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| LANDSCAPE WITHIN ROCK ART |

| Editors: Luiz Oosterbeek | George Nash |

| ARKEOS 29 |
FICHA TÉCNICA

ARKEOS | perspectivas em diálogo, nº 29


Propriedade: CEIPHAR - Centro Europeu de Investigação da Pré-História do
Alto Ribatejo
Volume editado com apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia
Direcção: a Direcção do CEIPHAR
Editores deste volume: L. Oosterbeek e G. Nash
© 2011, CEIPHAR e autores
Composição: CEIPHAR
Concepção gráfica da colecção ARKEOS: Candeias Artes Gráficas
Impressão e acabamentos: Candeias Artes Gráficas | www.candeiasag.com
CONSELHO DE LEITORES (referees)
Abdulaye Camara (Senegal) | Carlo Peretto (Italy) | Fábio Vergara Cerqueira (Brazil)
Luís Raposo (Portugal) | Marcel Otte (Belgium) | Maria de Jesus Sanches (Portugal)
Maurizio Quagliuolo (Italy) | Nuno Bicho (Portugal) | Pablo Arias (Spain)
Saúl Milder (Brazil) | Susana Oliveira Jorge (Portugal) | Vítor Oliveira Jorge (Portugal)
TIRAGEM: 500 exemplares | DEPÓSITO LEGAL: 108 463 /97
ISSN: 0873-593X | ISBN: 978-989-97610-1-8
ARKEOS é uma série monográfica, com edição de pelo menos um volume por ano,
editada pelo Centro Europeu de Investigação da Pré-História do Alto Ribatejo,
que visa a divulgação de trabalhos de investigação em curso ou finalizados, em
Pré-História, Arqueologia e Gestão do Património. A recepção de originais é feita
até 31 de Maio ou 30 de Novembro de cada ano, devendo os textos ser enviados
em suporte digital, incluindo título, resumo e palavras-chave no idioma do texto do
artigo, em inglês e em português. Os trabalhos deverão estar integrados na temática
do volume em preparação e serão submetidos ao conselho de leitores. A aprovação
ou rejeição de contribuições será comunicada no prazo de 90 dias.
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CEIPHAR | Centro de Pré-História do Instituto Politécnico de Tomar
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Volume editado com a colaboração da Comissão Europeia


(Programa Long Life Learning - Erasmus)
TOMAR, DEZEMBRO DE 2011
| Arte Rupestre, Paisagem e Identidades na arte rupestre de Angola: Namibe e Ebo | Luiz Oosterbeek |

Arte Rupestre, Paisagem e Identidades na


arte rupestre de Angola: Namibe e Ebo
LUIZ OOSTERBEEK

ABSTRACT: The perceptionof the surroundings implies the building of the notion of
“otherness” (what is out of myself), of space (three-dimensional location), of time (trans-
formation), of movement (displacement), of causality (early notion of teleology). On the
basis of the notions that are structured in this process, human groups build landscapes, i.e.,
multi-dimensional perceptions of the inhabited or imagined territories. Building from a
reading of rock art contexts of Namibe and Ebo, in Angola, one discusses to what extent
rock art panels, or some of them, may have been not only territorial markers but, also,
landscape conceptual representations.
KEYWORDS: Landscape; Rock Art; Concepts; Territory.

RESUMO: A percepção do entorno implica a construção das noções de “outro” (fora de


mim), de espaço (localização tridimensional), de tempo (transformação), de movimento
(deslocação), de causalidade (noção primordial de teleologia). Sobre a base das noções que
assim se vão estruturando, os grupos humanos constroem paisagens, isto é, percepções
multi-dimensionais dos territórios que habitam ou pressupõem. Partindo duma leitura dos
contextos rupestres do Namibe e do Ebo, em Angola, discute-se em que medida os painéis
de arte rupestre, ou alguns deles, podem ser não apenas marcadores territoriais mas, tam-
bém, representações conceptuais da paisagem.
PALAVRAS-CHAVE: Paisagem; Arte Rupestre; Conceitos; Território.

Comportamento Humano, Paisagem e Arte Rupestre


O comportamento humano é condicionado por uma multiplicidade
de variáveis, que se tendem a estruturar em torno a noções básicas que
moldam a percepção do entorno e são, por sua vez, retro-alimentadas
por tal percepção (Mithen, 1999).
A percepção do entorno implica a construção das noções de “ou-
tro” (fora de mim), de espaço (localização tridimensional), de tempo
(noção de transformação), de movimento (noção de deslocação), de cau-
salidade (noção de teleologia). Nas sociedades, estas e outras noções que
lhes são subordinadas são por sua vez declinadas em termos colectivos (o
“outro” étnico, o espaço social, a causalidade transcendental ou ima-
nente, etc.) (Levi-strauss, 1973).
Sobre a base das noções que assim se vão estruturando, os grupos
humanos constroem paisagens, isto é, percepções multi-dimensionais
dos territórios que habitam ou pressupõem. É nas paisagens que os gru-
pos humanos se reconhecem, estabelecem os limites da sua acção e defi-
nem as suas estratégias comportamentais. O comportamento adaptativo,
motor das sociedades e da evolução, é sempre decorrente de adaptações
a paisagens, a percepções culturalmente informadas (isto é, condiciona-
das pelas noções a que nos referimos), e não uma mera reacção a condi-
cionantes territoriais (ambientais, climáticas ou outras).

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FIG. 1.
Comportamento
Humano e noções
operatórias.

No âmbito de processos de antropização do território, isto é, de cons-


trução de relações com o território que se inscrevem na segmentação do
espaço, os grupos humanos recorrem por vezes ao que designamos por
arte rupestre, manifestações de arte pública, iniciática ou outra, que
adjectivam a natureza percepcionada, e lhe conferem a categoria de locus
antrópico.
Mas em que medida os painéis de arte rupestre, ou alguns deles,
podem ser não apenas marcadores territoriais mas, também, representa-
ções da paisagem?
A paisagem não deve ser entendida apenas como um desenho, ou
uma representação naturalista, pois sendo a paisagem o resultado de uma
percepção instruída por noções operatórias, a paisagem é na verdade
uma síntese nocional, e não uma transposição da realidade. É o que
Magritte sublinhava, por exemplo, e que reencontramos no entendi-
mento de E. Anati da arte rupestre como texto (Anati, 2002; 2008). Na
sua origem, a chamada “arte conceptual” foi concebida como uma apro-
ximação entre representação plástica e linguagem (num contexto histó-
rico em que a sociolinguística emergia), mas na verdade retomava um
caminho com raízes milenares: o entendimento da arte como pensa-
mento, percepção e acção (que na verdade estão contidos na própria
etimologia da palavra). Ou seja, uma aproximação à realidade tenden-
cialmente abstracta, não representativa. Nas palavras de D. Marzona
(2007): “(…) o que eles [cubistas] pretendiam pintar já não era uma
reprodução, mas a imagem de uma realidade autónoma” (pp. 8-9). E é
indiscutível, até porque foi assumido pelos próprios, que as sobreposi-
ções gráficas do paleolítico, as superfícies lisas que se destacam em con-
textos insculturados ou os ideomorfos holocénicos, ecoam nas obras de
Braque, Malevich, Picasso ou Miró.

Território e Arte rupestre no Namibe


O povoamento pré-histórico do Namibe (Angola) remonta prova-
velmente ao pré-acheulense, de acordo com os achados de indústrias na
ponta do Giraul, a norte da cidade do Namibe. Ao acheulense, Miguel
Ramos (1980) atribuiu o sítio de Capangombe, na escarpa de Chela.
Nos últimos milénios, a região do Namibe foi dominada por uma
baixa pluviosidade, que se reparte em duas unidades morfológicas prin-
cipais: as terras baixas (até 500 m. de altitude) e as terras altas (até

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1.000 m.). O clima seco estrutura o deserto costeiro, enquanto as


maiores altitudes das serras de Chela suportam uma cobertura de sava-
na. A fauna decorre desta dicotomia ecológica, com antílopes, javalis,
zebras, elefantes, búfalos, chitas, leões, leopardos, hienas, aves (com
destaque para a águia), répteis e diversos canídeos a pontuar sobretudo
nas zonas de savana, mas com incursões na zona desértica (sobretudo a
fauna de menor porte).
O povoamento pré-histórico recente acompanhou esta realidade
semi-desértica, que já no século XVI era referida por Duarte Pacheco
Pereira, que menciona grupos humanos que se dedicavam à pesca, à
caça, à criação de gado e à recolecção, habitando em cabanas construídas
com ossos de baleia. Diversos relatos posteriores, de Serpa Pinto a An-
tónio de Almeida, destacam a presença de !Kung, aos quais este último
atribui a arte rupestre.

FIG. 2. Localização
em Angola dos sítios
discutidos no texto.

Manuel Gutierrez (2009) listou 12 sítios com pinturas e gravuras, 3


dos quais constituem o complexo de Tchitundo-Hulo.
Como veremos para o caso do Ebo, no Kwanza-Sul, a arte rupestre
não pode ser compreendida senão como uma consolidação da leitura da
paisagem que a geomorfologia oferece. A sua interpretação é complexa,
e importa desde já destacar que ela permite, impõe mesmo, distintos
níveis de interpretação: a leitura que se apoia nos registos históricos so-
bre o povoamento na época do contacto; as memórias e tradições orais
de grupos humanos actuais; as interpretações arqueológicas propriamen-
te ditas. Trata-se de níveis distintos, que fazem recurso a métodos de
análise distintos, e que reconstroem quadros interpretativos correspon-
dentes a momentos e interesses sociais diversos.
A arte rupestre começa por ser uma antropização do território, um
acto pelo qual os grupos humanos marcam a sua relação simbiótica com
o conjunto de elementos relevantes para a sua sobrevivência (rochas e
minerais, fauna e flora, água, luz,…). A compreensão do papel da arte

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na dinâmica sócio-cultural deve por isso partir da compreensão da mi-


cro-paisagem em que se insere.
Assim, as pinturas de Haï (no Caraculo), estudadas por M. Gutierrez
(2009), têm de ser entendidas a partir do papel topograficamente estru-
turante do rochedo em que se abre a gruta, cuja tonalidade avermelhada
(origem da vida?) embala um conjunto de representações a branco (en-
cenação simbólica dos espíritos ou ideias?) de animais, antropomorfos e
ideomorfos. A excepção é um ideomorfo circular vermelho (o próprio
rochedo?). As pinturas são predominantemente de zoomorfos, mas en-
tre estes, e tal como por exemplo no Nordeste do Brasil, os répteis são
representados em visão normal (que lhes confere um aspecto antro-
pomórfico masculino) enquanto que os demais animais (os que são passí-
veis de serem caçados) são representados em visão lateral. O conjunto
parece ilustrar uma história mítica cujo sentido se perdeu, mas em que
terá um lugar essencial a fenda na rocha que separa os dois painéis pinta-
dos: com 29 figuras à esquerda e apenas 2 à direita. Esta relevância da
micro-topografia é muito evidente, também, no sítio de Manacombo,
onde a abertura leste do abrigo lembra um par de olhos que observam o
vale (algo que também se regista num dos abrigos do Ebo).
Uma realidade bastante distinta é a de Kenguerera I (Gutierrez,
2009), na mesma região granítica de Caraculo, onde pelo menos dois
níveis de pinturas ocorrem. No mais antigo, a vermelho, dominam os
fitomorfos e os ideomorfos, enquanto que o nível superior (zoomorfos
e ideomorfos a branco, mas também os sáurios antropomórficos) se apro-
xima do observado no sítio anterior. As pinturas parecem ter sido feitas
da periferia para o centro, o que mais do que uma técnica de pintura
sugere que se trata de painéis historiáveis, com uma composição pré-
-determinada. Interessante é o facto de por vezes as pinturas a vermelho
terem sido cobertas por uma camada de pigmento branco que as anu-
lou; este facto confirma a sugestão de descontinuidade entre uma paisa-
gem centrada no universo recolectável para uma paisagem de caça, na
qual começa a emergir a espécie humana (ou rectilíneo-humana).

FIG. 3. Sítios do
Namibe. Fotos
originais de M.
Gutierrez (2009).

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Um aspecto a considerar é o facto de nos abrigos do Caraculo as


pinturas parecerem agrupadas em painéis que constituem unidades con-
ceptuais. Tal é particularmente evidente em Lumbundjo, onde as re-
presentações ocupam alvéolos naturais nas paredes, mas também nos
demais sítios. Este facto sugere que o acto de pintar foi realizado de
forma segmentada, mais uma vez como que contando uma história em
banda desenhada. A recomposição dos diversos painéis é evidente no
sítio de Onkala (Gutierrez, 2009), onde se destacam os antropo-zoo-
morfos (sauro-antropomorfos), numa sequência dotada de muito movi-
mento, que se orienta da direita para a esquerda, em circuito elipsoidal,
presidida por um grande antropomorfo que poderá representar um es-
pírito ou força vital (com a cabeça duplamente coberta e sem membros
inferiores).
É importante registar que a maioria dos abrigos do Caraculo se abre
no eixo N/S, ou NE/SO, facto que também é comum ao que observa-
mos no Ebo, Naturalmente, tal decorre da geomorfologia, mas impõe
também uma compreensão da paisagem que se estrutura no sentido
Norte/Sul, paralela ao litoral. Tal visão, sistematicamente orientada e
balizada por formas de relevo, encontra tradução na composição dos
painéis, segmentados: a lógica de estruturação em painéis encena a estru-
turação do território em unidades paralelas, e configura uma representa-
ção específica, geométrica, da paisagem. A visão ordenada do espaço
está igualmente presente nas enigmáticas representações sub-circulares
segmentadas, que dominam o sítio de Vihalo I (Gutierrez, 2009). Cre-
mos poder tratar-se de representações do mundo antropizado, com as
grandes linhas internas a estruturar o território com base na geomor-
fologia e a unir os núcleos de habitat, representados pelos pequenos
círculos adossados à face interna da circunferência exterior.
O complexo do Tchitundo-Hulo (Gutierrez, 2009) integra dois
abrigos pintados policromáticos (Opleva e Mulume) e diversas gravuras
ao ar livre.
Em Opleva observa-se a mesma lógica de estruturação da arte com
base na micro-topografia: não são os motivos que compõem o cenário
pictórico; eles são como que acentuações de um discurso já presente na
topografia das paredes, como se dela emergissem. Ocorrem escassos
zoomorfos (felinos, possível águia, caprídeo) e um antropomorfo (inte-
ragindo com um felino), e predominam os ideomorfos.
No abrigo de Mulume, uma profusão de duas centenas de pinturas é
dominada pelas representações a branco, embora aparentemente conti-
das por uma periferia de pinturas vermelhas. Predominam os ideomor-
fos, embora também ocorram diversos zoomorfos (a maioria sem clara
atribuição taxonómica).
Apesar da semelhança na ocorrência de pigmentos, os dois abrigos
são claramente distintos, o primeiro com uma forte conotação de poder
e o segundo de mais obscura compreensão. Ambos contribuem para
acentuar a dimensão antropizada do inselberg granítico em torno do
qual se dispõem as gravuras. Os três conjuntos de gravuras dispõem-se
grosso modo no sentido Norte/Sul. O primeiro é dominado por uma
rede de círculos concêntricos; o segundo inscreve círculos concêntri-
cos, metopas e motivos que podem ser interpretados como representa-
ções de cursos de água; o terceiro inclui diversos ideomorfos e um pe-
queno possível antropomorfo.
Pinturas, gravuras e topografia devem ser apreendidas como um todo
(ou melhor, como uma sequência de “todos”, já que se percebe a exis-
tência de diversos níveis de pintura e gravura, que importará vir a estu-
dar, não sendo segura a contemporaneidade entre a generalidade dos
motivos pintados e gravados). O Tchitundo-Hulo é um complexo do-

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minado pelos ideomorfos, mas enquanto que os abrigos parecem conter


cenas, as gravuras parecem representar esquematicamente territórios
(provavelmente simbólicos, com forte influência da observação do céu).
Nos dois abrigos, a quase ausência de antropomorfos não deve iludir
sobre o tipo de território que é indiciado: uma paisagem plenamente
antropizada (o antropomorfo que controla os felinos num caso, as figu-
ras vermelhas que cercam as brancas o outro), realidade que se regista
também nos painéis de gravuras (estas possivelmente associáveis a co-
munidades de pastores e horticultores, com um olhar direccionado “para
cima” e para os recursos hídricos). As pinturas a negro em Opleva fo-
ram datadas por M. Gutierrez (2009) de há 2 mil anos, e precedem
certamente as pinturas a branco e a vermelho (que, por sua vez, poderão
preceder as gravuras, que embora não atestem a presença de artefactos
metálicos lembram, ocasionalmente, motivos decorativos da Idade do
Ferro).

Os abrigos do Ebo
O topónimo Ebo significa oferenda, ou dádiva, e está associado a
rituais de oferendas e danças.
O Ebo é um extenso vale elevado (peneplanície) situado na provín-
cia de Kwanza Sul, disposto grosso modo no sentido N/S, entre duas
cadeias de maciços granitóides (Domenech González e Francisco, 1982).
O vale estrutura-se a partir da crista escarpada de Amboim-Seles, a Nor-
te, e oscila entre os 1.000 e os 1.500 metros de altitude. Constitui uma
planície de aluvião, rodeada de maciços granitóides de contornos suaves
e preenchida por ocasionais inselbergs, correspondentes a afloramentos
do mesmo sistema granítico. Os maciços laterais dispõe-se predominan-
temente na direcção NW/SE, e o vale é percorrido pelo rio Queve e
preenchido com solos vermelhos ferruginosos. Apresenta uma predo-
minância de clima tropical húmido e de savanas com solos ferralíticos,
paraferralíticos e áridos tropicais, atingindo uma temperatura média de
20° entre Setembro a Maio na estação das chuvas, e frio nos meses de
Junho a Agosto. O clima modifica-se na estação seca do Cacimbo, a
temperatura média desce abaixo dos 18°, ou ainda menos, com ampli-
tudes térmicas diárias acentuadas. A humidade relativa média anual é
superior a 30% e a pluviosidade elevada por influência da altitude nesta
zona de planalto. As populações das aldeias locais exprimem-se em lín-
gua Angóia (tronco linguístico do Quimbundo).
Conhecido desde o início da década de 1970, o vale do Ebo nunca
mereceu estudos sistemáticos, que pretendemos agora iniciar (Martins,
2008). Foi, no entanto, visitado por diversos arqueólogos, como Carlos
Ervedosa, Santos Júnior ou Fernando Batalha. Ervedosa (1980, pp. 274-
281) noticiou a existência de 5 abrigos: 2 abrigos em Quingumba (3
Km a sul do Ebo), 1 na Cumbira (a NW do Ebo), 1 na Delambira (o
principal, a N do Ebo) e 1 no Caiombo (a NE do Ebo). Existem, no
entanto, pelo menos 14 abrigos e uma rocha insculturada. Os locais, em
função da escória, foram interpretados como oficinas de fundição dos
bantos, mas na verdade testemunham ocupações com uma grande
longevidade.

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Abrigo Pinturas Observações


Cavundi Quizólo 26 antropomorfos pequenos. No alto de um
(Quingumba) 35 zoomorfos a branco, morro.
1 a tijolo e 1 a negro
(lagarto sobreposto por leão).
Cenas de caça com espingarda.
Quissanga Cuanga 24 antropomorfos. A 3 km do anterior,
Qyuissanga 3 quadrúpedes, 1 réptil. frente a uma
(Quingumba) Cena de caça com espingarda. cascata.
Tipóias ou redes carregando
presa ou outra coisa.
Procissão de caçadores com
mulher carregado na frente.
Cumbira 18 antropomorfos. No topo de maciço.
18 zoomorfos (elefantes,
antílopes, lagartos).
Ideomorfos.
Tipóia.
Pinturas a branco, negro e tijolo.
Delambira Cerca de mil pinturas. Abrigo principal, a
Cenas de caça, tipóias, transporte NE do Ebo. De
de caça abatida, antropomorfos, acesso difícil,
zoomorfos, ideomorfos, várias domina o vale. É
cenas do quotidiano. regularmente
Ocorrência de cerâmica, inundado pela
escórias, lascas. chuva.
Caiombo Ideomnorfos. Abrigos.
Zoomorfos.
Antropomorfos.
Sauro-antropomorfos.
Ocorrência de cerâmica.

FIG. 4. Sítios do
Ebo.

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Todo o conjunto constitui com efeito uma complexa paisagem cul-


tural, em que ocorrem pinturas, gravuras (pelo menos um importante
afloramento com covinhas e um círculo gravado no abrigo da Cumbira),
terrenos de cultivo e diversas estruturas sepulcrais (cemitérios e sepultu-
ras de sobas, estas últimas dispersas pelos morros, e estruturadas como
pequenos monumentos em falsa cúpula).
O grande afloramento com covinhas (Pedra do Matato), situado na
estrada de acesso ao Ebo (dista 3 kms da sede Municipal entre os bairros
de Cumbira e Dongo), ocupa com efeito o caminho tradicional de aces-
so à grande planície, e possui por isso uma centralidade estratégica.
Toda a paisagem se estrutura actualmente em dois planos simbóli-
cos. O primeiro, actual, lê as manifestações patrimoniais em função de
uma grelha vinculada à história recente (a estruturação do território vin-
culada à soberania da Rainha Ginga, que teria sido “Ngola” dos reinos
do Sudoeste Africano no século XVII). Neste plano, todas as pinturas
são “lidas” como registos de episódios de contacto com os europeus, ou
de relações entre segmentos sociais da comunidade, numa época não
muito recuada. Assim, por exemplo, a Pedra do Matato seria o local de
onde proviriam gritos ouvidos pelos “mais velhos”, e as pinturas de
Cumbira ilustrariam, por exemplo, cenas de transporte em padiolas. O
segundo nível, que remete para períodos mais recuados, é indiciado pela
toponímia antiga e esbarra, na descrição dos actuais habitantes, com a
confissão de ignorância sobre o seu significado.
A Pedra do Matato (“do grito”) é um ocal com covinhas, que marca
o acesso ao Ebo, e onde se situa o memorial da batalha do Ebo (local
onde se travou a 23 de Novembro 1975 fortes combates contra a inva-
são Sul Africana). O local é um grande afloramento granítico, de tipo
inselberg, cuja antiga designação era “Pedroa do Ionda” (ou local onde
se enterrava o Soba). Porém, o inselberg do Matato é um dos raros
afloramentos em que não ocorrem estruturas sepulcrais visíveis, mas em
que inversamente se identificaram grandes painéis de covinhas. Possi-
velmente, situado junto ao caminho tradicional de atravessamento da
planície do Ebo, o afloramento terá funcionado como axis mundi das
comunidades, vinculando-se aos ancestrais através da memória mítica
dos sobas já mortos. A relação que num relato local interpretativo da
arte rupestre se estabelece entre Caio, o pastor que vem oferecer um
boi, e os “velhos” que se situam nas montanhas, não deixa de nos evo-
car a relação entre a vida quotidiana no vale, e a importância simbólica
dos pontos altos, onde se encontram as sepulturas megalíticas dos sobas
e as pinturas rupestres.
Orientado N240º (ou W30ºS / E60ºN), o abrigo da Cumbira ou
Bototo (esconderijo) recebe o topónimo recente de Cumbira (localidade
não muito distante no Kuanza Sul), mas num passado não muito distan-
te era designado por Bototo, topónimo que segundo o Sr. Prazeres (ha-
bitante local, que nos acolheu e orientou) decorre de ter sido utilizado
como abrigo para esconder crianças quando elas corriam perigo de rap-
to. O abrigo tem duas entradas, o que permitiria a fuga pela outra ver-
tente do monte. Num passado mais antigo a área montanhosa recebia
distintos nomes (Nhanzaqueto, Quibumgo,…), mas o local específico
do abrigo era designado por Muluolumbi, ou “Morro de Olumbi”. Não
existe memória sobre o seu significado. Também teria tido, com a che-
gada de fazendeiros portugueses provenientes de Porto Amboim (ocu-
pado a 19 de Agosto de 1915 sob portaria 701), a designação de Morro
do Cunzo (designação ainda conhecida localmente).
Claramente visível a partir do caminho que conduz à Pedra do Ma-
tato, a memória do abrigo reconhece distintas fases (“Moluolumbi”,
depois “Morro do Cunzo”, depois “Bototo”, finalmente “Cumbira”,

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retomando neste caso a denominação da aldeia subjacente). O abrigo


encerra pinturas com pelo menos 4 níveis de sobreposição. Pinturas
zoomórficas a negro (carvão?), em que se reconhecem palancas, corres-
pondem ao primeiro momento. Estas são recobertas por pinturas bran-
cas em que interagem antropomorfos e zoomorfos, ensaiando cenas de
caça, pesca e transporte. Num painel situado mais à direita ocorrem
antropozoomorfos (antropomorfos com cauda ou falo proeminente)
pintados a branco, a que se seguem, no mesmo sentido, zoomorfos
esquemáticos (possível elefante, ou tapir). Um painel anda mais à direita
representa um antropomorfo com aplicações na cabeça, em posição dan-
çante, e rodeado de representações esquemáticas, algumas faliformes.
No segundo painel, na parte inferior, identificam-se pinturas mais re-
centes, que representam zoomorfos e círculos. Na entrada foi identifi-
cado um círculo gravado, e à superfície foram identificados fragmentos
de cerâmicas (lisas e impressas) e um fragmento de mó manual. As pin-
turas de zoomorfos a negro são, seguramente, as mais antigas, e corres-
ponderão a caçadores, o que converge com observações de Manuel
Gutierrez no Namibe. As restantes pinturas remetem para sociedades de
caçadores e pastores, provavelmente da Idade do Ferro. Os adornos na
cabeça, e o espesso pescoço do antropomorfo dançante lembram as de-
corações de cabeças de soba em bronze do Benim (os habitantes do
Benim eram os “Edo”).
As grutas de Caiombo ou Caiauté (“que não mente”) ficam situadas a
WNW da Pedra do Matato, no extremo oposto do Vale. Trata-se de
duas exsurgências geminadas, que se inscrevem num afloramento gra-
nítico, oferecendo a aparência de “olhos” que miram o vale. Na sua
frente é visível um inselberg onde, segundo o Sr. Prazeres, há pinturas
que, contudo, ele nunca viu. No acesso são visíveis alinhamentos esbran-
quiçados, produto da exposição de um veio de quartzo.
As grutas estão abertas numa vertente orientada, grosso modo , E/W.
Na cavidade W (à direita para quem acede às formações a partir do
vale), verificam-se manchas avermelhadas/ocre na base, sobre as quais
se identificam antropomorfos dançantes com grande falo e armas ou
instrumentos musicais na mão que recobrem pinturas geométricas a
branco e por sua vez são cobertos por pinturas a branco representando
uma possível cena de dança. Nesta última, um dos antropomorfos pare-
ce estar a segurar uma espingarda, embora a associação entre esta pintura
e as demais não seja clara (poderá corresponder a um momento distin-
to). Na base da cena de eventual dança, pinturas a branco representam
antropomorfos deitados (mortos?). Na cavidade E (à direita para quem
acede às formações a partir do vale), são ainda visíveis pinturas amarela-
das (ocre?) muito afectadas pela circulação de águas, mas onde se pode
reconhecer um grande antropozoomorfo, com cerca de 1 metro, com
um falo grande (que lhe confere o aspecto de antropo-zoomorfo) e cujos
membros parecem terminar na forma de cabeças de animal. A composi-
ção geral é similar à das outras representações que podemos identificar
como possível dança: figura central representada de frente ou a 3/4 e
pequenas figuras em redor. Esta grande figura é recoberta por pinturas
geométricas a branco, mas também por pequenos antropomorfos pinta-
dos, quase filiformes.
Estilisticamente, as pinturas do Caiombo e da Cumbira são distintas,
ainda que a iconografia seja em parte convergente. O complexo deve
ser entendido, no entanto, como um território estruturado, pontuado
por manifestações antrópicas (as sepulturas de sobas de tipo megalítico,
a arte rupestre). Na arte rupestre reconhecem-se três unidades descriti-
vas: a arte mais antiga, de caçadores, que representa os animais e remete
directamente para descrições de paisagens; a arte dos primeiros meta-

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lurgistas, que inscreve, em diversos conjuntos pictóricos, narrativas de


mitos, prováveis mnemónicas de conhecimentos estruturantes das iden-
tidades; a arte do período do contacto, constituída por cenas onde pon-
tuam elementos ocidentais. Se a arte mais antiga ilustra o conceito de
“paisagem na arte rupestre”, já a arte dos metalurgistas remete essencial-
mente para o conhecimento dos mitos fundadores (identidade) e a arte
do contacto é centrada nas interacções com grupos humanos distintos.

Arte rupestre e antropização da paisagem


FIG. 5. Arte
Rupestre e
Antropização da
Paisagem.

A arte rupestre pode assim ser entendida como uma síntese entre
pensamento, percepção e acção, ou seja, como um instrumento da praxis
adaptativa dos grupos humanos que povoaram as regiões em estudo. Os
grupos humanos, como referimos, estruturam as suas estratégias adapta-
tivas em paisagens, ou seja, em percepções do território. Numa visão do
mundo estruturada a partir de uma noção de espaço descontínuo e não
homogéneo, são reconhecidos lugares (são lugares os locais onde é feita
a arte, mas também os locus das narrativas), representações (transforma-
ções de forma ou sentido, associadas à projecção de mitos) e perfor-
mances (codificadas em cenas, onde a dança ocupa um lugar central). A
arte funciona, assim, não apenas como um marcador de paisagem mas,
sobretudo, como uma interpretação dessa paisagem.

Agradecimentos
Desejamos agradecer à Fundação para a Ciência e Tecnologia, que
através do projecto EBO – Arte Rupestre do Centro-Oeste de Angola:
mapeamento e registo (PTDC/HIS-ARQ/103187/2008) financia os
trabalhos de pesquisa em que se insere o presente artigo. Agradecemos
ao Instituto Nacional do Património Cultural de Angola e ao Museu
Nacional de Arqueologia em Benguela, pelo apoio na articulação para o
futuro desenvolvimento do projecto. Um agradecimento especial é de-
vido às nossas colegas Cristina Martins e Maria João Cruz, que integram
a equipa de investigação.

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BIBLIOGRAFIA
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