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Emanuelle Clayre Silva Banhos
Emanuelle Clayre Silva Banhos
São Paulo
2022
EMANUELLE CLAYRE SILVA BANHOS
São Paulo
2022
Banhos, Emanuelle Clayre Silva.
Os contratos empresariais como meio de garantia dos
direitos humanos no âmbito das empresas transnacionais. /
Emanuelle Clayre Silva Banhos. 2022.
115 f.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Nove de Julho -
UNINOVE, São Paulo, 2022.
Orientador (a): Prof. Dr. Marcelo Benacchio.
1. Empresas e direitos humanos. 2. Empresas
transnacionais. 3. Contratos empresariais. 4. Regulação. 5.
Capitalismo Humanista.
I. Benacchio, Marcelo. II. Título.
CDU 34
EMANUELLE CLAYRE SILVA BANHOS
Dissertação apresentada ao
Programa Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito da Universidade
Nove de Julho como parte das
exigências para a obtenção do título
de Mestre em Direito.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Benacchio
Orientador
UNINOVE
________________________________________
Prof. Dr. Manoel de Queiroz Pereira Calças
Examinador Interno
UNINOVE
DEDICATÓRIA
Cursar o Mestrado e, ao mesmo tempo, gestar e dar à luz a uma criança teria
sido impossível, não fosse aqueles aqui mencionados que, direta ou indiretamente,
ajudaram-me a desenvolver esta pesquisa.
Agradeço a Deus por, no momento e local certos, permitir que ingressasse e
concluísse o Mestrado, o que parecia um sonho distante.
Ao meu esposo, Rodrigo, mesmo que qualquer agradecimento que eu faça
seja singelo perto de todo apoio, cuidado, suporte, amor e incentivo que me
proporciona, especialmente, desde o processo seletivo até a finalização da pesquisa.
Muito obrigada, por tudo.
À minha mãe, Valéria, por sempre incentivar minha educação, e pelos dias
que cuidou da minha filha para que eu pudesse me dedicar a este trabalho.
Aos meus sogros, Rosana e Paulo, pelos dias que nos receberam em sua
casa e cuidaram da minha filha, para que eu pudesse concluir a pesquisa.
À Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio e fomento à
pesquisa, indispensáveis para o desenvolvimento do presente trabalho.
Ao professor Doutor Marcelo Benacchio, não apenas pela orientação, mas por
toda atenção, comprometimento e por ser exemplo de dedicação à docência e à
pesquisa.
Aos professores e professoras do Programa de Mestrado em Direito da
UNINOVE, por todo conhecimento compartilhado e por sua dedicação à pesquisa.
Aos colegas do mestrado, pela troca de conhecimentos e debates,
especialmente, Rachel Bonotti, por sua ajuda, parcerias em trabalhos e pesquisas, e
que mesmo sem conhecer pessoalmente, em razão da pandemia de Covid-19,
tornou-se uma amiga.
Às alunas da graduação em Direito da UNINOVE, vinculadas ao projeto “A
ordem jurídica do mercado na efetivação dos Direitos Humanos”, por sua dedicação
e por permitirem que, no estágio docente, eu pudesse contribuir de alguma forma
com a sua formação e pesquisas que desenvolveram durante o projeto.
Ao meu primo, Otávio, sempre pronto a ajudar, por sua atenção, parcerias na
pesquisa e incontáveis revisões de trabalho.
Por último, mas não menos importante, à amiga, Anne Ávila, por seu apoio,
desde o processo seletivo, e pelas incontáveis dicas e orientações ao longo do
Mestrado.
“Os descaminhos da criatura humana, refletidos na violência, na
exclusão, no egoísmo e na indiferença pela sorte do semelhante, assentam-se na
perda de valores morais. Alimentam-se da frouxidão moral. A insensibilidade no
trato com a natureza denota a contaminação da consciência humana pelo vírus da
mais cruel insensatez. A humanidade escolheu o suicídio ao destruir seu hábitat.
É paradoxal assistir à proclamação enfática dos direitos humanos, simultânea à
intensificação do desrespeito por todos eles. De pouco vale reconhecer a dignidade
da pessoa, insculpida como princípio fundamental da República, se a conduta
pessoal não se pauta por ela”.
(JOSÉ RENATO NALINI, 2009)
RESUMO
Transnational corporations plays an important role today, since they hold greater
economic, social and political power than states, and their relations are governed by
contracts, which are protected by the Lex Mercatoria. Considering the power of these
corporations and how much their actions, whether positive or negative, can reflect on
society, especially in the promotion or violation of human rights, became the need to
incorporate in their scope of action the adoption of behavior with a humanist bias,
through the requirement of conducts that conform to ethical and social values
acceptable in their external and internal relations. Therefore, the adoption of these
behaviors was reflected in the contractual field due to the modification of the
contractual conception, which went from individualistic to one that takes care not only
of the reflection of the negotiations between the parties, but also of its reflections in
society. Thus, considering that contracts govern business activities, this paper aims
to evaluate the use of the business contract as a mean of guaranteeing and promoting
human rights in the context of transnational corporations. To this end, the
hypothetical-deductive method was used, with a bibliographical research as a
methodological procedure. As conclusions, it was found that the nineteenth-century
conformation of contract, founded on equality and unrestricted freedom, no longer
meets the yearnings of today's society, since the current contract conception follows
in the sense that it serves for the promotion of human dignity and the rights inherent
to it, in balance with the market. Given the prominent role held by transnational
corporations in today's society, there is a need for their performance in favor of
society's values, and not only in function of profit. Finally, the business contract is an
instrument of humanism, and a mean of regulating the global market, while the
insertion, explicitly or implicitly, of humanist values in its content can contribute to the
guarantee and promotion of human rights, in addition to enabling the harmonious
coexistence of human rights and business, and the realization of humanist capitalism.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
1 OS CONTRATOS: DA ATIGUIDADE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
.................................................................................................................................. 16
1.1 APONTAMENTOS HISTÓRICOS ACERCA DA EVOLUÇÃO DOS CONTRATOS
.................................................................................................................................. 16
1.1.1 Da concepção liberal à social ....................................................................... 18
1.1.2 A nova concepção de contrato ..................................................................... 25
1.2 OS CONTRATOS EMPRESARIAIS .................................................................... 28
1.2.1 Características dos contratos empresariais ................................................ 31
1.2.2 As funções dos contratos empresariais ...................................................... 33
1.3 REFLEXOS DA GLOBALIZAÇÃO NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS ........... 36
2 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS TRANSNACIONAIS ................................. 43
2.1 A IDEIA DE DIREITOS HUMANOS .................................................................... 43
2.1.1 Direitos humanos e sua eficácia nas relações privadas............................. 47
2.2 AS EMPRESAS TRANSNACIONAIS COMO PRINCIPAIS ATORES DO
SÉCULO XXI ............................................................................................................. 51
2.2.1 A Lex Mercatoria como mecanismo de autorregulação das transnacionais
.................................................................................................................................. 55
2.3 A NECESSIDADE DE CONFORMAÇÃO DOS INTERESSES DAS
TRANSNACIONAIS COM OS DIREITOS HUMANOS ............................................. 62
2.3.1 Violações de direitos humanos por grandes corporações......................... 65
2.4 ORIENTAÇÕES DA ONU QUANTO AS EMPRESAS E OS DIREITOS
HUMANOS ................................................................................................................ 68
3 A GARANTIA E AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DOS
CONTRATOS EMPRESARIAIS ............................................................................... 74
3.1 OS CONTRATOS À LUZ DO HUMANISMO ....................................................... 74
3.2 A FUNÇÃO REGULATÓRIA DOS CONTRATOS EMPRESARIAIS ................... 77
3.3 FORMAS DE GARANTIA E AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NOS
CONTRATOS EMPRESARIAIS CELEBRADOS PELAS EMPRESAS
TRANSNACIONAIS .................................................................................................. 80
3.3.1 A vinculação expressa dos direitos humanos nos contratos empresariais
.................................................................................................................................. 84
3.3.2 A vinculação implícita dos direitos humanos nos contratos empresariais
.................................................................................................................................. 88
3.3.2.1 Programas de conformidade ......................................................................... 90
3.4 OS LIMITES PARA CONTRATAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS .................. 94
3.5 DO INADIMPLEMENTO ÀS CLÁUSULAS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS: A DIFICULDADE PARA EXECUÇÃO DO CONTRATO........................ 97
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 102
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 106
14
INTRODUÇÃO
Com o passar dos anos, o poder outrora detido pelo Estado e compreendido
pelas ideias de nação e território passou a ser relativizado por um novo ator social: as
empresas transnacionais (ETNs).
Face a expansão da globalização econômica no século passado, as ETNs
passaram a se instalar em diversas partes do mundo, especialmente, em países em
desenvolvimento, em busca de menores custos de produção, mão de obra mais
barata, impostos e leis menos rigorosas, o que ensejou diversas violações a direitos
humanos, com maior destaque na década de 1990.
As ETNs não buscam submeter-se às normas estatais, pois almejam um
regramento próprio que, por meio da celebração de contratos, possam conceber uma
Lex Mercatoria que atenda suas necessidades.
Os contratos, por sua vez, são um dos principais institutos jurídicos atualmente,
os quais possuem maior destaque na vida em sociedade, cujo ideal oitocentista,
fundado na liberdade e na igualdade abstratas não se adequa aos parâmetros
vigentes. Isso porque, o contrato teve seu significado revisto, de maneira que não
pode servir para atender a interesses exclusivamente patrimoniais, devendo atenção
à dignidade da pessoa humana.
Na seara do mercado, os contratos empresariais emergem, assim, como um
possível meio para não apenas promover negócios jurídicos com o intuito de auferir
benefícios, mas, também, para orientar a atividade empresarial transnacional para
promoção de direitos humanos.
Por essa perspectiva, surgiram os seguintes problemas: o contrato empresarial
pode servir à realização do humanismo? É possível a utilização do contrato
empresarial, pelas empresas transnacionais, para garantia e afirmação dos direitos
humanos promovendo-se o capitalismo humanista? Como seria feita a vinculação dos
direitos humanos aos contratos empresariais?
A hipótese básica é que o contrato empresarial serve a realização do
humanismo, sendo um meio para garantia e afirmação dos direitos humanos, ao
viabilizar a aproximação entre eles e as empresas transnacionais, mediante a
incorporação em seu texto, expressa ou implícita, de valores que sirvam à realização
da dignidade da pessoa e garantia dos direitos humanos, de maneira a atuar como
instrumento de promoção do capitalismo humanista.
15
1 Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2014, s.p.) sobre a necessidade de uma visão histórica do
direito privado, enfatizam: “Como ensina Jean Carbonnier, há um vínculo poderoso que une história e
pensamento jurídico: “O direito encontra na história seu próprio meio e espaço, uma vez que direito é
essencialmente ‘constância no tempo’ (durée), memória, conexão das gerações umas às outras,
enraizamento do futuro no passado, e mesmo quando revolucionário, adoraria se redescobrir em
documentos antigos, que séculos de opressão não teriam podido fazer desaparecer (…)”. Em outras
palavras, a história legitima, a evolução histórica, explica, ensina e domina; o presente encontra-se
fortemente enraizado no passado [...]”.
2 Paulo Luiz Netto Lôbo (1995) afirma que “o direito romano não conheceu o contrato como categoria
geral, até porque inexistia o direito subjetivo como os modernos desenvolveram. A tipicidade romana
das actiones não comportava uma figura genérica a que se conduzissem, por subsunção, as espécies
17
contratuais. Se o pretor não admitia a actio para determinadas convenções, elas simplesmente não
existiam como contratos; eram pactos nus (pacta nuda)”.
3 Os contratos foram um instrumento reconhecido pelos romanos, pais do direito privado, embora não
tenha sido conceituado dessa forma por eles, o que ocorreu apenas no século XIX, após o Código Civil
Napoleônico (GOMES, 2015, p. 21).
4 Segundo Darcy Bessone (1987, p. 7), a distinção entre pacto e contrato “[...] deitava raízes no Direito
mais antigo, pelo qual o simples acordo de vontade não era suficiente para gerar obrigações dotadas
de eficácia civil. Entendia-se que o princípio de que a vontade das partes é o elemento fundamental
das convenções era de Direito natural. Para que esse elemento subjetivo produzisse obrigações civis,
exigia-se que fosse aliado a alguma causa civilis. Os textos romanos não estabeleceram a definição da
causa civil. Os romanistas não chegaram a acordo a respeito. Para uns, pretendia-se ou poderia
prender-se à essência do contrato. Para outros, consistia em formalidades exteriores como, por
exemplo, a stipulatio, promessa feita em público, com o uso de palavras solenes. Certamente por faltar
o conceito em questão, faltava também o do contrato, do qual a causa civilis constituía elemento
essencial. Não dispuseram os romanos, por conseguinte, de uma noção genérica e abstrata do
contrato, como esquema capaz de abraçar todas as variedades porventura ocorrentes. Conheciam, no
entanto, certas figuras contratuais, poucas e determinadas, com contornos bem estabelecidos.
Compreende-se que, sendo assim, as convenções não contratuais, chamadas pacta, fossem
frequentes e numerosas”.
5 Conforme Maria Estela Leite Gomes (2015, p. 22) “a idade média marcou-se pela total ausência de
produção jurídica. Assim, com o passar dos anos, o estabelecimento do regime feudal, a evolução e
complexidade das relações sociais, especialmente por conta do desenvolvimento do comércio, e as
traduções necessárias em razão do desuso do latim fizeram com que o Direito Romano também caísse
em desuso. Já no fim da Idade Média, por volta de 1200, a necessidade de um direito unitário e
homogêneo fez ressurgir o Direito Romano pelo trabalho dos glosadores, que resgataram o Corpus
Iuris Civilis e, a partir dele, desenvolveram o Direito Canônico, que seria o veículo de toda a
jurisprudência romana até os dias atuais”.
18
fim de atender aos interesses da burguesia da época. Nascia ali o capitalismo6, quase
que concomitantemente com o Estado Moderno, que precisava de uma nova
concepção do contrato para a aplicação do sistema econômico que estava se
formando, fundado na liberdade de contratar e revelando sua vertente econômica.
As mudanças originadas pelo mercantilismo e, anos após, pela revolução
industrial, fez com que o contrato tornasse indispensável ao capitalismo, que era um
sistema afetado, de forma negativa, pelas corporações de ofício e suas rigorosas
regulações, bem como pelas benesses reais (TOMASEVICIUS FILHO, 2014, p. 50).
De suma importância para o capitalismo, o contrato, segundo Eros Roberto
Grau, era “pressuposto necessário do modo de produção capitalista, a uniformidade
(universalidade abstrata) das pessoas – sujeitos de direito- enseja a consagração do
contratualismo como princípio regulador da vida pessoal, social e econômica”, nada
obstante, o contratualismo, do qual faziam parte pessoas supostamente livres e iguais
em direitos, era constituído “sob a suposição de que as trocas livres entre eles
resolveriam todos os problemas da sociedade, sempre, porém, em função de
interesses específicos da burguesia” (GRAU, 2015, p. 30).
A necessidade de atender aos anseios da burguesia fez com que, na Inglaterra,
primeiro país a adotar o liberalismo7 e pátria de John Locke, conhecido como o “pai
6 De acordo com Fábio Konder Comparato (2014, p. 13-14) “o vocábulo capitalismo é de uso
relativamente recente. Ele aparece pela primeira vez, com o sentido atual, em Louis Blanc e Proudhon,
em meados do século XIX. Marx, porém, ao contrário e Engels, jamais empregou o vocábulo, preferindo
falar em “modo de produção capitalista” (kapitalische Produktionsweise). A generalização do uso do
termo só se deu, nas análises teóricas e nas discussões políticas, a partir do início do século XX, como
antônimo do socialismo. Fora do círculo intelectual marxista, o capitalismo tem sido entendido,
sobretudo pelos economistas, como um simples sistema econômico. Na tradição liberal, que remonta
a Adam Smith, muito influenciado pelos fisiocratas franceses do século XVIII, tratar-se-ia do único
sistema natural da vida econômica”. Quanto ao conceito de capitalismo, segundo André Ramos
Tavares (2006, p. 35), “capitalista é o sistema econômico no qual as relações de produção estão
assentadas na propriedade privada dos bens em geral, especialmente dos de produção, na liberdade
ampla, principalmente de iniciativa e de concorrência e, conseqüentemente, na livre contratação de
mão-de-obra”.
7 O ideal de liberdade com ausência de qualquer restrição foi fortalecido, tanto na seara da vida civil
quanto no poder político, mas, especialmente, no âmbito econômico. A livre iniciativa pleiteada, aos
olhos de seus adeptos, não deveria sofrer interferências do Estado, já que o próprio mercado deveria
regular-se por sua “mão invisível”, o lema vigente à época era “laissez faire, laissez passer”. Fernando
Herren Aguillar (2006, p. 55-56) ensina que “o liberalismo econômico despontou como ideal de
organização econômica da sociedade com teóricos do século XVIII, coincidindo com os interesses de
expansão e desenvolvimento da nascente indústria de produção em escala na Europa. Segundo tais
teóricos, a economia deveria movimentar-se livremente, sem interferência do Estado, deixando que a
lei da oferta e da procura resolvesse os problemas que surgissem. O liberalismo passou por uma fase
de maturação, pleno desenvolvimento e, posteriormente, caiu no ostracismo. O liberalismo passou por
uma fase de maturação, dede maturação, pleno desenvolvimento e, posteriormente, caiu no
ostracismo. Por volta da década de 30 do século XX, as ideias liberais se encontravam muito
enfraquecidas em meio aos escombros do colapso financeiro de 1929. Tamanha liberdade de
movimentação de capitais e de concentração de riquezas havia conduzido ao desastre. O que seguiu
20
foram décadas de intervencionismo estatal em todos os países capitalistas, com políticas de seguridade
social, proteção contra o desemprego, subsídios estatais e empresas capitalizadas e conduzidas pelo
Estado, o chamado welfare state (Estado do bem-estar social). Entretanto, já na década de 80 do século
XX, o modelo intervencionista data mostras de exaustão, gerando enormes déficits para os governos e
recebendo críticas ácidas quanto à sua capacidade de fazer frente às necessidades econômicas. O
período foi marcado pelas políticas de privatização da era Thatcher e pela reaganomics norte-
americana. Foi nesse contexto que ressurgiram as teorias liberais na economia (neoliberalismo),
reivindicando uma retração do Estado, exigindo que ele deixasse de ser empresário e passasse a
cuidar de necessidades básicas, como saúde e educação. Com o subsequente colapso do sistema
comunista, fortaleceu-se a bandeira liberal em quase todas as nações ocidentais, uma vez que não
havia mais um sistema concorrente ao capitalismo”.
8 Segundo Maria Estela Leite Gomes (2015, p. 23) “no estado liberal pós- Revolução Francesa, contudo,
o contrato passa a representar essa nova ideologia, qual seja, a ideologia da liberdade, da absoluta
proteção do indivíduo – e de sua vontade – contra os arbítrios do Estado. O contrato passa a ser a
fonte de direitos e deveres nas relações interprivadas; direitos e deveres esses manifestados e
assumidos por um novo homem: o homem livre e autônomo, o homem capaz de expressar a sua
vontade e sua possibilidade de sujeitar-se a uma prestação em favor de outro contratante, assim como
é capaz de exigir do outro que lhe cumpra a prestação prometida. O contrato, assim, expressa
claramente todo o vigor conferido ao valor da liberdade humana como resultado pós-revolução”.
9 Paulo Luiz Netto Lôbo (1995) explica que: “A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da
Revolução Francesa, em 1789, proclamou a sacralidade da propriedade privada ("Art. 17. Sendo a
propriedade um direito sagrado e inviolável..."), tida como exteriorização da pessoa humana ou da
cidadania. Emancipada da rigidez estamental da Idade Média, a propriedade privada dos bens
econômicos ingressou em circulação contínua, mediante a instrumentalização do contrato. Autonomia
da vontade, liberdade individual e propriedade privada, transmigraram dos fundamentos teóricos e
21
realizava aquilo que era mais favorável ou justo para si, pouco importando se haveria
injustiça para a outra parte, economicamente débil, como infere Enzo Roppo (2009,
p. 37):
11 De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo (1995) “o modelo liberal do contrato também não resiste ao
paradigma que se desenvolveu no futuro imediato, e se desenvolve na atualidade, principalmente por
conta de dois macrofatores: o Estado social e a sociedade de massas. Agora, as referências para o
contrato não são mais nem o pater famílias ou sui juris romano nem o indivíduo proprietário da
burguesia liberal; nem a liberdade coletiva dos antigos nem a liberdade individual desimpedida dos
modernos; nem o formalismo nem a autonomia de vontade. O Estado social (welfare state) caracteriza-
se justamente pela função oposta à cometida ao Estado liberal mínimo. O Estado não é mais apenas
o garantidor da liberdade e da autonomia contratual dos indivíduos; vai além, intervindo profundamente
nas relações contratuais, ultrapassando os limites da justiça comutativa para promover não apenas a
justiça distributiva mas a justiça social”.
12 Como explica Marcelo Benacchio (2011, p. 17) “[...] como é de conhecimento geral, as injustiças
provocadas pela falácia da igualdade formal dos indivíduos trouxeram um movimento de socialização
dos institutos jurídicos, dentre eles, o contrato, que sofreu a refundação de seus valores, com a
introdução da solidariedade, a significar um temperamento, uma limitação da autonomia da vontade,
no sentido de proteção à parte mais fraca e mesmo seu maior aproveitamento por toda a sociedade.
Nessas bases, o contrato, que se pensara apaixonadamente sob o prisma da liberdade individual,
passou a ser concebido, também apaixonadamente, sob a concessão social”.
13 Um dos marcos do Estado do Social foram os direitos sociais que passaram a integrar textos
principal debate se deu em torno da Constituição alemã de 1919, que teve por fundamento a busca de
um compromisso em uma estrutura política pluralista (BERCOVICI, 2011. p. 571).
14 Quanto a solidariedade contratual, vide Paulo Nalin, 2002, p. 174 e ss.. O autor ressalta que “para
além da noção histórica, parece relevante demonstrar que o solidarismo serve como instrumento
político ou, até mesmo, como uma “terceira via” entre o individualismo e o socialismo, descrita enquanto
“[...] el rasgo fundamental es la comunidade de sacrificios y riesgos, junto al afecto; se trataria de una
noción que pone el manifiesto el lazo fraternidad y solidariedad”, cuja visão se desenvolveu a partir de
inferências sobre a igualdade mútua e a comunidade de empresas, supondo um sujeito plural, un
nosotros”. (NALIN, 2002, p. 177)
15 Orlando Gomes acerca do dirigismo contratual, apresenta-o como uma das três tentativas de
modificações no regime jurídico do contrato com a finalidade de corrigir o desequilíbrio entre as partes
contratantes, advindo, especialmente do liberalismo: “Três modificações no regime jurídico do contrato
revelam outras tantas tentativas para a correção do desequilíbrio. A primeira consistiu na promulgação
de grande número de leis de proteção à categoria de indivíduos mais fracos econômica ou socialmente,
compensando-lhes a inferioridade com uma superioridade jurídica. A segunda patenteia-se na
legislação de apoio aos grupos organizados, como os sindicatos, para enfrentar em pé de igualdade o
contratante mais forte. A terceira, no dirigismo contratual, exercido pelo Estado através de leis que
impõem ou proíbem certo conteúdo de determinados contratos, ou sujeitam sua conclusão ou sua
eficácia a uma autorização de poder público” (GOMES, 2007, p. 9).
24
17 Sob a perspectiva dos contratos de consumo, Claudia Lima Marques afirma que a nova concepção
dos contratos é social “para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa,
mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde
a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância” (MARQUES, 2007,
p. 27-28).
18 Acerca deste período, Orlando Gomes (2007, p. 8) afirma: “Diversas causas concorreram para a
modificação da noção de contrato. A suposição de que a igualdade formal dos indivíduos asseguraria
o equilíbrio entre os contratantes, fosse qual fosse a sua condição social, foi desacreditada na vida real.
O desequilíbrio tomou-se patente, principalmente no contrato de trabalho, gerando insatisfação e
provocando tratamento legal completamente diferente, o qual leva em consideração a desigualdade
das partes. A interferência do Estado na vida econômica implicou, por sua vez, a limitação legal da
liberdade de contratar e o encolhimento da esfera de autonomia privada, passando a sofrer crescentes
cortes, sobre todas, a liberdade de determinar o conteúdo da relação contratual. A crescente
complexidade da vida social exigiu, para amplos setores, nova técnica de contratação, simplificando-
se o processo de formação, como sucedeu visivelmente nos contratos em massa, e se acentuando o
fenômeno da despersonalização”.
19 Os conceitos de globalização e neoliberalismo serão tratados no tópico 1.5.
20 O pós-modernismo é o período de história da humanidade que tem início em meados do século XX,
e permanece até os tempos hodiernos. Segundo Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2014, s.p.)
“vive-se atualmente em uma sociedade pós-moderna, sociedade de consumo e de produção de massa,
sociedade de serviços, sociedade da informação, altamente acelerada, globalizada e
desmaterializada”. No tocante as características do pós-modernismo, vide AZEVEDO, 1999.
26
21 Eros Roberto Grau (2001, p. 425) em trabalho no qual questiona a existência de um novo paradigma
de contratos afirma que de “devemos ficar bem alertas ao fato de que atualmente não estamos, apenas,
procurando reconstruir a teoria geral do contrato, mas sim reconstruir teorias que expliquem uma
realidade social inteiramente renovada. A consciência desse fato deve ser o pressuposto da
interpretação Contratual”.
22 Quanto ao novo paradigma de contrato Paulo Luiz Netto Lôbo (1995) entende “[...] ser impossível
pensar o sentido e a função do contrato, em nossa atual sociedade de massas, e mais ainda, segundo
a experiência do Estado social, que se consolidou neste século XX, sem uma análise rigorosa do
paradigma contratual que o nosso direito, ou melhor, o senso comum dos juristas, insiste em ter como
invariável. Refiro-me ao contrato estruturado no esquema clássico da oferta e da aceitação, do
consentimento livre e da igualdade formal das partes. O contrato assim gerado passa a ser lei entre as
partes, na conhecida dicção dos Códigos Civis francês e italiano, ou então sintetizado na fórmula pacta
sunt servanda. O contrato encobre-se de inviolabilidade, inclusive em face do Estado ou da
coletividade. Vincula-se o contratante ética e juridicamente; vínculo que tanto é mais legítimo quanto
fruto de sua liberdade e autonomia. Esta visão idílica da plena realização da justiça cumulativa, que
não admitia qualquer interferência do Estado-juiz ou legislador, pode ser retratada na expressiva
petição de princípio da época: quem diz contratual, diz justo. Os paradigmas do passado e do futuro
desmentem a concepção universalizante do modelo liberal do contrato”.
27
23 Maria Estela Leite Gomes (2015, p. 64) expõe que a “nova concepção de contrato enquanto
instrumento de realização da existência humana permite que se perceba, mesmo nos contratos sociais,
tidos esses por aqueles que estatuem os deveres dos sócios numa sociedade civil ou empresarial, a
essencialidade da atividade econômica para o indivíduo, bem como para a sociedade moderna (ou
pós-moderna) e complexa dos dias atuais”.
24 Teresa Negreiros (2006, p. 306) afirma que “reconhecida, atualmente, a funcionalização da liberdade
contratual à legalidade constitucional, a necessidade de criar novas categorias surge como decorrência
do papel que estas desempenham na delimitação da fronteira entre o uso e o abuso desta liberdade
contratual. Uma tarefa que exige do operador jurídico capacidade para lidar com diferenciações
formuladas a partir de elementos externos à estrutura contratual, abstratamente considerada. Justifica-
se, nestes quadros, aludir a novos paradigmas, ou, genericamente, ao paradigma da diversidade, que,
sem nenhuma dúvida, implica encarar o fenômeno contratual sob outras luzes; sob outros, e agora
múltiplos, paradigmas”.
28
25 No mesmo sentido, conclui Paulo Luiz Netto Lôbo (1995) “em suma, o sentido e o alcance do contrato
reflete sempre e necessariamente as relações econômicas e sociais praticadas em cada momento
histórico. O modelo liberal e tradicional, inclusive sob a forma e estrutura do negócio jurídico, é
inadequado aos atos negociais existentes na atualidade, porque são distintos os fundamentos,
constituindo obstáculo às mudanças sociais. O conteúdo conceptual e material e a função do contrato
mudaram, inclusive para adequá-lo às exigências de realização da justiça social, que não é só dele
mas de todo o direito”.
26 Esclarece Paula A. Forgioni (2018, p. 26) que “tecnicamente, o contrato é espécie de negócio jurídico
que, na autorizada visão de Junqueira de Azevedo, traduz-se em “todo fato jurídico consistente em
declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos,
respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre
ele incide”. Mas na tradição do direito comercial, o termo “negócio” vem muitas vezes empregado no
sentido de “transação” ou “negociação”. Trata-se, para Ferreira Borges, de “termo de conceito prático”,
ligado a “qualquer operação mercantil”. De acordo com a linha comercialista, o “negócio mercantil”
identifica-se com as operações feitas pelos comerciantes e que se corporificam em contratos.
Empregamos, assim, a palavra “negócio”, no sentido de affare, em língua italiana, ou affair, na francesa;
ou business, para os norte-americanos”.
27 Neste trabalho, utiliza-se os termos “contratos empresariais”, “contratos comerciais” e “contratos
empresário; 2) o perfil funcional que observa a empresa como atividade organizada; 3) o perfil objetivo
ou patrimonial que vê a empresa como estabelecimento; 4) o perfil corporativo ou institucional que
enxerga empresa como instituição.
29
A empresa é um fenômeno econômico que tem por fim precípuo gerar lucro,
contudo, dado aos seus diversos perfis, Alberto Asquini (1996, p. 125) conclui que no
conceito29 de empresa devem ser observados os aspectos do “empresário como
sujeito, a atividade empresarial, o patrimônio aziendal e o estabelecimento, a empresa
como instituição em sentido técnico”.
Dado que a empresa precisa cumprir o seu principal fim que é gerar riqueza,
bem como fazê-la circular, o contrato apresenta-se como uma figura essencial para a
organização da atividade econômica empresarial, especialmente, no âmbito do
mercado30 globalizado, atualmente regido pelas empresas transnacionais (ETNs), no
qual o contrato31 faz lei entre as partes, ou seja, o agir das empresas se faz por meio
dos contratos, como expõe Paula A. Forgioni (2021, p. 23):
A empresa não apenas “é”; ela “age”, “atua”, e o faz por meio dos
contratos. A empresa não vive ensimesmada, metida com seus
ajustes internos; ela revela-se nas transações. Sua abertura para o
ambiente institucional em que se encontra é significativa a pote de
parte da doutrina afirmar que “[o]s modernos complexos produtivos
não são tanto estoque de bens, mas feixes de relações contratuais”. A
empresa cristaliza-se em sua atividade de interagir; a empresa é
agente econômico.
29 O Código Civil brasileiro de 2002, acolheu a teoria de Asquini e definiu quem seria o empresário em
seu artigo 966, ao dispor que “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.
30 Com esteio em Roppo, Paula A. Forgioni (2021, p. 24) afirma que “o mercado identifica-se com um
emaranhado de relações contratuais, tecido pelos agentes econômicos. Como se afirmou “o mercado
[...] é feito de contratos, os contratos nascem do e no mercado”. Na dicção de ROPPO, “na economia
moderna, é o contrato, acima de tudo, que cria a riqueza”.
31 Esclarece Paula A. Forgioni (2021, p. 26-27) que o termo “contrato” pode ter sentido diferente para
os economistas, pois, por diversas vezes estes tratarão como contrato algo que produz vínculo para os
juristas. Os economistas costumam identificar o contrato como qualquer forma de coordenar
transações, ou, as relações que criam vínculos de dependência entre duas ou mais partes, em sentido
que não coincide com o jurídico.
32 O contrato empresarial difere-se dos contratos civis, pois ao Direito Empresarial cabe apenas o
estudo dos contratos empresariais, enquanto que o Direito Civil estuda toda a teoria geral dos contratos,
a qual é aplicável aos contratos mercantis. A esta modalidade de contrato aplicam-se os princípios do
Direito dos Contratos, dentre os quais destacam-se a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.
Assim, nem todos os contratos celebrados por uma empresa são empresariais, dentre os quais se
destacam os contratos administrativos celebrados junto ao Poder Público, de trabalho e de consumo
(WENCESLAU, 2020). No que toca aos de consumo, esclarece Paula A. Forgioni (2021, p. 28) que “os
contratos com consumidores [ou “B2C”, na terminologia estadunidense] não mais integram o direito
comercial. A evolução e a consolidação do direito do consumidor como ramo autônomo em relação ao
civil e ao comercial desautoriza a projeção dos contratos mercantis de forma ampla, como se ainda
abrangessem todos “i rapporti pertinenti ad un “impresa”, na linha da doutrina tradicional”.
33 Interessante realizar a distinção entre contratos internos e contratos internacionais. Segundo Irineu
Strenger (1992, p. 22) “quando os elementos constitutivos do contrato (partes, objeto, lugar onde se
30
que é empresarial todo aquele contrato que operacionaliza esta atividade, diferindo-
se do contrato civil e podendo ser compreendido como:
pactua a obrigação, lugar onde deverá surtir seus efeitos) se originam e se realizam dentro dos limites
geográficos de um único país, estamos situados no âmbito interno das obrigações. Inversamente,
quando as partes contratantes tenham nacionalidades diversas ou domicílio em países distintos,
quando a mercadoria ou o serviço objeto da obrigação seja entregue ou seja prestado além-fronteiras,
ou quando os lugares da celebração e execução das obrigações contratuais tampouco coincidam,
estaremos no âmbito dos contratos internacionais”. Assim, em resumo, de acordo com o autor “o
contrato interno está circunscrito ao Direito local, independentemente do domicílio ou nacionalidade
das partes, não se alargando sua operatividade fora dos limites territoriais. O contrato internacional,
por seu turno, é necessariamente extraterritorial, ainda que as partes tenham a mesma nacionalidade.
O que importa, nessa hipótese, são os fatores decorrentes em toda a sua amplitude da domicialidade
e dos sistemas jurídicos intervenientes” (1992, p. 24).
34 Paula A. Forgioni (2021, p. 146) explica que “outra tradicional característica dos contratos mercantis
[e do próprio direito comercial] é seu cosmopolitismo, sua tendência de ignorar fronteiras. O comércio
vai até aonde lhe é permitido, sem creditar muita atenção a barreiras culturais ou jurídicas; com menor
ou maior facilidade, tende a expandir-se. [...] O cosmopolitismo deve ser hoje compreendido no contexto
da globalização, com a disseminação cada vez maior de práticas [usos e costumes] e modelos de
negócios desenvolvidos no exterior”.
31
35Sobre a característica do risco da atividade empresarial Wenceslau (2020, p. 26) afirma que “para
fomentar a atividade empresarial, a sociedade empresária necessita de recursos diversos (dinheiro,
coisas, móveis, imóveis, direitos etc.), a qual não os possui imediatamente, pois, não há, em uma
empresa, recursos naturais aplicados, ou seja, todos devem ser dispostos pelo empresário, que os
aporta de forma intencional, em autonomia privada e em pleno exercício da livre iniciativa. Esse risco
é eventual, pois, mesmo buscando seu benefício, o lucro, pode haver o fracasso da empresa, o qual
pode afetar o patrimônio deslocado do empresário para o empreendimento”.
32
resultados econômicos, e este risco se reflete nos contratos empresariais que poderão
gerar resultados positivos ou negativos para a empresa36.
Assim, o contrato serve como um mecanismo para alocação dos riscos da
atividade econômica, pois “o risco é inevitável porque “[c]ontratar é prever”, de forma
que “[o] contrato é um empreendimento sobre o futuro” (FORGIONI, 2021, p. 152).
Devido ao exercício profissional da atividade econômica pelo empresário,
decorre daí mais uma característica do contrato empresarial, ou seja, o
profissionalismo que, além da habitualidade e da experiência de mercado, exige que
o empresário conheça os riscos envolvendo o negócio, assim como os inerentes aos
contratos celebrados.
A habitualidade propicia mais uma característica que é a aplicação dos usos e
costumes37, decorrentes da prática mercantil aos contratos. Assim, o stylus
mercatorum, os usos e os costumes são fonte do direito comercial, servindo como
diretriz para o funcionamento do mercado e dos contratos (FORGIONI, 2021, p. 141).
Quanto aos usos e costumes, expõe Paula Forgioni (2021, p. 142):
36 Expõe Wenceslau (2020, p. 27) que “verificada essa condição de empresário e o risco assumido nos
contratos empresariais, o grau jurisdicional torna-se menos intervencionista. A liberdade de livre
iniciativa é mais ampla e pauta-se na igualdade entre as partes contratantes, distanciando-se dos
contratos civis puros e os consumeristas”.
37 Conforme será exposto no tópico 1.5, os usos e costumes são incompatíveis com o mercado
38 Paula A. Forgioni (2021, p. 122), enfatiza que a segurança e previsibilidade são requisitos essenciais
para a formação dos contratos empresariais. Isso porque, segundo a autora, “ao contratar, uma parte
tem legítima expectativa de que a outra comportar-se-á de determinada forma, daquela maneira
anônima e repetida [...]. Ambos os empresários planejam sua jogada e esperam que o outro aja de
acordo com esse padrão “de mercado”. Não é desejável que seja dada ao contrato interpretação
diversa daquela que pressupõe o comportamento normalmente adotado [usos e costumes]. Isso levaria
ao sacrifício da segurança e da previsibilidade jurídicas”.
39 “Por conta da adoção do padrão de comportamento do homem ativo e probo, ou dos “comerciantes
declarações de vontade. Ao se vincular, as empresas têm em vista determinado escopo, que se mescla
34
Especialmente no caso dos contratos empresariais que sempre visam ao lucro, não
há como dissocia-los do intuito econômico que possuem e buscam satisfazer, que
constitui a sua função econômica (FORGIONI, 2021, p. 119-120).
Destarte, na sociedade, os contratos acompanham todo o processo econômico,
de modo que dele não se desvincula, pois possui o fim de promover uma justa e útil
circulação de riquezas, motivo pelo qual não é possível negar a função econômica
dos contratos, herança do liberalismo.
Entretanto, no Brasil, ante o fenômeno da constitucionalização do direito
privado, que adota como valor supremo a dignidade da pessoa humana, não é
possível considerar unicamente esta função, haja vista que este instrumento se presta
a uma função existencial antes de sua função econômica (GOMES, 2015, p. 81).
No mercado globalizado, o contrato é o instrumento hábil para regular este
cenário de negociações para o fim de atender aos desejos e necessidades da
sociedade, pois a busca de cada ser humano por condições dignas de vida é o que
impulsiona o mercado, de maneira que “não se pode furtar ao contrato a sua função
existencial, ou seja, a condição de ser ele o instrumento da realização da existência
digna”, ao contrato cabe promover a dignidade humana (GOMES, 2015, p. 82).
A terceira função do contrato é a social, já objeto de estudo doutrinário desde
o século XIX, quando a partir do Código Civil francês de 1804, a chamada liberdade
de contratar possuía um fim essencialmente liberal e capitalista. A função social não
desqualifica a função econômica do contrato, ao revés. Este princípio, aliado à boa-fé
e ao equilíbrio econômico sustenta a nova teoria contratual.
Nessa seara, no Brasil, um dos princípios norteadores do Código Civil de 2002,
é a sociabilidade que pressupõe que os interesses individuais não podem prevalecer
sobre os sociais, em consequência de que a lei concede ao sujeito o direito de exercer
um direito subjetivo, desde que este atenda sua finalidade social, e o individual não
se sobreponha aos interesses sociais, como expõe João Carlos Bianco (2013, p. 97):
com a função que esperam o negócio desempenhe; todo negócio possui uma função econômica. [...]
Em qualquer hipótese, a contratação terá um objetivo, almejado em conjunto pelas empresas, isto é,
todo negócio tem uma função econômica e nessa função encontra sua razão de ser. Repita-se: nenhum
empresário contrata sem escopo, mas porque pretende obter determinado resultado que acredita ser-
lhe benéfico”.
35
Em razão desse princípio, no Brasil, o Código Civil de 2002, optou por referir-
se ao social em vários dispositivos41, inclusive na seara contratual, da qual se destaca
o artigo 421 que consagra que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato [...]”.
A função social pressupõe que a liberdade de contratar somente será
reconhecida se exercida com atenção aos princípios constitucionais e valores
humanos e sociais, especialmente a dignidade da pessoa humana, ou, como resume
Orlando Gomes (2007, p. 24): “na afirmação de que o contrato exerce uma função
social, o que significa, em suma, é que deve ser socialmente útil, de modo que haja
interesse público na sua tutela”.
A função social apenas extraiu dos contratos a concepção de uma igualdade
apenas formal para uma substancial. Essa liberdade não deixou de existir, mas
passou a ser limitada por tais princípios42, de maneira que ela não se justificará
quando atentar aos princípios e valores humanos.
Finalmente, enquanto limite à liberdade de contratar, a função social determina
que os contratantes atuem entre si com atenção à boa-fé e, conjuntamente, com
relação a sociedade pautados no princípio da solidariedade43.
41 São exemplos da socialidade do Código Civil brasileiro: o abuso no exercício de um direito (art. 187),
probidade e a boa-fé (art. 422), fixação de indenização razoável pela interrupção da empreitada (art.
623), responsabilidade do gestor de negócio pelos danos causados por caso fortuito, ao realizar
operações arriscadas (art. 868), ao preverá responsabilidade civil objetiva decorrente da atividade de
risco (art. 926, parágrafo único), ao exigir que a propriedade deve ser exercida de acordo com as
finalidades econômicas e sociais (art. 1.228, § 1º).
42 A inclinação do Código Civil de 2002 em favor da socialidade, da pessoa humana e do entendimento
que trata-se de uma “lei básica, mas não geral”, trouxe reflexos para o princípio da liberdade contratual
e da força obrigatória dos contratos, pois a vontade das partes antes inatingível cedeu espaço à
alteridade negocial e ao princípio da dignidade da pessoa humana, reduzindo-se a vontade negocial
para promover a dignidade humana, nas relações contratuais e no âmbito dos seus interesses
patrimonial e existencial (NALIN, 2014, p.115).
43 No Brasil a função social pode ser observada nos artigos 50, 108, 157, 170, 187, 17, 406, 413, 422,
423, 424, 478, 479 e 2.035, parágrafo único do Código Civil de 2002.
36
44 Explica Fábio Konder Comparato (2014, p. 14) que “o que se denomina propriamente mercado, e
que sempre foi o centro das atenções da economia política clássica, é o espaço aberto de distribuição
de bens e de prestação de serviços, onde impera a lei de divisão e especialização de tarefas”. O autor
ainda ressalta que “[...] embora o capitalismo dependa, para subsistir, da existência de um mercado,
ele jamais se submete a este, mas, bem ao contrário, o domina, a fim de realizar seu objetivo próprio,
que é a maior acumulação possível de capital” (COMPARATO, 2014, p. 15).
45 Enfatiza Marcelo Benacchio (2018a, p. 37) que “o mercado se utiliza do conceito jurídico de liberdade
para seu funcionamento, seria difícil, senão impossível, definir o mercado sem as noções jurídicas de
contrato (e a obrigatoriedade de seu cumprimento), e ainda a noção de bem, serviços, propriedade e
patrimônio. Desse modo, em minha compreensão, o mercado envolve uma escolha política e jurídica
da sociedade, destarte, não é uma realidade social preexistente ao Direito; pelo contrário o mercado
faz parte da realidade econômica, social e jurídica, competindo ao Direito indicar suas finalidades e
ordenar seu funcionamento. O mercado não é uma compreensão abstrata e isenta de valores, em
verdade tem a finalidade e o dever de suprir as necessidades humanas, permitindo igualdade de acesso
a todos e permitindo o desenvolvimento das pessoas em todos seus aspectos. A redução do mercado
ao aumento contínuo dos ganhos e respectivo acúmulo de riqueza é contrário à noção básica
de equidade concernente à divisão das vantagens propiciadas pelo adequado funcionamento do
mercado entre todas as pessoas.”
46 Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 252) sobre a globalização afirma que “in the last three
production systems and financial transfers, to worldwide dissemination of information and images
through the mass media and communication technologies, and to mass translocation of people, as
tourists, as migrant workers or as refugees. The extraordinary range and depth of these transnational
interactions has led some authors to see in them a qualitative departure from previous forms of
worldwide relations, a new phenomenon designed as “globalization”, “global formation” or “global
culture”.
47 Lembra Melina Girardi Fachin (2009, p. 3) que ao mesmo tempo que a globalização impõe a ideologia
do pensamento único, ela também abre espaço para as possibilidades de diálogos interculturais.
38
48 Quanto a globalização não se tratar de um fenômeno novo, José Eduardo Faria (1999, p. 60) ensina
que “ele já estava presente, por exemplo, nos antigos impérios, provocando sucessivos surtos de
modernização econômica, cultural e jurídica. Na era moderna, foi impulsionado pela interação entre a
expansão da cartografia, o crescente domínio das técnicas de navegação pelos ibéricos e a própria
evolução do conhecimento científico. Esses foram os fatores responsáveis pelas grandes descobertas
e pelos projetos ultramarinos de Portugal e Espanha, a partir do final do século XV; pelas novas formas
manufatureiras desenvolvidas em Florença, Gênova, Milão, Veneza e outras cidades do norte da Itália,
no século XVI; e pela formação de um sistema internacional de pagamentos baseado em letras de
câmbio, entre banqueiros e negociantes, tornando possível o estabelecimento de rotas globais de
comércio, a exploração sistemática do ouro e da prata nas Américas, o início de um amplo e complexo
processo de colonização e expansão territorial, a chegada da civilização europeia aos extremos da
Ásia e a formação de estruturas decisórias dotadas de uma capacidade organizacional para controlar
o meio social e político em que se realizava a acumulação de capital em escala mundial. Entre os
séculos XVII e XVIII, esses fluxos mundiais de comércio e riqueza levaram ao aparecimento de novos
pólos de poder na Europa, com o fortalecimento econômico, social e político da burguesia; à formação
de Estados nacionais unificados e centralizados nesse continentes; e ao advento do mercantilismo e à
aplicação do colonialismo europeu. Mais tarde, especialmente no apogeu da hegemonia inglesa, entre
o final do século XIX e o começo do século XX, quando o padrão-ouro proporcionou moedas
automaticamente conversíveis e estimulou a criação de instituições destinadas a garantir o livre-câmbio
e as inversões estrangeiras, aumentando significativamente a movimentação de matérias-primas,
produtos acabados, produtos semi-acabados, capitais e serviços sobre as fronteiras nacionais, esse
fenômeno se torna objeto de um intenso debate sobre o alcance da interconexão das economias
relevantes; sobre as consequências da internacionalização dos fatores de produção e a
homogeneização das estruturas capitalistas em nível mundial; sobre os novos papéis do capital
financeiro; e sobre as implicações políticas e sociais do imperialismo econômico e territorialista”.
49 Trata-se de uma espécie de hominídeo que viveu, aproximadamente, entre 2,2 milhões a 780 mil
anos.
50 Como consequências da globalização Fernando Herren Aguilar (2006, p. 52) destaca “mercados
de los cuales los Estados nacionales soberanos se entremezclan e imbrican mediante actores
transnacionales y sus respectivas probabilidades de poder, orientaciones, identidades y entramados
vários”.
39
de acesso e trocas desiguais dos fatores de produção em escala global (FARIA, 1999,
p. 62).
Esse fenômeno é resultado de transformações institucionais, políticas,
econômicas, organizacionais, comerciais e tecnológicas que ocorreram nos anos
70,80 e 90 (FARIA, 1999, p. 62-63).
Seu ideal é o neoliberalismo52, vertente atual do liberalismo, que visa o
“acúmulo de riqueza e expansão do lucro, no qual não se vislumbra qualquer
preocupação com o desenvolvimento humano sustentável e includente, promovendo-
se a exclusão social e o privilégio de alguns em prejuízo de muitos” 53 (BANHOS;
BENACCHIO, 2020, p. 43).
O neoliberalismo, como pregado, fere o princípio democrático, haja vista que
“há marcante contradição entre o neoliberalismo – que exclui, marginaliza- e a
democracia, que supõe o acesso de um número cada vez maior de cidadãos aos bens
sociais” (GRAU, 2015, p. 55).
Uma das principais características da globalização é o contraste com o
nacionalismo, pois este fenômeno, a partir do final do século XX, passou a mitigar o
conceito de Estado-nação54 que pressupõe o fortalecimento da produção nacional, da
soberania e valores nacionais, pois ele passa a ser incapaz de exercer sua soberania
em razão da globalização econômica, que busca a eliminação da xenofobia, a fim de
que produtos de origem estrangeira tenham fácil acesso a outros mercados, assim
como que empresas e capitais estrangeiros possam exercer posições de destaque na
economia local, gerando a dependência de capitais externos e vulnerabilidades
(AGUILLAR, 2006, p. 56).
52 Por neoliberalismo, Avelãs Nunes (2003, p, 9), aduz que este “é o núcleo da matriz ideológica da
política de globalização que vem marcando a actual fase do capitalismo à escala mundial”, afirmando
ainda que “o neoliberalismo exclui da esfera da responsabilidade do estado as questões atinentes à
justiça social, negando, por isso, toda a legitimidade das políticas de redistribuição do rendimento,
orientadas para o objectivo de reduzir as desigualdades de riqueza e de rendimento, na busca de mais
equidade, de mais justiça social, de mais igualdade efectiva entre as pessoas” (2003, p. 35).
53 Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2019, p. 30) afirmam que “o neoliberalismo ainda prevalece na
centro de produção legislativa, de modo a exercer sua soberania. Assim, “a consolidação do Estado
Nacional acentuou o valor das ideias de território e soberania. Do ponto de vista prático, significava que
cada país buscava decidir de forma individualista suas próprias políticas econômicas e sociais e
protegia econômica e militarmente suas fronteiras. A soberania interna significava a superioridade do
poder estatal em face de todos os cidadãos e de grupos de cidadãos ou de sociedade dentro do
território nacional. A soberania externa representava a insubmissão nacional a qualquer ingerência
externa, exceto quando escolhia livremente obrigar-se a tanto” (AGUILLAR, 2006, p. 43).
40
necessidades, tal como infere Giorgio Oppo ao afirmar que “o mercado [...] é feito de
contratos, os contratos nascem do e no mercado”, de maneira que “na economia
moderna, é o contrato, acima de tudo, que cria a riqueza” (apud FORGIONI, 2021, p.
24).
Segundo o Fabio Ulhoa Coelho (2012), o tema contratos é sensível à
globalização do mercado. Isso porque, o processo de integração do mercado promove
a revitalização da autonomia da vontade, mas, de outro lado, promove o
desaparecimento dos usos e costumes, comuns ao direito comercial.
Dessa maneira, se de um lado tem-se a possibilidade de aumentar a livre
negociação entre as partes, permitindo a ampliação dos negócios e flexibilização de
custos, de outro lado, os usos e costumes decorrentes de uma cultura local não
coadunam com o objetivo da globalização de criação de um mercado comum sem
quaisquer fronteiras.
Nessa esteira, justifica Fábio Ulhoa Coelho (2012, s.p.):
O fim do uso e dos costumes apresenta-se como uma tendência gerada nos
últimos anos pela globalização, que é a acelerada uniformização das práticas
contratuais.
Explica Paula A. Forgioni (2021, p. 148) que:
A noção de igualdade entre todos os homens nasceu entre o ano 800 a.C. e o
ano 200 a. C. (COMPARATO, 2003), contudo, foi consolidada apenas decorridos vinte
e cinco séculos, após muitas lutas para afirmação e reconhecimento dessa igualdade,
razão pela qual, não por acaso, os direitos humanos são considerados direitos
históricos55.
A evolução histórica desses direitos pode ser compreendida por meio do
instituto da dinamogenesis dos direitos humanos, que pode ser entendido como o
processo de nascimento e desenvolvimento do direito concorde as necessidades da
sociedade em cada momento da história (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010), ou seja,
é o processo de criação dos direitos humanos a partir de fatos sociais, decorrentes
das necessidades da humanidade, que são diferentes conforme a época, e reivindica-
las como forma de corporificar a dignidade da pessoa humana.
As primeiras conquistas dos direitos humanos remontam aos séculos XVII e
XVIII. Isso porque, na Inglaterra, a Declaração de Direitos de 168956 – Bill of Rights-
apresentou a noção de direitos humanos, cujo pensamento de que todos os homens
nasciam livres com igualdade de direitos e obrigações perpetuou-se apenas após as
revoluções liberais do século XVIII. A Bill of Rights, juntamente com a Declaração de
Independência dos Estados Unidos de 1776 e, na França, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789, marcaram a libertação dos grupos sociais dos quais
as pessoas faziam parte e estavam sujeitas à vontade, a exemplo da família e igreja
(COMPARATO, 2003).
55 Norberto Bobbio (2004, p. 9) infere que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,
são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa
de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem
de uma vez por todas”.
56 Segundo Marcelo Benacchio (2012), são considerados documentos que antecedem a positivação
dos direitos humanos a Magna Carta da Inglaterra do Rei João Sem-Terra de 1.215, a Petition of Rights
de 1.628, o Habeas Corpus Act de 1.679 e a Bill of Rights de 1.689, entretanto, apesar de limitarem o
poder do Estado, não tinham por fim o homem comum da época, ao revés, destinavam-se a
determinadas classes sociais como a Nobreza e o Clero. Foi com a escola de direito natural e dos
ideais iluministas que ocorreram mudanças quanto a compreensão dos direitos, o que gerou
transformações que favoreceram a individualidade do ser humano.
44
57 São os direitos civis e políticos, pautados no valor da liberdade, e que funcionam como direitos de
titularidade negativa, pois exigem uma abstenção do Estado.
58 Opta-se nesse trabalho pelo uso da expressão “dimensão” em substituição à “geração”. Isso porque,
como explicam Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera (2019, p. 177) “[...] as dimensões dos Direitos
Humanos não se sucedem ou substituem-se umas às outras, ao contrário, manifestam-se em
consubstancialidade. Não se deve confundir as dimensões dos Direitos Humanos com as designadas
gerações, estas sim, historicamente reveladas ao longo do tempo e cronologicamente sequenciais [...]”.
59 Tratam-se dos direitos sociais, pautados no valor da igualdade, e que funcionam como direitos de
proteção ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade do
patrimônio comum da humanidade. São direitos transindividuais, relacionados a proteção do gênero
humano.
61 Existem autores, a exemplo de Paulo Bonavides, que tratam de uma 4ª dimensão dos direitos
humanos, que correspondem a última fase de institucionalização do Estado Social. Também, Gustavo
Zagrebelsky entende pela existência de direitos de 5ª dimensão cuja “categoria é beneplácita da
universalização de certos direitos como o direito à democracia, ao desenvolvimento, ao progresso
social, direitos que seriam associados a uma ideia de um constitucionalismo global, de uma cidadania
mundial” (FACHIN, 2009, p. 82).
62 Isabel Rute Sousa do Amaral Xavier Cabrita (2010, p. 172) conclui que não existe um consenso sobre
o sentido dos direitos humanos em razão do pluralismo cultural existente entre os povos do mundo. A
autora esclarece que “o reconhecimento do pluralismo cultural é antigo e os povos do mundo já
tinham consciência deste problema ao tempo da criação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Efectivamente, os autores da Declaração inspirados por diversas religiões, filosofias e
morais chegaram a um acordo mais pragmático do que teórico. Ou seja, chegaram a um acordo
sobre uma lista de direitos mas abandonaram a procura de um consenso doutrinário a respeito da
natureza dos direitos e das relações entre os mesmos. Em suma, os autores da Declaração Universal
dos Direitos Humanos não definiram o conceito de direitos humanos”.
45
63 Neste estudo utiliza-se o termo direitos humanos de forma ampla, considerando-o de maneira a
abranger os direitos existentes independentemente de sua positivação, inerentes a qualquer pessoa
humana, ou seja, direitos naturais, bem como, aqueles reconhecidos no âmbito internacional, por
tratados e acordos, e aqueles adotados por Estados em suas normas internas e Constituições.
64 Quanto a distinção entre os direitos fundamentais e os direitos humanos Ingo Wolfgang Sarlet (2012,
s.p.) esclarece: “Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”)
comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem,
procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles
direitos do ser humano reconhecidos e positivados n a esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os
documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao
ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e
que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam
um inequívoco caráter supranacional (internacional). A consideração de que o termo “direitos
humanos” pode ser equiparado ao de “direitos naturais” não nos parece correta, uma vez que a própria
positivação em normas de direito internacional, de acordo com a lúcida lição de Bobbio, já
revelou, de forma incontestável, a dimensão histórica e relativa dos direitos humanos, que assim se
desprenderam – ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) – da ideia de
um direito natural. Todavia, não devemos esquecer que, na sua vertente histórica, os direitos humanos
(internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento, pelo direito positivo, de
uma série de direitos naturais do homem, que, neste sentido, assumem uma dimensão pré-estatal e,
para alguns, até mesmo supraestatal. Cuida-se, sem dúvida, igualmente de direitos humanos –
considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condição humana–,
mas, neste caso, de direitos não positivados”.
65 Antonio Enrique Pérez Luño (2013) ensina que o termo “direitos fundamentais” tem sua origem na
França, no ano de 1770, no âmbito do movimento político e cultural que levou a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão em 1789. Esta nomenclatura alcançou especial atenção na Alemanha onde
se articulou, especialmente com a Constituição de Weimar de 1919, o sistema de relações entre o
indivíduo e o Estado, como fundamento de toda a ordem jurídico-política. Logo, segundo o autor, se a
expressão “direitos fundamentais” e a sua formulação jurídico-positiva como direitos constitucionais são
um fenômeno recente, suas raízes filosóficas, por sua vez, remontam aos ideais históricos do
pensamento humanista.
46
Jack Donnelly (2003, p. 10-11) entende que direitos humanos são, literalmente,
os direitos que se possui por ser humano, podendo compreendê-los como direitos
iguais, que não são apenas valores abstratos como liberdade e igualdade, haja vista
serem direitos que dependem de práticas sociais para serem realizados, de maneira
que um direito humano não pode ser confundido com os valores ou aspirações
subjacentes ao gozo do objeto do direito.
As principais características67 dos direitos humanos são: a inalienabilidade,
irrenunciabilidade, imprescritibilidade e inviolabilidade. E como principal fundamento,
assim como os direitos fundamentais, tem-se a dignidade da pessoa humana, que
atribui ao ser humano a condição de titular de direitos independentemente do seu
reconhecimento por uma ordem jurídica.
Trata-se de um instituto de difícil conceituação devido a pluralidade de valores
que existem nas sociedades contemporâneas, de maneira que permanece em
constante evolução, conjuntamente à sociedade (SARLET, 2006).
Por dignidade da pessoa humana Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p. 60) entende:
66 Tradução livre: “[...] os direitos humanos aparecem como um conjunto de faculdades e instituições
que, em cada momento histórico, especificam as demandas de dignidade humana, liberdade e
igualdade, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos sistemas jurídicos em nível nacional
e internacional”.
67 Quanto aos direitos humanos Jack Donnelly (2003, p. 10) afirma que: “They are also inalienable
rights: one cannot stop being human, no matter how badly one behaves nor how barbaously one is
treated. And they are universal rights, in the sense that today we consider all members of the species
Homo sapiens “human beings” and thus holders of human rights.”
47
68 O mínimo existencial pode ser entendido como as condições mínimas que devem ser asseguradas
a população para a sua existência digna.
69 Consoante Virgílio Afonso da Silva existe uma quarta corrente que entende pela possibilidade de
imputação das ações particulares ao Estado ou, ainda, igualar essas ações à ações estatais (2011, p.
68).
48
70 De acordo com Uwe Diederichsen “a supremacia conferida à lei fundamental não corresponde
automaticamente uma supremacia dos valores fundamentais que ela abriga. Isso porque esses valores
não adquirem superioridade pelo simples fato de serem previstos na constituição, isto é, esse fato não
implica uma imposição automática dos valores constitucionais ao resto do ordenamento jurídico”
(DIEDERICHSEN apud SILVA, 2011, p. 72).
71 Esta teoria “foi introduzida pelo caso Lüth do Tribunal Constitucional alemão, passando a ser
conhecido como “theory of indirect effect on third parties- Lehre der mittellbaren Drittwirkung” (FACHIN;
BOLZANI, 2018, p. 216).
49
72 “Nipperdey foi o autor que pioneiramente, e com maior ênfase, defendeu a aplicabilidade direta dos
direitos fundamentais às relações entre particulares. Segundo ele, os direitos fundamentais têm efeitos
absolutos e, nesse sentido, não carecem de mediação legislativa para serem aplicados a essas
relações. Mas, mais do que isso, esse efeito absoluto dos direitos fundamentais faz com que sejam
também desnecessárias “artimanhas interpretativas” para aplica-los em relações que não incluam o
Estado como ator” (SILVA, 2011, p. 87).
73 Quanto a uma possível colisão de interesses, esclarece Rosalice Fidalgo Pinheiro (2009, p. 151):
“Porém, todas as teorias convergem para um ponto comum: a incidência dos direitos fundamentais nas
relações privadas suscita uma colisão de interesses, que deve ser dissipada pelo princípio da
proporcionalidade. No direito brasileiro, a teoria da eficácia imediata mostra-se predominante,
ensejando semelhante conclusão”.
74 Constituição da República Portuguesa de 1976, art. 18.1: “Os preceitos constitucionais respeitantes
aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas”.
50
75 Expandindo-se, também, a eficácia mediata para a seara dos direitos humanos Cláudia Lima
Marques e Bruno Miragem (2014, s.p.) afirmam que “estudos mais recentes da doutrina alemã indicam
que, em virtude da Drittwirkung ou efeitos horizontais dos direitos humanos, vários institutos do direito
público imigram para o direito privado”.
76 A este respeito, Sanches e Benacchio (2012, p. 390) afirmam: “Assumindo a empresa atividades
historicamente estatais e não sendo possível o retrocesso social, evidentemente, à luz da eficácia
horizontal dos direitos humanos, é perfeitamente cabível em dadas situações a exigência de que parte
do lucro da atividade empresarial tenha emprego no atendimento dos direitos sociais, procedendo-se
à melhor distribuição de riqueza e permitindo o desenvolvimento humano consoante processo histórico
em curso”.
51
José Eduardo Faria (1999, p. 13), “transformou radicalmente as estruturas de dominação política e de
apropriação de recursos, subverteu as noções de tempo e espaço, derrubou barreiras geográficas,
reduziu as fronteiras burocráticas e jurídicas entre nações, revolucionou os sistemas de produção,
modificou estruturalmente as relações trabalhistas, tornou os investimentos em ciência, tecnologia e
informação em fatores privilegiados de produtividade e competitividade, criou formas de poder e
influência em novas e autônomas, e por fim, multiplicou de modo exponencial e em escala planetária
os fluxos de ideias, conhecimento, bens, serviços, valores culturais e problemas sociais [...]”.
52
80 Estas empresas não são um fenômeno recente, pois “a commenda da Idade Média (séc. V a XV) e
as companhias de carta (séc. XV a XVII) são empreendimentos que ultrapassam fronteiras
antecessores às empresas transnacionais” (MCLEAN apud CARDIA; FERREIRA, 2018, p. 187).
81 A este respeito Wilson Steinmetz já ponderou: “No contexto das sociedades contemporâneas, é um
82 “The top 10 corporations – a list which includes Walmart, Toyota and Shell as well as several Chinese
corporations – raked in over $3 trillion last year. When it comes to the top 200 entities, the gap between
corporations and governments gets even more pronounced: 157 are corporations. Walmart, Apple and
Shell all accrued more wealth than even fairly rich countries like Russia, Belgium, Sweden” (GLOBAL
JUSTICE, 2018, on-line).
83 Concorde Ludmila Andrzejewski Culpi (2016, p. 51) “em função de suas origens nacionais, algumas
empresas ganham status superior a outras em muitos Estados. Sendo assim, elas concluíram que só
teriam êxito se transferissem seus recursos pelas fronteiras nacionais para outros países, por meio de
suas próprias organizações, em vez de vender esse direito de uso a empresas estrangeiras. Assim, a
dotação desigual de fatores nos diferentes países contribuiu para o estabelecimento de mais de 60 mil
multinacionais em todo o globo, com 800 mil filiadas fora de suas fronteiras. Em termos globais, as
empresas transnacionais geram perto de metade dos resultados industriais do mundo e representam
cerca de 2/3 do comércio mundial. Aproximadamente 1/3 de todo o comércio mundial é intra-firma, ou
seja, acontece entre matriz e filiais no exterior. As empresas transnacionais são particularmente
competitivas em veículos automotivos, computadores e refrigerantes, tendo 85%, 70% e 65% desses
mercados, respectivamente.”
84 Para Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 254), “the TNCs are the main institutional form of this
transnational capitalist class, and the magnitude of the transformations they are bringing bout in modern
business is indicated by the fact that more than one third of the world’s industrial output is produced by
54
TNCs. Thougth the organizational novely of the TNCs may be questioned from a world economy,, and
the degree and efficacy of centralized direction they manage to achieve, distinguish them from older
forms of international business enterprise. The impact of TNCs on new class formations and on world
level inequality has been widely debated in recent years”.
85 Ana Cláudia Ruy Cardia e Luciano Vaz Ferreira (2018, p. 189), com fundamento em Kamminga e
Zia-Zarif, expõem que “é preciso lembrar que todas as ETNs submetem-se, no mínimo, a duas ordens
jurídicas, a saber: a do país em que foram constituídas e mantém a sua sede e a do local em que
exercem as suas atividades. Contudo, as ETNs são estruturas difusas e que contam com a habilidade
de ser “legalmente invisíveis”, pela possibilidade de fácil mudança de região de suas operações, de
modo a evitar responsabilidades por danos ocasionados à população e ao meio ambiente dos Estados
em que se instalam”.
86 Os conceitos de regulação e autorregulação são expostos no tópico 2.2.1 deste trabalho.
87 Com esteio em Susan Strange, Enrique Ricardo Lewandowski explica que “não obstante a crescente
ingerência do Estado no cotidiano dos cidadãos, o seu poder está em franco declínio, especialmente
porque não consegue mais atuar de forma eficiente em setores básicos como a execução das leis, o
controle da moeda, o combate à violência e a prestação de serviços essenciais, que foram relegados
às forças do mercado, o que faz com que a autoridade pública vá perdendo a legitimidade e deixe de
ser respeitada” (LEWANDOWSKI, 2004, p. 255).
55
Por isso, Ulrich Beck (2008, p. 16) entende que à globalização pode ser
atribuído o significado de politização, vez que o modelo posto em cena permite as
empresas, especialmente as transnacionais, dispor de poder político e social
domesticado conforme a ideologia do capitalismo liberal. Ou seja, o poder dos
Estados passou a ser mitigado pelo poder das empresas transnacionais,
estremecendo a própria legitimidade dos governos.
Afinal, as relações econômicas promovidas pelas transnacionais dificilmente
possuem o mesmo espaço das soberanias, pois abrangem vários países, dando
ensejo à dificuldades quanto a regulação de suas atividades econômicas, mormente,
em países pouco desenvolvidos.
Assim, a par dessas considerações, pode-se afirmar que, em resumo, as
relações de poder no âmbito do mercado globalizado são exercidas pelas
transnacionais, que buscam por segurança jurídica em suas transações sem
observância aos direitos das populações que habitam os países em que se instalam,
de maneira que a criação de regras por um Estado visando proteger seus cidadãos,
ao invés de resolver a questão, pode dar ensejo a sua exclusão do ciclo produtivo
dessas empresas, face o encerramento de suas atividades no território (BENACCHIO,
2018, p. 30).
90 Acerca do processo de formação do Estado regulador no Brasil, Paulo Todescan Lessa Mattos
explica: “No caso brasileiro, a formação do Estado regulador nos anos 30 é essencialmente autoritária.
O modelo de organização da economia centralizado no Estado refletiu, na época, um pensamento
autoritário que, ao fazer crítica do pensamento liberal, não rompeu com as relações de poder e
dominação até então vigentes”. (MATTOS, 2017, p. 114-115)
91 Trata-se de um plano de recuperação econômica dos Estados Unidos, criado pelo presidente
93 Tradução livre: A palavra "regulação" já surgiu várias vezes e, neste ponto, é preciso ser cauteloso
quanto ao seu significado. Utilizo-a como um termo genérico para descrever qualquer sistema de regras
destinadas a governar o comportamento de seus sujeitos. A lei fornece um tipo de regulamentação,
mas é apenas uma das muitas vezes de regulamentação social, tais como costumes, convenções e
burocracias organizadas. O termo regulação é frequentemente usado num sentido muito mais restrito
para descrever um conjunto distinto de técnicas utilizadas pelos estados para controlar as operações
dos mercados. Neste sentido restrito, a regulamentação diz respeito ao trabalho de agências
especializadas (reguladores) investidas do poder de controlar distorções de concorrência no mercado
(falhas de mercado), de proteger os participantes nos mercados e de se proteger contra efeitos externos
indesejáveis de mercados, como a poluição. Estou contente em escolher esta ressonância da palavra
regulação ao considerar o sistema legal como uma forma de regulação, desde que entenda que não
devemos pressupor que as agências reguladoras especializadas e os códigos sejam o único tipo de
mecanismo legal. O direito privado dos contratos aplicado pelos tribunais ordinários é igualmente uma
forma de regulação legal. As questões interessantes são antes se as diferentes formas de regularização
jurídica perseguem objetivos semelhantes, como a prevenção de falhas de mercado, e qual das
diferentes técnicas e agências jurídicas se mostra mais bem sucedida em alcançar seus objetivos.
94 A ideia de autorregulação não se confunde com a desregulação. Sobre isso, Diogo R. Coutinho
explica que “o processo de liberalização desencadeado nos EUA procurou remover a regulação de
atividades econômicas, considerada uma atividade dispendiosa e capaz de causar uma série de
efeitos indesejáveis. Tratou-se da chamada “desregulação”” (2014, p. 51). Em outra perspectiva,
Linotte, Mestre e Romi (apud Medauar, 2002, p. 124) afirmam que “Deregulation é o conjunto de
medidas que têm por objetivo diminuir o volume e o peso das normas jurídicas... Pode ser quantitativa
e qualitativa... Pode ter objetivos econômicos ou outros... Não significa o fim da regulação... É maneira
de regular de outra forma... ”.
58
auferir a adequação destes à lei. Por sua vez, na autorregulação dirigida, há uma troca
entre grupos privados e o Estado que aceitam a limitação de sua atuação sob algumas
condições95. Enfim, a autorregulação sem intervenção de agente regulador ocorre nos
casos de códigos de conduta, regulamentos internos de empresas, selos de
qualidade, entre outros.
A regulação é um instituto amplo, que pode abranger o controle de preços,
qualidade, acesso e transparência no mercado e, nesse cenário, referente a teoria da
regulação, Calixto Salomão Filho (2008, p. 20) destaca as benesses que este instituto
pode trazer para a sociedade quando bem aplicado, ao afirmar que a teoria da
regulação se aplicada de forma correta, pode contribuir para que o Estado, ao deixar
de intervir diretamente na economia, passe a organizar as relações sociais e
econômicas, visando o atendimento de fins que não se encerram na obtenção de
lucro.
Ainda, compete mencionar que, Calixto Salomão Filho (2008, p.103), alerta
para o fato de que a regulação não pressupõe complexas teorias econômicas, pois,
teorias simples baseadas em “valores e comportamentos éticos claramente
identificáveis, têm muito maior probabilidade de levar a um ambiente de cooperação
entre regulador e regulado”.
Desse modo, a regulação é um dos grandes pontos de atenção da sociedade
na atualidade, como meio para o seu direcionamento e de organização da atividade
empresarial.
Feitas tais considerações, parte-se para análise da Lex Mercatoria96 (lei dos
mercadores), que nasceu nos séculos XI e XII, a partir das necessidades dos
comerciantes europeus e navegadores da época que desejavam ampliar seus
mercados e ter a sua disposição uma ordem jurídica que atendesse aos seus anseios
em qualquer local que viessem a exercer suas atividades97.
95 Sobre as condições, Odete Medauar (2002, p. 128) destaca que são as seguintes: “a) garantia de não
haver imposição de regulação autoritária; b) o poder público lhes conferir o poder de fixar normas para si
próprios. Ex: bancos na Suíça (cf. Moran, Le droit neo modeme des politiques publiques, L.G.D.J.,
1999. p. 140)”.
96 Concorde Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 288): “Understood as a set of customary principles
and rules which are widely and uniformly recognized and applied in international transactions, lex
mercatoria or law merchant is probably the oldest form of transnationalaization of the legal field".
97 Quanto ao momento histórico de criação de um direito próprio dos comerciantes, Fábio Konder
Comparato (2014, p. 77) ensina que “a nova classe burguesa, como é bem de ver, não podia
desenvolver suas atividades profissionais dentro dos padrões jurídicos próprios da sociedade
estamental da Idade Média. A vida econômica medieval girava toda em torno da terra. O feudo agrário
definia, de certo modo, o status jurídico, tanto do senhor feudal quanto do camponês. Aquele recebia
59
José Eduardo Faria (1999, p. 160-161) enfatiza que a Lex Mercatoria apareceu:
do feudo o seu título de nobreza, enquanto este tinha sua vida vinculada permanentemente à gleba de
terra; ou seja, segundo a expressão consagrada, era servo da gleba. O surgimento da burguesia como
classe urbana autônoma, livre dos vínculos de vassalagem e clientela, passou a exigir a construção de
um novo direito para a regulação, não só de seu status pessoal e familiar, mas também de sua atividade
econômica própria, que dizia respeito, fundamentalmente, ao trato de bens móveis. Ora estes, desde
o direito romano, eram tradicionalmente considerados de pouca valia (res mobilis, res vilis), e somente
adquiriram importância com o renascimento do comércio na Baixa Idade Média. O sistema jurídico
feudal, todo fundado na relação pessoal com a terra, apresentava-se como uma organização de direitos
reais fracionados ou superpostos, a começar pela distinção entre o direito eminente do senhor feudal
e o direito útil do vassalo sobre o fundo feudal. Para regular o comércio de bens móveis, os legistas
burgueses lograram reintroduzir a relação de dominium, ou seja, a propriedade privada do direito
romano, compreendendo usus, fructus e abusus; isto é, os direitos de usar fruir e dispor com
exclusividade da coisa própria. Além disso, nos negócios mercantis, o novo direito dos mercadores (ius
mercatorum) desenvolveu-se em torno de contratos consensuais, despidos de toda solenidade;
contratos esses que, por isso mesmo, podiam ser concluídos rapidamente e em grande número. No
direito feudal, bem ao contrário, os contratos eram sempre solenes, celebrados perante o notário e,
muita vez, perante a autoridade eclesiástica. Daí a importância excepcional que assumiu desde logo
no mundo burguês a palavra dos contratantes, como garantia absoluta de cumprimento do negócio”.
98 Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 289) enfatiza que “the expansion of transnational practices
and the need to protect them legally led the states to develop a private international law. Since this was
a national state law, and could therefore conflict with the private international law of other states, efforts
were made to harmonize these bodies of laws through the creation of international uniform laws”.
99 Referente ao reaparecimento da Lex Mercatoria, Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 289-290)
explica que este se deu a partir de problemas concretos: “How to guarantee, for example, an equal
60
footing between the parties? What to do if the chosen national law had been changed overnight to the
disadvantage of one of the parties? Given these difficulties set of normative principles and rules,
expressed in such formulas as “general common principles,” “principles of equity,” “principles of good
Faith and good will,” “principles of international law,” “international trade usages,” and so on. Because
of normative references aimed at circumventing submission to national laws and to the traditional conflict
of laws, transnational contracts were deemed to be self-regulatory, subjected only to their own
provisions: contracts sans loi, contratti senza legge, rechtsordnunglose Verträge. In fact, a new
supranational legal order was emerging. It was the new lex mercatoria, which was to expand enormously
in the period of disorganized capitalism, by reason of the sheer intensification of transnational
transactions and in the wake of a new worldwide regime of accumulation in search of adequate
institutional structures. The new lex mercatoria is comprised of several elements, including general
principles of law recognized by commercial nations, rules of internacional organizations, customs and
usages, standard form contracts, and reports of arbitral awards”.
100 Tradução livre: A história da globalização é a história de uma assimetria normativa que se articula
em torno de uma ideia básica: proteger os negócios das multinacionais a todo custo através de uma
ordem jurídica internacional baseada em regras comerciais e de investimento. Trata-se de uma nova
lex mercatoria composta de milhares de regras: contratos de operação e comercialização, tratados
comerciais bilaterais e regionais, acordos de proteção de investimentos, políticas de ajuste e
empréstimos condicionais, sentenças arbitrais, etc. Uma lei dura - normativa, coercitiva, punitiva - que
protege fortemente os interesses comerciais. E que, ao mesmo tempo em que garantem seus direitos
em todo o mundo, remetem suas obrigações às legislações nacionais, anteriormente sujeitas à
ortodoxia neoliberal.
61
101 Além de um mecanismo de autorregulação, a Lex Mercatoria também pode ser entendida como
forma de maximização de negócios e riquezas de um determinado grupo ou classe social, como explica
Eros Grau (2008, p. 65): “O ius mercatorum – observa Francesco Galgano (1980/ 39 e ss.) –, antes de
referir uma parte do direito, é expressão que significa um modo particular de usar o direito: chama-se
ius mercatorum porque é criado pela classe mercantil e não porque regule a atividade dos mercadores.
Essa criação responde à necessidade de substituir-se o direito romano, voltado à conservação, por um
novo direito, que propiciasse a acumulação de riqueza, ao mesmo tempo permitindo que a
estabilidade das relações jurídicas, que aquele preservava, fosse transformada em mutabilidade. A
busca da acumulação de riqueza, de outra parte, conduziu ao surgimento do princípio da liberdade das
formas jurídicas, em oposição ao rigorismo formal do direito romano. Esse novo direito é, assim,
expressão da prevalência das razões do comércio sobre as razões da propriedade”.
102 Enfatiza Rosalice Fidalgo Pinheiro (2009, p. 47) que a Lex Mercatoria promove o “enfraquecimento
das fontes normativas estatais em favor de fontes não estatais, que escapam aos mecanismos de
legitimação democrática. Outrossim, assiste-se à debilidade do papel do Estado, no sentido de dirigir a
economia e efetivar os direitos sociais”.
103 Unidroit Principles Of International Commercial Contracts 2016: “PREAMBLE (Purpose of the
Principles): These Principles set forth general rules for international commercial contracts.Th ey shall
be pplied when the parties have agreed that their contract be governed by them. They may be applied
when the parties have agreed that their contract be governed by general principles of law, the lex
mercatoria or the like. They may be applied when the parties have not chosen any law to govern their
contract. They may be used to interpret or supplement international uniform law instruments. They may
62
be used to interpret or supplement domestic law. They may serve as a model for national and
international legislators”.
63
104O capitalismo humanista já é uma realidade. No município de São Paulo (SP), foi sancionada a Lei
municipal nº 17.481 de 30 de setembro de 2020, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade
Econômica, e que estabeleceu o princípio do capitalismo humanista como um os seus norteadores, em
seus artigos 11 e 12.
64
quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe
nos seus braços.” Sobre tais fundamentos filosóficos cristãos se
estrutura a cientificidade do estudo aqui apresentado, revelador da
fraternidade, enquanto categoria jurídica; da qual emergem os Direitos
Humanos e seu caráter deontológico, que conduz, em
consubstancialidade, com liberdade e igualdade para a democracia e
a paz. (SAYEG; BALERA, 2019, p. 87)
105 Os autores pontuam que “há que se considerar o capitalismo sob o prisma jurídico dos direitos
humanos. Ele se funda nas liberdades naturais individuais inatas do homem – em especial no direito
subjetivo natural de propriedade-, que, por sua vez, correspondem às liberdades negativas –
justamente as entendidas na atualidade como os direitos humanos de primeira dimensão. Em razão
disso, o capitalismo se sujeita ao adensamento multidimensional dos direitos humanos” (SAYEG:
BALERA, 2011, s.p.).
65
Até o início do século XX, com a expansão industrial, não existia noção dos
danos que as empresas poderiam causar aos países em que exerciam suas
atividades, pois os Estados se preocupavam apenas com os aspectos econômicos
das empresas, sob a concepção de que a responsabilidade delas se limitava apenas
a maximização dos lucros e busca pelos interesses dos seus acionistas e investidores
(CARDIA; FERREIRA, 2018, p. 187-188).
66
trabalho inadequadas, baixos salários (US$ 0,19 por hora), proibição de sair dos
alojamentos (eram permitidos apenas aos domingos com uma carta de autorização
da gerência local) trabalho infantil e, ainda, no Vietnã, os funcionários utilizavam uma
espécie de cola com produto químico que possuía capacidade para causar doenças
respiratórias (RUGGIE, 2014, p. 58). A empresa ficou envolvida em publicidade
negativa durante toda a década de 1990, e foi objeto de diversos protestos106.
Outro caso com amplo destaque foi da empresa do ramo de exploração de
petróleo chamada Unocal, a qual se situava no Estado da Califórnia, nos Estados
Unidos. Esta empresa realizou a construção de gasodutos no Myanmar107 e, para
auxílio na realização da obra e segurança das instalações e equipamentos, contratou
uma junta militar que, para limpar a área de instalação do gasoduto, utilizou-se de
práticas como estupros, tortura e assassinatos (PAMPLONA, 2018, p. 175-176).
Alguns habitantes de uma vila na qual se instalou um gasoduto, em razão das
violações aos direitos humanos perpetradas no local, propuseram uma ação em face
da empresa no seu Estado de origem, sendo ela condenada na corte estadual, o que
ensejou um acordo entre as partes em 2005, com pagamento no valor de sessenta
milhões de dólares (PAMPLONA, 2018, p. 176).
Além desses, um dos casos mais conhecidos de violações de direitos humanos
por empresas ocorreu na Nigéria, na região conhecida como Ogoniland, pela empresa
Shell Petroleum Development Company, que iniciou suas operações no país ao final
dos anos 1950, e sempre atuou em conjunto com o governo contra a oposição popular
às suas instalações, face os danos ambientais causados no local (RUGGIE, 2014, p.
63-65).
Ocorreu que a empresa utilizou as forças militares do país em seu proveito para
proteção de suas instalações, as quais se valeram de meios que violavam direitos
humanos da população local como o uso da força, tortura, assassinatos, e detenções
arbritrárias, para manter a propriedade da empresa e conter o crescimento do
“Movimento para Sobrevivência do Povo Ogon”, no início da década de 1990
(PAMPLONA, 2018, p. 174).
106 Segundo John Ruggie (2014, p. 60) “muito já foi aprendido sobre como administrar os desafios
relacionados a direitos humanos nas cadeias de fornecedores, e a Nike foi pioneira nesse processo.
Mas as questões essenciais sobre quem é responsável pelo quê, qual o tamanho dessas
responsabilidades e quais são as reações mais eficientes permanecem sem resposta no que diz
respeito a políticas e leis”.
107 País situado no continente asiático, cuja capital é Naipidau, e que faz fronteira com a Índia,
108Apesar de não estar presente no local dos fatos, Saro-Wika foi acusado de incitar a multidão.
109Carmen Márquez Carrasco (2017, p. 22) pondera que “los debates acerca de qué tipo de medidas
tomar para evitar y remediar esos abusos se han ido desarrollando a lo largo del tempo em forma de
bucle del que resulta difícil salir com soluciones efectivas, marcado por la dialéctiva entre las medidas
voluntarias y las obligaciones para las empresas”.
69
110 Quanto momento no qual a “Comissão das Nações Unidas sobre Corporações Transnacionais” foi
criada, Karl P. Sauvant (2015, p. 13) explica que a “UNCTC became operational on 1 November 1975
on the basis of a resolution of the United Nations Economic and Social Council, adopted in 1974.1 It
was a time when the international community had just ‘discovered’ how important TNCs (fijirms that
control productive assets abroad) had become through their foreign direct investment (FDI). The trigger
was ITT’s interference in Chile’s domestic policy, which eventually contributed to the overthrow of
President Salvador Allende and politicized the issue further. President Allende drew attention to this
interference in a speech in the General Assembly of the United Nations in 1972 and galvanized the
international community to take action to address, and check, the ‘economic power, political influence
and corrupting action’ of TNCs. But the issue was broader: TNCs were seen as having a substantial
impact on individual national economies and international economic relations, and there was
widespread suspicion that – given the global profijit maximizing strategies of TNCs versus the national
development objectives of governments – this impact was negative in terms of the distribution of
benefijits and the ability of indigenous fijirms to grow and prosper. Around the same time, most
developing countries had emerged from colonialism, consolidated their independence, had become
members of the United Nations, and began to assert themselves in international fora”.
111 Acerca do Código de Conduta, Karl P. Sauvant (2015, p. 11) resume: “Many of the issues that are
today part of the discussions surrounding international investment agreements were fijirst dealt with
when governments sought to negotiate a United Nations Code of Conduct on Transnational
Corporations (and various related instruments) almost 40 years ago. The Code was meant to
establish a multilateral framework to defijine, in a balanced manner, the rights and responsibilities of
transnational corporations and host country governments in their relations with each other”.
112 O Pacto Global é, atualmente, uma das maiores iniciativas de sustentabilidade do mundo, aderido
114 John Gerard Ruggie foi professor na cátedra Berthold Beitz em direitos humanos e relações
internacionais, na Kennedy School of Government, da Universidade de Harvard, e foi assistente do
Secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para planejamento estratégico, em seu primeiro mandato, de
1997 a 2001.
115 Antiga Comissão de Direitos Humanos.
72
116Guiding Principles on Business and Human Rights: “12. The responsibility of business enterprises to
respect human rights refers to internationally recognized human rights – understood, at a minimum, as
those expressed in the International Bill of Human Rights and the principles concerning fundamental
rights set out in the International Labour Organization’s Declaration on Fundamental Principles and
Rights at Work”.
117 Para Carmen Márquez Carrasco (2017, p. 22) que “sin duda los Principios Rectores de la ONU sobre
um aparente consenso entre los Estados, el sector empresarial y las organizaciones de la sociedad civil
internacional, aunque alguna de ellas haya manifestado su discrepancia sobre el verdadero alcance de
este instrumento”.
73
meio para ordenação jurídica do mercado internacional impedindo atos das empresas transnacionais
com potencial violação àqueles. Essa situação já encontra previsão no âmbito das Nações Unidas por
força dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos aprovados pelo Conselho de
Direitos Humanos da ONU em 2011 e adotado pelo Brasil. O marco desses princípios envolve
“proteger, respeitar e reparar” e devem ser implementados pelas empresas a partir de sua atuação
diligente em matéria de direitos humanos. Assim, a proteção, o respeito e a reparação das violações
aos direitos humanos pelas empresas no mercado internacional recebem dimensão jurídica, passando
a ser um novo passo no desenvolvimento dos negócios e das atividades empresariais.”
122 Entende-se que “[...] o respeito aos Princípios Orientadores da ONU, por parte das empresas
transnacionais, pode significar um meio de promoção do direito humano ao desenvolvimento, haja vista
que ao respeitar e promover os direitos humanos, atuando em prol da sociedade e não apenas em
função da maximização de lucro, as transnacionais podem ser agentes de expansão das
potencialidades e liberdades humanas. Isso leva a crer que, por meio da atuação transnacional pautada
nos Princípios Orientadores da ONU, acredita-se que se concretizará uma das principais proposições
do Capitalismo Humanista que é o desenvolvimento humano integral, culminando na concretização
de modelo de Capitalismo Humanista tão necessário no cenário econômico e social [...]” (BANHOS;
BENACCHIO, 2021, p. 99).
74
Carlos Ayres Britto (2012, p. 15) afirma que o humanismo é um vocábulo com
múltiplos significados123.
De acordo com Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2014, s.p.) esse
vocábulo surgiu no início do século XIX, com a finalidade de descrever uma forma de
pensar o humano, e meio de compreensão da experiência humana.
A tradição cultural do humanismo emergiu do Renascimento, que tinha como
foco o cuidado com o ser humano, ideia que foi se lapidando com o passar do tempo,
a ponto de seus ideais solidificarem os fundamentos dos direitos humanos (STAFFEN,
2016, p. 187-189).
O humanismo é a expressão de princípios de irresignação com a guerra,
minimização da dignidade humana, exploração e privação de bens jurídicos básicos
(STAFFEN, 2016, p. 187). Ele deve ser aberto e inconcluso, motivo pelo qual tem por
significado “por o foco de atenção no pensar e no atuar dos seres humanos,
verdadeiro canon regulativo, segundo o qual a dinâmica dos acontecimentos alimenta
uma espiral infinita, de modo que o projeto sempre esteja aberto e inconcluso”
(STAFFEN, 2016, p. 188), ou seja, deve ser válido e destinado a todos os seres
humanos.
Pela visão humanista então, o ser humano passou a ser o termo ou ponto de
equilíbrio da sociedade124, como demonstra Carlos Ayres Britto (2012, p. 20):
123 Para análise dos diversos significados do vocábulo humanismo vide BRITTO, 2012.
124 Vale salientar que ao se falar em humanismo nesta pesquisa, não se refere ao humanismo
antropocêntrico, ou seja, o humanismo com foco apenas em interesses individuais sem atenção aos
interesses do próximo, pois, consoante Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2011, s.p.), a visão que
apresenta o ser humano como centro do universo, pautado no individualismo e hedonismo,
desconsiderando-se a fraternidade, não mais pode ser considerada, devendo-se adotar o humanismo
antropofilíaco, nesse sentido: “A máxima antropocêntrica de que ―o homem é a medida de todas as
coisas é atribuída a Protágoras; porém, ”na Antiguidade os homens são valorizados por suas posses,
qualidades e por seus feitos heroicos, não se incluindo nessa concepção os pobres, as mulheres
e os escravos”. Esse modo de ver, com traços humanistas, referia-se ao homem “contanto que seja
cidadão”, como ressalvou Aristóteles, dissociando da integralidade do gênero humano, em especial
dos menos favorecidos materialmente. Jesus Cristo vai além e, com sua mensagem de fraternidade
universal, instaura o humanismo antropofilíaco em face de todo o gênero humano, que é decifrado para
75
o direito em sua concepção de direito natural com os ensinamentos aristotélicos de São Tomás de
Aquino” (SAYEG; BALERA, 2011, s.p.).
76
E não poderia ser diferente, pois, embora o contrato seja a base do capitalismo,
igualmente, é uma forma servir a promoção da dignidade humana, afirmando os
direitos humanos no mercado capitalista e, de fato, levando o humanismo à
sociedade, com o objetivo de contribuir para a promoção do desenvolvimento e
redução das desigualdades, como infere Carlos Ayres Britto (2012, p. 51-52):
125Sobre o “segundo humanismo”, explicam Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2014, s.p.):
“Note-se que na Europa nasce também um “segundo humanismo” (un nouvel âge de l’humanisme), em
especial no pensamento de Luc Ferry e Renault, sendo que este último em seu livro sobre o universal
defende que apesar da crise contemporânea de valores, um humanismo que respeite as diferenças é
possível e no seu livro sobre o indivíduo defende que a modernidade evoluiu da tradição que colocava
em primeiro plano a autonomia do sujeito (Descartes) para a independência deste (Leibniz), mas agora
deve elevá-lo para um sujeito responsável e irmão”.
78
126 Paula Forgioni (2021, p. 91-92) afirma que “quatro são os tipos de normas jurídicas que vinculam as
partes nos contratos empresariais:[i] regramento estatal; [ii] usos e costumes; [iii] texto contratual; [iv]
regras não escritas criadas pelas partes que, por sua vez, podem ser: [iv.1] complementares ao
instrumento; ou [iv.2] com ele colidentes”.
127 Tradução livre: Nesta perspectiva moderna, entretanto, a função da lei de contratos é regular os
mercados, as práticas de mercado e as práticas sociais de fazer contratos com o objetivo de controlar
os tipos de relações estabelecidas através de contratos e suas consequências distributivas.
79
Em vista disso, Enzo Roppo (2009, p. 66) afirma que “dentro de um sistema
capitalista avançado parece ser o contrato, e já não a propriedade, o instrumento
fundamental de gestão dos recursos e de propulsão da economia”.
A orientação das ações das partes contratantes a partir da imposição de
comportamentos vetados ou determinados é oriunda do Direito dos Contratos. Por
isso, os contratos empresariais muito mais do que reger trocas econômicas, servem
como um ordenamento privado, regendo as relações e comportamentos entre as
partes e, também, perante terceiros. Como ilustra Angelo Gamba Prata de Carvalho
(2019, p. 101):
128 Ao falar-se em adaptação dos contratos às demandas sociais, bem como, em acompanhar a
evolução da sociedade, interessante observar que Teresa Negreiros (2006, p. 300) critica teorias que
abordem o contrato como um fenômeno monolítico, ou seja, “uma concepção abstrata e só por isso
unitária do contrato”.
80
que outrora pertenciam aos Estados, dentre as quais se destaca o dever de afirmação
e garantia dos direitos humanos.
Assim, no contexto das empresas transnacionais, os direitos humanos devem
ser o “paradigma de regulação do mercado internacional globalizado de forma a evitar
as situações desfavoráveis à implementação dos direitos humanos no exercício da
atividade das empresas transnacionais” (BENACCHIO, 2018a, p. 44).
Isso porque, a mudança de comportamento desses atores é uma urgência,
como enfatiza José Renato Nalini (2009, p. 274):
Por esse ângulo, tendo em vista que os contratos empresariais cumprem uma
função de lei entre as partes no mercado global, não há dúvidas quanto a relevância
destes para o mundo globalizado, especialmente, para as empresas transnacionais.
O contrato empresarial, exposto no tópico 1.2, ganhou novos contornos ao
longo dos tempos, a autonomia privada foi mitigada pelos princípios contratuais,
enquanto que a pessoa humana passou a ser o centro de preocupações da sociedade,
diante da concepção de que os direitos humanos e fundamentais são aplicáveis às
relações privadas. Afinal, as necessidades humanas, a pessoa e sua dignidade
passaram a ser o centro das relações privadas, de maneira que o direito contratual
também é um mecanismo de realização da pessoa e promoção de sua dignidade a
fim de que os interesses relativos à dignidade da pessoa humana prevaleçam sobre
os patrimoniais.
Nesse cenário, o contrato pode ser um meio para atribuir obrigações relativas
aos direitos humanos, como explicam Paulo Nalin e Mariana Barsaglia Pimentel
(2019, p. 466), pois ele não é mais um “instrumento de atribuição proprietária pela
circulação de bens, passando a ser instrumento de consagração da pessoa humana,
a partir de diretivas dos mercados e dos consumidores que dele se servem”.
Isso demonstra que, embora aparente, não há contraposição entre mercado e
direitos humanos, pois sendo a pessoa humana o centro das relações sociais, cabe
ao mercado agir, por meio dos instrumentos jurídicos que possui à disposição, para
assegurar os direitos humanos e os valores de mercado.
82
Nessa seara, os benefícios que advêm da vinculação dos direitos humanos aos
contratos decorrem da mitigação de riscos, rescisão do contrato ou, ainda, uma
possível desvinculação do parceiro de negócios que viole os direitos protegidos pelo
pacto ou não atenda os princípios da empresa e comprometa sua imagem
(BONAMIGO; RODRIGUES, 2021).
Dessa maneira, considerando-se a possibilidade de materialização dos direitos
humanos nos contratos empresariais, a necessidade de adequação das atividades
das empresas transnacionais ao cumprimento de normas e adoção de medidas que
visem a efetivação de práticas de modo a respeitar esses direitos e,
consequentemente, promover o desenvolvimento129, faz-se necessário analisar
130 Explica Paula A. Forgioni (2021, p. 84) que “cláusula é a estipulação que as partes fazem em seus
negócios. Há quem defina como “a unidade elementar [...] do regulamento contratual”. [É] uma
disposição homogênea, por meio da qual as partes regulam determinados aspectos da sua relação”.
Identifica-se a cláusula com a disposição contratual, assumindo valor preceptivo. A cláusula encerra
um preceito, um comando para uma ou ambas as empresas”.
131 A melhor forma de incorporar cláusulas protetivas de direitos humanos é por meio de sua estipulação
expressa, como explicam Ingeborg Schwenzer e Benjamin Leisinger (2007, p. 264): “The first way to
incorporate ethical standards into sales contracts is to stipulate that the seller, for example, has to abide
by specific standards concerning human rights, labor conditions or the environment. By so doing, such
norms become part of the contract and may be enforced, or their violation sanctioned, in the same way
as with any other terms. lt is highly advisable that the interested party insists on incorporating such
express terms into the contract, in order to circumveut any later disputes in this respect and in order to
"tailor" individual clauses to address specific human rights issues”.
132 A esse respeito, Natividade (2021, p. 6) afirma: “[...] pense-se numa cláusula exigindo que os
134 Há divergências quanto a nomenclatura a ser aplicada a esse instituto, se Responsabilidade Social
Corporativa ou Responsabilidade Social Empresarial. Nesse sentido, explica Pedro Ramiro (2009, p.
49) que “la Responsabilidad Social Corporativa se define desde ópticas diferentes según se encarguen
de hacerlo las empresas multinacionales, las escuelas de negocios, las instituciones, los sindicatos, las
ONG o los colectivos sociales. Tanto es así que ni siquiera hay acuerdo sobre el próprio nomebre:
mientras hay quienes prefieren hablar Responsabilidad Social Corporativa, porque entienden que ésta
es una cuestión que atañe fundamentalmente a las grandes corporaciones – como es nuestro caso –,
otros autores prefieren utilizar el término Responsabilidad Social Empresarial (RSE), ya que consideran
que es aplicable a empresas de cualquier tamaño”.
135 Segundo Newton de Lucca (2009, p. 340-341), “Assim, parece fora de dúvida que não se pode
pretender justificar a ética empresarial – de resto, correspondente apenas a uma das atividades do ser
humano- como o recurso a fundamento destituído de valor antropológico, isto é, que não leve em conta
o homem tomado em sua consideração suprema e integral de pessoa moral. Em suma, é a dimensão
moral que serve de fundamento às ações humanas e não o contrário, isto é, não é uma das atividades
humanas – no caso, a econômica – que haverá de dar fundamento à dimensão moral, ficando
inteiramente descartada a possibilidade de apresentar-se como justificação filosófica à ética
empresarial um elemento de natureza meramente econômica, qual seja, a rentabilidade empresarial”.
136 Katerina Peterkova Mitkidis (2014, p. 2) define RSC como medidas de negócios consistentes com
a lei e os padrões éticos sob os quais as empresas aceitam a responsabilidade pelos efeitos
de suas atividades no meio ambiente e na sociedade. No original “CSR is defined as business
measures consistent with law and ethical standards under which companies accept the responsibility
for the effects their activities have on the environment and society”.
87
(2007, p. 256).
137 No mesmo sentido Katerina Peterkova Mitkidis (2014, p. 3-4) afirma: “Moreover, while states
generally have the competence to enforce compliance with national and international social and
environmental standards against companies within their jurisdictions, they lack legal tools to secure
the same compliance on their companies’ business partners abroad. On the one hand, private
parties are not subject to international law and, on the other hand, the applicability of national law is
geographically and personally limited. Thus, while governments in developed countries adopt various
regulations to limit socially and environmentally harmful activities of subjects under their jurisdiction,
they indirectly create incentives for these subjects to outsource their activities to countries with weaker
laws. The situation is further exacerbated as some developing countries do not fulfil their international
obligations, i.e. they do not enforce international law within their territory, either because they lack the
institutional capacity or because they fear an outflow of foreign investment. They may even purposefully
relax their social and environmental regulation in order to create competitive advantage for their
domestic companies. In this way a legal gap is created where private parties may escape from the legal
consequences of the fact that their cross-border activities are not aligned with globally recognized social
and environmental standards. This regulatory gap needs to be closed if we aim for effective
solutions to global challenges. Since states are not able or willing to meet their obligations in the
environmental and social area, other actors, including non-governmental organizations, industrial
associations and companies themselves, have taken on the task. They develop various types of soft
and private regulations”.
138 Explicam Ingeborg Schwenzer e Benjamin Leisinger (2007, p. 256): “As actions by governments and
the community of states often, for example, due to their vagueness, lack the necessary power to bind,
or take a considerable amount of time to actually come into force - in failing states, it is unlikely that the
necessary regulations will come into existence at all -, and since ethical behavior is becoming
increasingly more important to businesses, companies have started to take care of the problem
themselves through founding private initiatives. As Mary Robinson has put it, "business leaders don't
have to wait - indeed, increasingly they can't afford to wait - for governments to pass and enforce
legislation before they pursue 'good practices' in support of international human rights, labor and
environmental standards [ ... ]". Following her initiative, the "Business Leaders Initiative on Human
Rights" (BLIHR) was founded”.
139 As iniciativas privadas são divididas por Ingeborg Schwenzer e Benjamin Leisinger em três ramos
(2007, 257- 259): a) conhecer seus parceiros de negócios; b) adoção ao Pacto Global da ONU (United
Nations Global Compact); c) iniciativas privadas de ramos específicos de negócios, a exemplo do
Código de Conduta da Indústria Eletrônica, que segundo os autores “the Electronic Industry Code of
Conduct, for example, incorporates norms, such as setting a maximum number of working hours at 60
per week, and prescribing human treatment or non-discrimination in supplier contracts, as, according
to the introduction of this code, the participants are under an obligation to, at least, require their next tier
suppliers to acknowledge and implement the code” (2007, p. 259).
140 Seguindo o mesmo entendimento, Natividade (2021, p. 7) compreende que “desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, grande número de tratados de direitos humanos foi celebrado, mas o direito
88
142Tradução livre: Podem surgir problemas quando tais termos expressos relativos a valores éticos
estão ausentes. Muito frequentemente, particularmente as pequenas e médias empresas não têm o
poder de barganha para insistir na incorporação de tais termos expressos referentes a valores éticos
em seus contratos. Aqui, entretanto, a interpretação e complementação de contratos pode muito bem
levar a resultados similares aos do Artigo 9(1) da CISG, as partes estão vinculadas por qualquer uso a
que tenham concordado e por qualquer prática que tenham estabelecido entre si. Assim, duas situações
devem ser distinguidas: a primeira é quando as partes concordaram repetidamente em termos
expressos estabelecendo certos padrões éticos; em tal caso, uma expectativa justificada poderia surgir
com a incorporação expressa, que as partes continuarão a proceder de acordo no futuro. Assim,
embora falte um termo expresso, o contrato pode ser complementado de acordo com a conduta anterior
das partes.
90
compliance que são: “1) negativo; 2) positivo; 3) integração das teses de GRC. [...] Nesse primeiro
momento, o conceito é simplesmente negativo, estruturado com base na infração econômica e
possibilidades de resposta a ela, “compliance se interpretava nos limites das estratégias de defesa ex
ante e ex post em relação ao comportamento desviante”, e juízo carregado de moralismo sobre a
“intolerância frente ao que está errado”. Até então, compliance estava na ordem do dia da defesa-
notadamente criminal-, como um custo necessário para a contenção das investigações por parte das
reguladores e fiscalizadores. Posteriormente, no momento “positivo”, foram introduzidas preocupações
com a valoração de integridade, somando ao conceito de compliance noções atinentes ao
comportamento pró-social e à “cultura empresarial”. Desse momento em diante, começou-se a difundir
nos congressos, em textos científicos e de divulgação na grande imprensa, que os programas de
compliance, para além da mera postura defensiva, poderiam promover iniciativas efetivas de
integridade e encontrar sentido prático na colaboração com reguladores e fiscalizadores.
Recentemente, começam a ser desenhados modelos internacionais que integram as funções de
governança, risco e compliance. [...] a OCGE exerce liderança na área [...]. A partir delas são projetadas
estratégias de aperfeiçoamento dos negócios em busca de oportunidades de negócio em função do
comportamento ético. [...] Ainda estão por ser demonstradas na ética negocial as estratégias de negócio
que gerem retorno em investimentos precisamente porque estão orientadas por comportamento ético
voltado a compartilhar os benefícios com os stakeholders. A partir daqui, adquirem maior protagonismo
soluções inovadoras em compliance.”
92
145 O termo stakeholders pode ser entendido como as pessoas ou organizações que sofrem impactos
pelas ações da empresa, ou seja, as partes ou grupos de interesse na empresa.
146 Sobre uma necessária mudança na mentalidade empresarial, embora não se refira especificamente
a este tema, Carlos Ayres Britto (2012, p. 53-54) já afirmou: “[...] não pode haver humanismo sem
humanistas. República sem republicanos. Como impossível é praticar a democracia sem democratas.
O que nos remete para os domínios do nexo causal entre o modo habitual de agir de uma coletividade
(práxis) e a sua peculiar visão de mundo. Donde a referência a uma urgente mudança de mentalidade,
para que, na senda do verbo que se faz carne, o olimpicamente objetivo se transmute em concretos
fazeres subjetivos”.
93
147Tradução livre: Primeiramente, e acima de tudo, cabe às próprias partes estipular em seu contrato
quais padrões éticos devem ser cumpridos e como eles devem ser comprovados. [...] Atualmente,
muitas empresas têm códigos de conduta explícitos de fornecedores que são exibidos de forma
proeminente em seus websites e, na maioria das vezes, traduzidos para muitas línguas. Surge então a
questão de como os termos contidos em um website se tornam parte do contrato. Normalmente, porém,
eles são referenciados no contrato e, portanto, não há dúvidas sobre sua incorporação. Assim, por
exemplo, de acordo com uma pesquisa de 2016, 84% das empresas de vestuário multinacionais - que
vendem menos de 308 marcas - possuem um código de conduta que proíbe o uso de trabalho infantil
pelos fornecedores, e 86% incluem seu código de conduta em seus contratos com fornecedores.
94
148 Em igual sentido, enfatizam Bonamigo e Rodrigues (2021, p. 15): “Portanto, a inserção de cláusulas
contratuais que trazem em seu conteúdo a proteção e a promoção dos direitos humanos, políticas
anticorrupção, valorização do trabalho e proteção ao meio ambiente considera expressamente os
impactos da atividade na sociedade e em sua reputação, cumprindo, assim, políticas de compliance
que se materializam a partir do reconhecimento de que tanto a atividade desempenhada pela empresa
como as relações contratuais decorrentes do seu exercício afetam a sociedade e terceiros alheios às
relações estabelecidas. Com isso, a incorporação de padrões éticos aos contratos e a expectativa de
seu cumprimento, pautada na confiança e boa-fé das partes, é benéfica à sociedade e atende a função
social da atividade, figurando como mecanismo que pode garantir efetividade aos programas de
compliance implementados nas empresas.”
149 Ressaltam Adriana da Silva Maillart e Samyra Dal Farra Naspolini Sanches (2011, p. 12-13) que “a
autonomia é um instrumento do querer individual, sendo sinônimo da liberdade, mas não de arbítrio,
de uma vontade sem limites. Isso porque a autonomia evidencia a influência de princípios de natureza
social, tais como solidariedade social, boa-fé, utilidade social, paridade de tratamento, segurança,
liberdade, dignidade humana ou função social. (REZZÓNICO, 1999, p. 209). E por ter influência de
todos esses princípios sociais, deve existir na ideia de autonomia privada um contraponto entre os
desejos particulares e as necessidades gerais”.
150 Nesse sentido, entende Darcy Bessone (1987, p. 31-33): “Sendo justo o contrato, segue-se que aos
contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de
ordem pública e pelos bons costumes. Assim, enquanto forem observados esses limites, podem as
95
partes convencionar aquilo que lhes aprouver, o que, de resto, constitui um aspecto da liberdade
individual, consubstanciado no princípio de que é permitido tudo o que não é proibido”.
151 Segundo Paula A. Forgioni (2021, p. 115) “Com o passar do tempo, o nicho da liberdade de contratar
diminui, premido por traços provenientes de novos ramos do direito, como o consumerista, o
concorrencial, o ambiental; preocupações de índole social e políticas públicas represam-na cada vez
mais. Não obstante, a liberdade de contratar segue presente em nosso sistema, garantida pela
Constituição do Brasil, servindo à satisfação das necessidades de cada um e de todos e ao sistema de
mercado”.
152 Dispõe o Código Civil brasileiro de 2002: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente
capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em
lei”.
153 No Brasil, a autonomia privada encontra limites no Código Civil em seus artigos 122, no parágrafo
Por isso, a partir da concepção da eficácia dos direitos humanos nas relações
privadas, nascida da constatação de que as relações privadas estão vinculadas aos
direitos humanos em razão da expansão do efeito horizontal dos direitos
fundamentais155 para a seara dos direitos humanos, como já explicado no tópico 2.1.1,
a autonomia privada, pautada na liberdade de contratar e no conteúdo contratual, é
limitada pelos direitos humanos.
Ampliado o foco dos direitos fundamentais para os direitos humanos, tem-se
que a autonomia privada permanece sendo uma forma de exteriorização da liberdade,
“contudo, esta liberdade não é simplesmente analisada do ponto de vista individual,
mas também sob o prisma da sociedade e da realização dos Direitos Fundamentais,
que constituem o ideário igualitário em âmbito social” (MAILLART; SANCHES, 2011,
p. 30).
Assim, tendo em conta que o mercado global se pauta exclusivamente em
princípios econômicos, mormente, o autointeresse e a racionalidade econômica nos
comportamentos humanos, busca-se, desse modo, que os direitos humanos
prevaleçam acima de qualquer interesse privado oriundo das empresas
transnacionais no momento da celebração de seus contratos, quando estes
instrumentos impactarem negativamente os direitos humanos.
155 Ensinam Adriana da Silva Maillart e Samyra Dal Farra Naspolini Sanches (2011, p. 29) que “no que
se refere ao direito privado e à autonomia privada, o principal elo entre estes e os Direitos
Fundamentais são as chamadas cláusulas gerais, de conteúdo aberto a ser definido por meio de uma
valoração do aplicador do direito, que não pode ser baseada em valores morais, extra ou supra legais,
mas sim nos valores consagrados pela Constituição. Por estas cláusulas, tais como a Ordem Pública
e a Boa-fé, vistas acima, os Direitos Fundamentais se infiltram no direito privado e produzem seus
efeitos”.
156 Tradução livre: “As empresas devem respeitar os direitos humanos. Isso significa que eles devem
evitar infringir os direitos humanos de outros e devem abordar os impactos adversos nos direitos
humanos com os quais estão envolvidas”.
98
À vista disso, tem-se que o respeito aos direitos humanos é uma conduta
esperada de qualquer empresa, não obstante o local que atue no mundo e, no caso
das transnacionais, esse dever deve existir independentemente do cumprimento de
normas e regulamentos nacionais dos países em que elas se instalem.
Ocorre que as ETNs utilizam a o mercado globalizado para acordar obrigações
com base na Lex Mercatoria, sem atenção aos ordenamentos jurídicos dos países
nos quais se instalam.
Dessa maneira, considerando-se que os direitos humanos se apresentam como
o melhor meio para ordenação do mercado globalizado, face a concepção de seu
caráter universal e valor normativo (BENACCHIO, 2018a, p. 46), o maior benefício por
meio da introdução de cláusulas que promovam os direitos humanos nos contratos,
sejam elas expressas ou implícitas, decorre do fato de torná-las uma obrigação
exigível.
Isto é, ao incorporar-se os direitos humanos aos contratos, permite-se que as
partes possam compelir o cumprimento das obrigações pactuadas, podendo,
inclusive, estabelecer penalidades em caso de descumprimento, incluindo multa e
rescisão contratual, como explicam Paulo Nalin e Mariana Barsaglia Pimentel (2019,
p. 469):
157 Explica Paula A. Forgioni (2021, p. 136) que “no âmbito do direito internacional, a boa-fé é vista
como o “coração comum” de vários sistemas de direito privado e, por conta disso, foi inserida em duas
das principais iniciativas para uniformização do direito contratual: os chamados Princípios Lando
[Principles of European Contract Law] e os Princípios Unidroit [Principles of international Commercial
Contracts]”.
158 A Convenção de Viena das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de
Mercadorias (CISG, na sigla em Inglês, ou CVIM, na sigla em Francês) foi firmada pela República
100
comércio internacional ou, ainda, o Pacto Global da ONU, verifica-se, nesta análise, a
dificuldade quanto as medidas em caso de descumprimento de uma cláusula protetiva
de direitos humanos celebrada em um contrato composto por empresas
transnacionais como partes.
Para além das dificuldades decorrentes dos diferentes ordenamentos jurídicos,
pode-se esbarrar, também, em desacordos com relação ao direito humano violado,
uma vez que as definições de direitos humanos são divergentes nas sociedades
políticas, mesmo que em ambientes com culturas semelhantes159 (CABRITA, 2010, p.
171).
Esse desacordo apenas enfatiza a ausência de conformidade política, religiosa,
filosófica e moral da sociedade quanto aos direitos humanos, o que afeta as relações
econômicas e o alcance desses direitos.
Por sua vez, a partir do direito interno brasileiro é possível a responsabilização
jurídica das transnacionais, que deve ser concretizada por meio da perspectiva tratada
no tópico 2.1.1, que incorpora valores e princípios dos direitos humanos e expande
sua aplicação as relações entre entes privados (SANCHES; BENACCHIO, 2012;
SARMENTO, 2010).
O Código Civil brasileiro de 2002 trata do Inadimplemento das Obrigações no
seu Título IV e, diferentemente do Código Civil de 1916, afastou o individualismo,
passando o Direito das Obrigações a ser considerado por uma base ética160 (BIANCO,
2013, p. 103).
Federativa do Brasil, em Viena, em 11 de abril de 1980, e promulgada por meio do Decreto nº 8.327
de 16 de outubro de 2014, e aplica-se aos contratos de compra e venda de mercadorias entre partes
que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos.
159 Isabel Rute Sousa do Amaral Xavier Cabrita (2010, p. 171- 172) compreende que “[...] a definição
dos direitos humanos difere de sociedade política para sociedade política e que mesmo em ambientes
culturais relativamente semelhantes existem diferenças devido a tensões no seio da própria tradição
cultural. Mais, as diferenças na definição dos direitos humanos ou mesmo a ausência de uma
concepção de direitos humanos formam uma parte fundamental da identidade das sociedades
reflectindo escolhas sociais sobre o que é ser humano, o bem, o que tem valor na vida humana,
a justiça, o relacionamento entre o Estado e os cidadãos etc. Isto é, o desacordo em relação ao
conceito de direitos humanos reflecte a falta de unidade ao nível da religião, da filosofia e da
moral nas diversas sociedades políticas e, sobretudo, no pensamento dos homens. Daqui se conclui
que não há acordo sobre o sentido dos direitos humanos por causa do facto do pluralismo cultural. Isto
é, devido ao facto das pessoas não viverem numa cultura abstracta e universal mas sim em diversas
culturas tecidas pelos fios da sua história, religião, geografia, formas particulares de organização
familiar etc...”.
160 No Código Civil brasileiro de 2002, os princípios fundantes do Direito das Obrigações são: a
socialidade, a eticidade e a operabilidade. Segundo João Carlos Bianco “o princípio da socialidade leva
ao entendimento de que os interesses individuais, embora significativos para o ordenamento jurídico,
não podem sobrelevar os interesses sociais, por serem esses informativos” (2013, p. 94); já quanto a
eticidadde “agir com eticidade significa elevar-se como pessoa humana, procedendo de maneira proba
101
e leal na consideração de valores que exigem o respeito e o apreço aos direitos e interesses alheios.
Evidente que a eticidade evoca a ética, e essa significa o “eu” reconhecer, respeitar e reverenciar o
“outro” [...]” (2013, p. 99); por fim, “o princípio da operabilidade foi inspirado no Direito alemão, e
segundo Miguel Reale: “o Direito é feito para ser executado; Direito que não se executa – já dizia
Jhering na sua imaginação criadora – é chama que não aquece, luz que não ilumina” (2013, p. 101).
161 Artigo 9º, Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942: “Art. 9o Para qualificar e reger as
CONCLUSÃO
de interesse social, proteção dos direitos humanos, ética ou meio ambiente como, por
exemplo, a proibição de trabalho e exploração sexual infantil, proibição ao trabalho
forçado, análogo ao escravo e em condições degradantes ou perigosas.
Essas incorporações, implícitas ou explícitas, são fundamentais para a
consecução de Capitalismo Humanista pelas ETNs, pois podem levar a efetivação dos
direitos humanos em todas as suas dimensões, por meio do seu principal instrumento
de autorregulação que são os contratos empresariais.
Por essa perspectiva, concluiu-se que os direitos humanos devem ser os
limitadores às contratações pelas ETNs, já que o contexto social e os possíveis
impactos de suas atividades e a sua responsabilidade devem ser observados desde
o momento das tratativas, durante e após a extinção do contrato, por violações aos
deveres acessórios.
Tendo em vista que o contrato empresarial tem por característica sua
celebração entre empresários ou sociedades empresárias com o intuito de auferir
lucro, no caso das transnacionais, ao celebrarem contratos com empresas em países
diferentes, apesar da vinculação expressa ou implícita da proteção aos direitos
humanos nos contratos, certas dificuldades podem ser encontradas para uma possível
execução do contrato em caso de descumprimento dessas cláusulas.
Evidente que as dificuldades decorrem da particularidade de cada contrato,
mas, pode-se destacar, especialmente, a existência de cláusula de foro de eleição; a
legislação do país em que o contrato foi constituído; existência de tratado internacional
assinado pelos países dos contratantes; ou o direito descumprido e cláusula que
preveja solução alternativa de conflitos, como a arbitragem.
E, em que pese eventuais dificuldades para o cumprimento das obrigações,
pode-se dizer que a afirmação e garantia dos direitos humanos pode ser feita por meio
dos contratos. Afinal, é certo que os contratos empresariais destacam-se dentro da
teoria geral dos contratos, e devem ser lidos dentro da sua lógica e conforme suas
características, entretanto, dentro dessa lógica é necessário inserir a afirmação e
garantia dos direitos humanos, mormente, em razão do papel de destaque exercido
pelas ETNs na sociedade hodierna, e da concepção de que o Estado e as empresas
não podem ser considerados atores antagônicos.
Ademais, os direitos humanos são indispensáveis para qualquer Estado ou
área da sociedade, de maneira que apenas se pode pensar em desenvolvimento
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integral se houver a sua plena garantia, e disso também decorre o elo entre esses
direitos e as ETNs.
Enfim, não se nega a função econômica dos contratos empresariais ou mesmo
a busca por lucro por parte das transnacionais, afinal, é isso o que move a atividade
empresarial, contudo, é necessário viabilizar o modelo capitalista de cunho humanista,
ou seja, com equilíbrio entre os valores de mercado e os valores humanos, com a
finalidade de promover o desenvolvimento de todos.
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