FALA


DA PERSONAGEM NHINHINHA,
NO CONTO “A MENINA DE LÁ”,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

TCC – CURSO LETRAS

FACULDADE DIADEMA
DIADEMA – 2007
ANA PAULA BATISTA PEREIRA DE MORAES

TÍTULO: O MITO E SEU NASCIMENTO ATRAVÉS DA FALA DA


PERSONAGEM NHINHINHA,
NO CONTO “A MENINA DE LÁ”, DE GUIMARÃES ROSA

Monografia apresentada à disciplina


Trabalho de Conclusão de Curso, do Curso
de Letras da Faculdade Diadema, sob a
orientação da Prof. Dra. Valéria Monteiro,
como exigência parcial para a conclusão do
curso de licenciatura em Ensino Fundamental
II e Médio.

FAD - DIADEMA
2007
Monografia apresentada e aprovada em 30 de Março de 2008 pela banca
constituída pelos professores:

____________________________________________________________
Prof. Dra. Valéria Jacó Monteiro
Orientadora

____________________________________________________________
Prof. Ms. Maria de Lourdes

Convidada
Que nasci no ano de 1908, você já sabe (...) Minha biografia
literária não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não
têm tempo, não tem princípio nem fim. E meus livros são
aventuras, para mim são minha maior aventura. Escrevendo
descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito, o
momento não conta. Vou-lhe revelar um segredo: creio já ter
vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me
chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo repito o que
já vivi antes (...)Como escritor, não posso seguir a receita de
Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo
limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir:
não do ponto de vista filosófico e sim do metafísico, no sertão
fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o
sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o
homem é o 'eu' que ainda não encontrou um 'tu’. Por ali os
anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.

J. Guimarães Rosa
À minha mãe, Luzia Natalina Batista,

Pelo amor, luta e paciência com que sempre está ao meu lado. Nosso amor transcende essa
realidade.
Agradecimentos

À minha orientadora, Prof. Dra. Valéria Monteiro pela disponibilidade e

ajuda que demonstrou desde o início nessa jornada: confianças que se deram entre olhares

apaixonados pela literatura.

À Professora Ms. Gláucia Silva pelos primeiros norteamentos que precisei para a

orientação deste trabalho e que só me fizeram ter certeza de minhas escolhas.

Aos demais professores – todos grandes em seus momentos-, que depositaram em

mim, cada um, uma dose de otimismo, alegria, inquietação e poesia:

guardarei os ensinamentos, pelo uno gritante de nossos anseios, objetivos.

Aos colegas de classe, em especial Anderson, Cláudio, Márcia e Sérgio pela troca e

experiência de vida convivida nesses três anos de curso. Tecemos olhares, experiências: há

sentimentos em nossas conversas.

À minha tia, Rosa Batista, que repercute beleza não só no nome, mas na

sua imensa vontade de voltar para o sertão.

Ao meu primo, Alessandro Batista, pelas metáforas transpostas de forma lúdica.

Ao meu namorado pela ajuda e compreensão nos momentos de tensão.


SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................................................9

INTRODUÇÃO.................................................................................................................10

CAPÍTULO 1 - DA NARRATIVA E DO MITO........................................................................12

1.1 “A menina de lá” e sua relação com o mundo: a palavra que transcende...................12

1.2 Conceituando o mito.....................................................................................14

1.3 Da teoria transcendental para as formas simbólicas.....................................................18

CAPÍTULO 2 - DA PALAVRA PROFERIDA DE NHINHINHA..............................................20

2.1 Da palavra à metáfora poética.........................................................................................20

2.2 Nhinhinha e o infantil: o estado primordial por excelência...........................................23

2.3 Dos sons onomatopaicos até a formação das palavras primevas...................................27

CAPÍTULO 3 - O SAGRADO EM “A MENINA DE LÁ”........................................................32

3.1 O lugar sacro que abriga a menina de Rosa....................................................................32

3.2 A religião em Nhinhinha: o renascimento do sagrado...................................................34

3.3 A mulher e a feitiçaria: a ambivalência do sagrado.......................................................36

3.4 O narrador e nossa menina: o misterioso observador (e amigo) da morte sagrada de


Nhinhinha......................................................................................................................................38

3.5 Categorias de análise do conto.........................................................................................41

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................45

REFERÊNCIAS.............................................................................................................................47
MORAES, Ana Paula B. P. de. O mito e seu nascimento através da fala da personagem
Nhinhinha, no conto “A menina de lá, de Guimarães Rosa. 2007. 45 f. Trabalho de
Conclusão de Curso – Curso de Letras da Faculdade Diadema. São Paulo. 2007

RESUMO

Procuramos estudar e analisar o mito por meio da linguagem da personagem Nhinhinha, no


conto “A Menina de Lá”, de Guimarães Rosa, inserido em “Primeiras Estórias”, 1962.
Através de estudos e pesquisas referentes ao assunto, procuramos aprofundar, dentro das
discussões teóricas sobre o mito e de sua relação intrínseca com a linguagem, a estrutura
poética na linguagem da bizarra personagem Nhinhinha, que perfaz um estado primordial
dentro da consciência mítica, transformando desejos em concretudes.
Esperamos desta forma contribuir para alargamos o (re)conhecimento e a importância da
linguagem mítica na obra de Guimarães Rosa, em especial, no conto ”A menina de lá”.

Palavras–chave: conto, “Primeiras Estórias”, mito, sagrado, teoria da literatura, metáfora .


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo estudar o mito e seu nascimento através da
fala da personagem Nhinhinha, no conto “A Menina de Lá”, do escritor João
Guimarães Rosa, em “Primeiras Estórias” (1962).

Meu interesse por esse assunto surgiu quando tive meu primeiro contato com o
conto de nossa análise na aula de Literatura Brasileira. Através da maravilhosa leitura
da professora Maria de Lourdes,1 e agarrei-me ao sentimento e reconhecimento da fala
da principal personagem. Essa menina me disse algo mais do que a fala truncada -
porém não menos instigante - dos vaqueiros de Sagarana (1946), já experimentada por
mim antes, me tocando de forma emocionante: não era só o lirismo de Nhinhinha, mas
algo além da obviedade, algo que se expressava em muito nas poucas palavras da
menina. Essa familiaridade para com o conto fez me refletir sobre os dizeres de nossa
personagem quanto sua percepção de mundo; o romper de suas metáforas
desordenadas, mas, no entanto, significativas aos sentidos, que tocam a alma da gente,
nos trazendo não sei de onde um misto de confirmação e perplexidade.

Fui buscar respostas para minhas indagações e lembrei então do livro “O Poder
dos Mitos”, 1990, de Joseph Campbell, em entrevista com Bill Moyers, onde esse
último indaga à Campbell quanto ao mito ser uma “pista”, para as respostas do homem
frente ao mundo, e o historiador responde: Mitos são pistas para as potencialidades
espirituais da vida humana. (1990: 5)

Estaria nos estudos com os mitos a resposta/pistas para os meus


questionamentos sobre as potencialidades da fala de Nhinhinha?

Feita a escolha, comecei por organizar o trabalho estudando não somente o


mito e sua conexão com a linguagem, mas os aspectos que levam ao seu surgimento: a
questão do sagrado, evocados tanto na figura de nossa menina, quanto na sua morada,
além das análises sobre narrador, morte e por último sobre o discurso da estória.

1
Maria de Lourdes Ruegger Silva, 5º semestre do curso de letras pela Faculdade Diadema (FAD), ano
2007.
No primeiro capítulo serão estudas informações sobre o próprio conto, além de
toda teoria envolvendo mitos – do conceito à sua ligação na linguagem. Também
levantaremos a importância da fabulação para o mito. No segundo capítulo, trataremos
de analisar o conto propriamente dito, confrontando o discurso com a teoria. No
terceiro capítulo, buscamos distanciar nossos olhares para a questão do sagrado na
obra. Por último, analisaremos a linguagem na construção do conto a fim de
respondermos: Como se apresenta o mito e seu nascimento na linguagem através da
fala da personagem Nhinhinha, no conto de Guimarães Rosa, “A menina de Lá?”?
CAPÍTULO I – DA NARRATIVA E DO MITO

1. “A MENINA DE LÁ” E SUA RELAÇÃO COM O MUNDO: A PALAVRA


QUE TRANSCENDE

"Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu


desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos
anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm
certas coisas passadas - de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi.
Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas
horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo
muito recruzado”.2

Estudar Guimarães Rosa é estudar o inesgotável! Tão profundas são as palavras de que se
serve este reinventor de nossa literatura. Reinventor de significantes, da palavra renovada,
expandindo-a sob um olhar perspicaz e legítimo quanto às suas funções em sua obra. Vacas,
bois fazem-se personagens juntamente com seus vaqueiros em Sagarana (1943), sua obra de
estreia, trazendo poeticidade e inovação através das analogias construídas pelo escritor,
recorrentes em toda sua produção literária, além de sua extrema sensibilidade em captar “só a
pura vida” que se esconde sobre o plano da linguagem.

Na quarta obra de Guimarães Rosa, “Primeiras Estórias” (1962), temos o que o próprio autor
denominou como “uma obra da metafísica”. Em sua quarta estória se encontra nosso objeto de
análise.

Em “A Menina de Lá”, na poesia da fala da personagem Nhinhinha, se faz todo o


deslumbramento que a vida lhe traz, transcendendo as palavras e suas representações acerca
do mundo. Nhinhinha em seu discurso feito de frases escassas e desordenadas de sentido
mantém sua relação com seu Pai, Mãe, Tia e narrador. Fala pouco nossa reticente Nhinhinha e

2
G.S.V., p.142. Utilizo-me da 13a da José Olympio Editora, 1979.
é aí, na retidão de seu silêncio, que se inscreve tanto sua sabedoria, em sentir a realidade
tocante expressa por suas metáforas, quanto o mistério acerca de si, uma vez que, quando,
através de sua fala deseja algo, e o desejado se realiza, envolvendo a personagem numa aura
mítico-mágica, numa aura de “causos”, “estórias”.

Nossa protagonista se elucida na descrição feita por Paulo Rónai sobre os personagens de
“Primeiras Estórias”, 1972, no prefácio da obra:

(...) entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela
civilização, guindados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na
sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a
intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo,
os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe
dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória
do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.”
(1972:32)

Essa poesia em dizer muitas vezes o indizível, como observado por Rónai, ocorre por ainda
faltar a esses personagens “o domínio da linguagem abstrata”. Isto faz com que nos
apeguemos a uma linguagem que transcende o plano real das coisas, onde a fala de nossa
menina é justamente isso: palavras “desconexas”, quanto ao momento em que essas se
apresentam.

Nhinhinha tem uma querência em ir “pra lá”; e nós de “cá” queremos descobrir ao longo do
estudo do conto, sua aventura no mundo dos vivos (cá) para sua passagem ao mundo dos
mortos (lá). Esse descobrimento se fará através dos mitos e sua conexão com a linguagem.
Embarquemos nessa jornada rumo ao descobrimento do universo da menina de Rosa.3

1.2. CONCEITUANDO O MITO

3
Referimo-nos à personagem Nhinhinha como a “menina de Rosa” fazendo uma referência não só ao
às práticas semelhantes que ambos, Nhinhinha e Guimarães Rosa, se irmanam ao listar as coisas, mas
também pelo sobrenome do criador de nossa menina fazer parte do último desejo da personagem: a cor
de seu caixãozinho.
Os mitos revelam significados, valores e modelos para vida humana. As manifestações desses
significados para expressar questões primordiais como a morte, o alimento, o sagrado, são
encontradas em diversas culturas através de imagens, símbolos, tendo sua expansão para as
áreas da linguagem, arte e ciência.

Em “Mito e realidade”, 2006, Mircea Eliade começa por explicar o significado da palavra
mito, empregado tanto no sentido de "fábula", "ficção" quanto para designar um "modelo
exemplar". O mito tem sua interpretação na cultura grega, que o transformou e o racionalizou,
não se atentando para seu significado até chegar à religião judaico-cristã, onde os mitos são
vistos como uma mentira por não serem autenticados em seus dois testamentos, uma vez que
não foram inseridos pelos membros da igreja.

Assim, Eliade explica que seus estudos baseiam-se nos mitos das sociedades arcaicas, onde
estas revelam um estado primordial, influenciando e justificando “todo comportamento e toda
a atividade do homem” (2006:10). Desta forma, Eliade o define em “Mito e realidade”:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no


tempo primordial, o tempo fabuloso, do 'princípio'. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É
sempre, portanto, a narrativa de uma 'criação': ele relata de que modo algo
foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu,
do que se manifestou plenamente. Os mitos revelam, portanto, sua atividade
criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a "sobrenaturalidade”)
de suas obras... é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o
homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural" (2006: 11, Grifo
nosso).

Eliade esclarece que o mito, por ser considerado sagrado, desempenha um papel dentro da
estrutura social, portanto, é uma história verdadeira criada em um atempo. Como explica o
historiador, o “mito cosmogônico é 'verdadeiro' porque a existência do mundo aí esta para
prová-lo, o mito da origem da morte é, igualmente 'verdadeiro' porque é provado pela
mortalidade do homem, e assim por diante (2006:12)”. Por manifestar uma essência primeira,
“o mito se torna modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas (2006:12)”.
Os exemplos que o autor ilustra de várias tribos quanto aos seus comportamentos, rituais, se
justificam a luz dos mitos. Para esses rituais, a frequente resposta é: “porque é assim que os
deuses/povos sagrados fizeram (no princípio) (p.12)”. Contudo, o mito não é qualquer
história: sempre se refere ao sagrado, ao sobrenatural, aos mitos da cosmogonia, a um
acontecimento primeiro ligado a existência do homem, e justamente por conter um caráter
sagrado, distingue de histórias falsas: estas não modificam - e explicam - as condições
humanas. Ao discorrer sobre o caráter constitutivo do mito, Eliade afirma que assim como a
História está para o homem moderno, o mito está para o do homem primitivo. Porém, a
História figura-se como algo linear, irreversível, enquanto a narrativa mítica instaura-se em
um atempo, onde é possível reatualizá-la através de rituais. Toda vez que acontece um ritual
retoma-se ao tempo primeiro, onde o mito surgiu: é possível repetir o que os Deuses fizeram
neste tempo primordial, obtendo respostas para a vida, para as coisas que se apresentam na
realidade sob tal forma. Portanto, tudo aquilo que se revela sagrado ao homem arcaico, como
o céu, as águas, a vegetação, faz parte do conteúdo mitológico que irá se manifestar em
diversos campos do conhecimento.

Essa busca de sentido para as coisas do mundo através do mito faz com que respostas sejam
obtidas para as experiências que vivemos, explicam o inexplicável. Os mitos vêm através de
suas imagens e símbolos para ressignificar as vivências que experimentamos, e porque (re)
significa, através dos rituais, repete o ato primeiro dos “entes sobrenaturais”. Assim, os ritos
de passagem existentes em culturas africanas ou australianas e em certo ponto se assemelham:
os pontos no qual o mito toca são sempre os mesmos (ritos de nascimento, morte, ascensão
aos céus, cultos da vegetação, etc.) nas diversas culturas, se diferenciado quanto ao grau de
ação ou de iluminação.

Em “Tratado de história das religiões”, 1998 Mircea Eliade estende o porquê desses rituais,
dessas repetições:

A maioria dos atos realizados pelo homem das culturas arcaicas não é mais,
no seu pensamento, do que a repetição de um gesto primordial realizado no
princípio do tempo por um ser divino ou por uma figura mítica. O ato só
encerra certo sentido na medida em que repete um modelo transcendente, um
arquétipo. Por isso a finalidade dessa repetição é a de assegurar a
normalidade do ato, de legalizar concedendo-lhe um estatuto ontológico; pois,
se esse ato se torna real, é unicamente porque repete um arquétipo. (1998: 38,
grifos nossos).

Inserido dentro de uma visão holística, Eliade (1998) compreende as semelhanças que estes
rituais têm, trazendo o inconsciente coletivo para simbolizar as experiências primeiras do
homem. Este conteúdo da psique é o responsável por garantir os ritos (de nascimento,
passagem para a vida adulta, casamento morte, etc.) tão semelhantes em culturas extremas.

Esta pequena introdução ao mito nos suporta para que possamos seguir adiante em nossos
estudos acerca da relação entre a linguagem e o mito, pois é necessário compreendermos que
os mitos, os símbolos encontram-se neste instante primeiro da existência humana: antes de
sermos seres históricos, antes desta parte da consciência acerca de si mesmos, o homem
possui em detrimento com o sagrado, experiências e manifestações que se tornam
significativas quando o mesmo as reconhece como parte da sua história, encontrando
explicação do seu estar no mundo através dos mitos.

1.3.DA TEORIA TRANSCENDENTAL PARA AS FORMAS SIMBÓLICAS

Com base nos estudos de Ernst Cassirer e de sua teoria de que mito e linguagem nascem
juntos, prosseguiremos na análise do conto de Guimarães Rosa, “A menina de lá”,
fundamentando-nos nas obras: “A filosofia das formas simbólicas – I – A Linguagem”
(2001), e “Linguagem e mito” (2006).

Na introdução do livro “Linguagem e Mito” (2006), o filósofo e ensaísta Anatol Rosenfeld


explica que Ernst Cassirer tem por fundamentação metodológica a filosofia kantiana “das
condições apriorísticas do conhecimento, da moral e dos fenômenos estéticos” (p.10).
Ultrapassando esta condição a priori do raciocínio, “tanto como a moral e a arte, também a
ciência é um modo de produção criativo da consciência” (p.10). O conhecimento dentro deste
método não é algo apreendido pelo sujeito, mas se apresenta como um conhecimento
universal. Contudo, o conceito-limite atrelado ao pensamento kantiano não fundamenta
alguns problemas colocados pela ciência: são outros pontos, que exigem outros olhares. Isto é,
o método tradicional kantiano limita-se à esfera do conhecimento físico-matemático.
Enquanto para Kant a ciência era compreendida como um conhecimento universal, atrelado à
pureza da objetividade, em Cassirer a ciência passa a ser uma “construção” simbólica,
equiparada aos outros conhecimentos simbólicos, onde, segundo o próprio autor (2001), o
termo conhecimento não se aplica apenas ao entendimento científico e à explicação teórica,
mas se refere a toda atividade espiritual do sujeito frente a realidade; essa não é concebida
pelo indivíduo somente como a realidade, mas em realidade, não imediata pronta e acabada,
mas sendo significada pela relação do sujeito frente ao mundo,- sendo possível através das
diversas formas simbólicas, ou seja, pelos conteúdos espirituais mediados por um signo
espontâneo pelo sujeito, até constituir os estados progressivos do aparecimento da
consciência. As formas simbólicas são responsáveis por atribuir à linguagem sensível
conteúdo significativo dentro de uma simbologia universal frente as questões universais da
humanidade.

Antes das formulações abstratas da língua, de seu conceito, a representação da percepção


primeira na qual o indivíduo tem sobre o mundo se figura na linguagem, que depois vai
tornando forma, conteúdo e representatividade. A realidade que se apresenta para nós tem na
conceituação dos signos sua representação. Conceituamos, nomeamos o mundo, as coisas,
mas Cassirer (2006) adverte-nos que as palavras não passam de uma alusão, “alusão que deve
parecer mesquinha e vazia diante da concreta multiplicidade e totalidade da percepção real
(2006:21)”. Para o autor, conceituar um objeto é antes de tudo encerra-lo à própria forma do
pensamento – que cria as conceituações – do que no objeto em si (como se este viesse
“escrito” o que é, para que serve etc.). Cassirer propõe que ao invés de atentarmo-nos ao
“conteúdo”, “sentido” e “verdade” das formas intelectuais, devemos descobrir nestas próprias
formas sua própria “verdade” e “significação intrínseca”.

Com as palavras do filósofo,

Deste ponto de vista, o mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como


símbolos: não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria
indicadora e explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada
uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo. Neste domínio,
apresenta-se este auto desdobramento do espírito, em virtude do qual só existe
uma “realidade”; um Ser organizado e definido. Consequentemente, as
formas simbólicas especiais não são imitações, e sim, órgãos dessa realidade,
posto que, só por meio delas, o real pode converter-se em objeto de captação
intelectual e, destarte, tornar-se visível para nós. (2006:22)

Através dos estudos com o teórico Usener em “Os nomes divinos”, onde este vai traçar um
paralelismo entre a história e filosofia das religiões através de estudos comparativos de
linguística e filologia, Cassirer (2006), percebendo a semelhança do nascimento de diversos
deuses em distantes culturas, afirma sobre uma lei geral da formação de conceitos na religião
e na linguagem, um estado fundido na consciência linguística primordial, saindo do estudo
comparado histórico para refugiar-se em uma fenomenologia do espírito. As palavras
originar-se-iam de uma conexão entre o objeto e a palavra que o designa, advinda das
impressões sensoriais e dos sentimentos. Nesse ponto é importante salientarmos dentro dos
estudos do mito a questão mítico-religiosa que o fundamenta: esta questão serve não só à
linguagem, mas a criação de símbolos, infiltrando-se na cultura religiosa, nos valores que esta
acarreta para os povos, nos sentimentos exauridos ao meio, enfim, tudo aquilo que é
denominado sagrado que, por ser novo, diferente, significativo, vem carregado de valor
mítico-religioso, podendo ser um lugar, objeto, pessoa, nome, etc.. Apresenta-se em diversas
culturas para justamente designar este sagrado, sob os mesmos aspectos e condições para seu
nascimento.

Tendo o sagrado como questão a priori para a criação da linguagem, observa-se que esta
linguagem ilustra como de um “fenômeno” isolado partimos para uma ideia geral, isto é, um
conceito. Cassirer (2006) refere-se a este processo como um modo “individualizador” da
conceituação histórica em face do modo “generalizador” da conceituação. O filósofo expõe a
precariedade em justamente “validar” o que é agora, no sentido que para ser aceito pela
ciência histórica, pois para esta, “o fato particular só adquire significado em virtude das
conexões que vai estabelecendo” (p.47) quando devem ser levadas em conta as condições nas
quais nos encontramos frente ao mundo para a formação da consciência. A linguagem
organiza e classifica o real conforme é percebida e apreendida. Cassirer explica que uma
mesma palavra tem diversos significados para “designar” a mesma coisa em tribos distintas.
Como explica o filósofo, “a diversidade entre as várias línguas, não é uma questão de sons e
signos distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo” (2006:50). Através deste
pensamento, clareia-se o quanto o mito responde à questão primordial da linguagem:

(...) o pensamento teórico visa acima de tudo a libertar os conteúdos dados ao


nível sensível ou intuitivo do isolamento em que se nos apresentam
imediatamente (...) associando-os a outros conteúdos, compara-os entre si,
concatenando-os em uma ordem definida a um contexto abrangente (2006:52)

Esta abrangência distancia o sensível, elevando todo seu potencial em uma esfera
conceituada, classificada, onde o pensamento mítico coloca-se como a essência a priori no
momento em que se apresenta ao indivíduo. Para Cassirer (2006), a percepção científica
alarga, enquanto o pensamento mitológico estreita e aprofunda. É a percepção primeira,
tocante, atrelada ao sagrado e religioso sobre a realidade que o mito se faz presente.
Capítulo. 2: Da palavra proferida de Nhinhinha

2.1.Da palavra à metáfora poética:

“A metáfora é a mascara de Deus, através da


qual a eternidade pode ser vivenciada”4

Joseph Campbell

Dentro da universalidade da linguagem em um estado pré-conceitual, a palavra, dentro da


consciência mítico-religiosa conteria em si, o próprio objeto, realidade da qual designa. A
palavra expressa, antes da sua conceituação já traria uma significação pelo poder "oculto" que
possui. Cassirer (2006) cita um exemplo encontrado nos estudos do historiador Preuss sobre
os índios uitotos, demonstrando a grande semelhança entre o evangelho segundo São João e
os escritos da tribo: No princípio a Palavra originou do Pai. Esta semelhança leva-nos a
refletir sobre este pensar mítico primordial existente nas diversas culturas onde, antes da
conceituação, a palavra primeira, sua força de expressão da realidade para com o indivíduo e
sua relação não passiva dentro desta relação resultaria na expressão-mítica, carregada de valor
simbólico.

Com as palavras do historiador,

(...) a palavra, como se fosse uma estrutura de outra ordem, de uma nova
dimensão intelectual, interpõe-se, por assim dizer, entre os diferentes
conteúdos perceptivos, tais como se impõem à consciência no seu imediato
aqui e agora; e, precisamente esta interposição, este sobressair-se da esfera
da existência imediata, é que lhe confere a liberdade e agilidade que lhe
permite mover-se entre um conteúdo e outro e conectá-los entre si. (...). Aqui,
de nada vale o simples 'referir' ou 'significar', mas todo conteúdo, para o qual
tende e se projeta a consciência, é transformado imediatamente em forma da
existência e na do atuar" (2006:74)

4
CAMPBELL, Joseph. O Poder dos Mitos com Bill Moyers – Organização: Betty Sue Flowers.
Tradução de Carlos Felipe Moisés. 13ª ed. São Paulo: Palas Athena, 1995.p. 62
Esta primeira manifestação generalizadora da palavra sob uma apreensão religiosa encontra-
se no Mana da Melanésia. Esse representa um “campo de forças” mítico (2006:82) sobre o
mundo, encontrado nas coisas e na atividade humana. Aplica-se tanto ao material quanto ao
espiritual, onde “o Mana torna-se uma espécie de substância que representa a essência e a
símile de todos os poderes mágicos contidos nas coisas individuais. Constitui uma unidade
por si existente, que, no entanto, pode repartir-se por numerosos seres e objetos” (2006:86).

Esse conceito de Mana também é encontrado não apenas nos povos da Oceania, mas também
América, Austrália e África, onde as palavras assumidas para designar esse mesmo poder
universal para com as coisas, atividades, adquirem outros nomes (manitu para as tribos dos
Algonquinos, wakanda na tribo dos Sioux, mulungu no dialeto Banto). Esse conceito difunde-
se a toda uma esfera do novo, sagrado, impessoal e indefinível, sendo, portanto, uma palavra
que expressa muitas vezes algo que não se pode expressar, como um Deus, a realidade, seus
fenômenos. Portanto o Mana permitiria essa transição a tudo que não pode atribuir qualquer
significação; é o estágio da consciência mística mais arcaica e também da conceituação onde,
depois desse, dar-se-iam os deuses fugazes, os especiais, os pessoais e, por fim, o Deus uno,
isto é, lugar em que se figuraria divindades definidas para cada atividade ou manifestação do
homem frente à realidade sendo o responsável por generalizar essas atividades, manifestações,
uma vez que não atribui nome, e sim essência e que depois, com a prática da linguagem passa
pelos estágios míticos até o conceito formal.
Mediante a este modo arcaico de agir sobre a realidade frente a um conteúdo linguístico,
temos uma raiz comum de onde mito e linguagem tenham surgido, uma vez que atua em
ambos uma mesma “forma de concepção mental”. Essa “concepção mental” denomina-se
pensar metafórico. O mito refletido na linguagem, metáfora, dar-se-ia através de um
movimento concentrador de percepção e intuição frente ao objeto. A metáfora como uma
necessidade do espírito, causada pela tensão existente entre o sentir e o nomear.

Aqui, a intuição não é ampliada, mas sim comprimida, concentrada, por assim
dizer, em um só ponto. É neste processo de compreensão, que efetivamente se
destaca aquele momento sobre o qual recai o acento da ‘significação’.
(2006:108)

Esse movimento concentrador, segundo Cassirer, é “a conexão e a coesão mais imediata que
a linguagem é capaz, em geral, de proporcionar” (p.112). Aqui não é levado em conta o
significado, mas sim o significante como forma “qualitativa” de representação significativa da
realidade.

O pensar metafórico para os povos antigos acha-se nos próprios sons da natureza –
onomatopeias - onde o homem foi levado a falar através de metáforas para justamente poder
expressar-se no mundo; uma vez que intuídas impressões sensíveis, onde sua gênese de daria
com os deuses instantâneos, revelando-se como uma força inteligível, correspondente a sua
percepção frente ao material fônico-linguístico proferido.

Através dos sons articulados (não podemos deixar de escrever que nosso objeto de estudo se
dá através de uma personagem de nem bem quatro anos) no qual é extraído da realidade um
conteúdo significativo para entender, interpretar e significar essa realidade.

A simples interjeição, o som isolado que expressa uma emoção e uma exaltação, e
que resulta de uma expressão momentânea arrebatadora, passa a fazer parte de uma
sequência fonética corrente e ordenada no qual se refletem a coerência e a ordem da
ação (A Filosofia das Formas Simbólicas - I – A Linguagem, 2001:186).

Contudo, o nascimento da palavra pela emoção concentrada e solucionada em som


significativo e criativo, logo metáfora radical para Cassirer, difere da metáfora poética como
criação literária, uma vez que essa é realizada de forma consciente, isto é, ela é realizada
como uma "transposição", uma analogia indireta, de um conteúdo que é representado
"mediante o nome de outro conteúdo".

De fato, mesmo a mais primitiva exteriorização linguística já exigia a


transposição de um certo conteúdo perceptivo ou sensitivo em sons, isto é, em
um meio estranho mesmo e, talvez, divergente com relação a este conteúdo, de
modo que, até a forma mítica mais simples só pode surgir em virtude de uma
transformação, pela qual uma determinada impressão é levantada por sobre a
esfera do comum, do cotidiano e do profano, e impelida para o círculo do
'sagrado', do significativo do ponto de vista mítico-religioso (...). Na verdade,
o que acontece não é apenas uma transposição parta uma outra classe já
existente, mas a própria criação da classe em que ocorre a passagem
(2006:105,106).

Práticas indissociáveis, mito e linguagem emaranham-se um ao outro, onde “o mito recebe da


linguagem, sempre de novo, vivificação e enriquecimento interior, tal como, reciprocamente,
a linguagem os recebe do mito” (p.114).

Assim, a palavra mítica se expressa como a liberação do sentimento intuitivo, primeiro,


trazendo através de seus significantes, o conteúdo latente das percepções e sentimentos do
espírito.

2.2. NHINHINHA E O INFANTIL: O ESTADO PRIMORDIAL POR EXCELÊNCIA

“A criança tem a vantagem de estrear o mundo,


iniciando outro matrimônio entre as coisas e os
nomes. Outros a ela se assemelham, à vida
sempre recém-chegando. São os homens em
estado de poesia, essa infância autorizada pelo
brilho da palavra”5

Mia Couto

“Porque motivo as crianças, de modo geral,


são poetas, e com o tempo, deixam de sê-lo?” 6

Carlos Drummond de Andrade

Em seu artigo "Mito e linguagem infantil em Guimarães Rosa" (2003), Clotilde Passos de
Souza Favalli discute, justamente com as teorias de Ernest Cassirer, a ligação entre o mito e a
5
COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991, p.21.
6
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. A educação do ser poético. Rio de Janeiro, ano 3, n.15,
1974.
linguagem nos contos "A menina de lá" e "A partida do audaz navegante", ambos de
"Primeiras Estórias" (1962). Ambas as personagens, por serem crianças, tornam-se exemplos
primordiais do estágio pré-mítico no qual a criança passa a adquirir a conceituação abstrata da
língua. Para Favalli (2003), as fabulações e construções de jogos são condições para o
surgimento dos mitos, uma vez que “a criança crê na realidade do que inventa ao brincar ou
narrar” (p.51). Essa realidade se faz através da ligação entre jogo (fabulação) e linguagem.

Em “A Partida do Audaz Navegante”, Brejeirinha, principal personagem da estória, fabula,


brinca o tempo todo. Juntamente com as irmãs mais velhas e o primo, “inventa” um
personagem, o “Audaz Navegante” no qual irá transpor através desse todo o universo que
capta sobre sua volta: a briga do casal de namorados, sua irmã Ciganinha com seu primo Zito.
Este último quer partir, e através desse sentimento que Brejeirinha percebe, das suas
brincadeiras, a realidade se faz. “Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas
apropriava-se e refletia-as em si – a coisa das coisas e a pessoa das pessoas” (1962:106).
Brejeirinha inventa uma história enquanto constrói, de forma lúdica, seu personagem com
“rodelas de esterco cogumeleiro”.

O alimento para as fabulações de Brejeirinha está justamente no universo que essa cria ao
vestir a sua brincadeira com a roupagem da linguagem: o “Audaz Navegante”, assim que
toma forma concreta, nutre os novos passos da história que a menina conta: são práticas, jogo
e linguagem, onde ambas se estimulam entrelaçadas em um liame que já não se separam, mas
se completam. Nosso narrador nos deixa ciente quanto ao fabular - que como esse denomina
“esquisito do juízo ou enfeitado do sentido” - de nossa menina, Nhinhinha:

Ou referia estórias absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou
para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa
de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; (p. 22).

A apreensão dos pensamentos de Nhinhinha, com suas estórias "absurdas", "vagas", fazem
parte desse jogo lúdico de “brincar” com as palavras, onde o que é imaginado é falado. Em
nossa menina, testemunhamos o ato de imaginar assim como em Brejeirinha, que recria um
mundo dentro deste mundo - o esterco que vira seu valente navegante. Mesmo a última tendo
uma conceituação mais abrangente da linguagem, lendo "35 palavras no rótulo da caixa de
fósforos", conforme aponta Favalli (2003), ambas as estórias fazem correspondências por
assinalarem personagens onde se presencia o nascimento da palavra frente à realidade sob um
conteúdo sensitivo, estimulado pelo inventar que ambas assumem nos contos. Brejeirinha
exterioriza o que vê, sente, ao presenciar o afastamento do casal de primos enamorados.
Nossa menina, com sua intensidade no viver, transpõe seu desejo e suas experiências por
metáforas que apreendem o momento mais primitivo da sua relação/experiência com a
palavra.

Essa "transposição" do sentir de Nhinhinha por conteúdos significantes, para Cassirer (2001)
não acontece apenas no desenvolvimento da linguagem infantil, mas também na linguagem
dos "primitivos".

O que o som busca é a proximidade imediata da impressão sensível e a


reprodução tão fidedigna quanto possível da diversidade desta impressão.
Esta tendência não domina apenas grande parte do desenvolvimento da
linguagem infantil, como também se manifesta vigorosamente na linguagem
dos ‘primitivos’. Aqui, a linguagem ainda adere de tal maneira ao fenômeno
concreto e a sua imagem sensível, que ela, por assim dizer, procura esgotá-lo
como o som, não se contentando com uma designação geral, ela acompanha
cada matiz particular do fenômeno com um matiz fonético particular,
adequado a cada caso específico. (p. 196).

Nesse ponto, é importante entendermos sobre o processo de rompimento da linguagem-mítica


para o pensamento lógico-científico. Para isso, retornemos à Favalli:

Nos meses iniciais, ao expressar emoções por sons inatirculados, esses não
aportam alterações nos sentimentos do recém-nascido. Algo diverso ocorre
quando a linguagem evolui para os primeiros termos e frases, ao ligar cada
coisa a um signo sonoro. Enriquece-se então o vocabulário, mobilizada a
criança pela necessidade de sistematizar/controlar a realidade. Sua tendência,
portanto, a apoderar-se do mundo pela linguagem está na base e é condição
do estágio posterior do conceito genérico, fonte das abstrações que hão de
constituir as formas simbólicas da sua maturidade espiritual. Os primitivos
sentimentos exacerbados apreendidos nos primeiros termos linguísticos
perdem paulatinamente a onipotência, pois cada vez mais discriminada como
objeto e não mais vivida como sujeito que a emoção, através da palavra,
retorna à subjetividade de onde emergiu (2003:32)

Nessa exposição do processo de pensamento infantil, verificamos como, à medida que ocorre
o exercício da linguagem, uma vez que a linguagem não pertence somente ao “reino” dos
mitos, mas também faz parte do poder do logos, a criança desprende-se do invólucro da
palavra sensitiva, imediata, para dar lugar à palavra abstrata, “larga”.

Adentremos no conto de Guimarães Rosa "A menina de lá". Maria dita Nhinhinha, é uma
garotinha "com seus nem quatros anos" que mora em um espaço interiorano, atrás da Serra do
Mim, no Temor de Deus. Quieta, "pouco se mexia". É “pela entranhes das palavras” que
profere que se dá a sua relação para com o mundo. Nhinhinha, com sua mansidão, ri,
deslumbra-se sempre, ao disparar suas metáforas, ora abrangentes e externas “Tatu não vê a
lua", "A gente não vê quando o vento se acaba", "Alturas de urubu não ir”. Ora, há palavras
concentradas em seu sentir "Eeu? Tou fazendo saudade". A sua imobilidade, retidão faz com
que se saiba pouco sobre ela. É em seu silêncio que Nhinhinha mostra sua "sabedoria" diante
da vida. Mesmo sabendo pouco de seus gostos o narrador revela: "E Nhinhinha gostava de
mim". Ao se depararem com noite ela exclama "Cheiinhas", referindo-se as estrelas e mais
adiante “estrelinhas pia-pia" e ainda "tudo nascendo". A grande plasticidade da vida é
apresenta para a menina aonde "o dedinho chegava quase no céu".

Mas não é só aqui, (afinal, ela é de lá) que Nhinhinha se interessa: ela pede para nosso
narrador: "Eu quero ir pra lá. - Aonde? - Não Sei”. Em Nhinhinha exerce-se um poder que
transcende a ordem objetiva das coisas, ela quer ir a um lugar onde lhe falta conceituar, mas
que sabe que existe. É como se este plano a limitasse, quando falava de parentes mortos dizia:
"Vou visitar eles”.

Em meio a isso, Nhinhinha realiza milagres. Quando deseja algo, de pronto este acontece.
Quando diz: "Eu queria o sapo vir aqui", ou "Eu queria uma pamoinha de goiaba" logo seus
pedidos tornam-se realidade: aparece a rã verde, o doce de milho trazido por uma dona. A
família espanta-se com os poderes. De modo que quando a mãe de Nhinhinha adoece, seu pai
pedindo para que a menina falasse a cura, esta não fala, mas devolve a saúde da mãe após
beijá-la onde em seguida esta melhora, o que os pais compreendem que seus "poderes" vão
além das palavras. Mais adiante no conto, quando o brejo onde a menina mora sofre por causa
da seca, os pais pedem para que essa faça chover: "Mas não pode, ué..." Porém, a menina,
dois dias depois, deseja ver o arco-íris e com isso a chuva cai sobre o brejo, sobressaindo em
verde e o vermelho que era mais um vivo cor-de-rosa (p.25) o arco-da-velha. E num
rompante, Nhinhinha adoece e morre, e o narrador esclarece: “diz-se que da má água desses
ares. Todos os vivos atos se passam longe demais” (p.25). A dor da mãe é expressa pela cena
em que esta com seu terço, mas ao invés das ave-marias, só consegue pronunciar palavras da
filha. O pai, alisando o tamboretinho da filha, Tiantônia, sentindo-se “metade” morta. Essa, ao
final, faz uma revelação surpreendente aos pais de Nhinhinha: que no dia do arco-íris, a
menina solicitou um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.

Os pais atribuem isso a agouraria. Em meio a repulsa do pai em atender o desejo da menina, a
mãe de Nhinhinha entende que assim seria, pois como desejo da filha, este se cumpriria,
santificando-a como Santa Nhinhinha.

1.3. Dos sons onomatopaicos até a formação das palavras primevas

Cassirer (2001), expondo os pensamentos de Giambattista Vico de sua obra "Principi


discienza nuova d'intorno alla commune natura delle nazioni", defende a relação "natural"
entre o significado e significante das palavras.

As palavras primitivas, para Vico, ter-se-iam originadas de raízes de uma única sílaba, sob
forma de onomatopeia, os sons "objetivos” da natureza, que depois originariam os pronomes,
seguindo-se de raízes monossilábicas, substantivos, verbos e, por fim, a linguagem.

Todas as palavras primitivas possuíam raízes de uma única sílaba que ou


reproduziam, sob forma de onomatopeia, um som objetivo da natureza, ou
como puros sons emocionais, constituíam a expressão imediata de uma
emoção, uma exclamação de dor ou de prazer, de alegria ou tristeza, de
espanto ou de pavor (2001:130).
Em "História da Literatura Brasileira" (1994), Alfredo Bosi, referindo-se as combinações de
som e formas de termos e grupos nominais da obra Sagarana (1946) recorre justamente a Vico
para explicar:

O princípio fundamental da linguagem poética, genialmente intuído por Vico,


é o da analogia, a arcana ‘lógica poética’, lógica dos sentidos, que vincula a
fala inovadora às matrizes de toda língua. Ora, o pensamento analógico é
pensamento mítico. O que se passa com a linguagem de Guimarães Rosa no
tratamento das unidades verbais (fonemas, morfemas) ocorre também no
plano dos grandes blocos de significado: as suas estórias são fábulas, mythoi
que velam e revelam uma visão global da existência, próxima de um
materialismo religioso, porque panteísta, isto é, propenso a fundir numa única
realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o
múltiplo (1994:431).

A partir dessa explanação, relacionemos as frases exprimidas por nossa personagem:

“Ele xurugou?” (22)


“Tatu não vê a lua...” (22)
“Eu... to – u..fa-a-zendo...” (23)
“Menino pidão... menino pidão...” (23)
“Deixa... Deixa...” (23)
“Menina grande... menina grande...” (23)
“Cheiinhas...” (23)
“Tudo nascendo...” (23)
“A gente não vê quando o vento se acaba...” (23)
“Alturas de urubuir...” (23)
“Jabuticaba de vem-me-ver...” (23)
“Eu quero ir para lá.” (23)
“Não sei.” (23)
“O passarinho desapareceu de cantar...” (23)
“Senhora Vizinha...” (23)
“Eeu? Tou fazendo saudade.” (23) (i)
“Vou visitar eles...” (24)
“Ele te xurugou?” (24) (i)
“Eu queria o sapo vir aqui.” (24)
“Está trabalhando um feitiço...” (24)
“Eu queria uma pamonhinha de goiabada...” (24)
“Mas não pode, ué...” (25)

De uma maneira geral, percebemos nas construções de Nhinhinha, frases curtas,


sintaticamente “faltando” artigos, conectivos, além da “errônea” regência do verbo vir: O7
tatu não vê a lua/O menino é pidão/A menina é grande/Tudo está nascendo/Eu queria que o
sapo viesse aqui. Frases com “ausência” dos objetos direto-indiretos: Deixa... (?) Deixa...
(quem deixa, deixa algo para alguém) /Cheiinhas... (?) (quem fica cheio, fica cheio de algo ou
alguma coisa). Temos também frases onde se verifica sua fala modulada, estendida em sons
vocálicos: Cheiinhas...8 /Eu... to – u..fa-a-zendo.../ Eeu? Tou fazendo saudade. Temos ainda
a oralidade marcada pelas seguintes sentenças: Alturas de urubuir9/ Senhora Vizinha10. As
orações (in)coerentes ou “enfeitadas” de sentido: Tatu não vê a lua / A gente não vê quando o
vento se acaba/ Jabuticaba de vem-me-ver/ Eeu? Tou fazendo saudade/Está trabalhando um
feitiço/. Há, contudo, afirmações de nossa personagem: Eu quero ir para lá. /Não sei. Assim
como também há meias certezas, reflexões e até constatações marcadas pela fala reticente da
menina, significando muitos de seus ditos: O passarinho desapareceu de cantar... /Vou visitar
eles... /Eu queria uma pamonhinha de goiaba... Por fim, a única negação de um desejo, já que
esse não parte da vontade de Nhinhinha: Mas não pode, ué...

Construções enigmáticas (Tatu não vê a lua), poéticas (Jabuticaba de vem-me-ver),


fazendo/fazeres, como a sua saudade, como quando o vento se acaba sem a gente fazer-se ver,
sentir. Se Nhinhinha faz listas das coisas que a gente vem perdendo no dia a dia, sua relação
com a palavra vai além da mesma: é uma relação testemunhal para com o seu sentir. Mesmo

7
Os negritos a seguir são nossos por não fazerem parte do original.
8
Grifo nosso.
9
Nesse momento do conto temos um processo de aglutinação: o narrador explica que a sentença
proferida por Nhinhinha. “Alturas de urubuir” é na verdade “altura de urubu não ir” e justifica: “O que
falava, ás vezes era comum, a gente ouvia exagerado(...)” (p. 23)
10
Nesta frase ocorre o processo inverso ao anterior, ou seja, uma desaglutinação: ao referir-se sobre
um pássaro que voltava a cantar, o narrador diz “A Avezinha”. No entanto, Nhinhinha passa a chamar
o sabiá de “Senhora Vizinha”, isto é, nossa menina separa a frase através da segmentação apresentada
aos seus ouvidos.
(des) ordenadas de entendimento, reconhecemos seus significantes. Assim, penetremos (mais)
surdamente no reino das palavras. 11

Nas expressões a seguir, deparemo-nos com o quase inexplicável.

"Ele xurugou?" (22)


"Ele te xurugou?” (24)

Na palavra acima (xurugou) temos o que talvez seja a mais instigante do conto pois, além de
seu significado limitar-se somente a imagem acústica, uma vez que não se sabe seu conceito
objetivo, Nhinhinha apresenta tal palavra duas vezes. A primeira é quando nosso narrador
quer exemplificar o que o pai de nossa menina afirma quanto às palavras que Nhinhinha
profere: Ninguém entende muita coisa que ela fala... Menos pela estranheza das palavras,
pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - 'Ele xurugou?' - e, vai ver, quem e o quê,
jamais se saberia (p. 22) Outra é quando fala com nosso narrador, após ser repreendida por
esse por querer “visitar parentes já mortos”. Olhando “zombasmente” para o narrador,
dispara: Ele te xurugou (p. 24) Ele te chamou? Abençoou? Encantou? Falou? Quem é “Ele”,
se no universo familiar de nossa menina só se compunha Pai, Mãe, Tiantônia e em rápido
momento, narrador? Quem é “Ele” que está fora e tão dentro da vida de Nhinhinha e da
onisciência de nosso narrador?

Aqui não nos interessa saber, não nos caberia. O mistério faz parte das coisas do mundo, faz
parte das palavras nas obras de Guimarães Rosa. O que podemos notar é que a estranheza da
palavra “xurugou” está para “lá” do entendimento de nossa menina. Ela parece entender a sua
funcionalidade ao apropriar-se do vocábulo em diferentes momentos, estando em contato com
diferentes pessoas. Essas ao seu redor não sabem sobre o significado do termo, e o narrador
explica: Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. (p. 22). Esquisito do juízo ou
ainda não de todo dele, do juízo, do intelecto, raciocínio. Recorremos novamente aos mitos
para saber o que eles nos esclarecem.

O fato de que determinadas diferenças e gradações vocálicas são empregadas


como expressão de determinadas gradações objetivas, principalmente para
11
Com licença poética, alusão ao poema “A procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade.
designar a distância maior ou menor entre um objeto e a pessoa que fala,
constitui um fenômeno que se repete de forma nas mais diversas línguas e
áreas linguísticas. Quase sempre ‘a’, ‘o’, ‘u’, designam a distância maior
enquanto ‘e’ e ‘i’ assinalam a distância menor. (A Filosofia das Formas
Simbólicas - I – A Linguagem, 2001:199).

Com a palavra "xurugar", por tratar-se de um verbo devido à sua conjugação que aparece no
conto, “xurugou”, conforme os estudos mítico-linguísticos, as vogais u e a, com a expressão
em sua forma infinitiva e respectivamente o e u em sua forma flexionada, remetem justamente
às distâncias, alturas em que Nhinhinha não pode (por enquanto) ir. Nhinhinha aprecia o que
está para além de si mesma, o que está para “lá”. No conto, as dimensões desejadas por nossa
personagem refletem-se no léxico da estória: lua12, abelha, nuvem, casacão da noite, estrelas,
urubu, céu, passarinho, sabiá, andorinhas, arco-íris, anjos. Conforme a teoria defendida pelo
filósofo, percebemos que todas as palavras que significam alturas conservam, a partir do
princípio onomatopaico, as mesmas vogais: vestígios do espanto de Nhinhinha frente àquilo
que a razão não pode definir, mas somente seu sentir pode “comprimir/exprimir” a essência
das impressões recebidas por ela: experiências linguísticas de quem só a capta mediante a
pura vida.

12
Grifo nosso
Capítulo 3: O SAGRADO EM “A MENINA DE LÁ”

3.1. O lugar sacro que abriga a menina de Rosa

No sertão, quase no meio de um brejo de água limpa (p. 22), mais precisamente no Temor-de-
Deus, encontra-se Nhinhinha, que como na maioria dos personagens das obras roseanas, está -
mergulhada na ambiguidade de sua vivência no mundo. Com sua linguagem metafórica que
transcende a descrição da experiência, transforma suas percepções com olhar de poesia
sensível.

Com a questão do sagrado atrelada ao aparecimento do mito na linguagem, retornemos


novamente a Mircea Eliade (2002) para iluminarmos nossos estudos quanto ao religioso em
nossa estória.

Para Eliade (2002), os estudos das hierofanias podem se dar desde os ritos, mitos, formas
divinas, de objetos sagrados e venerados, de símbolos de animais, de plantas, de lugares.
Nesse último temos o reconhecimento do local que abriga Nhinhinha como um lugar sagrado,
ou seja, na definição do dicionário, a que se deve o maior respeito.

A casa de Nhinhinha, em meio às “águas” de seu brejo, suscita por si só a importância dessa
simbologia em nossa estória: a água como símbolo da vida, que traz para a família de nossa
menina o alimento, fazendo com que o pai trabalhe e viva da terra (e que também tema de não
viver, caso essa, a água, acabe com a grande seca que assola seu pequeno sítio, ameaçando
estorricar o brejo); assim como a mãe, que lida com criação; a água que traz para nossa
menina sua rã brejeira, a chuva para seu posterior arco-íris.

Temos no “Temor-de-Deus” (desconstruindo a primeira palavra formamos outra, morte) o


local que já evoca toda sacralidade religiosa: Deus, criador da vida, morte, condição para a
vida. O temor se esconde na vida que se encerra sob a condição de devoção em que os
personagens, especificamente a mãe assume: essa, urucuiana, nunca tirava o terço da mão,
mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém (p.22). Quando
adoece, olha com “estarrecida fé para a filha, a fim que essa lhe salve”.
Na morada de Nhinhinha, “atrás da Serra do Mim”, verificamos suas experiências com as
alturas. Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. -‘Cheiinhas!’ - olhava as
estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de ‘estrelinhas pia-pia’ (p. 23) .

Sobre a “apreciação” de nossa menina, Mircea Eliade elucida,

“(...) Procuremos compreender a significação religiosa do Céu em si mesmo.


Sem precisarmos sequer atentar na fabulação mítica, o Céu revela diretamente
a sua transcendência, a sua força e a sua sacralidade. A simples
contemplação da abóbada celeste provoca na consciência primitiva uma
experiência religiosa” (2002:39).

Quanto às “alturas” 13, voltemos a Eliade,

“O que podemos observar, desde já, é a virtude consagradora da ‘altura’. As


regiões superiores estão saturadas de forças sagradas. Tudo quanto está mais
próximo do Céu participa com intensidade variável da transcendência. A
‘altura’, o ‘superior’, são assimilados ao transcendente, ao sobre-humano.
Toda “ascensão” é uma ruptura de nível, uma passagem para o Além, uma
ultrapassagem do espaço profano e da condição humana” (2002:92) [Grifo
nosso].

No alto é onde encontramos o prelúdio para o “lá” de Nhinhinha. Quando sua morada é
acometida pela seca, pondo em risco toda vida existente, inclusive a de seus familiares, seu
pai pede para que a menina quisesse chuva. No entanto, ela responde: Mas, não pode, ué...
(p.25) permanecendo “repousada”, sem se importar com as necessidades mundanas, da
mesma forma quando a mãe adoece e a menina não fala a cura. Mas, “daí a duas manhãs”,
deseja ver o arco-íris, ocasionando a chuva em Temor-de-Deus. Nesse momento, temos a
única exaltação de nossa menina. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a
refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. (p. 25). Era a
despedida de Nhinhinha... O arco-da-velha simboliza um sinal para nossa menina: o

13
Léxico sobre as “alturas” desejadas por Nhinhinha já citadas na análise mítica: lua, abelha, nuvem,
casacão da noite, estrelas, urubu, céu, passarinho, sabiá, andorinhas, arco-íris, anjos.
cumprimento de sua vontade em visitar os “parentes já mortos”; as cores sobressaídas do
círculo colorido (verde e rosa) são as cores que a menina deseja em seu caixãozinho, “cor-de-
rosa com enfeites verdes brilhantes” 14.

Como bem expõe Eduardo Teixeira em sua tese de doutorado “A reabilitação do sagrado nas
estórias de João Guimarães Rosa e Mia Couto” (2005), o arco-íris, além de estabelecer uma
fugaz ponte entre terra e céu, simboliza, na concepção do homem religioso, com amparo nas
escrituras, a aliança entre Deus e Noé de que a Terra não seria mais destruída por dilúvios.
(2005:06)

Seguido do arco-íris, temos o “canto de pássaros”, como se esses fossem os portadores da


“celebração” da mensagem de expiração de nossa menina. Esse, os passarinhos, cantavam,
deputados de um reino. (p.25) Reino dos céus, de “lá” (?), que veem enaltecer a entrada da
menina ao mundo dos mortos: os pássaros, dotados da linguagem universal, misteriosa, assim
como o sertão de Nhinhinha, dotado do sagrado; como o “lá” de sua querência, do
desconhecido: a essência de todas coisas finitas.

3. 2. A religião em Nhinhinha: o renascimento do sagrado

A vida religiosa é também perceptível no real nome de Nhinhinha, Maria, que evoca a “santa
mãe de Deus”, a virgem sem pecados, um ser especial que tem uma missão no mundo: dar à
luz, através do espírito santo de Deus ao filho primogênito e redentor do mundo, Jesus Cristo.
Quando Nhinhinha morre, sua mãe a promove-a como “Santa Nhinhinha”.

Retornemos ao estudo de Eduardo Teixeira quando recorre à análise de Alfredo Bosi para
explicar a promoção à Santa atribuída pela mãe de Nhinhinha à sua filha:

Crianças enfermas que morrem cedo são aureoladas de santidade: Antoninho


da Rocha Marmo, Izildinha, o Negrinho do Pastoreio... E quantas meninas, ou
quase, veneradas no hagiológio medieval como virgines et martyres: Inês,
Martinha, Águeda, Luzia, Dorotéia, Apolônia, as filhas de Santa Felicidade...
O portador da salvação é aquele que não tem poder visível algum e o
14
As cores encontradas no último desejo de nossa personagem-(...) um caixãozinho cor-de-rosa, com
enfeites verdes brilhantes (p. 26) são anunciadas em suas querências anteriores: a bela rã brejeira,
vinda do verduroso;, a rã verdíssima; o arco-da-velha-sobressaído em verde e o vermelho- que era
mais um vivo cor-de-rosa; que nem se sonhasse com seu passarinho-verde pensamento;
arquétipo é o menino que não encontrou outro lugar para nascer senão um
velho estábulo fora da cidade.

“A menina de lá” termina como se fosse mais um episódio do Flos Sanctorum.


A morte prematura, repentina ─ puro não-senso para o pensamento
racionalista ─ é, na perspectiva da devoção popular, um sinal da preferência
divina, um aviso da Graça um selo de eleição. Daquele que morre cedo diz o
Livro da Sabedoria que ‘a sua alma era agradável a Deus; por isso Ele se
apressou a tirá-la do meio das iniquidades. (Sab. 4, 14) (Cf. BOSI, 1988, pp.
22-28).

Como explica Teixeira, o nome Maria tem seu significado redimensionado. Não bastasse esse
sentido “sagrado”, “Maria” é um nome atrelado na hagiografia católica às santas mártires.
(p. 3). Isto é, não só o nome de nossa menina, mas todas as condições que envolvem sua
existência: os milagres que opera, sua morte prematura, o fato ser única filha. Todos esses
elementos tornam Nhinhinha uma pessoa venerada, santificada; acentua a pureza e lirismo de
nossa menina a fazer alusão a Maria, a “virgem santa”.
Porém, em nossa estória, Maria ganha a alcunha de Nhinhinha, menininha, pequenina; como o
nosso narrador a descreve, nascera já muito para miúda, cabeçudota (p.22). Seu nome,
corrompido e ajustado à sua forma “reduzida”, como todo o corpo da obra com palavras
abundantes no diminutivo: sentadinha, tolinha, cheiinhas, estrelinhas pia-pia, vestidinha,
dedinho, passarinho, avezinha, pulinhos, pamonhinha. Nessa sequência, há uma ênfase no
universo da criança, no universo de nossa santa, onde as coisas assumem sua forma, tem essa
forma, como sua “pamonhinha”, seu “tamboretinho”, seu “caixãozinho”. A oralidade, tão
destacada nas palavras que possuem o mesmo sufixo inho(a), mostra o quanto Nhinhinha faz
parte de uma cadeia de significantes, que posteriormente, assumem significados. Além disso,
essas confluências de palavras trazem um tom de simplicidade (mineirez) do sertão, onde Pai,
Mãe, são assim apenas identificados pelos lugares que ocupam na vida de nossa menina.
Contudo, a "tolerância” que tem para com esses não é a mesma que pela Tiantonia, única a
receber nome no conto, a primeira a testemunhar seus poderes; é a que repreende a menina ao
saber de seus anseios de morte.

Aí, Tiantonia tomou coragem, carecia de contar que, naquele dia, do arco-íris
da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositadamente desatino,
por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa,
com enfeites verdes brilhantes... agouraria! Agora, era para se encomendar o
caixãozinho assim, sua vontade? (p.25)

Embora Nhinhinha expresse a pureza e inocência da criança, não nos enganemos quanto à
nossa personagem: a força dela permanece mesmo depois de sua partida, significando os atos
de seus pais: a mãe, ao invés de rezar suas “ave-marias”, evoca as palavras da menina; o pai,
que no começo da narrativa é descrito como cultivador da terra, agora cultiva o
“tamboretinho” de sua filha, o objeto que essa “se sentava tanto” alisando-o, já que sentar não
podia, devido ao seu “peso de homem”; sentar não podia devido à falta de pureza e inocência
que não possuía. - o “peso” de ser adulto. Sua força maior é expressa pelo seu último desejo
realizado, afirmando seu milagre, sua santidade.

3. 3. A mulher e a feitiçaria: a ambivalência do sagrado

Nossa menina tem em seus nem bem quatros anos a sabedoria e perspicácia tão atribuída à
mulher ao longo da história: dissimulada em suas ações, fala pouco com os adultos, observa
mais e fabula muito sozinha, captando "só a pura vida". É uma menina das essencialidades,
tanto, que com boa saúde, nos pega na contramão com sua morte. Não que não fossemos
avisados: "lá" é onde encontramos os motivos, mas não as respostas.

A personagem tem sua ligação com o “obscuro” ao referir como "feitiço" sua primeira
adivinhação: E ela riu: - ‘Está trabalhando um feitiço... ’ Os outros se pasmaram;
silenciaram demais. (p.24 - grifo nosso). No Mana, os “feitiços” de nossa menina seria a
manifestações de seus poderes. Mas a aura religiosa do conto é católica, sacra: a mãe da
menina, com suas ave-marias, a própria Nhinhinha que deixa a vida para entrar na morte
como “santa”. Por isso, temos a questão do sagrado como uma linha dúbia: ao mesmo tempo
em que os pais “veneram” sua filha, também querem "esconder" da sociedade os "poderes” da
menina, transformando seu contato em tabu.

Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e


interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da
menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto,
devia saber (1962:24).
Os pais de Nhinhinha reconhecem que o que acontece com sua filha está ligado tanto ao
misterioso quanto ao religioso. A mãe, que “nunca tirava o terço da mão”, quando doente,
“olhava com estarrecida fé” para filha, mas tanto ela como o marido e a tia, quando
testemunham a paranormalidade de Nhinhinha sentiam um medo extraordinário da coisa.
Achavam ilusão. (p.24). Esse “medo extraordinário da coisa” é a tensão entre o que é
“sagrado” e “maculado”.

Mircea Eliade (2002) explica esse movimento dual recorrente com o sagrado.

Essa dialética é completamente clara no plano elementar das hierofanias


fulgurantes, tão comuns na literatura etnológica. Tudo que é insólito, singular,
novo, perfeito ou monstruoso torna-se receptáculo para as forças mágico-
religiosas e, segundo as circunstâncias, um objeto de veneração ou de temor,
em virtude do sentimento ambivalente que o sagrado provoca constantemente”
(2002: 20).

A estranheza acerca do discurso, das palavras proferidas por Nhinhinha não se limita somente
às suas adivinhações; ao seu mundo “proibido”. No início da narrativa, ao narrar a quietude da
menina, o narrador diz que essa não queria nada, que não queria saber de "bruxas de pano", o
que nos leva a fazer uma alusão à era medieval, onde as mulheres eram acusadas de bruxarias.
A estranheza da palavra bruxa ao invés de boneca, traz uma aura de misticismo, magia; ecoa
sobre os “poderes” de nossa menina. Mesmo sendo seus desejos simples, "só que queria
muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita" (p. 24),
porém, a própria denominação desses pela personagem como feitiços, vai caracterizá-la como
uma bruxa do bem.

Em "Guimarães Rosa do feminino e suas histórias", Cleusa Rios Passos (2001) acompanha a
trajetória assumida pelas mulheres nos contos roseanos, buscando rastrear representações do
feminino em tempos distintos por vezes, finalmente combinados. Em se tratando das
mulheres-feiticeiras, Cleusa Passos explica que na antiguidade a ideia da ação mágica
benéfica justifica a existência da boa feiticeira (2001:110). Por duas vezes, Nhinhinha acaba
por fazer “feitiço” para benefício de seus familiares. O primeiro é quando a mãe adoece
quando nenhum remédio poderia curar. Nhinhinha também não fala como curar a mãe, dizia
apenas "Deixa, Deixa...", porém com um abraço devolve a saúde da mãe, quando fica-se
sabendo de seus outros modos de cura. O segundo é quando Temor-de-Deus se encontra em
grande seca. “Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. - 'mas, não pode, ué'
ela sacudiu a cabecinha”. (1962:25). Contudo deseja ver o arco-íris, e assim chove no sertão,
para em seguida aparecer o arco-íris de Nhinhinha.

O duplo significado do sagrado é tão intrínseco quanto a questão do mito e da linguagem. Sua
indivisibilidade, sua dicotomia, se faz com nossa menina que, ao mesmo tempo, é "viçosa em
saúde", mas que pertence ao mundo dos mortos.

3.3. O narrador e nossa menina: o misterioso observador (e amigo) da morte sagrada de


Nhinhinha

“A gente morre para provar que viveu”

João Guimarães Rosa

A morte, tema recorrente nos estudos míticos por tratar-se de algo, em sua máxima,
misterioso e, portanto, transformador para a consciência humana, logo sagrado: a morte como
um processo cíclico, necessário; morte para a vida, que dá lugar ao novo. Talvez essa, a
morte, seja a responsável pelo tom no qual Nhinhinha vive e sente a vida. É sobre esta que se
estrutura, ora consciente, ora inconsciente de sua condição. A vida e seu destino são questões
recorrentes na obra do escritor. Com a ruptura desta vida para “lá”, para o desconhecido,
Nhinhinha nos deixa impotentes perante sua certeza, seu desejo.

No livro "Morte e Alteridade em Estas Estórias" (2001), Edna Tarabori Calobrezi analisa a
questão da morte e sua composição nos personagens da obra póstuma de Guimarães Rosa
"Estas Estórias", onde verificamos que essa se estenda aos demais trabalhos roseanos:

Em Guimarães Rosa, a originalidade inventiva de sua poética, essencialmente


transgressora, abarca todos os níveis textuais e extratextuais, convive com a
História, possibilitando o diálogo entre o novo e o tradicional, abrindo espaço
a irrupção de conflitos pessoais e dramas míticos nos quais a morte –
metafórica ou não - muitas vezes está diretamente relacionada com a busca de
desejos do indivíduo (2001:139).
Essa dualidade entre vida/morte tece não só o conto, mas toda a produção roseana. Para Edna
Calobrezi (2001) seja uma morte metafórica, seja factual, a vida em si só se faz em exercício
quando os personagens roseanos deparam-se com ela.

A tensão entre os opostos - como vida e morte - é perceptível também pelas características
constitutivas de nossa menina: Nhinhinha nasce “miúda”, “cabeçudota”, mas com olhos
enormes, o que lhe concede um ar de estranheza. Porém, a cada fala da menina, o narrador
atribui-lhe graciosidade com o riso da menina: esse tom faceiro, de sorrir sempre, ora
compreendendo as coisas com “riso imprevisto”, ora atribuindo-o ao seu pedir, pedindo.
Aqui, o riso como símbolo da criança, da essência. “Suasibilíssima” 15, persuade-nos
com seus risos, suas “estórias, absurdas”, com todo fabular de criança, contudo não se anima
com brincadeiras, brinquedos; é calma, “inábil como uma flor”. Entre um silêncio e outro, o
narrador rompe com uma pergunta: “Seria mesmo seu tanto tolinha?”. Nhinhinha chama o pai
de menino pidão, a mãe de menina grande. Zangavam-se, mas a verdade é que Nhinhinha não
se distingue frente aos pais: iguala-se com esses, não os diferenciando quanto à postura que
assumem na casa. (...) o respeito que tinha por Mãe e Pai pareciam mais uma engraçada
espécie de tolerância (p. 23) Ora, mas não são os pais que precisam ser tolerantes com as
crianças frente àquilo que elas não entendem?

Nhinhinha deixa-se observar pelo mundo ao invés de ser observada. Como já mencionamos,
nosso narrador afirma: “Só a pura vida” é com o que Nhinhinha perde tempo; “fazer listas das
coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo” mostra mais uma vez o que já
afirmamos: a essência do mundo está a serviço da menina. Até para comer, Nhinhinha opta
pelo gosto maior das coisas: prefere do prato aquilo que é mais prazeroso, “mais gostoso e
atraente”, para depois comer o restante.

No silêncio de Nhinhinha, em seus “vácuos” encontra-se sua sabedoria. Não é como a


realidade se mostrava a menina, mas como ela se interagia com essa. “Ninguém tinha real
poder sobre ela, não se sabiam suas preferências” (p. 23). Ao afirmar isso, o mistério que a
menina encerra é a própria vida, que não se sabe de onde vem, nem pra onde vai. Contudo,
logo adiante o narrador diz: E Nhinhinha gostava de mim (p.23). Neste momento, o narrador
em terceira pessoa passa de observador a personagem da estória, contrariando o que a pouco

15
Conforme define Nilce Sant Anna em sua obra “O léxico de Guimarães Rosa”, a palavra “suasibilíssima” vem
de “suasível”, variante de “suasivo”, “próprio para persuadir” 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 470
afirmava da menina. Fugacidade à parte, começa o narrador por contar seu contato com a
menina ao observar a noite. Flagra para nós, leitores, o momento em que a sonoridade guia os
ouvidos e logo, as significações de Nhinhinha para com mundo: o narrador, ao se dirigir sobre
o pássaro que tinha parado de cantador diz “A Avezinha”, Nhinhinha passa a chamar o sabiá
de “Senhora Vizinha”. Nessa hora presenciamos a fala reticente, passageira, para falas longas:
Eeu? Tou fazendo saudade. (p. 23)

Nosso narrador também (de “lá”?) apresenta - se tão próxima de nossa menina quanto Tia
Antônia. Ao falar que queria visitar os mortos, o narrador repreende a menina. “Ralhei, dei
conselhos, disse que ela estava com a lua”. (p. 24). Não, nossa menina de nem bem quatro
anos, que escuta conselhos de outrem não é tolinha; com “seus olhos muito perspectivos”
observam a tudo e a todos. O narrador distancia-se de nossa personagem. Todavia começa por
narrar seus “milagres”. Quando expõe a alegria dos pais, uma vez esses planejam no futuro a
ajuda que Nhinhinha dará a eles, o narrador despeja a morte repentina da menina, explicando:
Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais (p. 25).

Não há um motivo consistente para a morte de Nhinhinha, e sua ambiguidade, como um ser
tanto para a vida quanto para a morte, dividido de forma eloquente nesses dois mundos, faz
com que a sua misteriosa ida para o lado de “lá” seja “necessária” para compor a personagem.
Este é o momento de glória da “Santa Nhinhinha!”!

Refletindo sobre a morte, destacamos Vera Novis em “Tutaméia: Engenho e arte” (1989).

O momento da iluminação pode coincidir com o momento da morte. Nesse


caso a existência do homem aqui na terra, a própria vida humana, é apenas
aprendizagem; e o que se aprende é o reconhecimento da vida como passagem
para o conhecimento absoluto (1989:26).

Seja metaforicamente, como já apontamos por Edna Calobrezi (2001), ou como momento de
iluminação trazido por Vera Novis (1989), a morte como a única concretude da vida circunda
toda a produção de Guimarães Rosa. O conto encerra-se com essa certeza que muitas vezes
oscila diante de nosso narrador que atribui vivacidade, saúde à menina, e que subitamente
depois lhe tira de nós. Ela se vai tendo seu último desejo revelado só ao final: um caixãozinho
cor-de-rosa com enfeites verdes brilhantes. Retomando o comentário do narrador, “Só a pura
vida”!

3.5. Categorias de análise do conto

Levantaremos certas categorias poéticas do conto. Os procedimentos aqui expostos têm por
objetivo permitir a apreciação mais meticulosa de como o conto fez-se estória:

OS NEOLOGISMOS

Por aglutinação:

(...) o que falava às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado:- 'alturas
de urubuir’... Não, dissera só: -'altura de urubu não ir. ' (p. 23)

Na fala de nossa menina, sua linguagem revela justamente a condição infantil que esta sujeita
sua oralidade: Nhinhinha junta as palavras, pois é assim que essa se apresenta aos seus
ouvidos.

Por desaglutinação:

Eu disse: - 'a avezinha'. De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de


'Senhora Vizinha... ' (p.23)

Nessa frase ocorre o processo oposto ao anterior, isto é , uma desaglutinação: em decorrência
de ouvir do narrador “A Avezinha”, Nhinhinha, guiada pela a oralidade, infere outra palavra
separando o “a” da “avezinha” e “transformando-o” em artigo, ou seja, é como se entendesse
“A Vizinha”, que é como passa a chamar o sabiá: “Senhora Vizinha”.

Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para os pés de Nhinhinha - e
não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima
(p. 24)
Verduroso: relativo a verde, o uso dessa palavra não dicionarizada, tem no sufixo "oso" a base
de sua formação, algo típico da fala popular.

(...) que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem
assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser!
(p. 26)

Funebrilhos: fúnebre + brilhos, o caixão brilhante de Nhinhinha. A formação da nova palavra


evidencia uma característica típica de nosso autor: a experimentação em juntar, criar palavras.

Justaposições

-estrelinhas pia-pia (p.23)


-jabuticaba de vem-me-ver (p.23)
-passarinho verde pensamento (25)
-um de-repente (p.25)

A palavra pia-pia (pisca-pisca), refere-se ao piscar das estrelas. Passarinho verde-pensamento


refere-se ao estado de felicidade que se encontrava Nhinhinha em determinada passagem do
conto: subverteu-se o dito popular ("ver passarinho verde") para (“adivinhar”) uma vez que
essa, a adivinhação, era o dom da menina.
Frases Incompreriosas16

“Ele xurugou?” (22)


“Tatu não vê a lua...” (22)
“Eu... to – u..fa-a-zendo...” (23)
“A gente não vê quando o vento se acaba...” (23)
“Alturas de urubuir...” (23)
“Jabuticaba de vem-me-ver...” (23)
“Eeu? Tou fazendo saudade.” (23)
“Ele te xurugou?” (24) (i)
16
É necessário experimentar: incompreensíveis + misteriosas.
Nas frases selecionadas, verificamos dizeres de nossa menina, constatações de seu sentir,
algumas introduzidas pelo discurso direto, outras pelo discurso indireto, sob a voz - e também
constatações - do nosso narrador.

Jogos fônicos com assonância em ritmos binários17

“Limpa lugar”, “Pai pequeno”, “mão mesmo”, “Maria Nhinhinha”, “propósito parava”,
“sempre sentadinha”, “palavras pois”, “comprida comprida”, “vai ver”, “quem ou o quê”,
“gostar ou desgostar”, “colo comia”, “perpétua e impertubada”, “fazendo fazia”, “tanto
tolinha”, “coasse café comentava”, “deixa...deixa”, “alturas de urubuir”, “vou visitar”, “só
sentada”, “vinda verduroso verdíssima visita”, “adoecer de dores”, “veio vagarosa”, “tinha
também”, “versar conversas”, “poucos pegava”, “quis queria”, “cochichavam contentes”,
“diversas dores”, “de de – repente”, “despropositado desatino”, “a agouraria agora”, “bruscas
lágrimas”, “se serenou sorriso”, “santa nhinhinha”.

Os jogos fônicos dão ritmo ao conto roseano: trazem poeticidade e harmonia ao texto.

Uso de prefixação sendo o prefixo mais utilizado "des" e "re"

(...) a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando passando
descompostura em alguém (p. 22)

Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma


(p. 22)

Aí observou 'o passarinho desapareceu de cantar' (p.23)

Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que


não põe nem quita. (p. 24)

17
Adotamos o termo usado por Avani Souza Silva em sua tese “Guimarães Rosa e Mia Couto:
ecos do imaginário infantil”, tese defendida pela Universidade de São Paulo em 2006.
Sorria apenas, segredando seu -'Deixa...Deixa...'-não a podiam despersuadir.
(p. 24)

E mais para repassar o coração, de se ver quando a mãe desfiava o terço (...)
(p.25).

(...) que naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha


falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara (p.26).

Os prefixos indicam uma ação contrária à sua raiz. Em grande decorrência na obra de
Guimarães Rosa, demonstram a operância que o escritor assume ao usá-los, comprimindo
ideias a partir da construção das palavras frente a esse recurso linguístico.
Considerações Finais

A proposta de nossa análise foi a de discutir o mito e a linguagem, ambos em seu nascimento,
por meio da fala da personagem Nhinhinha de forma a examinar o seu discurso e o processo
de significação de suas expressões.

O estudo da estrutura do mito primordial possibilitou-nos reconhecer Nhinhinha e suas


palavras “curtas”, seus desejos transformados em metáforas. Por meio de sons expressivos
frente a um conteúdo sensitivo, estimulado pelo imaginar, pelas estórias de nossa menina,
verificamos como Ela não apenas recebe o mundo que a cerca, mas também como nele
interage. A linguagem de forma viva é apresentada por expressões tencionadas entre o sentir e
o nomear das coisas: somos testemunhas desse nascimento ao nos ser fornecidos os ditos
momentâneos de nossa personagem frente aos seus sentimentos, à sua existência empírica:
frente ao seu céu, sua noite, sua vida e sua morte. Para essa última, seu “lá” basta.

A criança aqui assume um papel essencial para o surgimento do mito na fala: suas frases não
concentram o pensamento científico como forma de organizar e classificar a realidade. O que
prevalece são os sons e sua identidade de essência para com a coisa nomeada.

Com a análise dos termos pronunciados por Nhinhinha, conferimos como eles contêm
vestígios de seus anseios: palavras, sons, vogais que se aproximam ao sentido, impressão em
que se prestam. Contudo, a exposição apresentada por nós é iniciatória: exige olhares mais
demorados, aprofundados, portanto, para outros momentos também maiores.

Os estudos em “A menina de Lá” por meio de considerações teóricas sobre o mito e a


metáfora levaram-nos a considerar o sagrado como elemento preponderante para seu
surgimento. Tal manifestação, conforme observamos, apresenta-se desde o local no qual
Nhinhinha habita, uma vez que o lugar onde a estória se passa, torna possível o retorno dos
mitos, pois justamente trata-se de um espaço onde a natureza encontra-se em um estado
primitivo, “atrás de uma serra”, “quase no meio de um brejo de água limpa” fornecendo uma
simbologia quanto à vida, quanto ao cenário ideal para acolher Nhinhinha. Este cenário
remete-se ao que muitos críticos apontam quanto o espaço roseano por excelência: o ser(tão).
O espaço para a universalidade das coisas, para os questionamentos internos, onde nossa
personagem transita entre os dois mundos, o mundo da carne, “real” e o mundo sobrenatural;
deparando-se com estes dois, precisam ser significados, e isto se faz com suas metáforas, que
potencializam a retomada dos mitos na linguagem. Além disso, Nhinhinha vive sob um
ambiente sagrado, expressados pelas rezas de sua mãe com seu terço inseparável, pelo próprio
nome que envolve a personagem, com sua partida precoce; pelos seus milagres, e,
consequentemente, por sua santificação, o que ocasiona um equilíbrio frente ao estado de
excitação que seus poderes provocam em sua família. Nhinhinha está para além de sua morte,
voltando para a vida de forma canônica, nas palavras e dores de seus pais.

Dessa forma, Nhinhinha sensibiliza-nos com seu olhar/linguagem sobre os enigmas da vida.
O mito e linguagem se servem um do outro para justamente transpassar a conceituação desses
mistérios: transcendendo essas, tornam-se estórias, poesias, vida que se concretiza pelas
palavras que escondem algo maias grave, profundo...Só a pura vida!
BIBLIOGRAFIA

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Artigos

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