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Conselho Regional de Psicologia da

10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA:
a trajetória do CRP-10 e o fazer
profissional na região

Belém, Pará

2023
© 2023, Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá
É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e
citada a fonte.

Capa: Antônio Carvalho


Revisão ortográfica e gramatical: Robert Rodrigues e Dalila
Clementino
Projeto e Edição Gráfica: Antônio Carvalho
Impressão:
Tiragem:

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá


Av. Generalíssimo Deodoro, 511
CEP: 66055-240 – Belém/PA
Telefone: (91) 3225-4491
www.crp10.org.br / crp10@crp10.org.br

Ficha catalográfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psicologia da Amazônia [livro eletrônico] : a


trajetória do CRP-10 e o fazer profissional
na região / organização Conselho Regional
de Psicologia 10ª Região Pará e
Amapá...[et al.]. -- 1. ed. -- Belém, PA :
Conselho Regional de Psicologia - CRP 10,
2023.
PDF

Vários autores.
Outros organizadores: Robert Damasceno Monteiro
Rodrigues, Jureuda Duarte Guerra, Letícia Maria
Soares Palheta, Dalila Clementino de Vasconcelos.
Bibliografia.
ISBN 978-65-982292-1-4

1. Amazônia 2. Psicologia 3. Psicólogos -


Formação profissional I. Conselho Regional
de Psicologia 10ª Região Pará e Amapá.
II. Rodrigues, Robert Damasceno Monteiro.
III. Guerra, Jureuda Duarte. IV. Palheta,
Letícia Maria Soares. V. Vasconcelos, Dalila
Clementino de.

24-194400 CDD-150
Índices para catálogo sistemático:

1. Psicologia 150

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Conselho Regional de Psicologia da
10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

Organizadoras(es)
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues
Jureuda Duarte Guerra
Letícia Maria Soares Palheta
Dalila Clementino de Vasconcelos

XI Plenário do Conselho Regional de Psicologia


da 10ª Região – Pará e Amapá (Gestão 2022-2025)

DIRETORIA
Jureuda Duarte Guerra
Conselheira Presidente

Max Alves da Costa


Conselheiro Vice-Presidente

Giane Silva Santos Souza


Conselheira Tesoureira

Vicky Cordeiro da Rocha


Conselheire Secretárie

Nazir Rachid Filho


Conselheiro Coordenador da Seção Amapá

CONSELHEIRAS(OS)

Ana Tereza Frade de Araújo Ingrid Sabrina Batista Costa


Daiane Gasparetto da Silva Larissa Azevedo Mendes
Eloísa Amorim de Barros Leone Azevedo Gama Da Rocha
Eveny da Rocha Teixeira Rubilene Pinheiro Borges
Fernanda Teixeira de Barros Neta Thamiris Dias Arraes
SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................................................ 06

PARTE 1: A TRAJETÓRIA DO CRP-10 ........................................................................ 07

O CRP-10 no Pará e Amapá: história, formação e psicologia na Amazônia


Robert Damasceno Monteiro Rodrigues e Jureuda Duarte Guerra ................................. 09

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas-CREPOP:


a pesquisa na Amazônia; um breve recorte do Pará e Amapá.
Letícia Maria Soares Palheta e Jureuda Duarte Guerra ................................................... 19

Atuação do CRP-10 nas ações de fiscalização, orientação e disciplinarização


aos profissionais de Psicologia na Amazônia Paraense e Amapaense
Fernanda Teixeira de Barros Neta e Daiane Gasparetto da Silva .................................... 34

A Comissão de Psicologia e Relações Raciais do CRP-10


e a construção de uma profissão antirracista na Amazônia
Max da Costa Alves ........................................................................................................ 40

“Bora fazer Psicologia na Amazônia?”: Problematizando e reconstruindo a


Psicologia nas Amazônias a partir da experiência do Projeto CRP-10 Ao Seu Lado
Eloísa Amorim de Barros e Fernanda Teixeira de Barros Neta ....................................... 49

PARTE 2: SABERES E FAZERES EM PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA

A Violência Sexual por entre os Braços de Rios:


Problematizações sobre Crianças e Adolescentes na Amazônia
Cyntia Santos Rolim, Valber Luiz Farias Sampaio,
Flavia Cristina Silveira Lemos e Rafaele Habib Souza Aquime ..................................... 56

Acidente de motor de barco com Escalpelamento: o fazer da Psicologia


Ana Carolina Araújo de Almeida Lins, Jureuda Duarte Guerra
e Crissia Roberta Pontes Cruz ......................................................................................... 65

O papel da Psicologia frente a produção de


Atingidos por Grandes Projetos na Amazônia
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues ......................................................................... 72

PARTE 3: RELATOS DE EXPERIÊNCIA EM PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA

Psicologia e Saúde Indígena: as relações e os encontros na produção de afetos


Eliana Arara da Costa ..................................................................................................... 83

SAIRÉ ETÉ, O VERDADEIRO SAIRÉ: relatos sobre formação em psicologia


a partir de uma atividade acadêmica em Alter do Chão, Santarém, Pará.
Erick Rosa Pacheco, Maíra Liane Viana Sadeck dos Santos
e Maria das Dores Carneiro Pinheiro .............................................................................. 86
Da remoção ao Novo Breu: um relato de experiência sobre a
psicologia na assistência social no município de Breu Branco, no Pará
Jessica Lanne de Souza S. Ikuma .................................................................................... 92

Matriciar na Amazônia dos Grandes Projetos: o fazer da(o)


profissional da psicologia no NASF/E-Multi de Parauapebas, Pará
Luis Vagner Dias Caldeira e Sara Giusti Abreu .............................................................. 96

No Ritmo das Águas: relatos de uma pesquisa na psicologia sócio-histórica


sobre direito a educação e enchentes no bairro Cabelo Seco em Marabá, no Pará.
Ana Letícia Guedes Pereira .......................................................................................... 101

Relato de atuação com um grupo de homens no Centro


Especializado em Reabilitação de Macapá, Amapá
Nazir Rachid Filho ........................................................................................................ 106

Trabalho em Psicologia com Mulheres e


Gênero naAmazônia: um relato de experiência
Eveny da Rocha Teixeira .............................................................................................. 109

Fator amazônico e as práticas da psicologia na reconstrução do SUAS:


estrutura, financiamento e territórios ....................................................................... 114

O CRP-10 pela Memória, Verdade e Justiça na Amazônia:


entrevista com Jureuda Duarte Guerra .................................................................... 120
Apresentação

É com alegria que apresentamos para a categoria de psicólogas, psicólogos e psi-


cólogues, estudantes e toda a sociedade o livro Psicologia da Amazônia: a trajetória do
CRP-10 e o fazer profissional na região. Esta obra é fruto de um esforço coletivo, feita
a muitas mãos, implementado pelo XI Plenário do CRP-10, mas produto do acúmulo de
todos os Plenários anteriores. Temos aqui, o resultado do trabalho de conselheiras(os),
técnicas(os) e coordenadoras(es) do CRP-10, assim como de profissionais que estão cola-
borando com o conselho nas mais diversas regiões dos estados do Pará e do Amapá.

Com este livro, pretendemos disponibilizar, para a categoria, o conhecimento de


um pouco da história do CRP-10, reflexões teóricas sobre a prática da psicologia da Ama-
zônia e trocas de experiência, a partir dos relatos de várias(os) psicólogas(os) que atuam
em diversos campos. Para as(os) estudantes, acreditamos poder contribuir de modo com-
plementar em suas formações, principalmente, a partir de visões – e do conhecimento
sobre atuações – com viés crítico a respeito do papel da psicologia na região amazônica.
Para a sociedade, por sua vez, visamos ampliar as informações sobre a função do Conse-
lho Regional de Psicologia, bem como, fomentar o debate a respeito da importância da
profissão de psicóloga(o) para a garantia de direitos em nossa região.

Encontraremos aqui, portanto, um conjunto de textos, divididos em três partes,


visando apresentar, respectivamente: 1. a trajetória do CRP-10 (um pouco de sua histó-
ria, do CREPOP, de suas Comissões e Projetos); 2. saberes e fazeres em psicologia da
Amazônia (com reflexões teóricas e sínteses extraídas da prática de profissionais/pes-
quisadoras(es)); e 3. relatos de experiência em psicologia da Amazônia (com as falas de
várias(os) profissionais, sobre as suas práticas, que atuam em diversas regiões do Pará e
do Amapá).

Finalizaremos este volume com uma entrevista feita com a psicóloga e atual pre-
sidenta do CRP-10 Jureuda Duarte Guerra, sobre a sua atuação, o papel já desempenhado
pelo CRP-10 e os desafios para a profissão na luta por memória, verdade e justiça na
Amazônia. Com isto, reafirmamos o nosso compromisso com os princípios fundamentais
do Código de Ética da Psicologia, principalmente com a defesa intransigente dos direitos
humanos e do combate a toda e qualquer forma de exploração, opressão, discriminação,
crueldade e violência. Boa leitura!

XI Plenário do CRP-10

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

PARTE 1: A TRAJETÓRIA DO CRP-10

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

07
08
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

O CRP-10 no Pará e Amapá: história, formação e psicologia na Amazônia

Robert Damasceno Monteiro Rodrigues1


Jureuda Duarte Guerra2

Introdução

Este texto representa um esforço inicial em sistematizar a trajetória dos mais de


31 anos de existência do Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região Pará e Amapá
(CRP-10). Sabemos que, apesar de ser uma autarquia, uma instituição, a sua história é
feita por pessoas, na maioria psicólogas e psicólogos, que dedicaram seu tempo, sua vida
e seus esforços, não apenas para a construção de uma entidade ou conselho de classe, mas
para a psicologia como prática3 na Amazônia.

Ao longo de seus onze plenários, o CRP-10 vem sendo construído a muitas mãos,
afinal, já foram 11 presidentas(es) e 198 conselheiras(os), diversas(os) funcionárias(os)
e incontáveis colaboradoras(es), tanto em Belém e Macapá, como em vários municípios
dos interiores dos estados. Ao mesmo tempo, a história do CRP-10, assim como aquilo
que ele é hoje, também é resultado das outras histórias que lhe atravessam e, portanto, lhe
constituem.

É necessário, portanto, antes de pontuar alguns dos principais marcos históricos


da trajetória do CRP-10, situar o debate a partir de determinados elementos constitutivos
da realidade onde o Conselho se insere: 1. a psicologia na formação social, econômica
e política da Amazônia; 2. a formação em psicologia na região, quer dizer, os cursos de
graduação em psicologia. Apresentaremos este texto, portanto, na ordem inversa como o
seu título sugere. Essa é uma escolha de um caminho a seguir, sem dúvida há outros; do
mesmo modo, como já pontuamos, este é um movimento inicial, que certamente deverá
ser continuado, desdobrado e aprofundado em outros momentos e por outras pessoas.

1. A Amazônia da psicologia e a psicologia na Amazônia

Começamos fazendo uma autocrítica: a psicologia na Amazônia, durante muito


tempo, não reconheceu e nem buscou conhecer a região onde está inserida e nem os sujeitos
dessa região. Este fato tem raízes profundas, que remontam à origem e desenvolvimento
da psicologia, constituída desde o século XIX europeu a partir da universalização do
sujeito abstrato, desdobrando-se em teorias psicológicas que se propunham resolver os
problemas de toda e qualquer cultura a partir dos mesmos pressupostos e técnicas.

Neste diapasão, durante muito tempo, os habitantes originários do Brasil e da


Amazônia nem se quer eram considerados sujeitos, pois a doutrina católica lhes imputava
a condição de sem-alma e, portanto, desprovidos de racionalidade. Na psicologia, deste
1
Psicólogo CRP-10/7512. Coordenador Técnico do CRP-10 e mestre em psicologia pela UFPA.
2
Psicóloga CRP-10/1135. Psicóloga da FSCMP, mestre em psicologia pela UFPA e Presidenta do CRP-10.
3
Partimos da decisão de usar neste texto a expressão prática ao invés de se referir à psicologia como “ciência e profissão”, por
considerarmos que esta expressão incorre no risco de conceber a psicologia cindida, como ora ciência e ora profissão, ou ciência de um
lado e profissão de outro, sendo esta cisão derivada da mesma tradição que divide o sujeito, como objetivo de um lado e subjetivo de
outro, como ora individual ora coletivo etc. O termo prática, por sua vez, pressupõe a unidade na diversidade, concebendo a psicologia
como um conjunto de determinações que se interrelacionam para constituí-la em sua totalidade.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

modo, o discurso colonizador se manifestou na invisibilização dos povos pré-concebidos


como alheios à norma da sociedade mercantil civilizada.

Por outro lado, a formação da Amazônia brasileira está envolvida pela presença dos
povos indígenas, que há mais de 17 mil anos já ocupavam seu território, dos povos negros
sequestrados da África e escravizados, que se refugiaram nos quilombos em processos de
resistência, de migrantes de várias partes do Brasil, especialmente nordestinos, recrutados
para as florestas como soldados da borracha, de camponeses, ribeirinhos e trabalhadores
dos centros urbanos (PORTO-GONÇALVES, 2018).

Esta massa de amazônidas, no entanto, que passou por processos sistemáticos de


extermínio físico e cultural, ainda hoje sofre as pesadas consequências de viver em uma
região, considerada por muitos, lugar de saque, exploração e destruição. No período mais
recente, desde os governos militares, a Amazônia foi palco de inúmeros grandes projetos,
como a abertura de grandes estradas, construção de hidrelétricas, indústrias minerais,
portos e hidrovias, que na medida em que elevaram a exploração de suas riquezas,
pauperizaram ainda mais a vida dos seus povos.

Deste modo, o sujeito da psicologia, tanto a(o) profissional psicóloga(o), quanto


a população que acessa os seus serviços, são marcados, atravessados e constituídos
por contradições que se fazem sentir nos níveis social, político, econômico, cultural e
ideológicos; contradições que produzem subjetividades que implicam não apenas um
modo de olhar ou pensar, mas antes de tudo um modo de intervir, um fazer, uma prática
profissional na Amazônia (CFP, 2022).

Mas é muito recente o interesse da psicologia, tanto no campo da atuação


profissional quanto da pesquisa acadêmica, pelo trabalho, por exemplo, junto aos povos
indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos e camponeses. Ao mesmo tempo, ainda
existe um vácuo na psicologia sobre temas fundamentais à sua prática na região, como a
questão dos grandes projetos, do garimpo ilegal, do agronegócio, da violência no campo,
suas consequências e seus atravessamentos psicossociais.

Assim, estamos falando de uma psicologia como prática na Amazônia que


desconhece a região e os povos que nela habitam, que ainda reproduz estereótipos e teorias
euro-norte-centradas, que ainda legitima lugares e papéis sociais de classe assentados
sobre a ordem social capitalista. Mas isto representa o que sobressai da psicologia na
região amazônica, quer dizer, a sua parcela hegemônica, do modo como se expressa na
prática das(os) profissionais e, consequentemente, na realidade de suas atuações; existem,
porém, psicólogas e psicólogos que buscam trilhar um caminho oposto a esta direção, a
fim de construir uma psicologia a partir de concepções, teorias e necessidades assentadas
sobre a experiência dos povos amazônidas.

Este é um movimento que o CRP-10 tem buscado reforçar, principalmente no


último período, tendo em vista a centralidade que os debates sobre a Amazônia têm
ocupado nos cenários nacional e internacional e considerando a necessidade de afirmar
4
Destacamos aqui a participação do CRP-10 na organização dos Diálogos Amazônicos, junto aos movimentos sociais locais, no
âmbito da realização da Cúpula da Amazônia ocorrida em Belém, em agosto de 2023, bem como da inserção nos debates sobre a COP
30 que ocorrerá também em Belém em 2025.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

um discurso da psicologia sobre e a partir da Amazônia voltado à sua defesa e da garantia


de direitos dos seus povos4. Existem, no entanto, outros fatores que também devem ser
considerados para localizar conjunturalmente a trajetória do CRP-10, um destes diz
respeito à formação em psicologia na Amazônia.

2. Formação em psicologia e de psicólogas(os) na Amazônia

Iniciamos este ponto reproduzindo parte do texto publicado no Boletim Informativo


do CRP-10, em sua edição de aniversário de 1999:

25 anos de Psicologia no Pará

Em 14 de março de 1973 um grupo de profissionais, hoje conhecido como Grupo


de Psicologia, começou o caminho legal para o processo de criação do Curso de
Psicologia da Universidade Federal do Pará. Muito embora, não tenha havido,
por parte da comunidade paraense, movimento buscando a criação do mesmo,
não se pode negar que o professor Ivo Freitas foi personagem fundamental não só
para a implantação, mas também para a orientação teórica seguida pela luta em
mantê-lo funcionando.

Sendo, então, criado o Curso de Psicologia através da resolução 194/74 do


Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade, iniciando no 1º semestre de 1974,
após o 1º vestibular para Psicologia. Este acontecimento é decisivo na História
da Psicologia Paraense; não só pelo caráter acadêmico, mas pela legalização e
aplicação da Psicologia.

[...]

Já se passaram 25 anos da criação do Curso de Psicologia na Universidade Federal


do Pará e mais de 10 anos nas antigas FICOM, hoje, Universidade da Amazônia.
Nesse período o curso passou por importantes modificações curriculares para se
adaptar com a realidade da região e do país. Mas até que ponto isso foi suficiente
para abertura de novos mercados de trabalho para a categoria? (CRP-10,
1999. Negritos no original).

Como vemos, o curso de psicologia da UFPA teve sua primeira turma iniciada
em 1974, a primeira da Amazônia, tendo 23 concluintes em 1978. Na sequência, o
Conselho Nacional de Educação, através do parecer 483/80, autorizou a abertura do
curso de psicologia ofertado pelas Faculdades Integradas Colégio Moderno (FICOM),
tendo começado a funcionar no 2º semestre de 1980, com 80 vagas totais anuais, sendo a
primeira instituição privada a oferecer curso de psicologia na região amazônica (BRASIL,
1985).

Mais tarde, em 1988, as FICOM, através da fusão com a Centro de Ensinos


Superiores do Pará (CESEP), constituíram a União das Escolas Superiores do Pará
(UNESPA), que depois, em 1993, tornaram-se a Universidade da Amazônia, conhecida
como UNAMA (CORDEIRO & KATO, 2022). Deste modo, até 1992, as FICOM-
UNESPA já haviam formado 689 bacharéis em psicologia com a formação do psicólogo

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

(BRASIL, 1993) e, do mesmo modo, a UFPA concluía a sua 15ª turma de psicologia.
Nestes anos iniciais, como estas eram as únicas Instituições de Ensino Superior
(IES) com cursos de psicologia na Amazônia, era muito comum o deslocamento de
estudantes que vinham cursar psicologia em Belém, tanto dos interiores do Pará quanto
de outros estados; dessa forma, a constituição da psicologia no Pará foi decisiva para o
desenvolvimento da psicologia no conjunto da região amazônica.

O curso de psicologia da UFPA, por seu turno, foi decisivo para que os demais
viessem a se desenvolver, principalmente através da formação de professores. Segundo o
psicólogo José Guilherme, da primeira turma de psicologia da UFPA:

Quando nós formamos, o campo estava ainda muito verde, não é? Precisava
de muitos soldados, e nós fomos a primeira turma da Amazônia, não apenas
do Pará, mas também da região. Sempre diziam que a FICOM (Faculdades
Integradas Colégio Moderno) iria criar um curso de psicologia. Enquanto
estávamos fazendo o curso, um grande professor nosso, o professor Francisco
Bordin, praticamente estruturou o curso de psicologia na FICOM e convidou
alguns alunos da Universidade Federal do Pará para trabalharem com ele (CRP-
10, 2012).

Do mesmo modo, as(os) profissionais formadas(os) por estas duas instituições


foram, em sua maioria, as(os) primeiras(os) a se registrarem como psicólogas e psicólogos
no CRP-10 e, também, foram as(os) que contribuíram para a estruturação nos anos iniciais
do Conselho. Segundo o psicólogo e professor Jorge Moraes:

Nós formávamos um grupo de profissionais recém-formados, né? E alguns já


estavam trabalhando, professores da academia, da Universidade Federal do Pará,
já estavam discutindo também a possibilidade da implantação de um Conselho
Regional aqui na Região Norte, considerando que nós não tínhamos um conselho,
nós tínhamos apenas uma representação, não é? E nós éramos subordinados ao
CRP-01, que tinha sede em Brasília. Era muito difícil, digamos assim, a questão
burocrática de se conseguir a carteira do psicólogo, o registo profissional. O
lugar é centralizado em Brasília. Isso trazia grande dificuldade para exercício
profissional, até para algumas questões serem resolvidas, a nível de demanda dos
psicólogos, a nível de denúncia, a nível de encaminhamento de algumas lutas
específicas da profissão a nível local (CRP-10, 2012).

Por mais de 30 anos, UFPA e UNAMA eram as únicas IES a oferecerem cursos
de psicologia no Pará. Este cenário, porém, começa a mudar em 2007, com a abertura
do curso de psicologia no Instituto Esperança de Ensino Superior (IESPES), localizado
no município de Santarém, contribuindo também para o processo de descentralização
e interiorização dos cursos de psicologia no Pará, formando psicólogas e psicólogos
das regiões do Tapajós, Baixo Amazonas e Transamazônica, e de outros estados, como
Amazonas e Roraima.

Em 2005 são abertos os primeiros cursos de psicologia no estado do Amapá,


localizados na capital Macapá e ofertados pela Faculdade de Macapá (FAMA), hoje
Faculdade Estácio de Macapá, e pelo Instituto Macapaense de Ensino Superior (IMMES).

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na sequência, em Belém, começa a funcionar, em 2009, o curso de psicologia da Escola


Superior da Amazônia (ESAMAZ), hoje Centro Superior da Amazônia (UNIESAMAZ),
sendo seguido, principalmente a partir de meados dos anos 2010, pela proliferação de
novos cursos de psicologia, em diversas IES, assim como pela multiplicação de campus
das mesmas IES com cursos de psicologia, tanto na capital quanto nos interiores.

Atualmente, pelo balanço mais recente que temos no CRP-10, existem 27 cursos
de psicologia no Pará e 3 no Amapá. Sabemos também de outras tantas IES que estão em
vias de abrir seus cursos de psicologia, como a Universidade do Estado do Pará (UEPA),
a Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e mais algumas privadas. No Pará, fora da
Região Metropolitana de Belém (RMB), já existem cursos de psicologia em quase todas
as regiões do estado, em municípios como Santarém, Marabá, Parauapebas, Altamira,
Tucuruí, Paragominas, Abaetetuba e Castanhal.

No último período, o CRP-10 vem no esforço de aproximação, cada vez maior,


entre o Conselho e as IES, principalmente através da relação com docentes dos cursos
de psicologia, coordenadoras(es) de curso, responsáveis técnicos de clínica escola,
supervisores de estágio e discentes. A finalidade deste diálogo e relação mais estreita se
deve, principalmente, a intenção do sistema conselhos de psicologia em contribuir para a
garantia da qualidade na formação da(o) psicóloga(o), na presencialidade do ensino, no
rigor ético e técnico na preparação para a prática profissional e, em nosso caso, buscamos
construir as condições, junto aos cursos de psicologia, para que o ensino esteja voltado
cada vez mais para as questões locais, considerando as especificidades, atravessamentos
e contradições para a atuação profissional da psicologia na Amazônia.

3. Alguns marcos históricos da trajetória do CRP-10

O Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região Pará e Amapá (CRP-10),


aproxima-se hoje da marca de 8.000 profissionais ativas(os), tendo ao todo, incluindo
inativas(os) e transferidas(os) para outros estados, quase 10.000 registros. Estes números,
porém, não contam por si só a história que tem por trás destes mais de 31 anos de atuação
do CRP-10, nem os desafios de se construir um conselho de classe inserido, atuante e
combativo frente à realidade da região amazônica.

Criado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), através da Resolução CFP nº


04 de 12 de abril de 1992, o CRP-10 – que antes era vinculado ao CRP-01 do Distrito
Federal – foi o primeiro conselho regional de psicologia a ser emancipado na região norte,
tendo sob sua jurisdição os estados do Pará e Amapá.

Há que se destacar, contudo, que antes da criação do CRP-10, a presença do


Sistema Conselhos de Psicologia já era sentida no Pará, em especial na capital, Belém.
Destacamos a Conferência realizada em 30 de setembro de 1983, intitulada Alternativas
para a Atuação do Psicólogo no Contexto Brasileiro, proferida pela Presidente da Comissão
de Orientação e Fiscalização (COF) do CRP-01, Sofia Ismail Ollaik Cardelino5. De modo
semelhante, em 26 de agosto de 1992, em comemoração aos 30 anos de regulamentação
5
Fonte: CIRCULAR Nº 012/83 – CRP-01. Brasília, 23 de setembro de 1983. Arquivo do CRP-10.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

da profissão, o CRP-01 convidava psicólogas(os) e estudantes para a palestra A psicologia


e as práticas alternativas, contando com a colaboração de psicólogos locais como José
Carlos Pontes e Emmanuel Tourinho6.

Da mesma forma, as(os) profissionais paraenses também participavam ativamente


da política do Sistema Conselhos, contribuindo na organização e realização das
atividades que ocorriam, participando dos processos eleitorais pelo envio de votos por
correspondência e compondo chapas para o CRP-01 e CFP.

Em 12 de maio de 1993 o CRP-10 publicava no jornal O Diário do Pará edital de


convocação para a sua primeira Assembleia Geral, que ocorreu no dia 20 do mesmo mês,
no miniauditório da UNESPA, tendo como Pauta única: “apresentação dos Psicólogos
convidados a participar do 1º Plenário do CRP-10”7. É assim que tem início o primeiro
Plenário do CRP-10, sob a presidência da Psicóloga Maria Oneide Malcher de Oliveira.

Destacamos que o CRP-10 foi criado em meio a dois processos de grande


relevância para a psicologia brasileira: a realização do Congresso Nacional Constituinte
da Psicologia (CIC) de 1994 e a coleta nacional de contribuições para o novo Código de
Ética da Psicologia de 1996. Nestes processos, os dois primeiros plenários do conselho
foram incansáveis na tentativa de mobilizar a categoria para participar, tanto do processo
congressual, levando suas propostas regionais e nacionais para deliberações no CFP,
quanto com sugestões de mudanças e melhorias para o código de ética.

Em seus primeiros anos, o CRP-10 funcionava em uma sala do Clube de Engenharia


do Pará, localizado na Av. Nazaré. Em 1998, com apoio do CFP, o CRP-10 adquire a sua
sede própria, localizada na Av. Generalíssimo Deodoro, n. 511, que foi inaugurada em 11
de agosto de 1998, durante a II Plenária e sob a presidência da psicóloga Flauzina Lopes
de Oliveira Bastiani. No convite para a inauguração da sede própria do conselho, consta
um pequeno texto que resume, até aquele momento, um pouco da trajetória das gestões
do CRP-10:
OLHANDO PARA TRÁS… E PARA DIANTE

Em 26.09.92 iniciou-se a caminhada para a organização da categoria, através


da instalação do CONSELHO REGIONAL, entidade que doravante constituiria
a face autônoma da representação dos esforços de solidez e ampliação do
engajamento profissional. Estava lançado o ALICERCE, movimento gerenciado
por HILMA, CÂNDIDA, OSCAR, JORGE, ROSALI, SOCORRO, MÁRCIA,
NORMA, ONEIDE, SANDRA BERNADETE, LÚCIA CABRAL e LÍLIA – um
pequeno mas tinhoso grupo ora na raça, ora no susto projetaram como plataforma
de trabalho, ações que hoje são aperfeiçoadas: Criação do Regimento Interno, para
que nenhum psicólogo quisesse ser rei; Comissões para pensar/agir e pesquisar;
Abertura da conta bancária para que a nossa renda não ficasse sob o colchão;
Contrato de prestação de serviços contábeis e jurídicos; Definição de uma tabela
de diárias para atividades externas; Benefício de plano de saúde à funcionária
misto de coringa e secretária; e finalmente o jornal – assinatura do local e a própria
edição, tudo para ficar por dentro e ter um canal de comunicação.
6
Fonte: Convite – CRP-01. Arquivo do CRP-10.
7
Fonte: Ofício Circular CRP-10 nº 007/93. Cópia do Edital Publicado no Jornal “O Diário do Pará” em 12/05/93. Arquivo do CRP-10.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Como nem tudo é perfeito, o rojão pesou, em 94 nova Eleição. Vieram outros
psicólogos SOMAR esforços ao ALICERCE, recompondo o plenário, arrumando
a casa, até passar em 96 a para uma trajetória SINGULAR & PLURAL. tarefa

Neste momento o fogo cresceu; o Federal ajudou um velho sonho, a antiga


pendência se concretizar: adquirir a sede própria e sempre melhor servir.

Juntou à turma antiga, gasolina também suplementar e o resultado estamos a


festejar: BOSCO, FLAUZINA, ARLETE, LEILA, SEVERIANO, MÁRCIA,
SANDRA CLEMENTE, MILVA, ADELMA, ROSÂNGELA e toda a gente que
aqui está, planejando aquecer o terreno para que os objetivos da AUTONOMIA,
orientados por novos guias possam realmente o conselho FORTALECER PARA
CUIDAR DA PROFISSÃO (CRP-10, 1988).

Como podemos ver, a conquista da sede própria do CRP-10 marcou um momento


emblemático da sua história, significando não apenas a aquisição de um espaço físico,
mas o resultado do acúmulo político dos dois primeiros plenários, que envolveu tanto
ações organizativas internas ao conselho, de modo a compor e fazer funcionar as
comissões e normatizar os aspectos jurídicos e contábeis, quanto também a nível da
categoria, difundindo informações a aproximando a autarquia através do Jornal (Boletim
Informativo) que chegou a ter publicação mensal.
Figura 1: Capa do Boletim Informativo Agosto/98.

Fonte: Arquivo do CRP-10.


Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

À época da inauguração da sede própria do conselho, segundo informação do


Boletim Informativo, edição Agosto de 1998, o CRP-10 contava com 1.200 profissionais
inscritas(os) e, tanto as demandas éticas ou de orientação, quanto referentes à implicação
do conselho nas pautas gerais da sociedade eram cada vez mais urgentes. Deste modo, já
tendo em funcionamento, coletivos como a Comissão de Formação, a Comissão de Saúde
e a Comissão de Comunicação Social, além de começar a ocupar espaços de controle
social, como o Conselho Estadual de Direitos das Crianças e Adolescentes, em 21 de
agosto de 1999 o CRP-10 instalou a sua Comissão de Direitos Humanos, em caráter
permanente, tendo como sua primeira presidente a psicóloga Bernadete Mathias de Melo
(CRP-10, 1999).

Com o crescimento do quantitativo de profissionais do Amapá, a partir do início


dos anos 2000 o IV Plenário do CRP-10 inicia os debates sobre a criação da Seção,
conforme consta no Ofício Circular CRP-10 nº 015/2000, com convocação para reunião
extraordinária em que, uma das pautas seria a criação da “Sessão de Macapá”. Na mesma
direção, foi no âmbito do Pré-Congresso de Psicologia, realizado em 25 de março de 2004,
como parte do IV Congresso Regional de Psicologia (COREP), que as(os) psicólogas(os)
do Amapá formaram a Comissão Representativa Pró-Seção Macapá, definindo como sede
provisória da Seção o Centro de Reabilitação do Amapá (CREAP).

Deste modo, a Seção Amapá do CRP-10 foi instalada através da Resolução


CRP-10 nº 02/2004 e fundada em 30 de janeiro de 2005, justificada pelo quantitativo de
profissionais no estado, com interesse manifesto na criação da seção e pela necessidade
de descentralizar as ações do Conselho, aproximando-se da categoria através de uma
gestão democrática e transparente. Assim, tendo empossada a sua Comissão Gestora,
tendo como seu primeiro Coordenador Geral o psicólogo Iran Sidney Medeiros Lobato,
a Seção Amapá do CRP-10 passou a funcionar em uma sala alugada no Sindicato dos
Urbanitários do Amapá (STIUAP).

Em 2005 o CFP criou o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas


Públicas (CREPOP), que começa a funcionar já a partir de 2006 no CRP-10, tendo uma
técnica própria voltada à realização de pesquisas com as(os) psicólogas(os) do Pará e
do Amapá a fim de subsidiar a elaboração das Referências Técnicas. Acompanhando o
processo de crescimento da categoria e elevação das demandas, tanto administrativas
quanto de orientação, fiscalização e processos éticos, em 2011, na gestão do VII Plenário
sob a presidência da psicóloga Dorotéa Cristo, é realizado o primeiro concurso público para
a contratação de servidores efetivos para o CRP-10, incluindo assistentes administrativos,
psicólogas(os) fiscais e contador(a).

Em 2012 a psicologia comemora 50 anos de regulamentação no Brasil e o CRP-


10 celebrou os seus 20 anos de fundação, com importantes eventos realizados em Belém,
Macapá, Marabá e Santarém. Em Belém, no dia 27 de agosto, foi lançado no Teatro Maria
Sylvia Nunes o documentário “A História da Psicologia no Pará e no Amapá”, dirigido por
José Arnaud e com depoimentos de alguns daqueles que contribuíram para a história da
psicologia na Amazônia. O evento configurou-se em um grande encontro de profissionais,
estudantes e público em geral, como um emocionante e legítimo congraçamento de várias
gerações da psicologia na região.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na sequência, a gestão, compreendo a necessidade de construir ações mais


integradas e direcionadas aos anseios da categoria, bem como, considerando as propostas
emanadas do VIII COREP e VIII CNP, o no ano de 2014 o VIII Plenário do CRP-10, sob
a presidência da psicóloga Jureuda Duarte Guerra institui o Projeto CRP-10 ao Seu Lado,
visando interiorizar as atividades do conselho, através de ações levadas até os municípios
dos interiores dos estados, incluindo fiscalizações e visitas, reuniões de orientação,
palestras, pesquisas do CREPOP e articulações políticas. A implementação do CRP-10
ao Seu Lado veio acompanhada de outros processos políticos e organizativos que vinham
em curso no conselho, os quais também foram impulsionados pelo projeto.

É neste cenário que o CRP-10 se consolidava como referência, tanto para a


sociedade quanto para a categoria, principalmente através de sua atuação frente às pautas
voltadas para a garantia de direitos. Dessa forma, destacamos a presença do CRP-10 em
espaços como o Conselho Estadual de Assistência Social (PA e AP), o Conselho Estadual
sobre Drogas (PA), o Conselho Estadual de Saúde (AP), o Conselho Estadual de Direitos
das Crianças e Adolescentes (PA e AP), o Comitê Gestor do Plano Estadual de Segurança
Pública de Combate à Homofobia (PA), o Fórum Permanente sobre População Adulta
em Situação de Rua (PA), o Fórum Estadual de Trabalhadores do SUAS, a Comissão
Estadual da Verdade (PA) e o Comitê Estadual de Combate ao Escalpelamento (PA).

Do mesmo modo, o CRP-10 também encontrava-se avançado no sentido a


organização da categoria, que participava de suas assembleias gerais e congressos, mas
também compunham os coletivos do conselho, como as Comissões e GTs, com destaque
para os Grupos de Trabalho vinculados à Comissão de Direitos Humanos, como os GTs
de Psicologia na Assistência Social, de Infância e Juventude, de Psicologia Escolar e
Educacional, de Psicologia, Drogas e Direitos Humanos, de Gênero e Diversidade
Sexual, de Povos Indígenas e de Avaliação Psicológico. É nesta mesma direção que são
instituídas, elevando-se à condição de comissão, a Comissão de Psicologia e Relações
Raciais e a Comissão de Gênero.

Foram estas representações e estes Figura 2: Entrada do Auditório Willivane Melo.

coletivos que impulsionaram as ações do


CRP-10 ao longo dos anos que se seguiram,
marcados por momentos difíceis, como a
perda da psicóloga e conselheira Willivane
Melo, que fez a sua passagem em 05 de
dezembro de 2018, tendo sido incansável na
construção de uma psicologia antirracista,
principalmente na região Baixo Amazonas
do Pará. Neste sentido, como obra do IX
Plenário, sob a presidência do psicólogo
Luiz Romano da Motta Araújo, em 27 de
setembro de 2019 o CRP-10 inaugurou o seu
auditório, nomeando-o de Wiliivane Melo,
em memória ao legado da psicóloga que
tanto contribuiu para o desenvolvimento
do conselho e da psicologia na Amazônia. Fonte: Arquivo do CRP-10.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

No ano seguinte, em 2020, o CRP-10 encontrou um dos seus maiores desafios, junto
com o restante da sociedade: a adaptação à Pandemia da COVID-19. Com a pandemia,
o conselho precisou estabelecer o trabalho home office para seus funcionários e todas
as atividades presenciais foram suspensas. Ao mesmo tempo, as Comissões e Grupos
de Trabalho precisaram interromper as suas programações ou passá-las para o ambiente
virtual, o que levou, junto à tendência das pessoas em focar mais nos seus cuidados de
saúde e na prevenção contra o adoecimento, a uma descontinuidade nos trabalhos dos
coletivos do CRP-10. Ao mesmo tempo, a pandemia impôs grandes desafios enfrentados
pela gestão do X Plenário, como as orientações e fiscalizações aos hospitais e demais
instituições de saúde públicas e privadas, bem como no apoio às campanhas de vacinação
de psicólogas(os) e de toda sociedade.

Na retomada das atividades presenciais e como parte do processo de criação das


condições necessárias para o desmembramento da Seção Amapá e a criação de um CRP
independente, em 1º de maio de 2021 foi inaugurada a Sede própria da Seção Amapá do
CRP-10, localizada no Edifício Macapá Office, na capital do estado. Em 2022, com a
posse do XI Plenário e a recondução da psicóloga Jureuda Duarte Guerra à presidência,
o CRP-10, após a realização de um novo concurso público, tendo ampliado e renovado
o seu quadro de funcionários, e contando com uma gestão combinando a experiência de
conselheiras(os) de plenários anteriores com a disposição de conselheiras(os) em primeiro
mandato, o conselho passou a implementar uma estratégia centrada no enraizamento de
suas ações junto às(aos) profissionais e à sociedade, considerado as singularidades de
construir um conselho de classe inserido na região amazônica.

Em 2023, além de retomar, renovando, o Projeto CRP-10 ao Seu Lado, o


conselho realizou, no mês agosto, a Jornada da Psicologia no Pará e Amapá: as práticas
profissionais da psicologia na Amazônia, que foi marcada também pela entrega do
Prêmio Darcy Franca de Psicologia e Direitos Humanos e pelo lançamento de uma nova
normatização sobre a criação, composição e funcionamento das Comissões e Grupos de
Trabalho do CRP-10. É nesse clima, olhando para trás, mas sem perder de vista os desafios
atuais e futuros, que iniciamos este trabalho de sistematização, elaboração e síntese sobre
a trajetória do CRP-10 e as práticas da psicologia na região, sabendo que, esta é uma tarefa
que será tocada a muitas mãos, nas próximas gestões, plenários e gerações de psicólogas,
psicólogos e psicólogues na Amazônia.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Reconhecimento do Curso de Psicologia, Licenciatura, Bacharelado e Formação de
Psicólogo da FICOM. Brasília: Conselho Federal de Educação, 1985. Disponível em: https://livros01.livrosgratis.com.br/
cd008971.pdf. Acesso em: 08 de dez. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Reconhecimento da Universidade da Amazônia – UNAMA. Brasília: Conselho Federal
de Educação, 1985. Disponível em: https://livros01.livrosgratis.com.br/cd001032.pdf. Acesso em: 08 de dez. 2023.
CORDEIRO, T. S. & KATO, F. B. G. A gestão institucional da universidade da Amazônia (Unama): do projeto de criação à
venda para o Grupo Ser Educacional em 2014. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 8, n. 5, p. 42654-42675, may.,
2022.
CFP. CURTAS – CRP-10 Pará e Amapá. In Revista Diálogos. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, 2022. p. 96.
CRP-10. Boletim Informativo – Edição de Aniversário abr/jul-99. Belém: Conselho Regional de Psicologia 10ª Região, 1999.
[arquivo do CRP-10]
CRP-10. Boletim Informativo – agosto/98. Belém: Conselho Regional de Psicologia 10ª Região, 1998. [arquivo do CRP-10]
CRP-10. A História da Psicologia no Pará e no Amapá. Documentário em DVD. Direção de José Arnaud. Belém: Conselho
Regional de Psicologia 10ª Região, 2012. [arquivo do CRP-10]
PORTO-GOLÇALVES, C. W. Amazônia, Amazônias: tensões territoriais em curso. In: Revista Terceira Margem Amazônia
/ Outras Expressões. v. 3, n.11. São Paulo: Outras Expressões, 2018. p. 14-21.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas-CREPOP:


a pesquisa na Amazônia; um breve recorte do Pará e Amapá.

Letícia Maria Soares Palheta1


Jureuda Duarte Guerra

O Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas - CREPOP


foi criado pelo Sistema Conselhos de Psicologia (Conselho Federal de Psicologia/CFP
e Conselhos Regionais de Psicologia/CRPs) em 2006 para produzir referência técnica a
partir da investigação das práticas das/os Psicólogas/os nas políticas públicas, alinhando
às contribuições do campo teórico da Psicologia e normativas do Sistema Conselhos com
marcos lógicos legais das políticas públicas.

Todo processo de elaboração das Referências Técnicas acontece de forma


participativa e democrática, na qual a categoria participa desde a indicação do tema a ser
pesquisado, até a elaboração final do texto para lançamento da referência. No qual o ciclo
de pesquisa é definido no Congresso Nacional da Psicologia/CNP, processo que acontece a
cada três anos e que reúne Psicólogas/os de todo país que inicia nos Congressos Regionais
de Psicologia/COREPs para avaliar e propor ações de mudanças e ajustes que promovam
a qualificação e consolidação da profissão nas jurisdições dos Conselhos Regionais e em
âmbito nacional para o Conselho Federal.

Os temas propostos pela categoria para pesquisa, seguem para a Assembleia de


Políticas, da Administração e das Finanças (APAF), que é a reunião anual de presidentes,
tesoureiras/os e secretárias/os dos Conselhos Regionais de Psicologia que votam o tema
para cada ano.

A produção das referências pode ser realizada de duas formas: por uma comissão
ad hoc, formada por especialistas da área que realizam pesquisas e/ou atuam na política
pública e que são indicados pelos Conselhos Regionais; e através da investigação da
prática profissional seguindo a metodologia própria do CREPOP (2012)2 realizada em
duas etapas, uma etapa nacional, do tipo descritiva, a partir de um instrumento on-line;
e uma etapa qualitativa, realizada pelas unidades locais do CREPOP, localizadas nos
Conselhos Regionais de Psicologia.

A etapa quantitativa da pesquisa é realizada através de um questionário online


elaborado pela Rede CREPOP em reunião nacional, e fica disponibilizada para as
Psicólogas que atuam na área pesquisada por um período médio de trinta dias.

A etapa qualitativa é operacionalizada em conjunto com a Coordenação nacional


em reunião de treinamento, reuniões bimestrais de monitoramento e reunião nacional de
avaliação, nas quais são construídos o questionário online e a nota técnica que direciona
a coleta de dados. Essas atividades são realizadas por circuitos, seguindo um calendário
anual que é proposto pela Coordenação nacional, no Plano de Trabalho Anual a serem
executados por etapas como segue:

1
Psicóloga CRP10/1440, Técnica Regional do CREPOP-CRP10 desde abril/2010.
2
Metodologia do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas. Públicas/CREPOP. 1ª Edição. Brasília: CFP, 2012.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

CIRCUITO 1 – LEVANTAMENTO DO CAMPO


Levantamento de marcos-lógicos e legais
Levantamento de Serviços
Levantamento de Psicólogas/os que atuam nos serviços
Estabelecimento do critério de recorte dos municípios
Avaliação e definição dos instrumentos

CIRCUITO 2 – INVESTIGAÇÃO DA PRÁTICA


Treinamentos regionais para execução da coleta de dados
Realização de Entrevistas individuais e/ou grupos
Elaboração de relatórios regionais
Sistematização dos dados

CIRCUITO 3 – PRODUÇÃO DE REFERÊNCIA


Formação da comissão
Trabalho da comissão
Consulta Pública
Lançamento da Referência Técnica
Monitoramento/Avaliação

Com o texto preliminar finalizado produzido pela Comissão ad hoc no terceiro


circuito, esse texto vai a Consulta Pública, na qual, o texto fica disponível no site do CFP
juntamente com um formulário para que profissionais de Psicologia que atuam na área
possam contribuir com o texto por um período médio de 40 dias. Depois as contribuições
retornam para a Comissão Ad hoc que finaliza o texto que encaminha para diagramação e
para gráfica.

A apresentação da referência técnica é organizada por eixos: eixo 1 – Dimensão


ético-política do tema para a Psicologia, eixo 2 – Psicologia e a área em foco, eixo
3 – Atuação da(o) Psicóloga(o) e o eixo 4 – Gestão do trabalho, essa distribuição visa
organizar o conteúdo desde a apresentação do campo investigado, a relação do campo
com a Psicologia, depois as discussões sobre a prática profissional e por fim as questões
relacionadas às relações de trabalho.

O Lançamento da referência técnica é realizado pelo Conselho Federal e pelos


Conselhos Regionais em seminários, eventos, congressos etc. E então, a Referência
Técnica é disponibilizada no site do CFP e portal do CREPOP em formato de arquivo
para ser baixado.

O CREPOP também funciona como recurso de gestão nos regionais sendo


uma estratégia para fortalecimento do CREPOP, que tem como atividades: subsidiar o
Plenário, a Diretoria, as Comissões e Grupos de Trabalho com informações acerca das
políticas públicas, assim como, auxiliar as ações do Plenário; (realização de atividades,
elaboração e execução de projetos e organização de eventos) assim como, colaborar na
articulação do CRP com outras instituições.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Em julho de 2022 o Conselho Federal institui o CREPOP de forma permanente


na sua estrutura organizacional (Resolução-CFP 14/2022), assim como, em setembro de
2022 o Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região Pará e Amapá/CRP10 também
institui o CREPOP em seu âmbito vinculando-o à Rede CREPOP3 (Resolução-CRP10
02/2022). A Rede CREPOP é constituída por uma Coordenação Nacional sediada no
Conselho Federal em Brasília e por Coordenações sediadas nos regionais, composta por:
Conselheiras, Técnicas e estagiárias.

O Trabalho do CREPOP se destaca por ser uma ação nacional do Sistema Conselhos
de Psicologia, na qual acontece de forma articulada, e ao mesmo tempo em todo país,
e dada sua capilaridade com Técnicos em todos os Conselhos Regionais favorecendo
a aproximação do Sistema Conselhos com a categoria no estabelecimento de diálogos
através das pesquisas; que inicia desde as ações de mobilização para contribuição,
reuniões para consulta pública e eventos de lançamento e em sua atuação como recurso
de gestão; realizando pesquisas locais, participando de debates, realizando palestras e
atuando em conjunto com o plenário na articulação com outras instituições nas políticas
públicas.

Histórico

Os debates que fomentaram a criação do CREPOP perpassaram antes pela criação


do Banco Social de Serviços que funcionou de 2003 a agosto de 2005, que consistia em
oferecer serviços de Psicologia aos Ministérios e Secretarias de Estados e Municípios.
No entanto, verificou-se que alguns Psicólogos já vinham desenvolvendo práticas nas
políticas públicas, e que então era necessário identificar e estabelecer limites técnicos,
éticos e políticos para essa atuação.

Essa expansão da Psicologia para as políticas públicas fez com que a Psicologia
repensasse suas abordagens e técnicas para além da clínica, de modelo consultório,
desafiando a profissão a repensar o direcionamento teórico das abordagens individuais e
elitistas para produzir conhecimento também em abordagens coletivas, e que atendessem
demandas de populações vulneráveis, atravessadas pelas consequências das desigualdades
sociais. A Psicologia foi, portanto, demandada a dar atenção à subjetividade produzida na
fronteira das desigualdades e convocada ao enfrentamento.

Foi então que em dezembro de 2005 na Assembleia de Políticas, da Administração


e das Finanças (APAF) foi apresentado o relatório final do Banco Social de Serviços4 com
indicação do projeto CREPOP e aprovada sua criação.

O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas CREPOP


já contabiliza em 2023: 27 áreas pesquisadas, são elas: 1.Medida Socioeducativa em
Unidades de Internação; 2.Sentinela; 3.Vara de Família; 4.Sistema Prisional; 5.DST/HIV
AIDs; 6.CAPS; 7.Educação inclusiva; 8.Medida Socioeducativa em meio aberto; 9.Mulher
em situação de violência; 10.Atenção Básica à saúde; 11.Educação Básica; 12.Álcool e

3
Resolução 14/22 CFP, Cap. 2 Art. 5º Fica instituída a Rede CREPOP, espaço de articulação e operacionalização das ações do
CREPOP, composta pelas unidades regionais do CREPOP nos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e pelo CREPOP do CFP.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

outras drogas; 13.Mobilidade Humana, transporte e trânsito; 14.Proteção Social Especial;


15.Serviços Hospitalares do SUS; 16.CRAS/SUAS; 17.Diversidade sexual e promoção
da cidadania LGBTQIA+; 18.Esporte; 19.Segurança Pública; 20.Idoso; 21.População em
situação de rua; 22.Direitos sexuais e Direitos reprodutivos; 23.RAPS; 24.Unidades de
Acolhimento (Institucional – SUAS); 25.Prevenção ao Suicídio e Autolesão; 26.Pessoa
com deficiência e; 27.Sistema de Justiça.

E já estão disponíveis 40 publicações, entre referencias técnicas, documentos para


gestores e relatórios de seminários nacionais de políticas públicas, listados abaixo:

01. Referências Técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS


02. Referências Técnicas para a Prática do(a) Psicólogo(a) nos Programas de DST e AIDS
03. Saúde do Trabalhador no âmbito da Saúde Pública: referências para a atuação do(a) psicólogo(a)
04. Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração
Sexual e suas Famílias: referências para a atuação do psicólogo
05. Referências técnicas para atuação do psicólogo em Varas de Família
06. Referências técnicas para atuação de psicólogos no âmbito das medidas socioeducativas em
unidades de internação.
07. Como os Psicólogos e as Psicólogas podem contribuir para avançar o Sistema Único de Assistência
Social (SUAS) – Informações para Gestoras e Gestores
08. Senhoras e senhores gestores da Saúde, Como a Psicologia pode contribuir para o avanço do SUS
09. V Seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas: Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas
10. Referências Técnicas para Atuação das (os) Psicólogas (os) no Sistema Prisional
11. Referência Técnica para Atuação de Psicólogas(os) em Programas de Medidas Socioeducativas
em Meio Aberto
12. Metodologia do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP)
13. Documento de Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) em Políticas Públicas de
Álcool e Outras Drogas
14. Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) em Questões Relativas a Terra
15. Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
16. Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica
17. Referências Técnicas para a Prática de Psicólogas (os) no Centro de Referência Especializado da
Assistência Social – CREAS
18. Documento de Referência para Atuação de Psicólogas (os) em Serviços de Atenção à Mulher em
Situação de Violência
19. Relações Raciais: Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas/os
20. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) em Políticas Públicas de Mobilidade Humana
e Trânsito
21. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) com Povos Tradicionais
22. Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) em Varas de Família
23. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) nos Serviços Hospitalares do SUS
24. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Atenção Básica à Saúde
25. Saúde do Trabalhador no Âmbito da Saúde Pública: Referências para a Atuação da(o) Psicóloga(o)
26. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) em Políticas Públicas de Esporte
27. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) em Políticas Públicas de Álcool e Outras
Drogas
28. Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica
29. Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) em Questões Relativas a Terra
30. Atuação da(o) Psicóloga(o) no Campo da Execução Penal no Brasil – Relatório Descritivo (GT da
APAF)
31. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) nos Programas e Serviços de IST/HIV/AIDS
32. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Política de Segurança Pública
33. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Rede de Proteção às Crianças e
Adolescentes em Situação de Violência Sexual.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

34. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no CRAS/SUAS


35. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no âmbito das Medidas Socioeducativas
36. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Gestão Integral de Riscos, Emergências
e Desastres
37. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no Sistema Prisional
38. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
39. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas
40. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) e Psicologues em Políticas públicas para
população LGBTQIA+

A pesquisa na Amazônia: um breve recorte do Pará e Amapá

O Estado do Pará é o mais populoso da região norte e o segundo maior do país


em extensão territorial, é composto por 144 municípios e está dividido em 12 Regiões de
Integração.

O Estado do Amapá faz divisa com Pará e com dois países: Guiana Francesa e
Suriname, e distribui-se em 16 municípios, e é dividido em duas mesorregiões: Norte do
Amapá e Sul do Amapá.

As especificidades de realizar pesquisa nesses dois Estados que são da jurisdição


do CRP10, estão relacionadas principalmente ao acesso, e custo desse acesso ao território;
a necessidade de deslocamentos de um Estado a outro, e principalmente, no que se refere
ao estado do Pará no deslocamento entre seus municípios.

A grande extensão e distâncias intermunicipais, requerem por vezes a utilização


de vários meios de transporte terrestres, fluviais e aéreos, como por exemplo: para acessar
a Unidade Básica de Saúde da Ilha de Cotijuba que pertence ao município de Belém, a
capital; é necessário se deslocar de carro até o Distrito de Icoaraci, chegando lá, utiliza-se
um barco para atravessar a baia do Guajará, chegando no porto, utiliza-se uma charrete
para chegar até a unidade, trajeto que dura em média duas horas a depender do tempo de
espera em cada transporte.

Para acessar os municípios do oeste, sul e sudeste do Pará, o recomendável é


utilizar o transporte aéreo, como estratégia para chegar aos municípios polos das regiões
de integração, e a partir da chegada no município, se avalia possibilidades de acesso por
meio terrestre ou fluvial de acordo com condições das vias terrestres que, em muitos casos,
não possuem pavimentação, e no período de muitas chuvas as estradas e ramais ficam
sem condições de tráfego. Assim como deve ser avaliado as condições de tráfego fluvial
no período da estiagem no qual os rios secam de forma total ou parcial e impossibilita
também o tráfego.

No caso do município de Altamira que possui uma extensão territorial de


159.533,328 Km², que o torna o maior município do Brasil, e o terceiro maior do mundo
em extensão territorial, a situação de acesso pode ficar mais complicada, o que por
exemplo, a depender do período do ano só é possível acessar o distrito de Castelo dos
Sonhos por via aérea. E em grande parte destes deslocamentos só podem ser realizados
através do frete de táxi aéreo, e ao chegar no município muitas vezes se faz necessário
4
Conselho Federal de Psicologia. (2005). Banco Social de Serviços. Relatório Final. Brasília: Conselho Federal de Psicologia.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

aluguel de carro. Deve-se considerar também que o tempo de deslocamento vai depender
do tipo de transporte terrestre, fluvial e aéreo necessário para se realizar o percurso, o
que na Amazônia a variabilidade de transporte terrestre e fluvial é imensa, que vai desde
municípios no qual o único meio de transporte é bicicleta (Afuá) a municípios que em seu
Distrito é apenas permitido o uso de charrete (Algodoal/Maracanã).

No caso do Amapá, considera-se de antemão que já há a necessidade de


deslocamento via aérea para o Estado, já que a sede do CRP10 fica na capital Belém
no Estado do Pará, representando um custo considerável de passagens e diárias, e que
apesar do Estado ser relativamente pequeno em extensão territorial (6.563,849 km² -
IBGE,2022), o acesso aos municípios também requer planejamento como é o caso do
Oiapoque localizado no sul do Amapá, sendo a distância de Macapá à Oiapoque em torno
de 560km, sendo 160 destes em estrada de terra esburacada e enlameada, no período
chuvoso, percurso que dura em média de carro mais de 10 horas.

A partir destes exemplos, o recorte de municípios para realização das Pesquisas


precisa passar pelo critério da viabilidade, considerando que a execução é definidas no
Plano Nacional de Trabalho do CREPOP/CFP, no qual o calendário é padronizado para
todos os Conselhos Regionais, o que desafia a equipe do CREPOP/CRP10 a planejar o
Plano de Trabalho Local, ajustando as ações às condições de acesso aos municípios do
Pará e Amapá, o que em algumas pesquisas se optou por estabelecer recorte de abrangência
nas regiões metropolitanas dos dois estados para garantir o cumprimento do cronograma.

A partir de 2020 no contexto da pandemia da COVID 19, com a introdução


do trabalho remoto, a Rede CREPOP redefiniu nas diretrizes do trabalho a utilização
de ferramentas de tecnologia aplicada à coleta qualitativa de dados, o que necessitou
treinamento para realização de entrevistas individuais e em grupo.

O que poderia ser a solução para muitas situações de acesso as/os Psicólogas/os
no Pará e Amapá, o uso de tecnologia tornou-se uma variável de difícil previsibilidade
quanto ao funcionamento, nos horários e datas de disponibilidades dos profissionais que
agendavam para contribuir com as pesquisas do CREPOP/CRP10, pois as frequentes
interrupções da comunicação, seja parcial ou total na realização de entrevistas individuais
ou em grupo on line ocasionam a necessidade de novos agendamentos, sem a garantia
de que haverá funcionamento da internet na nova data, o que em alguns casos leva o
profissional a desistir de contribuir com a pesquisa.

Fato que se comprova na pesquisa realizada em 2022 pelo IBGE5, sobre o uso da
internet na região Norte:

...a região Norte possui os piores indicadores de uso da internet no Brasil de


acordo com dados da pesquisa TIC Domicílios, do Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), e da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Além das desigualdades regionais fomentadas pelo histórico
de políticas nacionais de industrialização, a região Norte também sofre com suas
grandes e inóspitas distâncias. A falta de infraestrutura, que demanda grandes
5
Disponível em: https://idec.org.br/arquivos/pesquisas-acesso-internet/idec_pesquisa-acesso-internet_acesso internet-regiao-norte.pdf
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

investimentos – algo pouco vantajoso em termos de custo-benefício para o setor


privado - acaba afetando a provisão dos serviços de telecomunicações na região.
A baixa qualidade da conexão, a cobertura limitada e os preços exorbitantes são as
principais características do acesso à internet na região Norte do Brasil. Em partes
da região, sequer há provisão de acesso à internet, e quando há, a velocidade de
conexão é insuficiente e instável, interferindo no gozo de inúmeros direitos pelos
cidadãos nortistas. Quando há internet, a média de preços é demasiadamente mais
alta em comparação ao resto do país (IBGE, 2023, p.3).

Esses fatores têm colocado como prioridade no Plano de Trabalho Local, a definição
da coleta qualitativa no formato presencial, como ainda necessária no planejamento da
jurisdição do CREPOP/CRP10, porém, o custo de alcance aos profissionais na região
amazônica é um fator de debates no Sistema Conselhos no sentido de garantir a equidade
financeira com as demais regiões do país.

Outros componentes para além das questões territoriais, e que atravessam a


realidade amazônica, Teixeira (2013)6, aponta as etnias amazônicas e seus diferentes
paradigmas culturais e as Tensões, violências e conflitos originados da introdução de
algumas formas de propriedade na Amazônia; no entanto, entende-se que esses fatores
merecem aprofundamento, por caracterizarem variáveis na produção de subjetividades
e estarem relacionadas à sofrimento psíquico que é produzido nas relações sociais na
Amazônia, e esse é um foco necessário para produção de conhecimento que deve ser
fomentado aos profissionais de Psicologia que atuam nesses meandros, e ao qual não
nos deteremos neste texto, mas frisamos como um dos mais importantes desafios para a
Psicologia na Amazônia.

Descrever a realidade amazônica, suas especificidades ainda é um desafio, já que


não conseguimos alcançá-la na sua totalidade, por impeditivos históricos de adequações
aos padrões nacionais, no cumprimento de cronogramas e prazos que discordam do tempo
amazônico, e que por vezes remetem realidades apenas urbanas, e mantem distantes
e esquecidos aqueles profissionais que adentram a floresta em políticas públicas com
infraestrutura insuficientes e que impactam em suas práticas profissionais, atuando por
vezes com arranjos e rearranjos para cumprir a função do cargo de Psicóloga/o.

Análise dos relatórios das pesquisas do CREPOP/CRP10/PA-AP no período de 2010


a 2022

O objetivo da análise dos relatórios das pesquisas, foi de identificar a necessidades


de ações pontuais e de articulação, para subsidiar o Plenário do CRP10 no plano de
trabalho anual.

Foram analisados 44 relatórios de 13 (treze) pesquisas, sendo 27 reuniões


com grupos de Psicólogos; 18 reuniões com equipe multiprofissional e Gestores e;
36 entrevistas com Psicólogas(os). Do recorte das questões presentes nos roteiros de
entrevistas individuais e em grupo foram selecionadas questões que eram comuns a todos
os roteiros, listadas a seguir:

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

• Descrição de atividades;
• Autonomia para realizar atividades;
• Participação no planejamento das atividades;
• Interdisciplinaridade;
• Teorias e Conceitos aplicados;
• Principais problemas;
• Recursos técnicos utilizados;
• Funcionamento da rede de atendimento;
• Avaliação da política;
• Implicações éticas;
• Mudanças que realizariam na política pública em que atuam;
• Questões trabalhistas.

Na questão sobre a descrição de atividades, é solicitado à profissional que


descreva suas atividades no local de trabalho nas políticas públicas; foi observado uma
predominância da atuação clínica; sendo que as respostas de atendimento individual, no
decorrer dos relatos levam a identificar ainda a predominância da prática clínica.
Figura 1: Descrição das atividades das(os) profissionais entrevistadas(os).
Atividades
26% 37%

Clínico
Individual
Grupo
Outras
atividades da
instituição

15%
22%
Fonte: Elaborado pela autora.

Na questão sobre autonomia para realizar atividades, é perguntado à profissional


se ela considera que tem autonomia para realizar suas atividades; foi observado nos relatos
que há relações conflituosas com a gestão, que impossibilitam a profissional de executar
suas atividades com autonomia total.
Figura 2: Autonomia para realizar as atividades.

Autonomia
38%

Total
Parcial

62%

Fonte: Elaborado pela autora.


6
CAMPOS, Edval Bernadino (Org.). Fator Amazônico e a Interface com o Sistema Único da Assistência Social. 1ª ed. Belém: ICSA/
UFPA, 2013.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na questão sobre participação no planejamento de atividades, é perguntado


à profissional se ela participa do planejamento e em caso de afirmativa, a questão é
acrescida de se participa ativamente; foi observado que nas respostas que a participação
ativa no planejamento é variável nos relatos; alguns participam ativamente enquanto
outros participam, mas não lhe é permitido intervir, para modificar ou contribuir.

Figura 3: Participação no planejamento das atividades.


Planejamento
17%

SIM
NÃO

83%

Fonte: Elaborado pela autora.

Na questão sobre interdisciplinaridade, é perguntado à profissional se o trabalho


se dá de forma interdisciplinar; foi observado nos relatos que a maioria responde em
relação a participar de equipes interdisciplinar, porém no relato da prática não exercem a
interdisciplinaridade, cada qual faz seu trabalho.

Figura 4: Interdisciplinaridade no trabalho.


Interdisciplinaridade
17%

SIM
NÃO

83%
Fonte: Elaborado pela autora.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na questão sobre teorias e conceitos, é perguntado à profissional quais teorias e


conceitos ela utiliza; foi observado nos relatos que a maioria busca adaptar sua abordagem
teórica na atuação, fazendo leituras e intervenções predominantemente clínicas.

Figura 5: Uso de teorias e conceitos.

Teorias e Conceitos
14%

13%

Abordagens
da Psicologia
Regulamentações
(Leis, Decretos
e Resoluções)
Abordagens +
Regulamentações

73%

Fonte: Elaborado pela autora.

Na questão sobre principais problemas, é perguntado à profissional quais os


principais problemas que ela enfrenta no dia a dia; foi observado uma variabilidade de
problemas em alguns serviços, com predominância para problemas estruturais.

Figura 6: Principais problemas no trabalho.

Principais Problemas

31%
47%

Estruturais
Funcionais
Estruturais e
Funcionais

22%

Fonte: Elaborado pela autora.


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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na questão sobre recursos técnicos, é perguntado à profissional quais os recursos


técnicos que ela utiliza; destaca-se a utilização de anamnese seguida pela utilização de
dinâmicas de grupo.

Figura 7: Uso de recursos técnicos.


Recursos Técnicos
10%
31%
19%

Anaminese
da Psicologia
Dinâmicas de grupo
Testes Psicológicos
Palestras
Outros

13%

27%

Fonte: Elaborado pela autora.

Na questão sobre funcionamento da rede de atendimento, é perguntado à


profissional como se dá o trabalho em rede; foi observado nos relatos que a maioria tem
dificuldade em realizar articulações com a rede por uma série de fatores: demora nos
contatos, ausência de respostas, ausência de vagas, falta de infraestrutura como veículos,
telefone etc.

Figura 8: Funcionamento da rede de atendimento.


Funcionamento da Rede de Atendimento
6%

SIM
NÃO

94%
Fonte: Elaborado pela autora.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na questão sobre avaliação da política pública, é perguntado à profissional


como ela avalia a política pública em questão; foi observado nos relatos que a maioria se
sente ‘frustrado’ em trabalhar nas políticas públicas, e que além das dificuldades diárias,
há a descontinuidades dos serviços com as mudanças constantes de gestão seja direta ou
indireta.
Figura 9: Avaliação da política pública.
Avaliação da Política
5%

Positiva
Negativa

95%
Fonte: Elaborado pela autora.

Na questão sobre implicações éticas, é perguntado à profissional quais as


questões éticas as quais ela tem se deparado no dia a dia do trabalho; foi observado que
a maioria destaca o sigilo e nos relatos identificou-se que o sigilo está relacionado a
falta de infraestrutura; referindo que as salas são inadequadas para escuta. Em relação
ao armazenamento de documentos, referem que como não há local adequado e que os
documentos são manuseados por vários profissionais e acessível a qualquer pessoa.
Figura 10: Implicações éticas no trabalho.

Implicações Éticas
18%

50%

Sigilo
Armazenamento
de documentos
Outros

32%

Fonte: Elaborado pela autora.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Na questão sobre mudanças que realizariam nas políticas públicas, é perguntado


à profissional quais mudanças elas fariam; foi observado nos relatos que priorizariam
mudanças aos problemas emergenciais que variam de política para política.

Figura 11: Mudanças que realizaram nas políticas públicas.

Mudanças que realizariam na Política Pública

27% 30%

Infraestrutura
Recursos Humanos
Recursos Financiros
Gestão

25% 18%

Fonte: Elaborado pela autora.

Em relação a questões trabalhistas, esse item não faz parte do questionário, no


entanto, aparece em todos os relatórios, sendo tabuladas, as questões que mais apareceram;
foi observado que a maioria dos vínculos é via contrato; e que segundo os relatos está
diretamente relacionado com desvio de função e assédio moral.

Figura 12: Questões trabalhistas


Questões Trabalhistas

25%

40%

Vínculos Precários
Desvio de Função
Assédio Moral

35%
Fonte: Elaborado pela autora.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

De acordo com o objetivo do levantamento foram encaminhadas ao Plenário do


CRP-10 as seguintes recomendações:

1. A necessidade de elaborar e intensificar estratégias de aproximação do Conselho


Regional de Psicologia com a formação;

2. A necessidade de elaborar e intensificar estratégias de divulgação das referências


técnicas do CREPOP para os profissionais que atuam nas políticas públicas e;

3. A necessidade de elaborar e intensificar estratégias de aproximação do Conselho


Regional de Psicologia com as instituições de gestão e controle social nas políticas
públicas.

E para fomentar essas questões, o Plenário do CRP10 vem empenhando esforços


em ações que incluem o CREPOP, como por exemplo; garantindo a participação da
Técnica e Conselheira responsável pelo CREPOP nas ações do planejamento anual, para
executar estratégicas em conjunto direcionadas a atender essas problemáticas, tais como:

• Participação do CREPOP na caravana do Projeto “CRP10 ao seu lado”7: com realização


de rodas de conversa, palestras, apresentação do CREPOP; divulgação de pesquisas,
consultas públicas, lançamentos de referências técnicas;

• Participação nas reuniões de entrega de Carteira Identidade Profissional – CIP para


apresentação do CREPOP;

• Realização de aula inaugural nos cursos de Psicologia;

• Participação em eventos dos cursos de Psicologia;

• Acompanhamento das Visitas de Estudantes de Psicologia no CRP10;

• Participação em reuniões com Gestores do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério


Público e Movimentos Sociais;

• Participação em diálogos com as instâncias de controle social;

• Atendimento diário de Psicólogas/os, instituições, pesquisadores, estudantes e sociedade


civil com demandas acerca das políticas públicas e Sistema Conselhos;

• Contribuir na orientação de profissionais em conjunto com a COF.

7
Projeto de interiorização do CRP10, que tem como objetivo geral: Identificar demandas, organizar e articular ações com Psicólogas(os),
gestores (as), Comissões do CRP10, Grupo de Trabalho do CRP10 e colaboradores (as), promovendo seminários, rodas de conversa,
Palestras, diálogo com gestores, articulação com instâncias de controle social, realiza fiscalizações e leva serviços administrativos para
regiões e municípios do Pará e Amapá.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Considerações finais

Portanto, as questões apontadas no presente relato, expõe um pouco da dimensão


que é o desafio cotidiano para construir uma Psicologia da Amazônia, em que pese seu
contexto histórico de atravessamentos de colonização, há também resistências e lutas que
se somam ao enfrentamento das desigualdades em todos seus vieses, e o CRP-10 tem
colocado diariamente a Psicologia na linha de frente por uma profissão comprometida
com a ciência e defesa dos Direitos Humanos.

Apostar no trabalho nas políticas públicas, para a psicologia e, enquanto conselho


de classe, elaborando referências técnicas para a atuação profissional, é defender o Estado
Democrático de Direitos e o acesso, das populações mais vulneráveis, à direitos essenciais
para o exercício da cidadania; é resistir frente às tentativas de desmonte das políticas
públicas; é incentivar a atuação profissional para além do consultório particular ou da
clínica individualista; é incentivar uma formação pautada na prática profissional voltada
para as políticas públicas; é, por fim, no caso do CRP-10, construir um conselho de classe
decididamente comprometido com a defesa da Amazônia e dos seus povos.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Edval Bernadino (Org.). Fator Amazônico e a Interface com o Sistema Único da Assistência Social. 1ª ed. Belém:
ICSA/UFPA, 2013.
CFP. Resolução 14/22 CFP: Fica instituída a Rede CREPOP, espaço de articulação e operacionalização das ações do
CREPOP, composta pelas unidades regionais do CREPOP nos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e pelo CREPOP
do CFP. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2022.
CFP. Banco Social de Serviços. Relatório Final. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2005.
CFP. Metodologia do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas. Públicas/CREPOP. 1ª Edição. Brasília: CFP,
2012.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Atuação do CRP-10 nas ações de fiscalização, orientação e disciplinarização aos


profissionais de Psicologia na Amazônia Paraense e Amapaense

Fernanda Teixeira de Barros Neta1


Daiane Gasparetto da Silva2

Este capítulo, assim como a ideia de todo este livro, surgiu da necessidade de
escrevermos a nossa história (do CRP10), de construirmos memórias das nossas práticas,
de lançar luz sobre as nossas problemáticas e, ao pensar na atuação do Conselho Regional
de Psicologia, faz-se imprescindível abordar sobre as práticas de orientação, fiscalização
e disciplinarização que é o coração do funcionamento dos Conselhos Regionais de
Psicologia.

É preciso voltar um pouco na história da própria emergência do Conselho Federal


de Psicologia. A Lei n° 4.119 de 27 de agosto de 1962 regulamentou a profissão da
psicóloga e do psicólogo; já a Lei nº5.766 de 20 de dezembro de 1971 criou os Conselhos
Federal e Regionais de Psicologia, assim, o Conselho Regional de Psicologia é uma
autarquia de direito público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa
e financeira. A função primordial dos conselhos regionais de psicologia são orientar,
fiscalizar e disciplinar a profissão de psicólogo, zelar pela fiel observância dos princípios
éticos e contribuir para o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão.

Desta forma, para dar cabo à função do CRP, criaram-se as Comissões permanentes
de Orientação e Fiscalização (COF) e de Ética (COE), onde sob a responsabilidade
da primeira estão as atividades de orientação e fiscalização e possui a função,
predominantemente, preventiva, enquanto sob a segunda recai a ação de apreciação e
disciplinarização diante de possíveis faltas éticas.

As ações de orientação e fiscalização baseiam-se, sobretudo, nas normativas


(resoluções, notas técnicas, código de ética) em vigor e nos princípios éticos e técnicos da
profissão. A fiscalização é feita por psicólogas (os) fiscais e por conselheiras, conselheiros e
conselheires, serve para orientar, identificar ou constatar condutas irregulares no exercício
profissional das (dos) psicólogas (os), ocorrendo em qualquer lugar onde se possa supor
atuação da psicologia. Pode ser de rotina ou motivada por denúncia sempre sem aviso
prévio. No CRP-10, no organograma institucional, a COF é composta, atualmente, por
um psicólogo e três psicólogas fiscais concursados, estando duas na sede em Belém e dois
na subsede em Macapá; a psicóloga conselheira presidenta da COF e conta ainda com a
participação de outras, outros e outres conselheiras, conselheiros e conselheires.

Ao pensar um capítulo sobre a atuação da COF e COE queríamos trazer algumas


das especificidades e regionalidades das problemáticas e das potências de fazer orientação
e fiscalização nos territórios paraenses e amapaenses sem perder de vista a interlocução
com o cenário nacional.

A Psicologia, apesar de ser uma ciência e profissão, relativamente nova, completou


em 2023 sessenta e um (61) anos, está em ascensão no país, vide o aumento significativo
1
Psicóloga CRP-10/4364. Psicóloga da SESMA, doutora em psicologia pela UFPA e Conselheira Presidente da COF/CRP-10.
2
Psicóloga CRP-10/4768. Psicóloga da SEAP, doutora em psicologia pela UFPA e Conselheira Presidente da COE/CRP-10.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

na procura pelo curso nos vestibulares, o aumento na abertura de novos cursos, e no


quantitativo de psicólogas, psicólogos e psicólogues inscritos. Dados do Conselho Federal
de Psicologia (CFP) apontam que, atualmente (até a data na qual este capítulo foi escrito),
temos 439.559 psis inscritos, destes, no CRP10 são 7.313 com inscrição ativa (no estado
do Pará são 6.607 e no Amapá 1.238).

Como é sentido esse boom da Psicologia, nos últimos anos, na ação do CRP-10
e da COF e da COE? Qual o impacto, as ressonâncias e os desafios que se impõe nos
territórios do Pará e do Amapá?

Recentemente, em 2022 o CFP lançou uma publicação intitulada Quem faz


a Psicologia Brasileira? Um olhar sobre o presente para construir o futuro contendo o
resultado do CensoPsi, o qual pesquisou e traçou o perfil atual da profissão, apontou
a diversidade presente na Psicologia, trouxe alguns elementos para pensar a formação,
bem como, dados sobre a inserção no mundo do trabalho e as condições para o exercício
profissional.

Não é nossa intenção nos debruçarmos nem apresentarmos todos os dados desta
riquíssima pesquisa – recomendamos, fortemente, a leitura desta – contudo, refletiremos
sobre alguns desses dados nacionais e traremos problematizações para pensar as ações de
orientação e fiscalização no CRP10.

A Psicologia Brasileira e reverberações na Comissão de Orientação e Fiscalização


no CRP-10 – PA/AP

Dados do censo da Psicologia Brasileira, divulgados em 2022, indicam que a


Psicologia permanece como uma ciência e profissão que é feita, majoritariamente, por
pessoas do sexo feminino – 79,2 % são mulheres cis, 20,1% são homens cis, 0,03% se
identificaram como mulheres e homens trans; quando olhamos para o CRP-10, no Pará e
Amapá somos 4.834 mulheres psicólogas em detrimento de 1.935 homens psicólogos.

No que tange às áreas de atuação, a clínica permanece em alta (73,1%) seguida


pela área da saúde (25%), social (20,1%), docência (18,3%), organizacional e do
trabalho (12,1%) e educacional (11,2%). Vale ressaltar que o profissional da psicologia,
normalmente, tem duplo vínculo empregatício, trabalha no consultório particular e em
uma política pública ou na docência, fato atestado pela pesquisa e ratificado nas ações de
orientação e fiscalização.

Outra consideração importante desta pesquisa remonta à formação dos discentes.


A maioria deles advém das instituições de ensino privada (72%) em contraposição às IES
públicas (27%). Tal abertura de novos cursos de psicologia particulares podemos observar
na nossa região. Atualmente, somam-se 30 cursos de Psicologia no Pará e Amapá, sendo
02 cursos em universidade federais (Universidade Federal do Pará e Universidade Federal
do Sul e Sudeste do Pará) e o restante em universidades e centros de ensino da rede
privada. Destes, 3 (três) estão em Macapá e 27 (vinte e dois) distribuídos pelo estado do
Pará, com grande concentração na capital (12 cursos).

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A expansão da Psicologia, a partir da abertura de novos cursos, traz consigo


desafios e demandam outras intervenções e modo de operar a orientação e a fiscalização,
dado o aumento exponencial de futuros profissionais que se registrarão no CRP-10. Um
embate encabeçado nacionalmente refere à presencialidade nos cursos de graduação a
fim de garantir formações de melhor qualidade e menos precarizadas. Já foi mote da
Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP) e lema de campanha do CFP o
slogan de que a formação em Psicologia se faz com presença.

Diante deste cenário, uma das estratégias tomadas pelo CRP-10, por meio da COF
e de outras comissões, é de se aproximar dos discentes numa articulação com as IES, por
meio de participação em encontros, seminários, semana acadêmica e outros, a fim de
estreitar os laços e para que eles compreendam o funcionamento do conselho e que estão
se graduando em uma profissão que é regulamentada, isto é, tal fazer está ancorado em
normativas éticas e técnicas. Esta linha de ação da COF se insere dentro da perspectiva
preventiva, visto que, as maiores demandas de orientação, seja presencial, por e-mail
ou telefone, são aquelas a respeito da elaboração de documentos, sobre a publicidade
profissional e a laicidade.

Os principais desafios impostos ao CRP-10, no âmbito da fiscalização e orientação,


referem à dificuldade de realizar e dar a continuidade necessária destas dado o tamanho
continental do estado do Pará, somado com o difícil acesso e precarização para chegar
aos municípios. Nas visitas de fiscalização que temos feito por meio do projeto CRP-10
Ao Seu Lado, vivenciamos a dificuldade do deslocamento, seja pelo ar, por terra ou pelos
rios. Ficamos condicionados a horários restritos na malha aérea e dos barcos, e a estradas
em condições duvidosas, bem como, a própria distância entre os municípios.

É oneroso fazer fiscalização no Pará, para tanto, o orçamento pensado para a nossa
região não pode ser o mesmo que é destinado para as regiões do Sul, Sudeste e Nordeste do
Brasil, os quais têm condições regionais, ambientais, territoriais e econômicas distintas.
Acrescente-se à dificuldade financeira e territorial a de recursos humanos. Na COF do
Pará são apenas duas psicólogas fiscais para dar conta de fiscalizar tal território descrito
acima, com a participação da presidenta da COF e de outras/os/es conselheiras/os/es.

Como estratégias temos criado e aperfeiçoado o uso das Tecnologias da Informação


e Comunicação (TIC’s) nas fiscalizações, dentro dos casos em que é possível; constituído
um coletivo ampliado de psicólogas/os/es nas mais diversas micro regiões do estado, no
qual o plenário pode votar e deliberar, por meio de resoluções internas, a nomeação de
alguns destes profissionais para realizar fiscalizações; manter a descentralização das/os/
es conselheiras/os/es que compõe o plenário (no XI Plenário cinco deles não residem na
capital do Pará nem do Amapá); e há uma perspectiva de inauguração de uma subsede do
CRP-10 na cidade de Santarém, afim de contemplar a região do Baixo Amazonas.

Outro ponto que aparece nas visitas do projeto CRP-10 Ao Seu Lado e nas
fiscalizações é a precarização das condições de trabalho as quais estão submetidas/os
as/os profissionais, em especial, nos equipamentos das políticas públicas – remuneração
aquém (e cabe ressalvar que a Psicologia é uma das categorias nas quais mais se busca
a formação continuada por meio de especializações e similares); vínculos de trabalhos

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

frágeis (processos seletivos, contratos que não asseguram alguns direitos trabalhistas);
sobrecarga de trabalho (seja pelo pouco de quantitativo de profissional contratado para
exercer a função, seja por poucos equipamentos da política pública); carga horária semanal
de 40 horas.

Em que pese muitas dessas demandas não estarem, diretamente, na alçada dos
conselhos de categoria profissional, pois dizem sobre questões trabalhistas e estruturais, tais
condições de trabalho impactam na qualidade do serviço que é prestado para a população,
bem como, reverberam na saúde da trabalhadora e do trabalhador de psicologia, portanto,
precisa ser considerado.

Comissão de Orientação e Ética do CRP-10: singularidades de seus fazeres no Pará


e Amapá

De acordo com a resolução CFP N.º 0018/2001 (Conselho Federal de Psicologia,


2001), referente ao Regimento Interno do Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região,
a Comissão de Orientação e Ética (COE) desenvolve suas atividades como órgão auxiliar
e consultivo, tendo caráter permanente, buscando zelar pela observância do Código de
Ética Profissional do Psicólogo, e sendo atribuição da gestão de âmbito regional sua
instrução.

Ainda em conformidade com a referida resolução, tal comissão, constituída


em sua presidência por conselheira/o/e efetiva/o/e e no mínimo mais dois membros
indicados pelo Plenário (conselheiras/os/es efetiva/os/es ou suplentes ou psicóloga/os/
gues convidadas/os/es), opera no assessoramento ao Plenário e à Diretoria do CRP 10,
visando desenvolver programas para a qualificação ética do exercício da profissão.

Nesse sentido, ao ser responsável por conduzir os processos disciplinares éticos,


deve responder a consultas, tomando medidas em relação a uma série de situações
concernentes à dimensão do exercício profissional, apropriando-se de legislação interna
e externa, bem como de diretrizes definidas pela autarquia para a área. Suas obrigações
contemplam ainda dirigir-se ao Plenário em casos de submissão de projetos e calendário
de suas ações; proposição de decisões a respeito de medidas em seu campo, efetivando
práticas que possam garantir o cumprimento das decisões.

Em dimensão ampliada, tal comissão, que busca assessorar o Plenário e a Diretoria,


trabalha em articulação com as demais instâncias do CRP-10, em parceria com suas
Secretarias, de modo a garantir as finalidades precípuas do funcionamento institucional,
com postura transparente, informando ao Plenário sobre suas atividades a partir de atas,
boletins informativos ou por meio de relatos em plenárias, sem se omitir em relação
a assuntos de rotina, em conformidade com normas internas e diretrizes definidas pela
gestão.

Visando o rigor no cumprimento de suas tarefas, zela igualmente por conduzir o


coletivo que compõem a comissão a partir de reuniões que possam pautar assuntos de sua
competência, tomando como base as atribuições definidas no Código de Processamento
Disciplinar em todos os seus atos.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

37
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A partir de tais apontamentos, destaca-se que, no contexto do CRP 10, a


COE apresenta-se ativamente na avaliação e elaboração de relatórios e pareceres, na
composição de sessões de julgamento ético, bem como na condução de deliberações que
sejam pertinentes às suas atribuições, oficiando internamente casos que possam tramitar
na esfera da Comissão de Orientação e Fiscalização, o que evidencia a cooperação entre
estas duas comissões permanentes.

Em âmbito regional, ao considerar as premissas do Código de Ética, a COE busca


observar igualmente o diálogo das normativas do Sistema Conselhos de Psicologia com
as singularidades locais, zelando, em conformidade com a Lei N. 5.766/1971 (Conselho
Federal de Psicologia, 1971), pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina
da classe, mas sem deixar de pensar os agentes diretos da profissão nos Estados do Pará
e Amapá. Por tal razão, tem-se como objetivo refletir sobre as especificidades regionais
que possam estar associadas à ocorrência de faltas éticas, o que demanda, por exemplo,
análise dos processos formativos na região, bem como sobre como a categoria profissional
participa dos espaços de orientação geridos pelo Conselho.

Assim, nota-se que, embora a COE tenha suas ações centradas nos aspectos já
descritos, de modo mais abrangente sua atuação também diz respeito aos conteúdos
produzidos em outras esferas de gestão, uma vez que pensar o caráter ético da profissão é
também voltar o foco para problematização de como são tecidos os fazeres da psicologia
nas esferas privadas e públicas, tendo grande relevância as produções técnicas sobre a
multiplicidade de exercício nas políticas públicas, tais como as desenvolvidas pelo Centro
de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), institucionalizado
pela Resolução Nº 14/2022, na condição de ferramenta permanente de gestão no Sistema
Conselhos de Psicologia.

Trata-se, portanto, de pensar o trabalho da COE no CRP-10 de forma articulada


com as demandas atuais da sociedade brasileira, dimensionando os aspectos da região
Norte, uma vez que o cotidiano da profissão conta igualmente com éticas locais, em
diálogo com demandas institucionais que precisam estar em análise regularmente, no
intuito de impedir processos de vulnerabilidade laboral. Por isso a necessidade de a
categoria apropriar-se de fundamentos teóricos e técnicos para melhor conduzir seus
serviços, de modo autônomo e em coletividade, tendo, assim, a COE lugar de relevância
ao frisar a importância da formação de profissionais e a construção de trajetórias éticas,
em uma perspectiva técnica-científica e política, contextualizada sócio-historicamente.

Em consonância com tais pressupostos, presidência e técnicas/os atuantes na


COE do XI Plenário do CRP 10, tiveram, no segundo semestre de 2023, oportunidade
de diálogo com demais gestões regionais do Brasil ao longo do Encontro Nacional de
COE e COF do Sistema Conselhos de Psicologia, possibilitando troca de experiências e
saberes em um espaço planejado para a reflexão da qualidade do exercício profissional, de
forma democrática, em escuta das demandas provenientes de agentes que protagonizam
as esferas de disciplina, orientação e fiscalização da categoria. Tal inserção marca, por
sua vez, a dimensão local e nacional dos debates produzidos na COE atuante no Pará e
Amapá, alimentando suas práticas na atualidade.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

38
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Em programações regionais, a COE igualmente se faz presente discutindo aspectos


de seu fazer em sua área de abrangência, o que, por exemplo, foi viabilizado durante
programação de comemoração ao dia da psicóloga, em agosto de 2023, na sede do CRP
10, tendo a comissão buscado apresentar as principais normativas que dizem respeito ao
ensino de psicologia, como as resoluções relativas à produção de documentos, avaliação
psicológica, psicoterapia, com fundamentação no Código de Ética, visando ainda refletir
sobre os cuidados e responsabilidade durante a formação de profissionais, no intuito de
pensar o que se torna necessário para a não ocorrência de faltas éticas.

Considerações finais

Se o fator amazônico, como conjunto das diversidades regionais que implicam


em singularidades próprias à Amazônia, trazem um conjunto de desafios para a prática
profissional da psicologia, o exercício das atribuições do CRP-10, em suas atividades-
fim, quais seja, a orientação, fiscalização e disciplinarização da categoria, é igualmente
marcado por grandes desafios.

Neste texto, portanto, buscamos apresentar um pouco do acúmulo mais recente


da Comissão de Orientação e Fiscalização e da Comissão de Orientação e Ética, tanto
na busca por soluções e metodologias a fim de enfrentar as dificuldades para garantir a
qualidade técnica e ética do exercício profissional da psicologia em nossa região, quanto
dos aprendizados que adquirimos através da experiência, como condições essenciais
para continuar evoluindo no sentido da melhoria de nossas ações. A partir disse,
reafirmamos a necessidade de se construir um conselho de psicologia que esteja atento
às nossas regionalidades, que compreenda e conheça o seu território e, acima de tudo, as
especificidades do fazer profissional nos estados sob nossa jurisdição.

REFERÊNCIAS
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Quem faz a Psicologia Brasileira? Um olhar sobre o presente para construir o
futuro. Vol. 1, 2022.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Quem faz a Psicologia Brasileira? Um olhar sobre o presente para construir o
futuro. Vol. 2, 2022.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

39
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A Comissão de Psicologia e Relações Raciais do CRP-10 e a construção de uma


profissão antirracista na Amazônia

Max Alves1

O presente texto refere-se à construção do processo de formação e desenvolvimento


da Comissão de Psicologia e Relações Raciais, daqui para frente chamada de COPSIRR
do Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região, Pará e Amapá, CRP-10, e como
esta vem atuando e desenvolvendo suas atividades no âmbito dos dois estados diante
da problemática que é o enfrentamento ao racismo em seus mais diversos aspectos e
atravessamentos, objetivando o desenvolvimento de uma psicologia cada vez mais
antirracista voltada para a defesa intransigente dos “direitos humanos”.

Para tanto, realizaremos uma breve análise histórica dos processos da (não)inserção
da população negra brasileira, até o debruçar-se da psicologia junto às temáticas raciais
enquanto ciência e profissão, desenvolvendo estratégias de compreensão e enfrentamento
do racismo e das desigualdades raciais que o mesmo proporciona.

Desse modo, tomaremos como base a compreensão do preconceito tomada por


Crochík (1996), que trata da concepção de que o mesmo advém de ideias pré-concebidas
às quais o homem elabora como forma de proteção de seu grupo igualitário, àquele ao
qual este identifica como igual ou semelhante, distinguindo-se daquele que considera
diferente.

Crochík (1996) destaca que o preconceito se trata de algo percebido no objeto


pelo sujeito observador, atribuindo-lhe características, qualidades ou valores imersos no
imaginário do sujeito observador, não necessariamente pertencentes ao objeto observado,
gerando um “entendimento distorcido da realidade”, sendo atribuídas ao objeto
características positivas ou negativas, com base nos valores do sujeito observador.

Outro elemento do preconceito trazido por Crochík (1996) “é a generalização das


características supostas de um determinado grupo para todos os indivíduos que pertencem
a ele”. Podemos entender enquanto grupos aqui os coletivos, comunidade, instituições ou
população demográfica à qual o indivíduo pertença.

Da origem do preconceito e da discriminação racial

Podemos trazer como ponto de partida para a análise histórica as ideias Aristotélicas
geocêntricas datadas de aproximadamente 350 A.C., que traziam, a partir da observação
da natureza, o entendimento de que o lugar que o ser humano habita, o planeta Terra,
poderia ser considerado o centro do universo.

Parada (2013) aponta que essas concepções geraram um sentimento de


superioridade na população Eurocêntrica, que, com o passar dos séculos e a expansão dos
impérios locais, passa a ser retransmitido através das gerações. Entende-se, portanto, que
1
Psicólogo (CRP-10/3700), trabalhador do SUAS, coordenador da COPSIRR e vice-presidente do CRPP-10.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

a Terra, sendo o centro do universo, teria como seu próprio centro o continente europeu,
e, portanto, a população (Branca) que ocuparia tal território se veria como merecedora de
superioridade frente aos demais povos e territórios de sua periferia.

Parada (2013, p.11) afirma que durante o final do século XVII, a “Europa
identificava em si mesma valores positivos, como civilização, evolução e liberdade,
enquanto via e representava a África e a Ásia como o seu contrário, o lugar do barbarismo,
do medo e da servidão.”

Desse modo, segundo Almeida (2019), tal ideário filosófico “transformaria


o europeu no ‘homem universal’ e todos os povos e culturas não condizentes com os
sistemas culturais europeus em variações menos evoluídas”.

Passa-se a existir a distinção entre povos civilizados, estes sendo aqueles presentes
dentro do território europeu e considerados a si mesmos como hierarquicamente superiores,
e os demais, sendo aqueles à margem do território europeu, ou em sua periferia, tidos
como inferiores, preconceituados como bárbaros, sendo estes, portanto, considerados
passíveis de serem conquistados, dominados, explorados e subjugados em seus processos
civilizatórios. Entretanto, segundo Munanga (2009, p.23):

A organização política dos Estados africanos já tinha atingido um nível


de aperfeiçoamento muito alto. As monarquias eram constituídas por um
conselho popular, no qual as diferentes camadas sociais eram representadas...
Em contrapartida, o desenvolvimento técnico, incluída a tecnologia de guerra
era menos avançada. Isso pode ser explicado pelas condições ecológicas,
socioeconômicas e históricas da África daquela época, e não biologicamente.

Desse modo, a população branca eurocêntrica começa a desenvolver diversas


justificativas para validar a exploração racial e assim favorecer a expansão territorial,
econômica e política de seus impérios. Utilizando, segundo Parada (2013), desde a
impossibilidade da população africana em garantir militar e culturalmente a soberania de
seu território, havia a necessidade de sua tutela; argumentos científicos que associavam
aspectos fenotípicos e territoriais a problemáticas sociais; até argumentos religiosos que
apoiavam a vida de escravidão como forma de purificar a alma daqueles identificados
como amaldiçoados. Dizia-se, portanto, que:

[...] a cor preta representa uma mancha moral e física, a morte e a corrupção,
enquanto a branca remete à vida e à pureza. Nessa ordem de ideias, a Igreja
Católica fez do preto a representação do pecado e da maldição divina [...] A única
opção de “salvar” esse povo tão corrupto era a escravidão (MUNANGA, 2009,
p.29).

Desse modo, torna-se possível compreender o pensamento de Almeida (2019), o


qual destaca que:

A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele [e


um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade[...] O
racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas
de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. De tal

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

41
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

sorte, todas as outras classificações são apenas modos parciais – e, portanto,


incompletos – de conceber o racismo (ALMEIDA, Silvio. 2019; p.17).

Assim, ao analisarmos a história da população negra, observamos que sua inserção


no Brasil se deu por meio da violência, onde essa população era transportada na condição
de pessoas escravizadas, tratadas como propriedades daqueles que as comercializavam,
sem quaisquer condições humanas de sobrevivência. Isso resultou em muitas mortes
durante os traslados, e, desse modo, temos, por volta do século XVI, no ano de 1530, a
chegada do primeiro navio negreiro no Brasil.

Período Brasil Colônia e Pós Abolição

Pode-se inferir que nestes navios vinham ladrões, devedores, lavradores,


guerreiros, cientistas, artistas, reis, príncipes, familiares e membros de tribos rivais que,
ao chegarem em território brasileiro, deparavam-se com o clima diferenciado de suas
regiões de origem, propensos a doenças. Além disso, eram forçados a trabalhar como
escravos em condições sub-humanas de existência, tendo direito a pouco mais do que
alguns pedaços de tecido e alimento para se manterem vivos. Essas condições persistem
até os dias atuais, refletindo-se em desafios como racismo, violência física e descaso do
poder público e da sociedade. Os indivíduos eram obrigados a conviverem juntos por sua
condição igualitária de serem pessoas escravizadas.

Dessa forma, Albuquerque (2006) apresenta a condição de escravidão do negro


que vinha para a América da seguinte forma:

Significava submeter-se à condição de propriedade e, portanto, passíveis de serem


leiloados, vendidos, comprados, permutados por outras mercadorias, doados e
legados. Significava, sobretudo, ser submetido ao domínio de seus senhores e
trabalhar de sol a sol nas mais diversas ocupações (ALBUQUERQUE, 2006;
p.65).

Paralelamente a essas situações, foram obtidas grandes conquistas graças aos


movimentos de abolição e à resistência individual e coletiva da população negra e de seus
movimentos organizados. Algumas das conquistas que podemos citar foram: 1) A Lei do
Ventre Livre de 1871 - que permitia que filhos de escravos nascessem “livres”; 2) A criação
da Lei Áurea de 1888 - que gerou a abolição da escravidão, libertando diversos negros
e negras do regime de trabalhos forçados e decretando o fim do comércio escravocrata;
3) A conquista do direito à educação no início do século XX, possibilitando que crianças
negras e/ou pardas livres tivessem acesso à escola; 4) A Constituição Federal de 1988 que,
em seus artigos, traz a promoção do bem comum entre as raças no art. 3º, parágrafo IV, e
no art. 5º, parágrafo XLII, o tratamento como crime inafiançável às práticas de racismo,
mesmo que ainda existam dificuldades em sua aplicação; 5) O Estatuto da Igualdade
Racial, através da Lei 12.288/2010, que visa fortificar o que trata a Constituição Federal
sobre a temática, bem como promover o respeito e igualdade de direitos entre as raças,
garantindo o princípio da equidade racial, definir os crimes de racismo e suas penalidades;
6) A Lei 12.711/12, que estabelece a política de cotas, garantindo a participação e inserção
cada vez maior de negros e negras nos ensinos de graduação e em outros espaços da
sociedade.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

42
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Porém, como foi citado anteriormente, mesmo diante dessas conquistas, a


população negra (pretos e pardos), considerada hoje como maioria no país e a maior
população negra do mundo fora do território africano, ainda esbarra no problema da
discriminação racial implícita ou explícita, a qual muitas vezes é institucionalizada pelo
Estado.

Segundo Albuquerque (2006), no início do século XIX, a população escrava


já superava metade de toda a população brasileira, estabelecendo assim um sistema
econômico, político e social no país baseado numa hierarquização racial estabelecida
através de desigualdades sociais, culturais, econômicas, políticas, e etc., que passam a
estruturar a sociedade em questão, onde a população negra mantinha suas tradições de
forma marginalizada. Neste sentido, o autor em questão conclui que “a escravidão foi
montada para a exploração econômica, ou de classe, mas ao mesmo tempo ela criou a
opressão racial” (2006; p.68).

O número proporcional superior de negros e pardos dentro da população


brasileira começou a ser alterado a partir do final do século XIX devido às políticas
governamentais de incentivo da imigração europeia com a finalidade de embranquecer a
população brasileira. Desse modo, o Estado incentivava a imigração de alemães, italianos,
portugueses, japoneses, entre outros grupos étnicos.

É sobre este contexto que as ideias eugênicas, já difundidas na Europa por Francis
Galton, começam a ganhar adeptos entre a elite intelectual brasileira, acreditando que a
raça da população do país ou a mistura dela fosse o principal fator para o baixo crescimento
econômico do país, como demonstra o autor Cláudio Bertolli Filho que afirma o seguinte:
A elite intelectual acreditava que as endemias e a baixa produtividade da
população se deviam a qualidade da “raça brasileira”. Apoiados nos conceitos
de eugenia, dizia-se que a mistura de brancos, negros e índios criava um “tipo
nacional” condenado a preguiça e à debilidade física e mental [...] que pouco
poderia ser feito pelos doentes e pela saúde pública nacional a não ser esperar
o desaparecimento dos “híbridos raciais” e dos grupos humanos considerados
“biologicamente inferiores” entre os quais se incluíam os negros e os indígenas
(Bertolli Filho, 1999; p.23).

Até então, segundo Parada (2013), a Europa se posicionava de forma tão superior
que a ciência na época passou a justificar as desigualdades sociais e a necessidade da
escravidão através de quatro principais argumentos que consistiam: 1) na existência de
raças diferentes dentro da espécie humana; 2) a raça branca superior à raça negra; 3) que
existia uma relação entre raça, características físicas, valores comportamentais e índoles,
estando ambas em constante modificação; 4) e que, por fim, uma sociedade poderia atingir
um estágio superior de evolução ou regressão de acordo com a mistura dessas mesmas
raças, o que validava a supremacia de uma raça sobre outra, argumentando cientificamente
a necessidade de se embranquecer a população segundo os moldes e concepções europeus.

Dessa maneira, Parada (2013) complementa que, tendo como objetivo a conquista
dos padrões europeus vistos como ideais e entendendo que muitos escravos trabalhavam

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

nas ruas das cidades, estes passavam a ser cada vez mais observados pelos olhares do
Estado, sendo assim constantemente vigiados pela polícia.

A legislação foi farta em alvarás, cartas régias, código criminal, leis municipais
(posturas) e provinciais estabelecendo os limites de liberdade dos escravos
urbanos, definindo os espaços onde podiam circular, exercer seus ofícios,
divertir-se, jogar capoeira, frequentar tabernas e fazer batuques (Albuquerque,
2006; p.86).

Proibia-se também que os mesmos negros vigiados andassem pela rua cantando,
mostrando um esforço grandioso do estado e do restante das classes dominantes para
extinguir qualquer tipo de propagação dos costumes e da participação negra dentro da
sociedade, limitando seu tempo e criminalizando-os por andar à noite, limitando sua
intelectualidade com trabalhos penosos, castrando sua religiosidade e impossibilitando-
os de exercer seus rituais em ambientes abertos de convívio (ruas, praças, etc). Com isso,
minava-se cada vez mais a prática e o resgate de uma cultura negro-africana em território
brasileiro. Tais leis eram constantemente contrariadas como uma forma de resistência
dessa população marginalizada.

Sendo assim, analisando as diversas pressões populares (manifestações de


movimentos abolicionistas de um lado e revoltas, fugas e rebeliões de outro lado pela
população escrava), bem como as novas necessidades do mercado mundial, as quais
serão comentadas mais à frente, é que a princesa regente resolve sancionar a lei de 13 de
maio de 1888, que proíbe definitivamente a escravidão no Brasil, não havendo nenhuma
indenização aos senhores de escravos, porém não existindo também nenhuma reparação
aos ex-escravos.
Para os ex-escravos a liberdade significava acesso a terra, direito de escolher
livremente onde trabalhar, de circular pelas cidades sem precisar de autorização
dos senhores ou de ser importunado pela polícia, de cultuar deuses africanos
ou venerar à sua maneira os santos católicos, de não serem mais tratados como
cativos e, sobretudo, direito de cidadania (Albuquerque, 2006; p.194).

Assim, o objetivo da sociedade pré-abolicionista, apresentado por Parada


(2013), que antes era o de igualar a sociedade aos padrões europeus, é modificado após
a abolição da escravatura, passando a ser, como estabelece Albuquerque (2006), o de
adaptar a sociedade pós-abolição à estrutura escravocrata já existente. Neste sentido,
viu-se rapidamente que a garantia da liberdade não significava garantia de acesso à
sociedade, muito menos igualdade de oportunidades, segundo Albuquerque (2006;
p.205): “a preocupação estava em garantir que brancos e negros continuariam sendo não
só diferentes, mas desiguais”. No entanto, com o excedente da produção pós-revolução
industrial e a ausência de controle das mercadorias por parte do estado, foi necessário
buscar um novo mercado consumidor.

Sobre esse aspecto, Albuquerque (2006) aponta que Princesa Isabel, com a
abolição da escravidão, não objetivava a garantia de liberdade e a dignidade social dos
negros e negras escravizados pela elite nacional, mas sim a possibilidade de obter a
formação de um novo mercado de consumo. Isso faz com que possamos concluir que
os negros(as) passam a assumir um novo papel social na forma agora de “trabalhador
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

livre”, obrigado a comercializar sua força de trabalho para garantir sua existência, porém
nas mesmas condições sociais até aqui vivenciadas. Segundo Albuquerque (2006), era
comum que negros(as) livres voltassem aos antigos engenhos nas mesmas condições de
trabalho anteriores, ou ocupando os precários cortiços dos grandes centros urbanos. O
mesmo autor comenta que “foi se estabelecendo no Brasil a ideia de raça como critério
fundamental e perverso de classificação social, fazendo das características físicas e
culturais das pessoas justificativas para a desigualdade” (Albuquerque, 2006, p.209).

Com a chegada das políticas de higienização, o objetivo dos governos era limpar
os grandes centros das cidades, sendo necessário afastar a população pobre e negra,
chamada também de ‘classes perigosas’ [grifo do autor; Albuquerque, 2006; p.214], de
maneira demográfica e socialmente para não terem acesso ao centro das decisões político-
administrativas locais e nacionais. Assim, Albuquerque (2006) aponta que centenas de
cortiços são fechados e milhares são expulsos, acreditando-se serem estes os principais
locais responsáveis pela proliferação da peste bubônica e da febre amarela, dando espaço
agora para novas avenidas, parques e outros. A camada pobre e negra da sociedade foi
afastada do centro das cidades para regiões cada vez mais periféricas, com ainda menos
estruturas de atenção social por parte do estado.

Esses acontecimentos geraram, por parte do restante da população, um imaginário


imerso de pré-conceitos sobre uma população empurrada à margem das políticas de
inclusão do estado, sendo reservado aos mais pobres, em sua maioria negros, o direito
de procurarem terrenos ainda mais à margem das políticas sociais e traçarem as mais
diversas formas de resistências por parte do movimento negro, com a perspectiva de
buscar a igualdade e o respeito racial que até os dias atuais ainda é sonhado.

Contribuições do Sistema Conselhos para a luta antirracista

O pensamento psicológico sobre as relações raciais inicialmente alinhava-


se com as teorias eugenistas durante o fim da escravidão, justificando a fixidez e falta
de flexibilidade entre as classes. A sociedade entendia que havia humanos superiores
e inferiores, e pesquisas começaram a ser realizadas com referência ao médico Nina
Rodrigues, que estabeleceu ligações entre características étnico-raciais e problemas
sociais, utilizando a psicometria como metodologia.

No início do século XX, a psicologia começou a explorar estudos culturais e étnico-


raciais, descrevendo a ocorrência do preconceito racial. Após a Segunda Guerra Mundial,
o Brasil tornou-se referência nesses estudos, despertando o interesse da UNESCO sobre
como essas relações se davam no país. Virginia Leoni Bicudo desmistificou a ideia de que
no Brasil não havia preconceito.

A partir dos anos 90, a psicologia concentrou-se ainda mais em estudos relacionados
aos direitos humanos. O Conselho Federal de Psicologia criou sua Comissão Nacional de
Direitos Humanos em 1997, favorecendo a criação de comissões nos conselhos regionais.
Os estudos relacionados à branquitude também se desenvolveram nos anos 90, visando

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

compreender o papel das pessoas brancas nas relações raciais na formação da sociedade
brasileira.

Devido à compreensão do sofrimento causado pelo racismo à saúde mental, a


Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP lançou em 2001 a campanha nacional
de direitos humanos “O Preconceito Social Humilha, a Humilhação Social Faz Sofrer”.
Isso culminou na Resolução 018/2002, um documento norteador para as comissões de
relações raciais dos Conselhos Regionais de Psicologia. Em 2017, o CREPOP elaborou
o livro “Relações Raciais: Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os)”. Em
2020, a segunda campanha da Comissão Nacional de Direitos Humanos sobre relações
raciais abordou o tema “Racismo é coisa da minha Cabeça ou da sua?”.

Os debates gerados por essas campanhas e eventos com os movimentos negros


levaram à identificação da necessidade de estratégias mais permanentes de atuação junto
às temáticas sociais. Foi reconhecida a importância de refletir sobre o racismo dentro
das próprias entidades da psicologia, levando à implementação de políticas afirmativas,
inclusão de pessoas negras em pleitos e a criação de Grupos de Trabalhos e Comissões
dedicados à temática. Isso demonstrou que as relações raciais não podem ser apenas um
tópico isolado, mas sim um debate que permeia todas as áreas de atuação da psicologia,
desde a clínica até a organizacional.

Da formação e atuação da Comissão de Psicologia e Relações Raciais do CRP-10

O Grupo de Trabalho (GT) inicialmente criado para discutir temáticas raciais e


auxiliar na construção de resoluções e debates no CRP-10, assim como na elaboração
do Caderno de Referências Técnicas do CREPOP sobre Relações Raciais, evoluiu para
a COPSIRR, com sua base estruturada sob a coordenação de Willivane Melo. Durante
sua gestão de 2011 a 2017, a COPSIRR articulou-se com o CFP e outras entidades,
como ABRAPSO e ANPSINEP, sendo uma ferramenta de “aquilombamento” para
psicólogas(os) negras(os) no Pará e Amapá.

Sob a liderança de Willivane Melo, a comissão deixou um legado repassado


posteriormente para Robenilson Barreto, Antonino Alves e Max Alves, enfatizando a
importância da psicologia no enfrentamento das temáticas raciais. A intervenção do CRP-
10 junto à categoria visou favorecer a formação de psicólogas(os) comprometidas(os) com
uma escuta sensível aos atravessamentos sociais e a valorização do ser humano enquanto
sujeito. O GT e, posteriormente, a comissão, promoveram uma psicologia comprometida
com a transformação social.

A COPSIRR entende que o racismo no Brasil se manifesta de diversas formas,


como o racismo cultural, religioso e individual subjetivo, mas todos têm como base o
racismo estrutural. Desde a chegada do primeiro navio negreiro em 1530 até a abolição
da escravidão em 1888, o Brasil viveu 380 anos de escravidão. No entanto, de 1888 até
2023, foram apenas 135 anos de libertação, durante os quais a população negra continua
lutando pelo direito de viver com dignidade.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

46
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A comissão destaca a importância de discutir as temáticas raciais em diversas


áreas da psicologia, incluindo a social, clínica, jurídica, organizacional e de trânsito,
reconhecendo que a psicologia lida com pessoas atravessadas por diversas questões, como
raciais, de gênero, diversidade sexual, capacitismo e territorialidade. A escuta apurada e
o letramento em diversas temáticas são fundamentais para profissionais lidarem com o
sofrimento mental sem perpetuar o racismo.

A COPSIRR realiza orientações para profissionais e estudantes de psicologia


sobre a temática, refletindo sobre a formação e materiais trabalhados nas universidades.
A comissão destaca a importância de não invisibilizar os materiais produzidos sobre as
temáticas raciais e de refletir sobre os motivos desses invisibilizamentos, considerando os
interesses das instituições envolvidas.

As políticas afirmativas implementadas pela comissão, como a inclusão de cotas


nos concursos do CRP-10, têm sido fundamentais. Atualmente, a COPSIRR busca seguir
as tradições deixadas por seus membros predecessores, trabalhando junto ao CRP-
10, ao Sistema Conselhos e em parceria com entidades de dentro e fora da psicologia
para construir uma ciência e profissão antirracista com compromisso social e defesa
intransigente dos direitos humanos.

Reconhecendo que o racismo está presente nas práticas, entidades e discursos,


a COPSIRR destaca a importância de mudar o próprio olhar e pensar como as questões
raciais atravessam saberes e experiências. A psicologia, enquanto compromisso social,
deve aliar-se aos direitos humanos e às lutas étnico-políticas, reconhecendo o racismo
como fator influenciador na construção do sujeito negro e não negro, e promovendo uma
escuta ativa e empoderadora.

REFERÊNCIAS
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Palmares; Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006.
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2006.
BARAVIEIRA, Verônica. A questão racial na legislação Brasileira. UNILEGIS E UFMS; Brasilia-DF; 2005
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de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003.
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Subjetividade e Exclusão. São Paulo. Ed. Casa do Psicólogo; Brasília – DF; Conselho Federal de Psicologia; 2004.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

“Bora fazer Psicologia na Amazônia?”: Problematizando


e reconstruindo a Psicologia nas Amazônias a partir
da experiência do Projeto CRP-10 Ao Seu Lado

Eloísa Amorim de Barros1


Fernanda Teixeira de Barros Neta

O questionamento que dá nome a este capítulo surgiu da inquietação das duas


psicólogas, paraenses, autoras deste escrito e conselheiras do XI Plenário do Conselho
Regional de Psicologia – Pará e Amapá, a partir de suas vivências pessoais, da experiência
com o projeto “CRP -10 Ao Seu Lado”, aliando-se as atuações, pesquisas e leituras
prévias2

Por muitas vezes ouvimos sobre a Amazônia de uma perspectiva idílica, universal,
fetichizada e, sobretudo, sob um viés colonizador. As Amazônias3 estão em destaque no
cenário internacional e nacional, especialmente no que se refere à emergência climática,
as discussões sobre o ponto do não retorno e os efeitos destas mundialmente. Os olhares
estão voltados para cá, a reunião da 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre mudança do clima (COP30) será realizada em Belém em 2025.
No entanto, cabe questionarmos quais as continuidades e descontinuidades históricas que
esses olhares direcionam para o território amazônico. Quem são os seres não humanos e
humanos que o habitam?

Sem precisar se estender em um exercício histórico muito aprofundado, temos


práticas e políticas direcionadas a este território de exploração, de espoliação, de
esquecimento, de uma noção de progresso e desenvolvimento que desqualifica outros
modos de existência e invisibiliza povos anteriores que já faziam da Amazônia a sua
morada e seu sentido de vida.

Fazendo uma costura com o que foi dito por Eliane Brum no seu livro Banzeiro
Òkòtó, a Amazônia é mulher. A Amazônia como um corpo feminino que é violentada,
rasgada, esburacada, um corpo corroído pelo projeto colonial de extermínio. Porque a
violência ambiental atravessa e reflete nos corpos. Nos idos da ditadura civil-militar (1964-
1985) vivida pelo Brasil o lema era Amazônia: uma terra sem homens para homens sem-
terra. E, assim, foram desumanizando e desconsiderando os povos originários, indígenas,
comunidades tradicionais, quilombolas e ribeirinhos existentes. Eram lidos como sub
ou infra-humanos, bem como, chegaram sem pedir licença, abrindo estradas, violando,
rasgando o bioma em nome do progresso.

Como nos faz pensar o ativista pelos direitos dos povos originários, ambientalista,
filósofo e poeta indígena Aílton Krenak: “A maioria das pessoas pensa que só se vive em
terra firme e não imagina que tem uma parte da humanidade que encontra nas águas a
completude da sua existência, de sua cultura, de sua economia e experiência de pertencer”
(Krenak, 2022, p. 17-18).
1
Psicóloga CRP-10/4240. Psicóloga clínica, docente de psicologia no IESPES e conselheira do CRP-10.
2
Este capítulo é baseado em um resumo apresentado no VII Encontro Regional Norte da ABRAPSO realizado em Santarém – Pará,
em abril de 2023.
3
Neste texto, utilizaremos o termo Amazônias, no plural, a partir do entendimento de um território composto por diversidades de
vidas, culturas e modos de habitar múltiplos, o que impacta (ou deveria impactar) diretamente na forma como a Psicologia é construída
e praticada nessas regiões.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Nesta mesma lógica temos ainda muitos projetos desenvolvimentistas para a região
de mineração, de construção de hidrelétricas, de agronegócio, de produção de alumínio,
de garimpo ilegal que espoliam o território, o ecossistema e os sujeitos que neles vivem.
Paralelamente, tem crescido o movimento de olhar a potência criativa, cultural, de modos
de vida e de existência ancestral, e os diversos movimentos de resistência presentes nas
Amazônias.

E o que tudo tem isso tem a ver, ou pode ter a ver, com a Psicologia? Como
(re)inventar a prática da psicologia assegurando o compromisso ético-político e a
preocupação com as demandas do povo amazônida diante do racismo ambiental estrutural
direcionado para esse território? Estas foram algumas das perguntas disparadoras que
nos mobilizaram, e que não pretendemos esgotá-las nem apresentar soluções rápidas
e assépticas. São problematizações importantes para que a Psicologia se debruce e se
movimente para caminhos de reconstruções e conexões com as realidades amazônicas.

CRP-10 Ao Seu Lado: a Psicologia entre caminhos de rios e terras

Nosso encontro com tamanhas problemáticas e inquietações vieram da nossa


experiência com projeto “CRP-10 Ao Seu Lado”. Tendo em vista um estado de dimensões
continentais como o Pará (144 municípios) e o estado do Amapá (16 municípios), o CRP-
10 Ao Seu Lado foi um projeto instituído pelo VIII Plenário como uma estratégia de
descentralização das atividades de orientação e fiscalização do Conselho Regional de
Psicologia – PA/AP que, até então, estavam concentrados na sede em Belém e na seção
em Macapá. O projeto também visou uma aproximação com a categoria profissional a
fim de conhecer a multiplicidade de fazeres da Psicologia nos mais diversos territórios da
Amazônia, suas dificuldades, problemáticas e potências.

No triênio da vigência do X Plenário tal projeto foi muito impactado pela


pandemia da COVID-19 e precisou, por medidas sanitárias de isolamento, ser paralisado,
momentaneamente. Diante desta conjuntura foi necessário criar e aprimorar outras
estratégias de orientação e fiscalização para a categoria. O XI Plenário o retomou e o
reconfigurou. Neste novo formato tivemos a participação do Centro de Referências
Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), da Coordenação Técnica
(COTEC), da Coordenação Administrativa e Financeira, das e dos psicólogas e psicólogos
fiscais e das/dos/des conselheiras/conselheiros/conselheires.

As atividades do CRP-10 Ao Seu Lado foram e são: realizar reuniões de orientação


técnica sobre temáticas, resoluções específicas que a categoria demande; reuniões
de escuta às psicólogas, aos psicólogos e psicólogues acerca da relação do conselho
profissional com a categoria e melhorias administrativas, técnicas e éticas que este pode
oferecer, e mapear as condições de trabalho da psicologia; fazer uma ação de incidência
política – normalmente, agendar reunião com alguma vereadora, algum vereador e pautar
questões importantes para o aprimoramento da Psicologia como o debate das 30 horas,
a implementação da Lei Federal Nº 14.615/23 nos municípios; ações de fiscalização nas
mais diversas esferas de atuação profissional; procedimentos administrativos e financeiros

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

– renegociação, nova inscrição, entrega de CIP, cadastro para nova CIP, entre outros;
visitas nas políticas públicas e realização de pesquisa para o CREPOP.

Em 2023 foram realizadas 4 (quatro) CRP-10 Ao Seu Lado, contemplando 8 (oito)


municípios diretamente. Estivemos em Santarém, Itaituba, Terra Santa, Tucuruí, Marabá,
Parauapebas, Canaã dos Carajás e Altamira. Assim, este texto objetivou refletir sobre
como esse projeto possibilitou que as conselheiras (os)/(es) entrassem em contato com
as questões emergentes do fazer da Psicologia no território das Amazônias, mas também
colocou em destaque as inúmeras dificuldades de fazer uma Psicologia aliada, de fato,
com as especificidades dos territórios a partir de parâmetros únicos de pensar a prática
profissional.

Será que as referências e parâmetros técnicos e éticos do Conselho Federal


de Psicologia cabem na realidade amazônica? Às Amazônias, historicamente, foram
direcionadas políticas de exploração socioambientais e de desconsideração com os povos
indígenas, população quilombola e ribeirinhos em nome do capital e dos grandes projetos
econômicos. Projetos estes como madeireiras, garimpo ilegal, exploração de minérios,
abertura de estradas, desvio de cursos de rios e contaminação deles, agronegócios,
construção de hidroelétricas que afetam o modo de vida e de territorialidades e impactando
na produção de subjetividades.

Diante disto, entendemos, a partir dos aportes epistemológicos como de Martin-


Baró, da psicologia sócio-histórica e das recentes discussões de decolonialidade,
urgente pensar em uma psicologia historicizada que se comprometa com a gênese dos
acontecimentos, as raízes das situações sociais patogênicas e compreenda os fenômenos
psíquicos em suas determinações históricas em detrimento de uma obsessão pela
intimidade individual.

Em sua obra “Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais” (2017),


Martín-Baró postula o desafio à Psicologia Social na América Latina, quando ressalta
que nas metodologias das formações em Psicologia leva estudantes (e posteriormente
profissionais) da teoria à realidade, dos modelos aos problemas e não o inverso. O
autor afirma que a Psicologia latino-americana esteve centrada, na teoria e na prática,
em problemas minoritários e quando se ocupou de problemas sociais importantes, fez
isso a partir de uma perspectiva que abarcava os interesses das minorias dominantes.
Assim, postula que não se pode mais aplicar a ciência Psicológica de forma mecânica
no momento de enfrentar as realidades, especialmente, dos povos latino-americanos ou,
como enfatiza este texto, dos povos amazônicos.

Martín-Baró nos coloca o desafio de pensarmos uma Psicologia atrelada a


realidade das populações e entendendo as realidades amazônicas como essa pluralidade
de vivências, como se pode articular uma Psicologia que compreenda verdadeiramente os
diversos modos de vidas em territórios amazônicos e, por que não pensar e construir uma
ou muitas Psicologias para as Amazônias?

Neste momento, campos da psicologia, até então, ensinadas como opostos –


clínica e social, ou se é um, ou se é outro– precisam estar articulados. Como se fosse

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

possível reduzir tais discussões somente a campos de atuação. Conforme nos aponta
Portela (2008): “Os limites até então existentes entre as abordagens clínica e social se
dissolveram, e o profissional deve articular o local e o global em um diálogo que dê conta
do sujeito pós-moderno” (Portela, 2008, p. 137).

É preciso refletir criticamente sobre o sofrimento psíquico, atualmente, e como o


homem constrói suas relações de sentido. Problematizar como as condições econômicas,
sociais, histórico e culturais produzem subjetividades e modos de subjetivação, produzindo
sintomas, que é a expressão mais crua do sofrimento.

A partir da implementação das políticas públicas, sobretudo de saúde e


assistência nos níveis de baixa e média complexidade por meio do SUS e dos SUAS,
houve a interiorização da Psicologia para os municípios de pequeno e médio porte e,
consequentemente, novas questões surgiram desde como acessar os municípios (há
territórios nos quais é preciso usar três modais para acessá-los), violências, precarização
das políticas públicas e do profissional de psicologia e as repercussões na compreensão
do sofrimento e na produção de subjetividades.

O fazer da psicologia, no encontro com as Amazônias, está diante de problemáticas


como: a mudança do curso do rio inundou um cemitério ancestral, e a população não pode
mais velar pelos seus mortos. Como escutar esse sofrimento? Como pensar em estratégias
coletivas de elaboração do luto? Será se as teorias vigentes dão conta de pensar nessa
outra cosmologia?

A estrada de ferro. construída para o transporte e deslocamento dos minérios, e seu


barulho ensurdecedor, passa no meio de uma terra indígena. O município que abriga um
dos maiores garimpos ilegais em seu território é rota de tráfico de drogas, de prostituição
infanto-juvenil e tem apenas um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e um psicólogo
que, obviamente, não dá conta de atender a demanda crescente de adoecimento mental.

Dificuldade de acesso do cidadão à política pública, pois precisa se deslocar


por barcos, rabetas, ônibus em condições precarizadas, sem vigilância, sem segurança,
passando por estrada de atoleiros. O Brasil, os diversos entes federativos, o próprio
Estado do Pará, a população da capital enxerga essa Amazônia? Portanto, o projeto “CRP-
10 ao Seu Lado” surgiu com a perspectiva do encontro e da integração, para pensar as
demandas existentes nas regiões, visando um trabalho coletivo e de aproximações reais
com a categoria. Porém, quais as possibilidades de pensarmos, de fato, nas várias formas
de ser e existir nos territórios paraenses e amapaenses, se não estivermos com os pés nos
territórios? Ainda: como ter os pés no território, se as condições de deslocamentos não
são consideradas por quem planeja as políticas públicas?

Diante de tantos questionamentos que atravessam este ensaio, a reflexão sobre


como a Psicologia pode, de fato, acompanhar as maiorias populares, como nos propõe
Martín-Baró, não se esgota, mas inquieta. Entende-se que não há como pensar uma
Psicologia para e nas Amazônias, sem entender o que são as Amazônias e seus múltiplos
modos de vida. Não há como fazer uma Psicologia nas Amazônias, se não dermos o

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

devido espaço para autoras, autores amazônidas nas matrizes curriculares das nossas
formações. Dessa forma, a inquietação de duas psicólogas amazônidas surge também
como uma provocação, inclusive interna, para entendermos que essa Psicologia não está
dando conta de nossas próprias existências.

E nesse mote trazer a importância do Conselho Regional de Psicologia, bem como


tensionar o Conselho Federal de Psicologia, estar atento a tais problematizações, por
entender que este é um espaço de construção da Psicologia, enquanto ciência e profissão,
fundamental para a categoria. Não se trata, somente, de formular resoluções para a prática
cotidiana, mas sobretudo, pensar qual o projeto de Psicologia que queremos.

Para dar um fechamento, a essa inesgotável e pulsante inquietação, pensemos


com Patto (2009) a fim de realizar análise de implicação da psicologia enquanto ciência e
profissão.
Que ciência é esta que reduz uma complexa questão social a problemas psíquicos?
Que ciência é essa que desconsidera relações de poder numa sociedade dividida,
desigual, fundada na exploração e na opressão? Que ciência é esta que não
têm condições teóricas de pensar o seu próprio pensamento do ponto de vista
epistemológico e ético-político? Que psicologia é essa que desconsidera as
especificidades do tempo e do lugar em que foi inventada? Que ciência é essa
que forma profissionais que não questionam a competência que lhes é atribuída
para dizer sobre as pessoas, que não se perguntam sobre a origem das ideias
que carregam? São psicólogos coisificados. Máquinas de gestão de riscos sociais,
função de cães de guarda no sistema (PATTO, 2009, p. 408).

REFERÊNCIAS
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KRENAK, A. Futuro Ancestral. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2022.
MARTÍN-BARÓ, I. Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais. Pertópolis, RJ:Vozes, 2017.
PATTO, M. H. S. De gestores e cães de guarda: sobre psicologia e violência. Temas em Psicologia. Vol. 17, 2009. p. 405-415.
PORTELA, M. A. A crise da psicologia clínica no mundo contemporâneo. Estudos em Psicologia, Campinas, v. 25, p. 131-
140, 2008.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

PARTE II: SABERES E FAZERES EM


PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A Violência Sexual por entre os Braços de Rios:


Problematizações sobre Crianças e Adolescentes na Amazônia.

Cyntia Santos Rolim1


Valber Luiz Farias Sampaio2
Flavia Cristina Silveira Lemos3
Rafaele Habib Souza Aquime4

Introdução

Costuma-se estudar a infância e adolescência através de livros clássicos como


de Phillip Ariès (1981) que nos apresenta muito bem a concepção de que crianças e
adolescentes são frutos e práticas e de contextos emergentes enquanto construção histórica.
Tal autor apresenta em seu texto uma realidade europeia, marcada pelos atravessamentos
singulares de regiões e contextos distintos ao território brasileiro, marcado por inúmeros
processos de violências estruturais diante das relações de poder. Foi estranhando tais
perspectivas que a Psicologia no Brasil, também, foi marcada pela luta em seus 61 anos
regulamentadas neste território.

Nesse tempo de estruturação da categoria no Brasil, a Constituição Federal de


1988 encontra-se como um marco histórico para a consolidação de políticas públicas, mas
também para o processo de garantia de direitos e da ampliação dos espaços de atuação
da Psicologia enquanto ciência e profissão. O Sistema Único de Saúde – SUS; o Sistema
Único de Assistência Social – SUAS; a Política Nacional de Educação; dentre outras.
A Psicologia passa a tomar outros contornos em espaços novos e diversos, na mesma
proporção em que se reconstrói diante de suas práticas e desafios.

E como todos os processos e acontecimentos, latências diversas são apresentadas


enquanto desafios cotidianos. Nesse texto, apresenta-se a violência sexual como eixo
inquietante dos diálogos a seguir. Para tal, pensar a violência no contemporâneo se
configura enquanto uma grave forma de violação dos direitos fundamentais do ser humano
– em seu direito à vida, sua liberdade, dignidade etc. Nesse interim, tais violências podem
ser expressas em qualquer nicho de classe social, cultural, econômica, dentre outras.
Mas, identifica-se que a ausência de agentes garantistas favorecem aos processos de
vulnerabilização de indivíduos e famílias em contextos específicos, sobretudo catalisados
pelas faces da desigualdade social.

Nesse sentido, identificam-se que cada vez mais episódios de violências são
recorrentes nas relações sociais no contemporâneo, sobretudo contra crianças e adolescentes
tomando proporções ligadas à própria naturalização, o que pode produzir um outro efeito:
diminuição da atenção frente aos casos (Rolim, 2023). Destarte, no momento em que a
violência participa corriqueiramente das relações, consequentemente tais relações – que
já são desiguais – se intensificam em seus níveis de desigualdade submergindo à papeis
sociais e levando tais sujeitos ao lugar de sofrimento psíquico (Silva, 2017).

1
Psicóloga CRP-10/3735. Mestre em psicologia pela UFPA e é representante do CRP 10 no Conselho Estadual de Criança e
Adolescente de Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA.
2
Psicóloga CRP-10/3455. Doutor em psicologia pela UFPA, docente de psicologia e ex-conselheiro do CRP-10.
3
Psicóloga CRP-10/3404. Doutora em história cultural pela UNESP, professora da graduação em psicologia da UFPA e do PPGP.
4
Psicóloga CRP-10/4263. Doutora em psicologia pela UFPA e professora da UFRA.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Compreende-se aqui a violência enquanto um acontecimento complexo que se


exibe em contextos sociais de através de diversas vias (Michaud, 1989). Dentre essas
diversas expressões da violência, uma delas têm marcado o contexto amazônico: a violência
sexual. Segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS (2018), esta é vista como uma
das mais graves formas de violência, apresentando-se diante de sérios problemas de saúde
pública, presente em diversos territórios, independente do seu nível de desenvolvimento.

Anteriormente a violência sexual era vista por duas concepções: o abuso sexual e a
exploração sexual5. Respectivamente, o primeiro tipo é identificado através de contatos de
cunho sexuais entre crianças ou adolescente e um(a) adulto(a) ou até mesmo adolescente
de maior idade, onde essa criança é utilizada como objeto de prazer para outra pessoa
satisfazer seus desejos sexuais (Antoni e Koller, 2002); enquanto no segundo tipo, está
relacionado às práticas que envolvem ganhos/pagamentos/retribuições pelos atos sexuais
(Lowenkron, 2010).

No que tangem os dados, segundo o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”


(2022), estima-se que apenas 10% dos casos são registrados/notificados. Ou seja, a real
dimensão ainda está longe de sua contabilização, a nível de subnotificações e ocultas.

Ainda segundo o documento, registra-se outro fator significante: mais de 4


meninas, com idade inferior a 13 anos são estupradas por hora no país; assim, em relação
ao sexo, 85,5% das vítimas são meninas, se comparados aos meninos que também fazem
parte desse panorama, só que em menor recorrência. Segundo o Sistema de Informação
de Agravo de Notificação (SINAN), entre os anos de 2011 a 2017 foram identificados
cerca de 58.037 casos de violência sexual contra crianças e 83.068 contra adolescentes no
Brasil.

O arquipélago do Marajó é tido como um dos mais marcados pela desigualdade


social (Reymão e Gomes, 2019), assim como um dos mais atingidos pelas violências
diversas, sobretudo de cunho sexual. Essa região fora estruturada por processos históricos-
sociais marcados pela colonização e pelo racismo, que inserem os corpos – especialmente
de mulheres – enquanto aspecto simbólico de “atrativos” (Faria, Coelho e Moreno, 2013).

Tais incidências foram alvos de grande mobilização nos últimos anos na região
norte do Brasil, sobretudo com falas polêmicas e sensacionalistas por parte de uma ex-
ministra no ano de 2019, quando se referia à implantação do denominado “Abrace o
Marajó”, tendo esta, alegado que “[...] meninas lá são exploradas por não terem calcinhas,
elas não usam calcinhas porque são pobres”6, mostrando o real desconhecimento territorial
e descompromisso com o caráter crítico de sociedade. Dessa forma, recorre-se ao conceito
de interseccionalidade enquanto lente analisadora diante das problematizações propostas.
Segundo Akotirene (2019), tal conceito propõe que as reflexões sejam demarcadas por
um sistema de opressão que seguem avizinhados, enquanto classe, raça, gênero, território
e espaço.

5
No ano de 2000 a partir da criação do denominado “Protocolo de Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas”, reverberou-
se no território brasileiro reflexões acerca da temática que desaguou na lei de nº 13.344 de 2016, onde apresenta-se um novo panorama
desta violência, caracterizando uma nova terminologia: o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
6
Matéria veiculada em: < Damares e o Marajó: cronologia da relação da ex-ministra e o arquipélago com piores IDH do Brasil | Pará
| G1 (globo.com) >, com acesso em 10 de novembro de 2023.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Afinal, quem são as crianças e adolescentes atingidos/as por esse tipo de violência?
Como pensar intervenções levando em consideração o fator amazônico, como conceito
que demarca a singularidade de nossas populações? Qual o papel da Psicologia diante
dessas latências? Tais questionamentos foram fios condutores para tais problematizações.

Breves Marcos Históricos e Legais das Crianças e Adolescentes no Brasil

Considerando o século XV europeu, crianças e adolescentes não possuíam uma


perspectiva favorável diante de seu desenvolvimento. Tais sujeitos eram tidos enquanto
produtivos na medida em proporções menores. Assim como os adultos, seres em tenra
idade estariam diante da responsabilidade de ofícios na medida em que cresciam (Ariès,
1981; Sampaio, 2017).

No que tange ao território brasileiro de 1500, a partir da invasão territorial ocorrida


à época, identificam-se inúmeros processos de violências em direção às comunidades
residentes na denominada Terra de Santa Cruz. A busca pela “terra prometida” favoreceu
para que homens, mulheres e crianças pudessem arriscar suas vidas ao mar de mil caminhos
em embarcações lusitanas no século XVI, tendo estas crianças acesso aos navios apenas
nas condições de grumetes e/ou pajens7, assim como órfãs do Rei enviados ao Brasil,
objetivando o casamento com súditos da coroa (Ramos, 2018).

Scarano (2018) apresenta a concepção de que muitas crianças foram apagadas


diante de suas histórias, sobretudo considerando o nascimento de pessoas brancas com
demais etnias no Brasil. Para estas, eram criadas denominações que apresentassem noções
pejorativas como cabras, mestiços, mulatos, pardos etc., tal como o grupo de crianças
e adolescentes de descendência africana que fossem encaminhadas ao Brasil à época.
Estes/as eram designados/as à afazeres poucos, denominados de crioulos. Assim, crianças
e adolescentes da época eram tidas como hostis (Mauad, 2018), tendo sua segregação
efetivada por diversas vias.

Marcados/as pelo domínio de seus corpos e existências, heranças colonizadoras


e coronelistas foram produzindo a desigualdade na sua forma mais intensa. Entre 1500 e
1822 o abandono de crianças e adolescentes passam a ser práticas constantes no território
brasileiro, tendo uma nova denominação para as vítimas desse processo: as crianças e
adolescentes enjeitadas ou expostas, tendo a filantropia como principal modo de cuidado
no Brasil. Tais espaços tiveram suas origens nas Santas Casas de Misericórdia de Portugal
desaguando no território brasileiro, através de uma roda giratória que servia de acesso às
crianças abandonadas ao âmbito institucional (Sampaio, 2017).

No ano de 1924, foi empossado o jurista José Cândido de Albuquerque Mello


Mattos, na condição de primeiro juiz de menores do Brasil e da América Latina, tendo
anos mais tarde, lançado o decreto 17.943-A de 12 de outubro de 1927, possuindo 231
artigos, surgia o Código de Menores, apresentando um caráter médico-higienista como
7
Respectivamente, o primeiro apresenta-se como um tipo de aprendiz a bordo, menor de idade, responsável por limpar e ajuda os
marinheiros nos diferentes trabalhos. Já o segundo, é considerado como um jovem serviçal, utilizado por príncipes ou guerreiros para
acompanhá-los em diversas atividades. Atualmente a nomenclatura é utilizada em algumas partes do mundo como criança que leva
as alianças ao casamento. Mas também fora utilizado o termo para crianças espiãs em exercícios nos terrenos de conflitos e guerras
(Rolim, 2023).
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

lógica operacional referente às crianças e adolescentes considerados irregulares no Brasil


(Sampaio, 2017).

A nível internacional, destaca-se também o ano de 1924, através da Declaração


de Genebra que reconhece o direcionamento da dignidade humana para crianças, sendo
dever de adultos. E, posteriormente, a formação da Liga das Nações adota a Declaração
de Genebra sobre os Direitos da Criança, o que acarretará no ano de 1946 na criação do
Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas – United Nations Internacional
Children’s Emergency Fund (UNICEF). Dois anos posteriores, em 1948, fora aprovada
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, responsável pela nova concepção num
cenário global acerca das crianças e adolescentes (Rolim, 2023).

Nesse interim, 1988 fora um ano fundamental para a consolidação desta


perspectiva diante do processo de redemocratização no Brasil. Neste momento, com a
Constituição Federal de 1988, abriram-se precedentes na reflexão acerca das demandas
sociais, sobretudo no que tange às crianças e adolescentes e explicitando em seu artigo
227 a lógica garantista e de direitos a tais sujeitos em desenvolvimento.
Rolim (2023) ressalta que em 1989, na Convenção dos Direitos da Criança e do
Adolescente, ocorrida em assembleia geral na ONU, o Brasil se torna um país comprometido
internacionalmente como a garantia de direitos das crianças e adolescentes, na medida em
que se posiciona favorável na organização de uma agenda de ações em torno do tema. Não
obstante, nesse momento define-se uma liminar de “categoria jurídica” e de “violações de
direitos”, sendo afirmada a “exploração sexual” de crianças, enquanto constituinte de tais
transgressões (Delantes & Constantino, 2018).

Já em 1990, fora criado o Estatuto da Criança e do/a Adolescente (ECA), que


dispõe sobre a perspectiva de proteção integral à tal público tendo qualidade de sujeitos
de direitos, enquanto cidadãos em situação peculiar de desenvolvimento, em condições
de liberdade e dignidade, com direitos especiais a ser garantidos pela família, Estado
e por toda sociedade, conforme determina o Art. 4, em consonância com o Art. 227 da
Constituição Federal.

A partir do ECA instituiu-se também o Conselho Nacional dos Direitos da Criança


e do Adolescente – CONANDA (lei nº 8.242/1991), órgão paritário e deliberativo, com
atuação em âmbito nacional, tendo compromisso pelo fomento das políticas de promoção,
proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, tendo como sustentação
representações a nível estaduais e municipais, assim com fora criado o Conselho Tutelar em
todo Brasil. A partir deste momento, as políticas públicas que passam a serem organizadas
no território brasileiro adequando tais preceitos ético-jurídicos ligadas ao ECA com cerne
de estratégias intervencionistas e intersetoriais nas ações e agendas políticas. Porém,
questiona-se: como essas ações são pensadas a nível de Amazônia? Há o reconhecimento
territorial no processo de criação organização de critérios de financiamento às atividades?

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59
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Violências por entre os rios da Amazônia: problematizações sobre a violência sexual


de crianças e adolescentes

Como apresentado anteriormente, o processo de violência contra crianças e


adolescentes sempre existiu ao longo da história do Brasil, sobretudo com a invasão
ocorrida à época da colonização. No contemporâneo, ainda, espanta-nos os registros altos
– mesmo que irreais em sua dimensão, afinal há de se reconhecer que, por mais que
atualmente, encontremo-nos em um momento favorável das estruturações das políticas
públicas no território brasileiro, precisamos refletir sobre os processos de alcances de tais
intervenções.

Vale ressaltar que há canais de denúncias criados no Brasil, por diversas esferas.
E estes têm sido uma das principais vias de acesso às denúncias desde sua criação em
2003, sob a responsabilidade da Secretaria Especial de Direitos Humanos, alterando
para o número 100, e assumindo a identificação de “Disque denúncia”, “Disque Direitos
Humanos” ou “disque 100” (Rolim, 2023). Mas, de fato, há acessibilidade por toda a
população? Sabemos que a desigualdade social produz como um de seus efeitos a
inacessibilidade aos dispositivos diversos, o que deságua em uma dimensão desconhecida
acerca de tais problemáticas.

Nesse sentido, para auxiliar tais inquietações, apresentamos o relatório da


Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do Estado do Pará. O documento fora instituído
para investigar e avaliar a dimensão da gravidade de violações sexuais no ano de 2008,
tendo a Assembleia Legislativa do Estado do Pará (ALEPA) como casa que conduzia suas
atividades. No documento, apresentam-se alguns elementos que carecem ser refletidos
enquanto desafios cotidianos para atuação na região amazônica.

Ora, a história de estruturação do arquipélago Marajoara não se difere da história


brasileira, sobretudo quando apresenta as invasões e constantes extermínios de sujeitos
na região, realizando a necessidade de resistências para a reorganização territorial e
socioeconômica posteriormente na segunda metade do século XX (Schaan, Martins e
Portal, 2010), sob a égide de um discurso desenvolvimentista e de promessa de melhoria
de vida.

Grande parte da região Amazônica carrega problemáticas sociais históricas,


permeada por uma violência estrutural diante de determinantes como a negação dos
direitos, produzindo vidas precarizadas. Situação esta que compõe a complexidade de
tal região, inserindo, por vezes, práticas de venda de caráter sazonal, inserindo crianças e
adolescentes para exercer atividades potencialmente arriscadas em meio a comercialização
de produtos, alimentos diversos (como frutas típicas do território), assim como práticas
de cunhos sexuais que passam a fazer parte da realidade de muitos sujeitos em tenra idade
nestas regiões (Rolim, 2023).

Atualmente, muito se fala acerca do tráfico de pessoas para fins sexuais. Porém,
galgados em um caráter histórico, identifica-se que tais práticas se iniciaram diante da
própria história do Brasil, sobretudo na condição dos pactos da branquitude da população
brasileira (Bento, 2022). Um dos principais pontos desta reflexão é retomar a história como

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

ponto fundante de resgate de nossas ancestralidades e através desta, evitar particularidades


apresentadas na região Amazônica.

Um dos quesitos ao enfrentamento às práticas de violência sexual estão em torno


das regiões fronteiriças por meio de embarcações, como o Oiapoque – no estado do Amapá
(ALEPA, 2010). Nestas regiões, apresentam-se práticas ligadas ao crime organizado com
mecanismos de tráfico de pessoas para fins sexuais, tendo ligações diretas com países
como Guiana Francesa, Suriname, Venezuela, Colômbia Peru e Bolívia8.

Não obstante, através de rabetas e pequenas canoas (geralmente, em situações


insalubres), crianças e adolescentes (em sua grande maioria, mulheres) seguem ao
alcance de balsas e embarcações através dos rios marajoaras. Diante dessa realidade,
várias meninas se colocam em risco diante da exploração sexual para com passageiros
destas balsas e embarcações. O “espelho” – anteriormente usado simbolicamente com os
povos indígenas – volta à cena, na medida em que são utilizados para sinalizar interesses
em práticas de violência sexual nesse contexto.

Através de denúncias à CPI da Pedofilia, identificam-se que vários espaços


compõem pactos de violência sexual. Em alguns territórios, a orla é identificada como este
espaço para a exploração sexual, tendo por vezes espaços próprios para relações sexuais
– como quartos – próximos aos bares. Como uma rede, muitas dessas práticas ocorrem
através de financiamentos através de aliciamentos, que, com o advento da internet, está
relacionado diretamente com o processo de pornografia.

Outro aspecto significante para atuação diante da temática diz respeito à segurança
pública, segundo o relatório da CPI (ALEPA, 2010), quando o documento evidencia
ausência de ações efetivas, sobretudo em espaços demarcados e conhecidos pela prática
litigiosa. Para além, fora identificada que a Segurança Nacional também apresentou
fragilidades em suas estratégias de enfrentamento à problemáticas na região, segundo o
relatório da CPI.

Ainda diante da ineficácia apontada pelo relatório da CPI (ALEPA, 2010), os


conselhos tutelares também fizeram parte dessa lista, colocando a estrutura desses espaços
como fundamento que impediria a atuação de forma mais efetiva. Vale ressaltar que
apresenta-se, também, práticas como destruição de provas, desaparecimento de vítimas
e testemunhas, a execração pública de vítimas que denunciam os crimes e suas famílias,
formação de milícias, dentre outros. Nesse sentido, ressalta-se o caráter coronelista na
estruturação desses territórios, o que favorece a prevalência do medo como aspecto de
subjetivação, envolvendo comunidades e trabalhadores/as.

Não obstante, identifica-se a intensificação nos últimos anos das constantes


ameaças, agressões e assassinatos contra pessoas que defendem os direitos humanos,
tal como diante de laços precarizados de empregabilidade existentes nestes territórios,
o que acaba por atingir membros de famílias e o próprio sujeito. Tais questões resvalam
num nível baixo de responsabilização de autores/as de violência sexual contra crianças e

8
Há também registros de tráfico de pessoas para fins sexuais a nível interestadual. São cerca de 76 rotas, sendo estas 31 de caráter
internacional.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

adolescentes ou na não finalização dos casos (ALEPA, 2010). Dessa forma, pensar acerca
dessas complexidades faz-se necessário e urgente.

Uma perspectiva interseccional sobre a violência sexual de crianças e adolescentes:


desafios contemporâneos à Psicologia

Como mote das desigualdades sociais, identifica-se que as mulheres/meninas


estão na centralidade dos dados de violência. Nesse sentido, o processo de dominação dos
corpos femininos está enraizado na estrutura social, de modo geral, em variadas formas
de opressão e estas se fundam no caráter sexual (Levy e Mendonça, 2018).

Andrade (2018) afirma que é desta forma que elementos direcionando aos papéis de
gênero, que são produzidos numa dicotomia e hierarquização entre o feminino-masculino.
Destarte, há uma produção da naturalização dessa desigualdade, que representa, por
muitas vezes, a impunidade do agressor, e silenciando as vítimas.

Tais análises se dão inicialmente diante de estudos sociológicos – e posteriormente


diante dos estudos feministas, permitindo analisar desigualdades e a sobreposição de
opressões, violências e discriminações existentes nas relações em sociedade (Collins &
Bilge, 2021), mas também auxiliando no processo de descolonização de perspectivas
hegemônicas de produção de conhecimento (Akotirene, 2022). Tais perspectivas estão
alinhadas com a valorização de elementos e processos individuais com marcadores diante
de aspectos políticos, sociais, econômicos, dentre outros.

No que tange a violência sexual contra crianças e adolescentes, resgatam-se os


dados que desaguam na grande maioria de vítimas estariam diante do sexo feminino,
independentemente da idade, tal como em realidades que se apresentam diante da maioria
de pessoas negras e de vulnerabilidade econômica. Assim, utiliza-se o termo cultura do
estupro para dar alegoria à um aspecto estrutural do patriarcado que atinge mulheres em
suas diversas formas de violência.

Se questionarmos quando se inicia um processo de violência, recordemos de


Silvia Lane (2006) quando nos auxilia a pensar em como a sociedade é dotada de normas
institucionalizadas historicamente e são estas que garantem a manutenção do grupo
social. “Ou seja, desde o momento em que as mulheres eram vendidas por seus pais
para serventia/matrimônio, estas eram colocadas para o “estupro”. Desta forma, não há
romantismo na criação da instituição família à época” (Rolim, 2023, p. 85).

Nesse ínterim, ainda identifica-se o silenciamento dos estupros cometidos com


mulheres, sobretudo negras (Harris, 1990), apresentando esse avizinhamento entre
sexismo e racismo. Ou seja, tanto os corpos negros, quando os corpos indígenas estavam
“imanentemente poluídos pelo pecado sexual” (Smith, 2014, p. 198).

É através de uma cultura que se estrutura o machismo, o patriarcado e o sexismo


como lógicas subjetivas diante de uma sociedade. dessa forma, carece-nos pensar
sobretudo políticas públicas que podem ser encarceradoras, tanto quanto a naturalização

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

dessas relações desiguais, o que insere meninas e mulheres em égides de violências


diversas, cotidianamente.

Nesse sentido, o saber psicológico é estruturado no Brasil a partir de um campo


de disputas e lutas em frentes que se fundamentam na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (CFP, 2005). Assim, a Psicologia está perpetrada em lugares como cerne
dos garantismos e acessos – como no enfrentamento às negligências, discriminações,
crueldade, explorações, sobretudo no que tange às violências sexuais, dentre outros. Nesse
sentido, cabe às/aos profissionais de Psicologia criar rupturas ao que se institui atualmente
diante da realidade que exibe as desigualdades como face às latências sociais, incluindo
o machismo estrutural com o qual faz das meninas e mulheres vítimas cotidianamente
de inúmeros crimes, silenciando e deslegitimando suas vozes. Mas essas criações de
estratégias são a nível coletivo, articulado – intersetorialmente – e envolve, sobretudo a
formação, a organização desses espaços, mas também no controle social.

Acredita-se nos movimentos pós-coloniais como contribuintes para a superação


de uma Psicologia baseada em lógicas individualizantes. São teorias que valorizam o
território que incidirão para lançar luz aos debates sobre temas significativos como tal,
visto que a construção de retóricas sob a égide da neutralidade científica incidirá sobre os
corpos femininos.

À Psicologia, cabe ocupar-se da escuta, para além do narrado - uma leitura


atenta às particularidades das relações, dos territórios, de questões que envolvem fatores
únicos. Nesse sentido, a escuta não é da dor em si, mas do que a cerceia e realiza sua
manutenção, faz retornar, medos que compõem este lugar, laços já rompidos ou que
precisam ser realinhados, o olhar ao corpo-território. É preciso esse tal estranhamento de
não naturalizar. Aí reside nosso compromisso ético e político do saber Psicológico diante
dos territórios e existências. Diante das singularidades há muito mais do que pensamos
ou vemos. A arte consiste nisso, não é mesmo?! Na arte se compreende que carecemos ir
além do que é necessário, como afirma Zélia Amador de Deus (2018).

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Lumen Juris, 2018.
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e psicologia: concepções, práticas e reflexões críticas. Rio de Raneiro: Conselho Federal de Psicologia, 2002. p 85-91.
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Instituída para apurar a prática de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes no estado do Pará e especialmente
na região do Marajó nos últimos cinco anos. ALEPA: ALEPA, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05/10/88. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002.
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Técnicas, 2017.
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ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: Presidência da República, 2017.
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modos de enfrentamento. São Paulo: Hucitec, 2018.
FARIA, Nalu; COELHO, Sonia; MORENO, Tica. Prostituição: uma abordagem Feminista. Sempre viva Organização
Feminista - SOF: São Paulo, 2013.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Acidente de motor de barco com Escalpelamento: o fazer da Psicologia

Ana Carolina Araújo de Almeida Lins1


Jureuda Duarte Guerra
Crissia Roberta Pontes Cruz2

O acidente de motor de barco com escalpelamento é uma tragédia que tem


marcado os rios da Amazônia e sua população. Ele ocorre quando os cabelos se prendem
acidentalmente ao eixo giratório descoberto do motor e, por força mecânica, são
arrancados juntamente com as áreas adjacentes ao couro cabeludo. Com isso, pode haver
extração total ou parcial do couro cabeludo, podendo ainda atingir áreas do rosto (face,
sobrancelha, pálpebras, orelhas etc.), além da região cervical.

As principais pessoas afetadas por este acidente são mulheres e crianças. Tal fato
se deve tanto ao comprimento longo dos cabelos (usados geralmente soltos), como às
funções usualmente por elas desempenhadas no barco, como extrair o acúmulo de água
no fundo da embarcação.

Para melhor compreender a ocorrência desse acidente faz-se necessário tecer


considerações acerca do contexto e do território no qual ele ocorre. Desta forma, é
importante situar o leitor no fato de este ser um acidente tipicamente amazônico. Portanto,
a compreensão da complexidade deste território é ponto fundamental a ser abordado.

A floresta amazônica abrange toda a região norte do Brasil, parte do estado do


Maranhão e parte do estado de Mato Grosso, além de outros países do norte da América
do Sul. É importante entender que este vasto território comporta “amazônias”, pois há
realidades geográficas e culturais distintas em diferentes partes dessa grande região.

Este território apresenta extensa bacia hidrográfica, de modo que os rios compõem,
de forma significativa, não apenas o espaço geográfico, mas a vida da população,
em especial daquelas que vivem em ilhas ou municípios mais afastados das regiões
metropolitanas, cujos rios não representam apenas uma via de deslocamento, mas parte
ativa de seu cotidiano.

Oliveira (2016) considera que em nenhuma outra região do país o rio assume tanta
importância para a vida humana como na Amazônia, sendo por esta razão que milhares
de ribeirinhos fazem uso de pequenas embarcações, uma vez que o transporte fluvial
é essencial à sobrevivência da maioria dessas comunidades, configurando-se como um
instrumento de integração social, econômica e ambiental.

Sobre estas embarcações, Guimarães & Bichara (2012) analisam que elas são
feitas de modo artesanal e que desde a década de 1970 passaram a ser incrementadas
com um motor rotativo favorecendo maior agilidade nos deslocamentos e substituindo
embarcações à remo ou à vela. Contudo, esse motor “possui um eixo rotacional e gera
uma camada de vácuo ao seu redor, puxando qualquer coisa para dentro do seu campo de
rotação” (Guimarães & Bichara, 2012, p. 5).
1
Psicóloga CRP-10/1677. Psicóloga da FSCMP e Mestra em Psicologia (UFPA).
2
Psicóloga CRP-10/4578. Psicóloga da FSCMP e Mestra e doutoranda em Psicologia (UFPA).
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

O acidente com escalpelamento tem seus principais registros nos estados do Pará
e do Amapá, uma vez que a construção desse tipo de embarcação é típica, principalmente,
nesses estados. Os dados de ocorrência do acidente apresentam algumas inconsistências,
o que denuncia a dificuldade que enfrentamos na região para lidar com um problema tão,
infelizmente, tipicamente nosso.

Apesar dessas dificuldades de pesquisas solidificadas e de dados confiáveis (além


da subnotificação), por meio da unificação de dados da Marinha do Brasil e de números
obtidos pelos serviços de assistência, há uma estimativa que, até o ano de 2022, tenham
ocorrido cerca de 478 acidentes no estado do Pará. Segundo a Capitania dos Portos da
Amazônia Oriental (CPAOR) ocorreram 173 acidentes entre os anos de 2006 a 2022.
Porém, dados de um levantamento realizado pela equipe do Espaço Acolher registram
apenas 125 vítimas atendidas na instituição neste mesmo período.

Em relação a inconsistência dos registros de casos e da subnotificação das


ocorrências de acidentes com escalpelamento, possível resquício de um processo colonial
bastante importante na região, ressalta-se a recente criação da Ficha de Notificação
Estadual de Acidentes com Escalpelamento, implementada pela Resolução nº62 da
Comissão Intergestores Bipartite do Estado do Pará - CIB/PA, de junho de 2022, como
um avanço nas estratégias de enfrentamento aos acidentes de motor com escalpelamento.

Outro aspecto relevante a se destacar a respeito dos dados de ocorrência do


acidente é o vasto território onde ele geralmente ocorre, nos municípios, nas localidades
relativamente afastadas dos centros urbanos e onde os barcos são a principal forma de
transporte, constituindo-se como cenário para o acidente, implicando em grave impacto
para a vítima, para sua família, mas também para a comunidade.
Figura 11: Mudanças que realizaram nas políticas públicas.
Número de Acidentes de Escalpelamento por Região de Integração

O Pará enquanto um
estado continental parte da
Amazônia, que tem a maior
bacia hidrográfica do mundo,
possui sua distribuição
de acidentes com maior
ocorrência no arquipélago
do Marajó, conforme
mostram as imagens abaixo
(Figuras 1 e 2).
Regiões de Integração
Ocorrência de acidentes
0-1
1-2
2-3
3-11
11-53
53-111

Fonte: Elaborado pelas autoras.


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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Abaixo, o gráfico (Figura 2) demonstra a prevalência da ocorrência de acidentes


de barco com escalpelamento no arquipélago do Marajó, com 54% do total de casos. Este
gráfico e mapa foram construídos nesse contexto de dificuldade de controle de dados e a
partir de levantamento de autoras desse texto, membras atuantes dessa rede de assistência
e enfrentamento ao acidente com escalpelamento, em conjunto com outros componentes
da equipe multiprofissional do Espaço Acolher.
Figura 2: Acidente de escalpelamento por região de integração no Pará.
Acidentes por Região de Integração
•Carajás 0%
•Baixo Amazonas 9% •Guajará 1%
•Xingú 5% •Guamá 1%

•Tapajós 1%
•São Domingos
do Capim 1%
•Caeté 1%

Fonte: Elaborado pelas autoras.


Diante dos dados apresentados é possível observar o desafio dessa assistência,
que esbarra inclusive em dificuldades geográficas para garantir o atendimento inicial e a
continuidade do tratamento das vítimas, um acompanhamento que segue por anos e que
muda toda a logística de vida dessas mulheres, dessas crianças e de suas famílias.

Nesse complexo território amazônico, oferecer assistência adequada nesses casos


demanda também um esforço logístico de poder acessar rapidamente localidades de difícil
ingresso, além das intervenções especializadas que o escalpelamento demanda. Nesse
sentido, a assistência se organiza por meio de um fluxo estadual, cuja estruturação formal
teve início em 2008, com a criação do Programa de Atendimento Integral às Vítimas de
Escalpelamento (PAIVES).

Sobre este programa, Cruz e Lins (2021), por meio de análise do documento
inicial do PAIVES, consideram que ele foi criado diante do desafio do estado em criar
uma política pública para erradicação do acidente e também estratégias estruturadas de
assistência às vítimas. Desta forma, o PAIVES tinha como objetivos:

Ofertar cobertura assistencial integral, interdisciplinar e humanizada às vítimas


de escalpelamento e familiares ingressos na Santa Casa; aprimorar e desenvolver
tecnologias de atendimento e insumos voltados para as necessidades das(os)
pacientes; construção, manutenção e alimentação de banco de dados como
referência técnica e de pesquisa na área e capacitação continuada de pessoal
técnico especializado para o atendimento de referência (Cruz & Lins, 2021, p.
250).
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

No que tange ao enfrentamento ao acidente, foi constituída, também no ano de


2008, a Comissão Estadual de Erradicação dos Acidentes de Motor com Escalpelamento
(CEEAE), a qual depois passou a se chamar Comissão Estadual de Enfrentamento aos
Acidentes de Motor com Escalpelamento (CEEAE) (Cruz e Lins, 2021). A Psicologia
está presente tanto no PAIVES, na assistência direta às pessoas que sofreram o acidente,
como se faz presente ainda na CEEAE, por meio de representação do Conselho Regional
de Psicologia da 10ª Região (CRP-10) em sua composição.

Antes de adentrar no fazer da Psicologia nessas duas frentes de atuação,


retomaremos uma explanação breve sobre a assistência integral às pessoas afetadas pelo
acidente com escalpelamento. O primeiro ponto a se abordar é sobre o fluxo dessa rede
(Figura 3).
Figura 3: Fluxo de Atendimento da Vítima de Acidente com Escalpelamento na RAS.

Acidente

Atendimento nas Unidades de


Atendimento na Unidade Urgência/Emergência (Hospitais
de Saúde local Regionais, Hospital Metropolitano,
Pronto Socorros de Belém)

Estabilização Clínica

FSCMPA

Clínica Cirúsgica feminina


Pediatria (até 12 anos) (a partir de 13 anos)

Alta Hospitalar

Espaço Aclher

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Diante do ocorrido, o primeiro passo necessário a ser tomado é a estabilização


clínica da paciente, pois o acidente implica em graves danos físicos que colocam em
risco a vida. Desta forma, para o início do fluxo do cuidado de urgência e emergência,
a paciente deve ser encaminhada para uma unidade de saúde adjacente a ocorrência
do acidente, prioritariamente ao Hospital Regional mais próximo (Hospital Regional
de Breves, Hospital Regional do Tapajós ou Hospital Regional do Baixo Amazonas),

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

ou encaminhada diretamente para o Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência


(HMUE) ou Hospital Pronto Socorro Municipal Mário Pinotti (HPSM), ambos localizados
na região metropolitana de Belém.

Após estabilização clínica, a paciente é encaminhada para a Fundação Santa Casa


de Misericórdia do Pará (FSCMPA), na qual, a depender de sua idade, será direcionada
para internação hospitalar na clínica pediátrica ou na clínica de cirurgia adulto feminina.
Após as primeiras intervenções cirúrgicas, durante a assistência hospitalar inicial, a
paciente já de alta será encaminhada para o Espaço Acolher, para que possa se manter em
Belém e seguir no tratamento de forma longitudinal.

O Espaço Acolher é um serviço vinculado a Fundação Santa Casa de Misericórdia


do Pará (FSCMPA), criado a partir do estabelecido do Programa de Atenção Integral às
Vítimas de Escalpelamento (PAIVES), no ano de 2008, em que ficou definido a Santa Casa
como a porta de entrada para o acidente, após passar pela rede de urgência e emergência.

A partir deste ano, inaugura-se uma casa fora do âmbito hospitalar, mas vinculada
totalmente à Santa Casa do Pará, com um corpo de funcionários próprios, fornecendo
insumos, materiais e alimentação balanceada pelo serviço de Nutrição da Fundação,
primando por atender as demandas que ocorreram.

Porém, para possuir características de uma casa, seus cuidados fornecidos precisam ser
pensados considerando as peculiaridades específicas dessa população atendida, com
memórias afetivas vinculadas à culinária regional, por exemplo. A partir do fornecimento
de uma alimentação diferenciada a esta mulher ou criança, pode-se auxiliar na adaptação
ao longo tratamento destinado às pessoas afetadas pelo acidente com escalpelamento,
em que o retorno às suas cidades de origem geralmente se dá entre 90 a 120 dias, após a
primeira alta hospitalar.

Assim, sabemos que ao oferecer uma cozinha regionalizada a essas pessoas, torna-
se possível minimizar muito o impacto causado pelo longo tratamento na capital, com a
‘simples’ possibilidade de se fritar um peixe (mesmo o de escamas). Sim, no Acolher
é respeitado o saber popular. Então para acompanhar um bom açaí, se pode fritar um
charque e um peixe, tudo isso visando à qualidade da assistência prestada, favorecendo a
vivência e a adesão ao tratamento.

No Espaço Acolher a equipe é reduzida. Existe uma psicóloga, uma Assistente


Social (que também é a coordenadora do espaço), três Agentes de Artes Práticas e três
Técnicos de Enfermagem no período noturno, além da equipe da Secretaria de Educação
do Estado do Pará (SEDUC), que garante o funcionamento da Classe Hospitalar, que se
constitui como um direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
garante a continuidade dos estudos mesmo no âmbito hospitalar.

O Espaço Acolher assume uma característica própria, também de um serviço


vinculado à assistência social, o que é um misto de um serviço de assistência à saúde,
pois oferece a retaguarda das pacientes que estão em regime de internação hospitalar na
FSCMPA. Assim, o que torna este espaço único é a sua capacidade de transitar entre as

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maiores políticas públicas deste país: a política do Sistema Único de Saúde (SUS) e a do
Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Isto é o que caracteriza o Espaço Acolher.

A atuação da Psicologia diante do Acidente de motor de barco com escalpelamento

Nesse cenário, a Psicologia tem papel importante na assistência às mulheres e


crianças que sofreram o acidente com escalpelamento, bem como tem papel importante
nas ações de enfrentamento. No que tange a assistência psicológica, essa se divide em
duas principais frentes: a Psicologia Hospitalar, na FSCMPA e a Psicologia Social e da
Saúde, no Espaço Acolher.

Após a ocorrência do acidente, faz-se necessário que o tratamento se dê em regime


de internação hospitalar. A Psicologia nessa primeira internação oferta atendimento às
vítimas de escalpelamento e a seus familiares e/ou acompanhantes, visando minimizar os
traumas psicológicos decorrentes do impacto do acidente.

A psicologia visa, com isso, desenvolver ainda medidas terapêuticas que


promovam um espaço de escuta às pacientes vítimas de escalpelamento e seus familiares/
acompanhantes, baseadas no suporte emocional, apoio psicológico, intervenções clínicas
breves e focais, que favoreçam reflexões de ideias, vivências e sentimentos.

No hospital, o serviço de Psicologia realiza diversas funções, tais como


acolhimentos, entrevistas psicológicas, desenvolve planos terapêuticos, estabelece
interconsultas com os membros da equipe de saúde e produz atividades de formação
continuadas.

Além do que, a psicologia realiza ainda atendimentos psicológicos individuais


e grupais às pacientes, a seus familiares e/ou acompanhantes, bem como atendimentos
nos períodos pré e pós-operatórios, e atendimentos preparatórios para alta hospitalar e
garantia de uma transição efetiva de cuidados.

Após a alta hospitalar, as pacientes são encaminhadas para o Espaço Acolher. Lá o


trabalho desenvolvido pela Psicologia é baseado na Psicologia Social como metodologia,
pois as compreende na sua integralidade, averiguando suas questões vinculadas à
autoimagem e autoestima, para dar início ao atendimento psicológico.

Sabemos que o acidente não atinge somente a pessoa diretamente a ele afetada,
é um acidente familiar e de uma violência transgeracional. Podemos afirmar, que o
trabalho desenvolvido pela Psicologia é estendido para além das vítimas, mas também
ao atendimento aos familiares que as acompanham no espaço Acolher, bem como para
os outros filhos que ficaram na sua cidade de origem e que em muitos casos assistiram ao
acidente.

A Psicologia, em parceria com o Serviço Social, atua na mediação para garantia


de direitos e de serviços de benefícios de prestação continuada (BPC); articulações entre
as secretarias estaduais e as secretarias municipais para garantir às vítimas uma melhor

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

moradia, adequada a realidade do pós acidente; garantir ainda às pessoas afetadas pelo
acidente o direito ao tratamento, por meio do Tratamento Fora de Domicílio (TFD); além
da mediação entre serviços como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pois muitas
desenvolvem transtornos mentais, tais como depressão, ansiedade e sinais e sintomas
característicos do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

A inserção do serviço de Psicologia no PAIVES possibilitou um olhar na


perspectiva da Clínica Ampliada, na qual não se observa apenas o aspecto biológico
do acidente, mas também uma ampla gama de questões psíquicas envolvidas em todo
processo de tratamento dessas mulheres e crianças.

Do mesmo modo, a atuação da Psicologia na CEEAE, segundo Cruz e Lins (2021)


precisa seguir o compromisso ético-político da profissão, na luta por uma assistência
integral e humanizada em saúde, em defesa da população ribeirinha, do Sistema Único
de Saúde (SUS) efetivo, universal, gratuito, integral e descentralizado.
Considerações finais

O acidente de motor de barco com escalpelamento tem sido uma difícil marca dos
rios da Amazônia paraense, na vida de muitas meninas e mulheres. Se apresenta também
como um grande desafio tanto para a assistência em si às pessoas afetadas, como para o
enfrentamento a esse acidente.

Nesse sentido, a Psicologia tem papel fundamental tanto na assistência às meninas


e mulheres em todo o processo de tratamento, das sequelas físicas e emocionais, como
também para auxiliar no enfrentamento a este grave acidente.

Em um cenário complexo, de uma questão tão tipicamente amazônica - e por


consequência muitas vezes ignorada em um cenário nacional - a dificuldade de números
mais precisos, de estudos confiáveis, evidencia o quanto temos que caminhar para construir
assistência e enfrentamento necessários diante deste grave cenário que vivenciamos em
nossa região.

REFERÊNCIAS
COMISSÃO INTERGESTORES BIPARTITE DO ESTADO DO PARÁ. Resolução nº 62/CIB/PA, de 13 de junho de 2022.
Diário Oficial [do] Estado do Pará: Poder Executivo, Belém, Nº 35.038, p. 21, 8 jul. 2022.
CRUZ, C. R. P.; LINS, A. C. A. A. L. A psicologia em diálogo com o SUS na assistência e prevenção ao acidente de motor
de barco com escalpelamento. In: LEMOS, F. C. S. et al (orgs). Produção da diferença, saúde coletiva e formação. Curitiba:
CRV, 2021.
OLIVEIRA, L. S. Escalpelamento: Política Pública para a população invisível. In: R. DEFENSORIA PÚBL. UNIÃO. n. 9,
p. 479-496, jan./dez. Brasília, DF, 2016.
GUIMARÃES, A. G. M.; BICHARA, C. N. C. O Processo de Construção de Políticas Públicas em Prol do Ribeirinho Vítima
de Escalpelamento na Amazônia. In: Conhecer: Debate entre o Público e o Privado, v. 1, p. 1-33, 2012.

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O papel da Psicologia frente a produção de Atingidos por Grandes Projetos na


Amazônia

Robert Damasceno Monteiro Rodrigues

Introdução

Este texto é fruto de minha pesquisa de mestrado em psicologia, desenvolvida junto


a comunidades tradicionais de Barcarena, no estado do Pará. Um estudo feito a partir de
entrevistas, observações e diários de campo, onde os atingidos participaram não apenas
como interlocutores ou informantes, mas como protagonistas da investigação, fornecendo
através de suas histórias, seus modos de vida, suas análises, experiências, sentimentos e
reflexões sobre a realidade, os materiais necessários para o desenvolvimento da pesquisa.
Aos atingidos participantes, dei os nomes de Amazonas, Tapajós, Tocantins e Xingu.

Meu objetivo, com este trabalho, foi analisar o modo como estes e tantos outros
atingidos são produzidos pelos grandes projetos instalados em Barcarena, cidade do Pará,
localizada a 40km de Belém, a capital do estado. O lugar de onde falo é a partir da
Psicologia Social Crítica. Esta é um campo que se desenvolve na psicologia, criticando-a
e propondo uma abordagem crítica da realidade, concebendo a produção dos sujeitos na
perspectiva marxista da unidade, sem dissociar as suas dimensões subjetivas e objetivas,
individuais e coletivas, econômicas e ideológicas, macro e microestruturais (VAISMAN,
2009; CHAGAS, 2013).

A Psicologia Social Crítica, portanto, na medida em se fundamenta na realidade


social da América Latina, através da contribuição de importantes psicólogas e psicólogos
como Martín Baró, Maritza Montero, González-Rey e Silvia Lane, ganha materialidade
em abordagens como a psicologia comunitária e a psicologia da libertação, constituiu-
se em um modo de pensar e intervir na realidade social enquanto uma práxis, tendo em
vista a superação e a transformação radical das condições estruturantes que determinam a
exploração, a opressão e a dominação na sociedade capitalista (LANE, 1989; MARTÍN-
BARÓ, 2013).

No que tange à definição de atingido, de acordo com o que já foi demonstrado pela
Comissão Mundial de Barragens (CMB/ONU, 2000) e de estudos do Conselho Nacional
de Direitos da Pessoa Humana (CNDH), as violações aos direitos das populações atingidas
estão intimamente relacionadas ao conceito de atingido. Do mesmo modo, segundo Vainer
(2005) e MAB (2019) a noção de atingido é um conceito em disputa, que diz respeito à
legitimação de direitos e de seus detentores.

Como buscarei demonstrar ao longo deste texto, o conjunto dos processos de


violação aos direitos dos atingidos em Barcarena são uma consequência da lógica mais
geral que orienta o modo de produção capitalista e a estruturação dos grandes projetos
na Amazônia. Na psicologia, existem diversos trabalhos que se debruçam sobre o papel
da profissão e das(os) psicólogos em situações de emergências e desastres (TRINDADE
& SERPA, 2013; WEINSTRAUB et al, 2015), entretanto, em sua maioria estão voltados
ao trabalho com populações atingidas por desastres naturais, tais como inundações,

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

terremotos, deslizamentos de terra, etc. Por outro lado, vêm crescendo, ao longo dos anos,
as pesquisas dedicadas aos impactos na saúde mental de pessoas e comunidades atingidas
por grandes projetos, sejam por barragens hidrelétricas ou rompimentos de barragens de
rejeitos minerais, como as de Marques et al (2018), Pozzebon & Ferreira (2018) e Noal,
Rabelo & Chachamovich (2019).

Destaco, também, os estudos na psicologia que buscam investigar os impactos e


transformações provocadas pelos grandes projetos a nível da subjetividade dos atingidos,
tanto no âmbito individual quanto coletivo, tais como os de Morais & Monteiro (2019) e
Silva, Bucher-Maluschke & Mori (2021). É nesta direção, portanto, que pretendo seguir,
buscando contribuir com alguns elementos, apontamento e reflexões, para pensarmos o
papel da psicologia diante dos grandes projetos na Amazônia e da produção de atingidos.
O que a realidade – e os atingidos – nos dizem que pode nos ajudar na construção de uma
prática profissional voltada para a garantia de direitos das populações atingidas na região
amazônica? Vejamos as sínteses que podem ser extraídas do diálogo entre a teoria e a fala
das atingidas e dos atingidos.

Grandes projetos na Amazônia e a produção de atingidos

Os atingidos e as atingidas, cada um a seu modo, sentem, compreendem e se


posicionam de formas diferentes em relação aos grandes projetos. Tapajós dá ênfase aos
efeitos provocados sobre o território e os modos de vida das comunidades tradicionais;
Amazonas ressalta consequências nefastas associadas aos grandes projetos, como a
violência e a insegura de quem a eles se contrapõe; Xingu, por sua vez, salienta os impactos
provocados na saúde da população atingida, em especial dos ribeirinhos; já Tocantins tem
uma grande preocupação com a perda da capacidade produtiva das famílias, a falta de
subsistência e os prejuízos sobre a agricultura familiar.

Estes elementos são apenas alguns dos evidenciados a partir da experiência dos
atingidos com os grandes projetos, outros ainda serão apresentados. Desde já, contudo,
é possível afirmar que existe uma definição própria dos atingidos sobre o que são os
grandes projetos, que emana desde seus modos de vida, de como pensam e efetivam a sua
existência e, à essa definição, fruto da realidade concreta, soma-se o esforço de síntese
operado por diversos estudiosos, comprometidos em contribuir com a defesa dos direitos
dos atingidos, que se debruçam para compreender os grandes projetos na Amazônia.

São inúmeros os trabalhos, nos mais variados campos do conhecimento, dedicados


ao tema dos grandes projetos. Não obstante que, dentre estes estudos, alguns acabem
se limitando aos seus impactos ambientais (SILVA & SILVA, 2011), não são poucos
os que buscam compreendê-los e problematizá-los de maneira multidimensional, sem
ignorar suas especificidades no que diz respeito ao meio ambiente, mas tomando-as como
indissociáveis de suas dimensões sociais, econômicas e políticas e suas consequências
sobre os atingidos.

É importante destacar que existe um acúmulo histórico de consideráveis pesquisas


sobre as Usinas Hidrelétricas (UHE) no Brasil que são fundamentais para a análise e

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

compreensão dos grandes projetos. Em nosso país, as primeiras grandes barragens remontam
sua construção à época da ditadura miliar, momento em que o Estado brasileiro passou
a investir no setor hidrelétrico visando suprir a demanda que crescia a taxas superiores à
oferta de energia (HON, 2016). Nesse contexto, foram construídas importantes usinas e
delas se desdobraram um conjunto de estudos. Destacam-se, neste quesito, os realizados
por Sigaud (1986) sobre os efeitos sociais de grandes projetos hidrelétricos, no caso das
barragens de Sobradinho e Machadinho, bem como os de Germani (2003) e Magalhães
(2007), analisando os conflitos envolvendo a hidrelétrica de Itaipú e os deslocamentos
compulsórios provocados pela barragem de Tucuruí, respectivamente.

Importantes também, são as investigações sobre as especificidades das


hidrelétricas na Amazônia (FEARNSIDE, 2015; SILVA JÚNIOR & PETIT, 2015), em
especial sobre a UHE Belo Monte, no Pará, que impôs novos desafios, principalmente no
campo da definição e reconhecimento dos atingidos (MAGALHÃES & CUNHA, 2017;
ESTRONIOLI, 2021). Ao mesmo tempo, para além do esforço em ampliar a análise sobre
os grandes projetos, visando apreendê-los cada vez mais nas suas variedades de efeitos,
dimensões e escalas, o empenho de buscar uma visão integrativa, articulada e multimodal
entre os diferentes grandes projetos merece, certamente, ser referido. Destacam-se
trabalhos como os de Leal (2016), Castro (2017), Porto-Gonçalves (2017) e Marques
(2019), que discutem a Amazônia em perspectivas históricas, sociológicas, políticas
e geográficas, tomando a inter-relação e a complementariedade de grandes projetos,
como hidrelétricas, indústrias minerárias, estradas, ferrovias, hidrovias e portos como
constitutivas da realidade amazônica e de seu papel na acumulação capitalista.

Os estudos que se concentram sobre o tema da mineração também merecem


especial atenção, visto que a indústria minerária vem cumprindo o papel de, ao mesmo
tempo, impulsionar e aglutinar um conjunto de outros grandes projetos para atender às
suas necessidades, sejam elas energéticas, em subsídios e insumos, infra-estruturais, de
transporte e escoamento da produção. Avolumam-se, nessa direção, diversos estudos que
discutem de maneira crítica o Programa Grande Carajás (PGC) – um dos exemplos de
funcionalidade intermodal dos grandes projetos na Amazônia, mas com a base produtiva
assentada sobre os minérios (VALVERDE, 1989; COELHO, 2015).

Mais recentemente, sobressaem-se importantes pesquisas sobre os graves crimes,


travestidos de desastres e que se tornam grandes tragédias, decorrentes da exploração
mineral no Brasil – especialmente os praticados pelas mineradoras Vale e PHP Billiton nas
cidades mineiras de Mariana e Brumadinho, em 2015 e 2019. Neste campo, vão trabalhos
como os de Mansur et al (2016,) Zhouri et al (2016), Losekann (2018), Zhouri (2019) e
Laschefski (2020), com análises precisas sobre os efeitos sociais, econômicos, políticos e
ambientais acarretados por estes crimes. Por fim, as pesquisas sobre os grandes projetos
em Barcarena, como as de Tourinho (1991), Fialho Nascimento (1999), Hazeu (2015),
Maia (2017) e Castro (2019), ganham aqui destacada relevância, visto que, desenvolvidas
por importantes pesquisadores da Amazônia, contribuem para a problematização das
indústrias minerárias instaladas no município, seu papel na estratégia capitalista e na
formação socioeconômica regional, bem como seus impactos que se fazem sentir nos
modos de vida das comunidades tradicionais de seu entorno.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Todos estes trabalhos, contudo, são fruto de uma realidade concreta, edificada
sobre um modelo econômico voltado à produção de mercadorias, mas que tem como meio
a exploração de bases naturais altamente lucrativas e que impacta diretamente a vida de
inúmeras pessoas. Os atingidos, portanto, por vivenciarem as consequências acarretadas
pelos grandes projetos, expressam, a partir da sua realidade, todas as características que
podem ser encontradas em algumas das definições mais gerais, como sínteses teóricas do
que são os grandes projetos. Deste modo, para Becker (1997, p. 63), há que entendê-los
como uma forma espacial, caracterizada:

(1) pela escala gigante da construção, da mobilização de capitais e mão de obra;


(2) pelo isolamento, implantando-se geralmente como enclaves, dissociados
das forças locais; (3) pela conexão com sistemas econômicos mais amplos,
de escala planetária, de que são parte integrante; (4) pela presença de núcleos
urbanos espontâneos ao lado do planejado, expressão da segmentação da força de
trabalho, qualificada/não qualificada.

Cada uma dessas características, por sua vez, ganha materialidade na experiência
dos atingidos, na sua história, em suas memórias, em seus sentimentos e temores, na análise
que eles fazem da realidade. Tocantins nos dá uma noção da magnitude da construção dos
grandes projetos, ao relatar sobre a quantidade de empregos para trabalhar nos canteiros
de obra em Barcarena:
Essa situação aqui toda ela trouxe, de princípio, muitas pessoas pra Barcarena.
Tinham mais de 10.000 empregos. Eram canteiros e canteiros de obra aí pra
fazer... primeiro fazer.... hoje a Vila dos Cabanos, né? Muitos prédios; as casas
pras pessoas, pros operários que iam trabalhar nas fábricas se alojarem. Depois
precisava dos alojamentos pra essas pessoas ficarem, né? Dos alojamento, cozinha
(TOCANTINS, 2020).

Enquanto isso, Tapajós conta a história de como os grandes projetos chegaram


no município desconsiderando totalmente os modos de vida das famílias tradicionais.
Suas formas de moradia não foram respeitadas, tão pouco o significado que atribuíam
à terra e aos rios, sua relação com o território e sua concepção de riqueza. Enquanto se
dissociam das realidades locais, eles também promovem a degradação do meio ambiente
pela apropriação privada dos recursos naturais, porém sem proporcionar a geração
de qualquer tipo de valor agregado que compense as perdas ocasionadas, produzindo
situações irreversíveis.

As empresas trazem muito impacto negativo pra dentro das comunidades; porque
elas não respeitam a comunidade, entendeu? Tudo que a gente tinha, pra ela não
significava nada. Era uma casa humilde, uma casa bem… bem humilde. Às vezes
era de… de barro, era de palha. Então isso daí… “Olha, isso daí não é nada!
Vocês vão ter emprego, vão fazer uma casa bonita, de alvenaria”. Pra ela isso
não significava nada. Mas não era ali, a casa. Pra nós não era casa. Era a terra.
Então era isso que… era o rio. Era isso que era nossa riqueza. E hoje não tem
mais. Tem situações hoje, em relação aos território, irreversível. Não tem como
voltar mais, não tem. Eu nem acredito que esse rio, hoje, possa ser revertido
essa situação. É uma situação irreversível, porque é anos e anos aí impactado,
entendeu? (TAPAJÓS, 2021).

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Já Amazonas (2021), expressa, do seu ponto de vista, a dinâmica global associada


aos grandes projetos que, apesar de possuírem as suas estruturas físicas nos locais onde
realizam a exploração dos recursos naturais – produzindo no mais das vezes produtos
primários ou semimanufaturados – realizam o valor dessas mercadorias em sistemas
de comércio internacionais, onde empresas de diversas nacionalidades se associam e,
os lucros de suas transações, ficam em seus países de origem. Para ela, “esses grandes
projetos, são grandes projetos sim, mas que levam os lucros tudo pra fora”; e complementa:
“Porque esse progresso ele não é daqui. Ele é daí de fora pra cá. Vai beneficiar? Sim! É
Argentina, Argélia, Noruega, Estados Unidos, China, Japão”.

O processo que envolve, por sua vez, tanto a chegada de trabalhadores vindos
de outras regiões para se empregar nos grandes projetos, quanto as ocupações de terra
executadas por estas pessoas, por não terem onde morar, é descrito por Xingu (2020):

Vai ter várias e várias outras ocupações por aí, né? E nas ocupações a gente já
sabe. Ah, o projeto chama o povo de fora, né? Chama o povo de fora, o povo de
fora vem; vai ocupar seja onde for pra ele ficar, porque o prefeito não vai dar o
quitinete pra ele, não vai dar um domicílio pra ele. Não! Então as pessoas de fora
geralmente vem né, com aquela... com aquele anúncio de emprego; quando chega
às vezes nem sempre consegue logo, né? Muitos vem mesmo, mas não consegue;
já não tem nem como voltar; já vai ficando, né?

Fica fácil perceber a relação entre a formação de pequenos núcleos urbanos sem
planejamento e a segmentação da força de trabalho empregada nos grandes projetos, visto
que, aqueles que recorrem às ocupações são, majoritariamente, os trabalhadores menos
qualificados, que assumem os postos mais precarizados e de menor remuneração – isso
quando conseguem o emprego – principalmente na fase de construção e que, passado
o período mais operário da obra, ficam a maioria desempregados, porque, segundo
Tocantins (2020), “eles não iam morar no... dentro da Vila, pegar uma casa daquelas lá,
né?”. Nas palavras de Amazonas (2021): “Porque é trabalho que vem, por um período de
tempo; mas depois vai ficar só os técnicos de fora, os profissionais de fora. Eles vão pegar
o quê? Pedreiro, ajudante, algum técnicozinho daqui, mas não fica, tá entendendo? Não
vai ficar”. Estes profissionais de fora, considerados como mão de obra qualificada, são
os que vão morar no núcleo urbano planejado, construído por aqueles que perderam seus
empregos e não tem onde viver.

Algumas destas características dos grandes projetos, apresentadas até aqui, são
reforçadas por Castro (2019), que também parte da consideração de que eles são enclaves,
porque exploram regiões inteiras sem integrá-las efetivamente aos circuitos mais amplos
de produção da riqueza. A autora, porém, acrescenta alguns elementos que são dignos de
nota, pois remetem diretamente à realidade imediata dos atingidos. Os grandes projetos:

2) impõe uma dinâmica expansionista, processo contínuo de apropriação de novos


territórios e de seus recursos naturais, para atender a produção de commodities
– minerais, florestais e do agronegócio; 3) têm dinâmicas frequentemente
acompanhadas de crimes relacionados à terra, como a grilagem, expulsão da
terra de famílias de moradores (deslocamentos forçados), morte de lideranças
locais, inviabilidade de reproduzir a vida e o trabalho devido a contaminação
de mananciais, entre outros; 4) produzem alto grau de externalidades, não
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reconhecidos pelos empreendimentos como passivos, nem produtores de danos


sociais e ambientais; 5) e, por serem megaempreendimentos com produção
intensiva, contém um componente de alto risco, e imprevisibilidade, cujo controle
humano pela gestão e pela tecnologia, tem se revelado inconsistente, inseguro e
ineficaz (p. 17).

Mais uma vez, os atingidos nos ajudam a dar materialidade aos aspectos que
compõe a complexidade dos grandes projetos. Em seus modos de vida, em suas lutas
cotidianas, em seus modos de produzir os seus meios de subsistência, na apreensão ante
o imprevisível, eles, a todo momento, estão caracterizando – em seus termos, em suas
palavras e formulações – os grandes projetos não como algo abstrato, mas concreto,
porque se fazem sentir concretamente na imediaticidade de seu dia a dia. Amazonas
(2021) chama atenção para o processo de expansão, crescimento e apropriação de novos
territórios motivado pela necessidade do grande projeto produzir mais – no caso do avanço
da bacia de rejeitos DRS21 da Hydro-Alunorte – bem como as consequências associadas
à essa dinâmica expansionista:

E se tu for andar, se você for direto daqui pra lá, você vai ver… Quando a gente
foi fazer aquela movimentação lá na Hydro, tu viu que era cheio de árvore essa
beirada aqui tudinho lá. Se você for agora, você vai ver que tá tudo desmatado.
Muda, muda. Aí o tempo, “ah, quente, quente!”. Não sabe por quê. Por causa…
Tão desmatando tudo, tão acabando com tudo. DRS2, ele tá avançando pra lá.
Desmatação, acabando com nascente de rio e tudo mais. Acabando. Mas isso é o
progresso, né?

Da mesma forma, o conjunto de crimes relacionados, tanto à apropriação privada


dos territórios por parte dos grandes projetos – onde o que entra em jogo é não apenas a
terra das famílias, mas também as suas vidas, principalmente daqueles que se negam a
sair dos seus locais de moradia e produção ou lideram processos coletivos de resistência –
quanto a contaminação de solos, de rios, inviabilizando formas tradicionais de subsistência,
também é descrito pelos atingidos.

Segundo Amazonas (2021), “o primeiro grande crime foi a retirada do povo” e


Tapajós (2021) acrescenta: “quando chegou o empreendimento eles não quiseram saber
disso. Foram expulsando as famílias; foram destruindo tudo o que tinha. Destruindo sítio,
destruindo roça, destruindo rio, destruindo tudo”. Toda essa destruição, por seu turno,
impõe sérias dificuldades para as famílias sobreviverem, pois já não podem se alimentar
do que, antes, eram as suas principais fontes de nutrição. “A gente, hoje, não pode mais
pegar o peixe desse rio, o camarão, porque é muito comprometido de metais e outros
rejeitos que têm dentro desse rio; além do esgoto” (TAPAJÓS, 2021).

Aos deslocamentos forçados e à contaminação do meio ambiente, soma-se


também a insegurança, a violência e, para os atingidos, a possibilidade de ser morto por
não querer sair de seu território ou se contrapor aos grandes projetos. Amazonas (2021),
em meio às ameaças que vive, como liderança local, avalia que, “depois desses grandes
projetos, depois dessas empresas todas que vieram pra cá, veio muita gente que mata
por um prato de comida”; ela reconhece os riscos que corre e sabe que, a sua luta, a
sua posição contrária às violações direitos dos atingidos, choca-se frontalmente com os
1
A segunda bacia da Alunorte no modelo de Depósito de Resíduos Sólidos (DRS)
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interesses econômicos que determinam a forma de operar dos grandes projetos. “E sabe
lá quantas vezes Deus não me livrou aqui na minha porta mesmo. Quantas vezes, porque
pela forma como eu falo, de querer o que é de direito, o que é bom” (AMAZONAS,
2021).
As externalidades referidas por Castro (2019), como efeitos sociais, econômicos
e ambientais desencadeados pelos grandes projetos, que se fazem sentir na realidade
imediata das populações locais, mas que as empresas não reconhecem como suas
responsabilidades, são descritas da seguinte forma por Tocantins (2020):
Aí isso também é.... Houve assim uma... um processo de desmatamento, né?
De se diz assim.... de poluição. Houve problemas de usuários... a droga que
chega, né? O pessoal se mete também no meio desse pessoal. Houve também a
comercialização, de muitas pessoas pegar lote de terra e vender.

A esses problemas, que transformam os modos de vida dos habitantes locais,


interferem na sua cultura, em suas relações sociais, na sua subsistência, soma-se também
a imprevisibilidade, o risco constante de que ocorram, a qualquer momento, novas
situações que podem ocasionar efeitos ainda mais drásticos, rápidos e violentos sobre
o meio ambiente e a vida das pessoas. Os atingidos em Barcarena olham para as bacias
de rejeito da Hydro e sentem medo, pois sabem o que já aconteceu em outras cidades
que também possuem barragens da mineração; viram a morte, o desespero, as perdas e a
destruição. Eles se sentem inseguros e desamparados, como Xingu (2020):

Eu sinto muita preocupação, mano. Eu moro aqui, eu amo morar aqui, mas ao
mesmo tempo eu fico muito preocupada, porque esse lado aqui tá... é o acesso pra
Hydro; essas terras aqui vem daí, e o que vier daí mano, vai atingir todo mundo
pra cá; aí o nosso rio não vai prestar mais.

Segundo Nascimento (2019), a Hydro-Alunorte possui uma incapacidade crônica


de operacionalizar o tratamento e armazenagem dos rejeitos de sua fábrica frente
ao crescimento exorbitante da produção, uma das consequências é a expansão sem
planejamento e respeito às normativas técnicas do licenciamento ambiental, levando à
criação de novas bacias, como a DRS-2 que, para Moreno (2019), é a mais perigosa, pelo
material altamente tóxico contido, por seu tamanho superior a 100 hectares e da falta de
estudos quanto ao destino dos efluentes em caso de rompimento.

O rompimento de uma barragem é uma situação limite que mostra uma das faces
mais perversas dos grandes projetos; é fruto da ganância, da ânsia por lucro e da produção
desenfreada de mercadorias que só deixa a lama para os atingidos. Quando um crime
desses ocorre, saltam aos olhos todas as demais características dos grandes projetos,
sistematizadas a partir das pesquisas que os estudam, mas expressas na realidade mesma
dos atingidos. Os grandes projetos na Amazônia e em Barcarena, portanto, tal como
se constituem na atualidade, são fruto de um processo histórico inserido na formação
social e econômica da região, e que merecem ser visualizados, pois suscitam também
importantes elementos sobre algumas das principais determinações para a produção dos
atingidos, mas é fundamental, também, ouvir e sistematizar o que os atingidos pensam,
falam e fazem em seus cotidianos, compreendendo e analisando aos grandes projetos, a si
próprios e como são produzidos.

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Considerações finais

Atingido não é uma definição abstrata, pelo contrário, o atingido é um ser social de
extrema complexidade, produzido pelas forças materiais da realidade onde está inserido;
produzido como um ser total, objetivo e subjetivo, individual e coletivo, histórico, social,
econômico e político. As atingidas e os atingidos tem nomes, idades, cores, tem religião,
diversões, trabalhos, experiências, histórias e concepções diversas. São ribeirinhos,
agricultores familiares, trabalhadores urbanos, militantes sociais, descendentes indígenas
e quilombolas. É na diversidade e na resistência, contudo, que eles e elas constroem a
unidade e se reconhecem enquanto atingidos.

Sem dúvida, a psicologia tem muito a contribuir na construção de uma prática


profissional verdadeiramente comprometida com a garantia de direitos dos povos
amazônidas, como no caso dos atingidos e das atingidas. Refletir sobre os grandes projetos
na Amazônia e o modo como eles produzem atingidos é fundamental para estruturar essa
prática, sabendo que este trabalho deve ser coletivo e, portanto, este texto também fica
como um convite, a todas, todos e todes, psicólogas, psicólogos, psicólogues, estudantes,
militantes e defensores da Amazônia, a se somarem neste esforço, junto ao CRP-10,
participando ativamente de suas discussões, debates, comissões e grupos de trabalho,
contribuindo para a construção de uma prática na psicologia para atuação junto aos povos
atingidos por grandes projetos na Amazônia.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

PARTE III: RELATOS DE EXPERIÊNCIA


EM PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA

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Psicologia e Saúde Indígena: as relações e os encontros na produção de afetos

Eliana Arara da Costa1

Sou Eliana Arara da Costa, indígena, mulher, psicóloga, pertencente a etnia Arara
do Rio Branco no noroeste de Mato Grosso. Atualmente estou na Saúde Pública, no
Distrito Sanitário Especial Indígena Amapá e Norte do Pará fazendo parte da equipe de
referência técnica da atenção psicossocial às populações indígenas do estado do Amapá e
do norte do Pará. Para conseguir a graduação em psicologia concorri a bolsas de estudo,
a bolsa deu certo, mas para pagar minhas despesas na cidade trabalhei como vendedora,
garçonete, auxiliar de dentista, e por fim, nos últimos dois anos consegui um estágio
remunerado. Minha primeira atuação foi na Educação de crianças e jovens, mas minha
vontade era atuar na saúde pública, em especial com populações das florestas e dos rios.
Em 2018 iniciei minha trajetória na Saúde Indígena.

Durante esses anos, convivi e trabalhei com vinte e sete etnias. Criei laços com
muitas dessas pessoas, relações de amizade, de compartilhamento das alegrias, das
angústias, do choro, dos desafios e conquistas de ser indígena nesse país. Tenho neste
texto a oportunidade de falar sobre minha vivência nas relações entre profissionais e
usuários de saúde indígena, no intuito de colaborar com uma atenção psicossocial pensada
e construída junto as populações e, de colocar a quem lê, algumas interrogações que
devem fazer parte da nossa atuação como psicólogas(os) sociais.

Segundo dados do IBGE 2022, a maior parte dos indígenas do país (51,25%)
vivem na Amazônia Legal. No Brasil são 305 etnias falantes de 274 línguas vivendo
em todas as regiões do país. Antes de discutir sobre a atuação da(o) psicóloga(o) com
os povos indígenas na Amazônia é necessário saber dessa imensidão da diversidade
étnica. Somente nos territórios em que atuo, são onze etnias, sendo povos falantes das
línguas Karib, Tupi- Guarani, Aruak, Patuá e Português. Povos em contato com outras
populações indígenas e não indígenas da região, outros em isolamento voluntário, outros
se dedicando a carreira acadêmica ou política. Etnias que vivem da caça, pesca, coleta,
cultivo de roça (estabelecendo ou não relação de comércio com as comunidades do
entorno), trabalhando em instituições públicas e privadas ou de forma autônoma através
das artes, dos estudos científicos, das pesquisas e outros. Estão na cidade, nas Terras
Indígenas e circulando entre estas duas. Dentro das Terras Indígenas, cada comunidade
é moradia de um número variável de pessoas, usualmente com vínculos de parentesco.
Em algumas, os vínculos de parentesco são importantes fatores de mobilidade dentro
do território indígena. A mobilidade territorial também funciona como renovação dos
recursos florestais necessários ao bem viver.

Na saúde pública há um projeto de promoção da saúde que discursa sobre as


dimensões individuais, sociais e ambientais da saúde e da doença e traz como prevenção
das doenças a Educação em Saúde. No campo da saúde, a compreensão do processo saúde-
doença como expressão das condições de “habitação, alimentação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso
a serviços de saúde” (Brasil,1986, p.04) nos indica uma atuação coletiva da psicologia,
1
Psicóloga CRP-10/6378. Psicóloga do DSEI Amapá e Norte do Pará e especialista em saúde indígena.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

que sai dos parâmetros de intervenção individual e culpabilizante do indivíduo por suas
condições de vida e passa a atuar na perspectiva de impactos relacionais e comunitários.

O reconhecimento das falhas em nosso processo de formação profissional, no


qual estudamos sobre o que é considerado saúde e cuidado é um caminho para o trabalho
diferenciado. Para as(os) psicólogas(os) que atuam, não atuam ou pretendem trabalhar
com populações indígenas é fundamental conhecer a história da psicologia com os povos
originários iniciando de forma mais efetiva através dos Distritos Sanitários Especiais de
Saúde há 15 anos.

Somente em 2001 foi aprovada a Política Nacional de Saúde Indígena (PNASPI)


que trata do direito das populações indígenas à atenção diferenciada em saúde. Refletir
sobre os modelos de atendimento que antecederam esse marco e as mudanças que vieram
a partir desse momento, possibilita pensar em como se deu essa relação profissional-
usuário. Quais os resquícios das violências, do medo, da insegurança, do assistencialismo
e da tutela na atuação profissional junto às populações? Quais discursos e imagens
ainda perpetuam sobre nós? Como aos poucos e com quais recursos podemos continuar
transformando esse cenário histórico, político e social?

Os atravessamentos que acontecem nos encontros, abrem portas para pensar se a


saúde de fato está sendo promovida. Em qual lugar foi que aprendemos o que é promover
saúde? Cito a importância da representatividade social nas tomadas de decisão que vão
interferir no Bem Viver das comunidades. Não ter representantes indígenas na produção
de materiais norteadores, é persistir na imposição de padrões do modo de viver que
beneficia o poder, a segregação e o racismo. É dever nosso como profissional levantar
discussões em torno da tutela, que muda a roupagem, mas a essência continua por aí e por
aqui, dentro de nós.

Da relação tutelar construída ao longo do último século sob a orientação


colonizadora ora do Estado, ora da Igreja, ora das ONGs resultaram os principais
desafios enfrentados pelas lideranças e acadêmicos indígenas, cada um no seu
campo de atuação, distantes ou divergentes entre si, mas enfrentando a mesma
causa e efeito sem que se deem conta disso, pela própria forma como a nova
tutela opera de modo consciente ou inconsciente pelos seus praticantes (Hoffman
& Baniwa, 2010, p.8).

É certo que acessar a existência do outro não é fácil. Mas é possível fazer com que
os afetos se identifiquem e se fortaleçam na diferença para que aos poucos consigamos
nos desapegar dessa necessidade de controle da vida, dos espíritos e dos corpos.

Tive a oportunidade de participar do encontro das referências técnicas em atenção


psicossocial dos distritos que ocorreu entre os dias 20 e 24 de novembro de 2023 na
Organização Pan Americana de Saúde. Foi possível observar como a psicologia indígena
vem se instrumentalizando através das relações e se fortalecendo com as contribuições
das(os) psicólogas(os) indígenas e dos especialistas das medicinas indígenas, estes
primeiros que passaram pelo mesmo processo de formação acadêmica, mas que possuem
uma ontologia necessária à construção de instrumentos diferenciados, conforme a Política
de Saúde Indígena. Estavam presentes referências de todas as regiões do país: norte,
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

nordeste, centro oeste, sul e sudeste. Cada região trouxe necessidades muito distintas
umas das outras, confirmando que não é possível fechar uma linha de cuidado, mas devem
ser gerais e que, cada região e cada povo necessita de linhas de cuidado qualificadas com
os seus próprios modos fazer saúde.

A compreensão do processo de saúde e doença das pessoas em um determinado


território, antecede qualquer intervenção. Fazer isso é simplesmente adentrar em lugares
com respeito e conhecer as pessoas que estão ali, como estabelecem suas conexões,
como se expressam, o que, para elas, é importante, quais são suas psicologias, mas
compreendendo que o conhecer é movimento.
Refletindo também sobre a automaticidade desempenhada por nós trabalhadores nos
encontros com a população. É preciso tempo, tempo de qualidade, com presença nesses
encontros. A comunidade e os profissionais precisam ser compreendidos como educadores
e potenciais de transformação.

Com a Criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em 1999, passamos


a atuar na atenção primária que existe a partir da perspectiva de prevenção de agravos e
proteção da saúde. Guattari (1990) utiliza na saúde a concepção de territórios existenciais,
que para ele pode ser individual ou de grupo, são territórios que modificam e são
modificados uns pelos outros. Com a visão de transformação a partir da relação, podemos
dizer que o vínculo é uma das ferramentas principais na preservação e promoção da
saúde. Necessitamos de vínculo com esses territórios existenciais, pautado pela ética da
profissão. É preciso fazer um esforço para se aproximar do outro na sua visão de mundo.
Precisamos preservar a liberdade de movimento, a liberdade de fala e a liberdade de
silêncio.
O que hoje se chama “policrise” (conjunto de crises climáticas, energéticas,
alimentares, econômicas, etc.) refere-se basicamente a uma “crise de presença”,
entendida como a crise do modo de vida ocidental que é baseado no impulso
constante à expansão, ao crescimento e à conquista. Uma crise civilizacional de
alcance planetário. As diversas crises são sintomas de um modo de estar em um
mundo consumista e predador que já atinge seus limites por todos os lados: o
esgotamento dos corpos, o esgotamento de vínculos, o esgotamento de recursos,
um colapso que é ao mesmo tempo psíquico, social e ambiental (Savater, 2023).

A forma como sentimos o outro é que vai nos dizer quais afetos estão sendo
produzidos. Através dos afetos podemos transformar nosso território em um lugar onde o
convívio aconteça com respeito e liberdade, reaprendendo a nos conectar, a sentir e nos
perceber como um só, com modos de existir diferentes. Um corpo isolado não é capaz
de produzir afeto, pois somos relacionais. O corpo se percebe assim, sentindo os afetos
produzidos nos encontros.
REFERÊNCIAS
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Ministério da Saúde, 2013.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Indígena. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
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de-volta-a-politica/. Acesso em: 10 de dez. 2023.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

SAIRÉ ETÉ, O VERDADEIRO SAIRÉ:


relatos sobre formação em psicologia a partir de uma
atividade acadêmica em Alter do Chão, Santarém, Pará

Erick Rosa Pacheco1


Maíra Liane Viana Sadeck dos Santos2
Maria das Dores Carneiro Pinheiro3

INTRODUÇÃO

A construção do currículo do curso de Bacharelado em Psicologia do Instituto


Esperança de Ensino Superior (IESPES) está pautada na promoção de uma educação
integrada do acadêmico com a sociedade e o território da Região do Baixo Amazonas4,
no Oeste do Pará. Santarém, antiga aldeia do Tapajós, e atual sede da Região do Baixo
Amazonas, foi elevada à categoria de vila, em 1758, quando recebeu o mesmo nome de
uma cidade lusitana. Após Santarém tornar-se vila, criou-se o Distrito de Alter do Chão,
localizado a cerca de 37 quilômetros do centro da cidade (IBGE, 2023).

As primeiras formações administrativas aconteceram por conta das expedições


militares portuguesas no século XVII, que trouxeram as missões religiosas e colonizadoras
para a Amazônia. Segundo dados da Cúria de Santarém, Alter do Chão constituiu a missão
dos Boraris, pelos padres jesuítas, que receberam autorização para desenvolver ações
missionárias no curso do Rio Tapajós (Canto, 2014).

A Festa do Sairé, que acontece há mais de 300 anos no Distrito de Alter do Chão,
é o resultado do sincretismo religioso entre o catolicismo e a cultura indígena, dos povos
tradicionais que habitavam este território desde antes da época das missões religiosas.
Apesar de documentos e relatos ratificarem que a Festa do Sairé era realizada pelos
indígenas em outras aldeias da Amazônia, apenas o Distrito de Alter do Chão resiste na
realização desta festividade até os dias atuais (Carvalho, 2016).

De acordo com Figueira (2014), ao longo de seu tricentenário, a Festa do Sairé


teve mudanças em seu formato, e muitas dessas mudanças foram influenciadas pela Igreja
Católica que - conforme relatos escritos e falados - parecia não aceitar alguns elementos
presentes na Festa, como bebidas, danças e músicas não religiosas. Alegavam que essas
manifestações profanavam o rito religioso clássico, neste caminho, em 1943 a Igreja
proibiu a Festa do Sairé. O evento retornou apenas 30 anos depois e, desta vez, com mais
elementos e influência da Igreja Católica.

Atualmente, a Festa do Sairé é realizada durante 5 dias, no mês de setembro,


possui o rito religioso - compreendido como tradicional pela comunidade e o rito profano
-Festival dos Botos, momento dedicado ao turismo, que possui a disputa de dois grupos
1
Especialista em Psicologia Clínica (CFP) e em Psicologia da saúde (CFP). Docente no curso de Psicologia do Instituto Esperança de
Ensino Superior - IESPES
2
Mestre em Gestão do Conhecimento e Especialista em Políticas Públicas e Governança. Discente no curso de Psicologia do Instituto
Esperança de Ensino Superior - IESPES
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Psicóloga e Pedagoga. Mestre em Promoção da Saúde, Desenvolvimento humano e sociedade. Especialista em Avaliação Psicologia
e Psicologia do Trânsito. Docente no Instituto Esperança de Ensino Superior de Santarém- IESPES e Psicóloga do Trânsito.
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O Baixo Amazonas, uma das mesorregiões do Pará, é formado por 13 municípios: Alenquer. Almeirim, Belterra, Curuá, Mojuí
dos Campos, Faro, Juruti, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa. Possui área de 315.854 km2 que
correspondem a 25,35% do território do Estado do Pará.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

folclóricos de Alter do Chão, Boto Tucuxi e Boto Cor de Rosa. Desde 1997, os ritos são
realizados na Praça do Sairé: o rito religioso no barracão e o profano no Lago dos Botos.
O Projeto de Lei 3009/2015, que tramita na Câmara dos Deputados, propõe reconhecer a
Festa do Sairé como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (BRASIL, 2015).

Um dos objetivos do IESPES, instituição de ensino vinculado à Fundação


Esperança, entidade de apoio à educação e a saúde, criada em 1970, é promover a
educação superior contextualizada com a Região Amazônica e, a disciplina “Fundamentos
Socioantropológicos da Psicologia” do curso de Bacharelado de Psicologia busca
oportunizar ao aluno e à aluna a compreensão da história e da cultura do homem em
sociedade, escolheu-se a Festa do Sairé como objeto de estudo e prática de extensão.

Para tanto, organizou-se a atividade em 4 etapas: pesquisa documental, observação,


entrevistas e exposição de fotos e símbolos durante evento cultural realizado em
novembro de 2023, na área externa da instituição de ensino. A pesquisa possibilitou uma
experiência enriquecedora de troca de saberes e conhecimentos entre alunos, professores
e a comunidade.

METODOLOGIA

Estudo descritivo, tipo relato de experiência, de atividade da disciplina


“Fundamentos Socioantropológicos da Psicologia” realizada no Distrito de Alter do
Chão, pertencente ao município de Santarém, no período de agosto a novembro de 2023.
Os acadêmicos do segundo semestre do curso de Bacharelado em Psicologia realizaram
inicialmente pesquisa documental sobre a temática Festa do Sairé e seu rito religioso.

Durante a pesquisa documental foram selecionados a dissertação de Cláudia


Laurindo Figueira, do Programa de Mestrado em História Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), os livros “Alter do Chão e Sairé” de autoria
do Padre Sidney Canto, padre diocesano da Arquidiocese de Santarém, o livro Festa do
Sairé de Alter do Chão, organizado pela Prof. Dra. Luciana Gonçalves de Carvalho, da
Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), além do artigo Tradições Devotas,
Lúdicas Inovações: o Sairé em Múltiplas Versões, da plataforma Scielo, da mesma autora.

A fim de aumentar o arcabouço teórico foi consultado o acervo virtual do website


“Memórias do Sairé”, projeto financiado pela Lei Aldir Blanc, que apresenta memórias,
relatos, letras de músicas, imagens e depoimentos em pequenos vídeos narrados por
membros da Côrte do Sairé5, a partir da perspectiva das pessoas que mantêm o Rito
Religioso e os vídeos do projeto “Mestre Foliões”, registros audiovisuais dos Mestres da
Folia do Sairé.

O segundo momento da pesquisa foi a observação da abertura da Festa do Sairé,


realizada na manhã do dia 14 de setembro de 2023, em frente ao barracão do Sairé,
5
A Côrte do Sairé é formada por personagens que possuem papéis importantes no rito tradicional: o Capitão (responsável em manter a
ordem da festa), o Juiz e a Juíza (organizadores da festa), os Alferes (responsáveis pelas bandeiras branca e vermelha que representam
o juiz e a juíza), o Procurador e a Procuradora (ornamentam a festa e são responsáveis pela construção do barracão), Mordomos e
Mordomas (ornamentam o barracão), Saraipora (quem carrega o símbolo do Sairé nas procissões), Moças das Fitas (carregam as fitas
do Símbolo do Sairé), Troneira (zeladora do símbolo do Sairé e da coroa do Espírito Santo), Rezadeiras (entoam rezas e ladainhas
durante o rito religioso) Foliões (responsáveis pela música durante o rito religioso).
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localizado na comunidade de Alter do Chão em Santarém-PA. No rito de abertura há


uma cerimônia religiosa com rezas e ladainhas, uma procissão até a praia, para buscar
os mastros para ornamentação com folhas e frutas e posterior levantamento deles em
frente ao barracão. Um mastro é de responsabilidade do juiz e representa os homens, é
identificado por uma bandeira vermelha com o desenho da pomba do Espírito Santo na
cor branca. O outro mastro é de responsabilidade da juíza e representa as mulheres, é
identificado por uma bandeira branca com o desenho da pomba do Espírito Santo na cor
vermelha.

No mês de novembro foram realizadas conversas informais - após autorização


verbal dos interlocutores - com membros da Coordenação do Sairé: Osmar Vieira de
Oliveira, coordenador da Festa e Juiz na Côrte do Sairé, Maria Eulália Campos, Rainha
do Sairé do Boto Cor de Rosa, Célio Carlos Camargo, Capitão na Côrte do Sairé, Mestre
Folião e Presidente do grupo Espanta Cão. A entrevista foi realizada com perguntas
abertas que buscavam instigar a descrição dos ritos, o papel do membro na Festa do Sairé,
e do significado do Sairé para a comunidade de Alter do Chão, mas que tinham como
propósito dar o ponto de vista de “dentro” do barracão, pelas pessoas que efetivamente
fazem o Sairé.

A atividade foi apresentada à comunidade acadêmica do IESPES em um evento


cultural realizado no dia 16 de novembro de 2023, com um espaço com fotos e símbolos
e ornamentação que representava o barracão. Após 2 horas de exposição, iniciou-se a
apresentação cultural de Mestre Camargo, cantando folias do Sairé e músicas regionais.
A pesquisa foi apresentada na área externa, do Prédio I, do IESPES, para todos as(os)
alunas(os) e professoras(es), do Curso de Bacharelado em Psicologia e demais pessoas
que desejassem ouvir e conhecer sobre essa parte da história desta Região Amazônica.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ao analisar os estudos e relatos obtidos na atividade e vivenciar momentos da


Festa do Sairé, confirma-se que esta manifestação cultural dos povos tradicionais foi
utilizada para catequização dos indígenas pelos jesuítas. É evidente que símbolos oriundos
da religião católica como o culto ao Divino Espírito Santo e aos padroeiros, os mastros e
as rezas em latim e português, e símbolos oriundos da cultura indígena como as danças
circulares, o sentimento de comunidade, o banho de cheiro, e o tarubá6 corroboram o
hibridismo cultural e as trocas interculturais entre europeus e indígenas.

Apesar do processo de aculturação que demonstra ter como resultante a Festa do


Sairé, nos moldes atuais, tal manifestação de resistência cultural é motivo de orgulho,
demonstrado por todos os que participaram dos relatos. Como disse Mestre Camargo no
vídeo “Mestres Foliões”: Sairé é amor! Sairé é vida! A comunidade está envolvida por
todo o ano nesta Festividade. Em 2020, ano da pandemia do Covid-19, o rito religioso
do Sairé foi realizado, mesmo com o rito profano tendo sido suspenso pela Prefeitura de
Santarém. A Coordenação do Rito Religioso do Sairé decidiu manter a realização da Festa

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Bebida de origem indígena feita a partir da fermentação da mandioca. O tarubá é servido, nas canoas, durante a busca dos mastros e
no último dia de festa, após a derrubada dos mastros e da realização da dança do macucaua e da quebra macaxeira.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

para que este fosse um momento de manifestação religiosa da Comunidade e de ensino da


tradição cultural às gerações atuais, como afirma Osmar Oliveira em uma das produções
audiovisuais consultadas na elaboração desta atividade.

Vale destacar, a agradável acolhida da Coordenação do Sairé durante a realização


da pesquisa. Ao explanar que o propósito da audição dos relatos era ouvir a “voz” do
barracão, percebeu-se grande satisfação dos membros da Coordenação por este estudo
ter esse ponto de vista. Segundo os componentes ouvidos, muito é falado sobre o Sairé,
mas nem tudo o que é dito demonstra o sentimento dos que fazem o Sairé. Inclusive foi
destacado que o rito religioso se inicia uma semana antes da data oficial, quando o juiz e
a juíza pedem que o Divino Espírito Santo os guie na escolha dos mastros para a Festa.
No dia da busca dos mastros, sábado anterior à data de início oficial, os mastros já estão
escolhidos.

Outro ponto importante foi constatar que os personagens da Festa são escolhidos
dentre as pessoas que já fazem parte da equipe do Sairé, e que muitos participam desde
criança ou logo que se estabelecem em Alter do Chão. O sentimento de comunidade
é muito forte e pode ser reconhecido na alegria e no orgulho que os participantes da
Festa relatam sobre a mesma e nos momentos de partilha de alimentos durante os dias de
evento.

Como característica sui generis da Festa do Sairé pode-se evidenciar, ainda, o


papel da mulher. Não é à toa que o símbolo do Sairé é carregado por uma mulher: a
Saraipora. Esse protagonismo vai além dos dias de Festa, como afirmam os membros
da Côrte do Sairé. A mulher tem papel de destaque nas famílias e na comunidade de
Alter do Chão. No rito religioso elas podem ser: saraipora, juíza, procuradeira, troneira,
rezadeiras, mordomas, moças da fita, despenseira, cozinheira e cafeteira. Na comunidade
são resistência, perseverança, acolhimento, escuta, sensibilidade e cuidado.

Por fim, para preparar o espaço que simbolizaria o barracão, foi perguntado o que
não poderia faltar para representar a Festa do Sairé. O Coordenador da Festa orientou que
fosse feita uma decoração com bandeiras nas cores do Sairé, que o espaço apresentasse os
símbolos e os personagens, que tivesse o banho de cheiro, que explicasse sobre o tarubá
e que tivesse as músicas que tocam durante os dias de Festa, e assim foi feito.

Reproduzir o mais próximo possível do real foi um pilar para não folclorizar a
vida de um povo, para evidenciar um pouco da história cultural desta comunidade, para
afirmar que Psicologia se faz primordialmente a partir do lugar no mundo que a pessoa
habita e das vivencias que ela carrega, compreendendo que o corpo-território se compõe
dos aspectos subjetivos, familiares, sociais e comunitários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto curso de Psicologia, a união entre teoria e prática se faz essencial.


O estudo não pode perpassar apenas conceitos teóricos, mas precisa se aproximar das
existências humanas, dentro de suas infinitas variedades. A Psicologia na Amazônia

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

precisa pensar primordialmente quanto as pessoas que aqui vivem e co-habitam esse
espaço território repleto de histórias e significados culturais que somente podem ser
entendidos quando sentidos na pele.

A ideia de um profissional em Psicologia que esteja separado das experiências


sociais parece incoerente, basta ouvir atentamente um cliente/paciente que será possível
compreender que grande parte do sofrimento psíquico pode se desenvolver ou se manter
em ambientes sociais. É a esta lógica de se fazer Psicologia que a formação precisa se
dobrar, ao entendimento de que somos e seremos sempre seres humanos e sociais, repletos
de ancestralidade e experiências do dia a dia.

O evento do sairé é uma das incontáveis formas de se associar prática vivencial


com teoria academia, pois oferta de maneira evidente, os processos básicos, simbólicos
e representativos de uma população e sua cultura. Não cabe - ou não deveria caber - aos
professores ou acadêmicos o total e completo entendimento da cerimônia apreciada ou
dos relatos ouvidos.

Este momento extra portas da faculdade tem, também, a finalidade de sinalizar


e relembrar que existem pessoas reais habitando os lugares que - às vezes - parecem ser
remotos e é para estas pessoas que a Psicologia também deve existir, para pensar a lógica
do bem viver dentro da ética que valide incontáveis formas de ser e estar no mundo.
Antes de classificar pessoas e suas existências, considerar se esta não é a forma que ela
encontrou de tornar-se pessoa.

Durante muitos dos momentos partilhados com a comunidade de Alter do chão


e com os participantes do Sairé 2023, a música esteve presente, entoando chamamentos
sagrados para o ritual, embalando o Sairé Eté – O verdadeiro Sairé, que é experenciado
no interior de cada um daqueles participantes. Em especial, os versos escritos por Ademar
Lobato, Ademir Ferreira e Terezinha Lobato, para a música de retomada da Festa de
Sairé, como consta no livro resultante do Projeto Inventário de Referências Culturais do
Sairé realizado pela UFOPA em 2016.

“Em Alter do Chão não se sente dor, tem um povo pobre, mas acolhedor, por
Deus foi criado, a sua beleza, suas lindas praias, são da natureza, o seu lago verde, é de
admirar, a toda essa gente, que vem visitar”. O Sairé Eté e Alter do Chão, convidam a
todas as pessoas para o visitar! Seria possível um fazer profissional e ético que não saísse
das paredes dos consultórios para pisar no solo sagrado que o outro habita?

REFERÊNCIAS
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3009, de 16 de setembro de 2015. Fica a Festa do Sairé, realizada no
distrito de Alter do Chão, município de Santarém, Estado do Pará, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil,
de acordo com o Artigo 215 e o Artigo 216 da Constituição Federal. Poder Legislativo, Brasília. Disponível em https://www.
camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1732982 Acesso em 30 nov 2023
CANTO, Sidney Augusto (Padre). Alter do Chão e Sairé: contribuição para a história. Santarém: Gráfica Tiagão. 2014.
CARVALHO, L. G. de. Tradições Devotas, Lúdicas Inovações: O Sairé em Múltiplas Versões. Revista Sociologia e
Antropologia. Rio de Janeiro, v. 06. 0I: 237- 259. 2016.
_______ (Coord.). Festa do Sairé de Alter do Chão. Santarém: UFOPA, 2016.
FIGUEIRA, C. L. Festa popular na Amazônia: Sairé a reinvenção da tradição em Alter do Chão (PA). 2014. 204 páginas.
Dissertação. Mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/historico Acesso em


28 nov 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Lançamento do site Memórias do Sairé. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=2739wpOhSxc Acesso 02 set 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Mestres Foliões – EP1/Mestres Foliões. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=XhYGEfS_2AE Acesso 05 set 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Mestres Foliões – EP2 História e Cultura dos Mestres Foliões. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=fUCaSqpJTWU Acesso 05 set 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Mestres Foliões – EP3 A origem das folias e o Sairé. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=ipFTUdgvslc Acesso em 05 set 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Mestres Foliões – EP4 Relembrando Mestres Passados. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=nPzKhtYKSNo Acesso em 05 set 2023
SAIRÉ – RITO RELIGIOSO. Mestres Foliões – EP5 Folias e Festividades dos Santos. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=RirGyl1a9t0 Acesso em 05 set 2023

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Da remoção ao Novo Breu: um relato de experiência sobre a psicologia


na assistência social no município de Breu Branco, no Pará

Jessica Lanne de Souza S. Ikuma1

O lago da Usina Hidrelétrica de Tucuruí submergiu Breu Branco que existia desde
1900 e, em 1980, passou a existir em outro território, após a construção da Usina. Assim,
a população passou a chamar de Breu Velho a antiga vila e o novo município construído
como Breu Branco pelos moradores. Essa remoção não ocorreu sem conflitos.

No final da década de 80, intensificou-se o incentivo por parte do governo, de


colonização da região amazônica, através de doações de territórios, aonde o Novo Breu
Branco estava instalado também se incluía, gerando um crescimento demográfico intenso,
de pessoas de localidades diversas do País, como: Santa Catarina, Paraná, Mato grosso,
Goiás e Tocantins. O que Breu Branco tinha a oferecer? As pessoas do local viviam em
vulnerabilidade social, viviam de roça e de caça, e algumas pessoas eram aposentadas da
Estrada de ferro. Mas o território tinha uma riqueza, que logo começou a ser explorada, a
extração da madeira, e a expansão da pecuária (CASTRO, 2010).

Eu devia ter por volta de oito anos, quando meu pai, que até então sempre trabalhou
no ofício de caminhoneiro, foi até Tailândia-PA, a convite de um amigo próximo ao seu
irmão. Chegando na cidade, ele trabalhou em uma fazenda desse amigo, conhecendo as
áreas de abrangência, peculiaridades e riquezas da Amazônia; moramos por um tempo lá,
e quando eu tinha cerca de 10 anos, mudamo-nos para Breu Branco; foi quando meu pai,
que já estava trabalhando comprando madeira nas serrarias e enviando para a empresa do
interior de São Paulo, que o contratara para realizar esse serviço.

Lembro-me como se fosse hoje meu olhar de encantamento para a entrada principal
da cidade, na PA 263, onde nas suas laterais contam com grandes e imponentes palmeiras
imperais, começara ali a minha trajetória na cidade.

A madeira, como matéria prima sendo fortemente explorada, estava mostrando-


se um recurso esgotável, e mais ou menos nos anos de 2008/2009 intensificaram as
medidas de regulamentação e fiscalização por órgãos como o IBAMA, consequentemente
extinguindo boa parte das serrarias que exerciam a retira de madeira de forma ilegal.
E logo depois fechando as demais, pelos mesmos motivos. Atualmente, restando-se no
município, pouquíssimas.

O que consequentemente gerou na cidade um esvaziamento, boa parte dos que


haviam imigrado e vivido a “boa fase” da madeira, haviam retornado para seus lugares
de origem. Restando na cidade grandes pátios vazios com pó de serragem e desempregos.
Breu Branco não era visto como local de investimento, e sim de exploração, desde o
remanejamento até hoje a cidade ainda sofre (sofreu muito mais) com o desemprego
(MAUÊS, 1999; FAUSTO, 2001).

1
Psicóloga CRP-10/5440. Psicóloga do SUAS de Breu Branco e Profa. de Psicologia da UNINORTE/Tucuruí.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Em 2009, quando conclui o ensino médio, já estávamos sobrevivendo das


economias dos meus pais, porque com o fim da madeira, seu empregador o dispensou,
sem pagar nenhum tipo de direito trabalhista. Logo, meu pai, vê-se obrigado a voltar para
o interior de São Paulo, voltando a trabalhar como caminhoneiro, seu antigo ofício, que
excuta até hoje.

Depois de muitos esforços e luta, eu consigo me formar no curso desejado,


psicologia, em Belém, e recém-formada volto para o município de Breu Branco,
empregada, para assumir o cargo de Psicóloga, no Centro de Referência de Assistência
Social – CRAS, onde eu passo a entrar em contato com vulnerabilidades estruturadas na
sociedade, e vejo que eu mesmo sendo produto de uma história vulnerável, a minha mãe,
conseguiu me proteger de tudo que ela acreditava não querer para mim.

Os problemas sociais de Breu Branco, um pouco como herança do abandono,


ainda são intensos, a falta de emprego, as violências estruturais (de cor, de gênero, de
etnia) ainda se sobressaem, fazendo uma parte de seu povo padecer. Os antigos moradores,
muitos não suportaram manter-se no município, acabaram indo embora em busca de
emprego.

Os que ainda ficaram, são poucos, que guardam em suas memorias as angústias do
passado, enxergam que sim, o Breu como está hoje é mais evoluído que a Vila do Breu,
mas se fazem a pergunta: “e se tivéssemos tido o direito de ficar lá, lá não seria melhor?”
Uma pergunta retórica que todos tem a consciência de que não há resposta. Breu Branco
conta com uma zona rural extensa, consequentemente tornando o acesso a muitas pessoas,
penoso, a direitos universais como saúde e educação. Breu Branco, um município que
reserva dentro de si, desigualdades sociais brutais, não só em suas territorialidades rurais,
mas também na urbana. (CASTRO, 2010; MAUÊS, 2001).

Na minha atuação no CRAS, tive a oportunidade de entrar em contato com


diferentes tipos de histórias, narrativas que consequentemente interferem na subjetividade
das pessoas. Para Foucault, não existe constituição do sujeito sem modos de subjetivação
(FOUCAULT, 1979, p. 28), ou seja, toda experiência que concretiza uma subjetividade
envolve modos historicamente peculiares de se fazer a experiência do si (subjetivação).
Foucault (1978) em sua obra “O que é a crítica?”, retrata a crítica não como uma virtude,
mas um fato social muito próximo à definição de Durkheim (1981), envolvendo uma
análise do poder, da verdade e do sujeito como uma espécie de tríplice.

Através do atendimento as diversas demandas espontâneas, as demandas das


famílias cadastradas no Programa de Atenção Integral a família (PAIF), me deparei com
narrativas, produtos de um modelo de intervenção assistencialista e hospitalocêntrico,
que gerava ainda mais rupturas nos indivíduos, através da análise dos discursos, orientou-
me para um processo de desconstrução de estigmas sociais, incluindo a desconstrução da
lógica da clínica tradicional.

Através das Orientações Técnicas Centro de Referência de Assistência Social –


CRAS (MDS, 2009) e das Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) no
CRAS do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) do

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008), pude iniciar um movimento de desconstrução


de uma prática profissional apenas pautada em modelo de ciência eurocêntrico, e iniciei
um trabalho, onde a pessoa era parte atuante do processo, em uma relação horizontal, pude
entender um pouco mais sobre as variáveis sociais que atravessavam a história das pessoas
e famílias acompanhadas por mim. Histórias, com rupturas de vínculos, atravessadas por
desigualdades sociais; isto fez surgir em mim a inquietação de entrar em um movimento
de (re)construção de vínculos, de autonomia social e de bem-viver (CREPOP, 2008).

Para que a psicologia possa contribuir com a efetivação de políticas públicas,


voltadas as pessoas que historicamente vivem em contextos de violações e fragilidades
estruturais, é necessário entender o território e as pessoas que formam esse território, as
interseccionalidades e processos históricos e atuais que as envolvem. É necessário um
movimento de desconstrução dos modelos de uma clínica tradicional, dentro do campo
da Assistência Social, além de desnaturalizar processos comuns à nossa sociedade, como
os modelos de famílias nucleares e heteronormativas. A construção de uma prática, em
clínica ampliada, também deve ser reorientada sob perspectivas transversais, partindo
da despatologização da vida para um modelo psicossocial de atendimento, que visa,
inclusive, dialogar e aliar-se aos saberes acumulados de outras ciências, representadas
por profissionais também presentes na equipe de um CRAS.

Durante muitos atendimentos, em decorrência de demandas espontâneas,


realizados por mim no ambiente do CRAS, pude perceber a vulnerabilidade das pessoas
frente a alguns serviços anteriormente prestados. Sabe-se que no CRAS não é realizado
o acompanhamento de demandas específicas ao campo da saúde mental, porém, o
acolhimento deve ser realizado, e uma única entrevista já tem caráter interventivo. Cabe
a nós profissionais, estarmos aptos a mediar as demandas que nos chegam; diante disso,
realizei muitos atendimentos, do qual, expliquei minuciosamente, em uma linguagem
acessível, do que se tratava as palpitações, a dificuldade em respirar, a apatia etc. O que
pretendo deixar explícito aqui, é que não se encaminha a pessoa, sem antes acolhê-la,
e da intervenção, já provocar resultados terapêuticos. Visei na minha prática, facilitar
processos e construir pontes.

Através do projeto Nasce Bebezinho, que beneficia mulheres gestantes com


a entrega do enxoval, busquei realizar de forma contínua as rodas de conversas com
variados temas, que proporcionaram as mulheres uma vivência de coletividade, gerando
resiliência. No Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo (SCFV) com crianças,
adolescentes e idosos, rotineiramente vivencio com eles rodas de conversas que buscam
reforçar o senso de coletividade, vivenciado por alguns, ainda na época do antigo Breu
“um local tranquilo de si viver, deitavam-se na areia branca, sem terem de se preocupar
com suas seguranças, chegavam do rio com os peixes e chamavam os moradores para
a distribuição dos mesmos”, relatos esses que produzem novas subjetividades aos mais
novos que participam das rodas de conversas.

Ao decorrer desses oito anos de prática em psicologia, dentro da Amazônia, foi


possível mediar processos de reestabelecimento de vínculos quebrados, prevenir novos
rompimentos, presenciar curas e reforçar o movimento de autonomia social e isso tudo
reverbera em mim, para dar continuidade a uma escuta e atuação que cuida das pessoas,

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

e no cuidado das pessoas, cuida-se da floresta, cuida-se da Amazônia, cuida-se de Breu


Branco.
REFERÊNCIAS
CASTRO, Edna Ramos de. Estudo Socioeconômico dos municípios da região de Tucuruí. 258 ed. Belém: Editora NAEA,
2010.
CFP. Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) no CRAS/SUAS /Conselho Federal de Psicologia, Conselhos
Regionais de Psicologia, Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas. — 3. ed. — Brasília: CFP, 2O21.
FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: EdUSP, 2001.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970.
São Paulo: Loyola, 2004
MAUÊS, R. H. Uma outra “invenção” da Amazônia: religiões, histórias, identidades. Edições CEJUP, 1999.
MDS. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS/ Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. – 1. ed. – Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009. 72 p.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Matriciar na Amazônia dos Grandes Projetos: o fazer da(o)


profissional da psicologia no NASF/E-Multi de Parauapebas, Pará

Luis Vagner Dias Caldeira1


Sara Giusti Abreu2

O relato que se segue traça uma linha temporal, sem preocupações extremadas com
a precisão de datas, ao longo de uma trajetória de avanços e recuos de uma experiência
de construção de apoio matricial em saúde mental na Rede de Atenção Psicossocial do
município de Parauapebas no sudeste paraense. A narrativa parte de dois atores que
ocupavam os lugares de gestão da política de saúde mental local e da supervisão técnica
do Centro de Atenção Psicossocial e analisa os conflitos de forças de várias ordens pelo
viés político, ideológico e social típicos de uma cidade onde se instalou um grande
empreendimento transnacional para exploração das riquezas escondidas no solo.

Parauapebas, no ano em que esse texto está sendo escrito (2023), encontra-se
com 35 anos de idade, supondo-se que seu nascimento tenha se dado ao emancipar-se
do município a que pertencia, Marabá. Oficialmente com 266.424 habitantes e PIB per
capita de R$ 78.841,15 (IBGE/2022), cifra esta que assusta e assombra a todos, sobretudo
aos próprios moradores da cidade. O fato é que Parauapebas é um dos municípios mais
ricos do Brasil por abrigar a Serra dos Carajás, considerada a maior província mineral do
planeta, o que resulta em uma quantidade considerável de impostos pagos pela mineradora
que explora essa riqueza.

Como se sabe, as cidades que abrigam projetos de mineração, trazem junto com
seu potencial de crescimento econômico, muitas mazelas sociais, sendo hoje as mais
preocupantes o alto índice de violência doméstica, de exploração sexual de crianças e
adolescentes e o uso abusivo ou problemático de álcool e drogas. Como consequência
desse cenário, vemos o aumento do sofrimento psíquico da população: sofrimento este
que afeta desde nossos trabalhadores “da mina” aos servidores públicos, que atuam nas
políticas públicas municipais e se veem diante de inúmeros desafios para a realização de
seu trabalho. Seja o professor que está em sala de aula e acolhe as crianças e suas famílias
mais vulneráveis, na difícil tarefa de educar para a cidadania, sejam os profissionais do
serviço social, da psicologia, da enfermagem etc., que cotidianamente tentam minimizar
o sofrimento expressado das mais variadas maneiras: das tentativas de suicídio, do
comportamento auto lesivo, até a manifestação de crises de ansiedade e surtos psicóticos.

Até o ano de 2020, as respostas disponíveis dentro das políticas públicas para as
consequências psicossociais da presença do projeto de mineração, eram a rede de atenção
primária, um Centro de Atenção Psicossocial do tipo II e um profissional de psiquiatria
que atendia na Policlínica do município as demandas encaminhadas, via regulação, pelo
CAPS e pela Atenção Primária. Após a profissional psiquiatra solicitar sua demissão e
o posto ficar desocupado na policlínica, a gestão da RAPS pôs em marcha o projeto de
Apoio Matricial em Saúde Mental com o intuito de ofertar tanto retaguarda assistencial
especializada quanto suporte técnico-pedagógico, ampliando assim o escopo de ações e a
resolutividade da atenção primária (CAMPOS, 2007).
1
Psicólogo CRP-10/1367. Psicólogo da secretaria de saúde de Parauapebas.
2
Psicóloga CRP-10/1233. Psicóloga do CAPS de Parauapebas.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

A realidade local também exigiu um arranjo que não dependesse tanto de um


único indivíduo ou de uma única categoria profissional, como era a solução ambulatorial
anterior. Isso porque os grandes projetos atraem populações que procuram um emprego
ou melhores salários, ou seja, todos vieram para trabalhar, mas não projetam seu futuro
para permanecer na cidade. O resultado é uma grande rotatividade de profissionais,
sobretudo os especialistas. O apoio matricial apresenta-se então como a melhor estratégia
para o cuidado longitudinal e integral, pois sua aposta não é em indivíduos, categorias ou
serviços especializados, mas sim na relação entre essas pessoas e esses serviços.

A forma de comunicação deveria ser feita via formulário online cujo preenchimento
solicitava informações básicas sobre o usuário, sua família e seu contexto, mas exigia
que o caso tivesse sido discutido com a equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF) e apenas após esse diálogo, e se necessário, a equipe de apoio do CAPS poderia
ser acionada. Esse tipo de comunicação mais ativa e voltada mais para o usuário e não para
as burocracias do serviço substituiu a relação fria e hierarquizada dos encaminhamentos
mediados pela regulação, resultando na produção de maiores pactuações, conversas e
compartilhamentos, mesmo antes da ação de matriciamento ocorrer.

Para implementação do Apoio Matricial foram organizados encontros de


formação entre as equipes de referência das Unidades Básicas de Saúde/Estratégias de
Saúde da Família e a equipe matriciadora do CAPS, obtendo-se assim uma comunicação
mais potente e uma troca de saberes e vivências que então vieram a produzir diversas
estratégias para o manejo de situações limite, envolvendo profissionais de múltiplas
formações. Esses encontros iniciais foram marcados também por muitos tensionamentos
relacionados à mudança de modelo. Era frequente o questionamento, sobretudo vindo dos
profissionais da medicina, quanto à “inexistência” de um outro profissional para o qual
se poderia encaminhar já que o CAPS, já àquela época, não aceitava encaminhamento
para profissionais específicos, apenas para o serviço. Algumas falas também traziam um
sentimento de que “antes havia o que fazer com o paciente”, mesmo que este “fazer”
fosse um encaminhamento para uma consulta que poderia demorar até 6 meses para
ocorrer, posto que a fila de espera para a consulta com o especialista já acumulava
aproximadamente 1.500 encaminhamentos. Já por parte dos profissionais da psicologia
a queixa mais frequente foi de agendas lotadas e de pouca flexibilidade por conta do
excessivo número de atendimentos. Mais à frente voltaremos a este tema.

Na prática do matriciamento, com o envolvimento e o compromisso das equipes


conseguimos atender aos princípios de integralidade e de equidade, como preconiza o
SUS, haja vista que, ao eliminar um sistema de regulação frio e distante da realidade dos
territórios, alcançamos de forma mais célere e qualitativa quem mais necessita do cuidado
em saúde. Além disso, o diálogo entre equipes de dois níveis de complexidades diferentes
possibilita uma atenção psicossocial integral, onde a atenção primária em saúde e os
serviços especializados trabalham para garantir a maior adesão ao cuidado proposto, o
que também impactou no protagonismo das famílias de maior vulnerabilidade.

Mesmo com uma proposta integralizadora, com viés de base comunitária


que proporcionava ao usuário uma intervenção de larga amplitude, algumas forças de
resistência se fizeram presentes nos espaços de gestão, tentando retomar o reducionismo

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

de uma abordagem centrada principalmente na dobradinha “psicólogo/psiquiatra”. As


justificativas giravam em torno de dois eixos: a ausência do médico especialista em
psiquiatria do CAPS em alguns encontros de matriciamento e as dificuldades de agenda da
equipe de referência para os encontros com as equipes de apoiadoras. Quanto ao primeiro
eixo cabe notar que, tratava-se de um discurso presente não só nas falas dos representantes
da categoria médica, como também de assistentes sociais e psicólogas(os), sendo este
um aspecto do cuidado em saúde centrado em práticas biomédicas e medicalizantes,
com forte tendência ao controle das pessoas em sofrimento psíquico e não à construção
compartilhada de autonomia e cidadania.

Vale ressaltar, que apesar dos esforços do Conselho Federal de Psicologia (CFP),
através das referências técnicas produzidas pelo Centro de Referências Técnicas em
Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), que construiu diretrizes para atuação na
atenção básica do SUS, observa-se que muitos profissionais psicólogas e psicólogos ainda
se identificam e se alinham com práticas do atendimento clínico individualizado e/ou
psicoterápico, isolando o usuário de seu contexto social. Quanto ao segundo eixo, nota-
se ainda uma forte presença da lógica ambulatorial na atenção primária resultando em
agendas lotadas e pouco flexíveis, pois contam como estratégias centrais os atendimentos
individualizados e os encaminhamentos, em uma dinâmica semelhante a uma linha de
montagem: o usuário caminha de sala em sala, iniciando pela recepção, triagem, consulta
médica, farmácia, consulta com a psicóloga(o), cada um encaminhando verbalmente ou
por escrito para a “salinha ao lado”. Nessa perspectiva, sem um momento em que os
profissionais possam se reunir para pensar juntos estratégias de intervenção, o usuário só
tem a perder.

Essas foram as duas principais linhas de defesa usadas para o retorno do


ambulatório de psiquiatria, agora não mais na policlínica, mas nos postos de saúde,
através de atendimentos em Unidades Polo, e novamente com a regulação do sistema
informatizado, centralizado nos médicos, um encaminhando para o outro (clínico geral/
psiquiatra). No entanto, convivendo (ou concorrendo) com o apoio matricial. Nesse
período de coexistência dos dois modelos, notamos uma queda significativa no número
de solicitações de apoio matricial e, novamente, aumento no número de consultas em
psiquiatria. Refletir sobre os motivos da desigualdade dessa disputa nos levou à conclusão
que as práticas manicomiais resistem nos serviços ditos de atenção primária, privilegiando
o encaminhamento e a medicalização como forma de tratamento, mas que produzem
apenas exclusão do usuário.

Nesse sentido, o profissional de psicologia deve estar atento a não reforçar tais
construções patologizantes, alinhando-se às diretrizes publicadas pelo Conselho de
Psicologia, bem como aos conceitos de atenção psicossocial e clínica ampliada, indo
assim na direção oposta à prática tradicional do atendimento individual exclusivo. Ou
seja, se a psicologia tem o compromisso social de garantir aos usuários o exercício pleno
de sua cidadania e autonomia, pode mesclar na sua atuação atividades coletivas que
possam oportunizar melhores condições de vida e assim minimizar o sofrimento psíquico
enfrentado: grupos de ajuda mútua, grupos de crescimento, de educação em saúde, de
autoadministração da ansiedade etc.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Observamos que as psicólogas e psicólogos apresentavam conhecimentos sobre


apoio matricial, mas que uma grande parcela permanecia presa aos agendamentos prévios,
provenientes de encaminhamentos internos das unidades básicas. Apesar de alguns já
manterem em suas agendas algumas atividades de grupo, estas eram pontuais, agendadas
e conduzidas apenas pelo próprio profissional, sem parcerias com outros agentes como
ACSs, médicos, líderes comunitários ou mesmo usuários. O local desses encontros era
preferencialmente as unidades básicas onde o profissional estaria no dia da atividade.
O planejamento dessa rotina, em grande parte, era feito de forma verticalizada e o
próprio profissional não participava de sua construção (não decidia quais dias estaria
em determinadas unidades, por exemplo). Já aqueles que alcançaram uma prática mais
coerente com a lógica do apoio matricial notadamente desenvolviam suas atividades com
equipes de estratégias de saúde da família que não realizavam ações de cunho ambulatorial
e que mostravam um esforço de equipe em direção às diretrizes da política de atenção
primária em saúde.

Para concluir, achamos essencial enfeixar alguns pontos de reflexão sobre a nossa
experiência até agora com o trabalho da psicologia numa lógica de apoio matricial. O
primeiro ponto diz respeito à relação do núcleo de saber da psicologia com os demais
núcleos das demais categorias e a busca de seus campos comuns. Essa relação ainda carece
de enfrentamentos que se mostram necessários para a consecução de um projeto comum
de cuidado que tenha como princípios os mesmos do SUS e da reforma psiquiátrica.
O trabalho compartilhado, essência do apoio matricial, deve ser o produto permanente
desses embates.

O segundo ponto são as pressões exercidas pela lógica manicomial que exacerbam
a fragmentação do cuidado; privilegiam o saber psiquiátrico, transformando todos os
outros saberes em auxiliares; que tem na medicação a principal (e às vezes a única)
terapêutica e, por fim, faz do ambulatório o locus das intervenções assistenciais. Como
terceiro ponto, há de se observar que a(o) profissional da psicologia tem mais facilidade
de inserir-se em ações de apoio matricial quando está vinculado a equipes de estratégia
de saúde da família que permanecem realizando atenção primária em saúde e se recusam
a aceitar a lógica ambulatorial.

Como último ponto gostaríamos de enfatizar que, construir a psicologia inscrita em


uma dinâmica de trabalho compartilhado dentro de um contexto amazônico dos grandes
projetos de exploração, só será possível quando criarmos saídas que consigam contornar a
transitoriedade típica desses lugares. A rotatividade de profissionais retrata a rotatividade
de projetos individuais, políticos e governamentais. Como o apoio matricial é um projeto
que, além de coletivo, precisa ser diário e permanente, tem que necessariamente prever
um permanente recomeço e que se, em Parauapebas, esse projeto guarda incômodas
semelhanças com o castigo eterno de Sísifo, em um futuro que esperamos não esteja
muito distante, desejamos que ele prove que esse eterno retorno é, no fim das contas, uma
incrível habilidade para a reinvenção.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

REFERÊNCIAS
AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental. Brasília:
Ministério da Saúde, 2013. (Cadernos de Atenção Básica, n. 34). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
cadernos_atencao_basica_34_saude_mental.pdf. Acesso em: 12/12/2023.
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Ministério da Saúde, 2013. (Cadernos de Atenção Básica, n. 34). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleos de Apoio à Saúde
da Família – Volume 1: Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. (Cadernos
de Atenção Básica, no. 39). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_
cab39.pdf. Acesso em: 12/12/2023.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria nº 148, de 31 de janeiro de 2012. Diário Oficial
da União, 10.216. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0148_31_01_2012.html. Acesso
em:12/12/2023.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de
Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. (Série E. Legislação em Saúde).
CAMPOS, G.W.S.; DOMITTI, A.C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho
interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, fev. 2007. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/csp/a/VkBG59Yh4g3t6n8ydjMRCQj/. Acesso em:12/12/2023
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Atenção Básica e Saúde Mental: caderno de referência para psicólogas(os).
Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2019. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/11/CFP_
atencaoBasica-2.pdf. Acesso em: 12/12/2023.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

No Ritmo das Águas: relatos de uma pesquisa na psicologia sócio-histórica


sobre direito a educação e enchentes no bairro Cabelo Seco em Marabá, no Pará.

Ana Letícia Guedes Pereira1

A Cidade de Marabá, situada no Sul do Pará, é a quinta cidade na qual eu residi


ao longo da minha vida. Alguns meses após fixar residência neste local visitei o bairro
Cabelo Seco em companhia de uma amiga que é professora em uma escola situada na
Marabá Pioneira e enquanto eu apreciava o pôr do sol, uma garotinha passou de bicicleta
e gritou: “Tia da músicaaa!” referindo-se a minha amiga. Foi quando eu soube que aquela
criança era uma das muitas crianças moradoras da comunidade local que sofriam com o
fenômeno das enchentes que ocorrem no primeiro semestre de cada ano e que ela deixava
de frequentar a escola durante o período no qual deslocava-se, junto com sua família, para
um bairro mais afastado a fim de aguardar o término deste período de enchentes.

Minha amiga relatou que cotidianamente as crianças e suas famílias observam o


nível da água para identificar o momento certo de colocar seus pertences nos jiraus, uma
espécie de prateleira destinada à acomodação dos pertences pessoais durante o período de
chuvas e que relatos relacionados a água e as enchentes se destacam no ambiente escolar
durante este fenômeno.

A escola e a infância são temas recorrentes em relação aos estudos aos quais eu
me dedico no âmbito da psicologia e aquela garotinha e a tia da música me instigaram a
compreender mais sobre essa realidade. Este artigo é um recorte da pesquisa que estou
realizando para compreender como as enchentes de Marabá afetam as crianças dos bairros
situados na beira dos rios Itacaiúnas e Tocantins.

Cabelo Seco é um tradicional bairro situado às margens dos rios Itacaiúnas e


Tocantins no município de Marabá, no Pará, onde anualmente os moradores da comunidade
sofrem com enchentes e necessitam deslocar-se para outros bairros enquanto aguardam
o momento de retornar para suas casas. Este é um fenômeno natural e que tem relação
direta na maneira como a comunidade se apropriou deste espaço, sendo fundamental que
profissionais da psicologia compreendam esta realidade a fim de auxiliar no planejamento
de políticas públicas voltadas para esta população.

O objetivo é compreender qual o significado atribuído à função social da escola na


percepção das famílias que moram no bairro do Cabelo Seco. Tendo em vista que a lógica
formal não pode explicar as contradições do mundo e da realidade que está em constante
movimento optou-se por utilizar como pressuposto a psicologia sócio-histórica.

Ao tratar-se de infância é necessário considerar que o Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA) dispõe que toda criança e adolescente tem direito à educação visando
seu pleno desenvolvimento e preparo para o exercício de sua cidadania. Também é
assegurada a igualdade de condições para acesso e permanência na escola. Entretanto,
faz-se necessário compreender como estes direitos são percebidos no cotidiano escolar.

1
Psicóloga CRP 10/09642. Mestra em Psicologia clínica pela PUC-SP. E-mail: annaleticiagp@gmail.com.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Bock e Furtado (1999), comentam que a escola é uma das principais instituições
relacionadas ao desenvolvimento infantil, é o lugar no qual ocorre a mediação entre o
sujeito e a sociedade, permitindo que a criança seja socializada e educada. Estes autores
ainda afirmam que para compreender o funcionamento do mundo interno é necessário
compreender o mundo externo. O desenvolvimento humano é compreendido numa relação
dialética entre o homem e o meio no qual ele vive. Desta maneira para compreender a
vivência de crianças em relação a escola e a aprendizagem é necessário compreender
também a comunidade na qual estas crianças estão inseridas.

Saviani (2013) é um dos autores que comentam que a classe trabalhadora tem
acesso a uma escola voltada a manutenção de mão de obra para o capital. Já os alunos, que
são oriundos das classes com condições mais favoráveis economicamente, tem acesso a
escolas com estrutura e profissionais qualificados para garantir a sua entrada nas melhores
universidades do País. Sob este aspecto a educação tem a função de reproduzir a estrutura
social vigente.

Ao refletir sobre a estrutura social é necessário destacar que o Cabelo Seco ficou
conhecido desta maneira devido a presença de mulheres negras neste espaço. Sindeaux,
Santos e Macedo (2022), comentam que apesar da presença destas mulheres não se observa
entre os moradores do bairro um discurso que dê visibilidade ao papel da mulher negra
nesta comunidade, já que atualmente só existe um evento voltado para a temática racial
na região do Cabelo Seco; este evento é percebido como um momento de festividade, não
sendo constatada a utilização do mesmo como um momento de resistência ao preconceito
e a discriminação direcionados a comunidade local.

Por outro lado, Almeida (2012) destaca a concepção de que a região amazônica
é composta somente de florestas, que pode conduzir ao desconhecimento em relação a
população local e a maneira como vivem. Este mesmo autor comenta a iniciativa do poder
público para minimizar os conflitos vivenciados na época de enchentes e chama a atenção
para a baixa efetividade das medidas que foram implementadas, relacionando este fato ao
desrespeito em relação às características culturais dos moradores do Cabelo Seco. Nestas
duas situações é possível observar um silenciamento e a não percepção dos moradores
desta localidade como participantes ativos e co-construtores da realidade do bairro.

Almeida (2012) também chama a atenção para a inexistência de dados


significativos sobre os habitantes do Cabelo Seco por parte do poder público, o que
dificulta o atendimento desta população levando em consideração a singularidade de
cada família. Ele ainda acrescenta que tendo em vista a previsão do período no qual este
fenômeno ocorre, a prefeitura mantém uma estrutura para receber as famílias do Cabelo
Seco em alojamentos nos quais estas possam permanecer seguras.

A inexistência destes dados pode estar relacionada ao descaso do poder público


em relação a esta população e ao preconceito da sociedade que não compreende o desejo
dos moradores de permanência no bairro, mesmo que regularmente isto envolva a
necessidade de transferir-se para outro espaço geográfico a fim de aguardar o término do
período de cheia. Por outro lado, vale mencionar que o silenciamento dos adultos reflete
o silenciamento das crianças e o desconhecimento em relação às práticas culturais das

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

crianças do Cabelo Seco, já que o tempo destas crianças é o tempo do movimento das
águas dos rios Itacaiúnas e Tocantins.

São crianças que se sentem seguras ao observar o movimento das águas, em seus
relatos realizados na escola, que constitui o lugar no qual eles podem dialogar sobre
suas vivências, não há a percepção de medo ou risco. Almeida (2012) destaca que para
alguns habitantes adultos da região do Cabelo Seco a enchente é percebida como uma
faxina natural nas áreas mais sujas e também como um evento que propicia a circulação
do dinheiro, tendo em vista por exemplo, que existem barqueiros que trabalham no
deslocamento das famílias para outros bairros. Relatos semelhantes podem ser observados
entre as crianças. Vale citar que a escola é um espaço significativo para as crianças e que
durante o período de enchentes muitas não conseguem se deslocar até a escola.

Dentre as medidas remediativas colocadas em prática pelo poder público é possível


destacar a disponibilização de abrigos e alimentos. Por outro lado, a sociedade também se
organiza para doar alimentos e produtos voltados ao atendimento da população do Cabelo
Seco em relação a demandas mais imediatistas. Entretanto, a preocupação em relação a
permanência e o acesso das crianças a escola no período de enchentes aparentemente
não suscita mobilizações ou questionamentos por parte da sociedade ou mesmo do poder
público.

Saviani (2009) comenta sobre o surgimento de uma pedagogia tecnicista e dentro


desta perspectiva a educação deve contribuir para o aumento da produtividade, de modo
semelhante ao que aconteceu no contexto fabril, no qual o trabalhador ocupa seu posto
numa linha de montagem, no contexto educacional também é desejada a objetivação do
trabalho pedagógico. À educação cabe o desenvolvimento de habilidades e atividades
necessárias para a execução de tarefas demandadas pelo sistema social, ou seja, é necessário
mostrar à classe trabalhadora qual é o lugar que ela pode ocupar nesta sociedade.

Pode ser que a falta de questionamentos em relação ao acesso das crianças da


região do Cabelo Seco a escola durante o período de enchentes esteja relacionada ao
estigma associado a população que habita este bairro. Aparentemente esta população não
é um grupo do qual se espera uma ascensão acadêmica, sendo assim, suprir necessidades
mais imediatas é suficiente. Não há uma preocupação voltada à formação da população a
médio ou longo prazo.

Ainda sob este aspecto, cabe citar que a existência de um estigma relacionado a
população jovem que reside no bairro do Cabelo Seco é reforçada por notícias de conflitos
entre facções rivais neste bairro e violência entre familiares. É possível destacar que no
dia 31 de julho de 2023 o portal Correio de Carajás noticiou a morte de dois irmãos na
região do Cabelo Seco e enfatizou a possibilidade de o crime ter ocorrido por conta de
brigas entre facções rivais que atuam no bairro.

Já no dia 15/10/2023 o Giro Portal noticiou que um homem morreu dois dias após
ser baleado pelo filho de 15 anos, neste caso há mais de uma explicação para a ocorrência
deste fato, pelo menos, uma delas envolve violência doméstica. No dia 18/09/2023 o portal
DOL Carajás noticiou que um corpo com marcas de bala foi encontrado boiando na orla

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

na qual encontra-se situado o bairro Cabelo Seco, onde o corpo teria sido encaminhado
ao Instituto Médico Legal e aguardava o reconhecimento dos familiares.

Essas e outras notícias semelhantes são observadas cotidianamente e corroboram


para que uma parcela da sociedade tenha uma visão estigmatizada e excludente sobre
a região do Cabelo Seco. As crianças e jovens do bairro Cabelo Seco sofrem com a
violência simbólica; diferente da violência física, este tipo de violência é mais difícil de
ser identificada, visto que ela não deixa marcas na pele. A violência simbólica pode ser
naturalizada porque a mesma reproduz a cultura dominante e impulsiona outros tipos de
violência; as crianças e suas famílias aceitam essas violências acreditando que habilidades
e dons naturais são responsáveis pelo fato de um aluno ser bem-sucedido enquanto o
outro não atinge o mínimo necessário para sua escolarização.

Neste caso, observa-se uma contradição, pois, ao mesmo tempo que a escola
promove o acesso a todos, são privilegiados os estudantes que estão dentro de uma cultura
de elite. Bourdieu (1992) comenta sobre as consequências da violência simbólica e os
estudos realizados por este teórico auxiliam na compreensão sobre como as famílias
se resignam ao perceberem como verdadeiras, ideias e concepções relacionadas a
meritocracia e ao fato de que avançam e se destacam na escolarização alunos que
apresentam características individuais e intrapsíquicas promotoras deste sucesso.

Cabe destacar que a escola pode se constituir em um local que promove a reflexão
sobre a sociedade e suas contradições, inclusive no que diz respeito às desigualdades
sociais. A dificuldade de acesso das crianças do Cabelo Seco a escola nos períodos de
enchente não deve ser vista como uma realidade que não pode ser modificada e que surge
em decorrência do fenômeno das cheias e é preciso romper com as estruturas excludentes
da sociedade refletindo sobre alternativas que possam prevenir as dificuldades surgidas
no acesso à escola durante este período.

As referências técnicas para atuação dos psicólogos nas escolas de educação


básica disponibilizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) orientam que é
necessário contribuir para a formação de novas perguntas que problematizam concepções
que apresentam enfoque no individual, concepções estas que podem levar a compreensão
de que não há nada para se fazer e que produzem sofrimento psíquico. Cabe ao psicólogo
manter redes de atenção à vida e a potencialidade das crianças. Esta é a ótica pela qual
os psicólogos precisam interpretar a realidade das crianças moradoras do bairro Cabelo
Seco.

Considerações finais

Este texto está inserido no contexto de uma pesquisa que tem por finalidade
compreender como ocorre o acesso à escola durante o período de enchentes por parte das
crianças moradoras do bairro Cabelo Seco. Nota-se que muitas das dificuldades vivenciadas
por parte dos moradores neste período tem relação com a falta de conhecimento sobre
a cultura e as especificidades desta comunidade e cabe aos profissionais da psicologia
auxiliar a comunidade na compreensão de seus direitos, principalmente no que diz respeito

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

ao acesso e permanência das crianças nas escolas durante as enchentes, são escassos os
trabalhos na área de psicologia em relação a esta realidade. Assim, buscamos colaborar na
compreensão da problemática vivenciada pelos moradores do referido bairro, ainda que
se façam necessárias a realização de outras pesquisas que possam ilustrar mais os fatos
apresentados até aqui.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, J. J. de. OS RISCOS NATURAIS E A HISTÓRIA: O CASO DAS ENCHENTES EM MARABÁ (PA). Tempos
Históricos, [S. l.], v. 15, n. 2, p. 205–238, 2012. DOI: 10.36449/rth.v15i2.7205. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/
index.php/temposhistoricos/article/view/7205. Acesso em: 26 nov. 2023.
BOCK, A. A. B.FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Saraiva,
1999.
BOURDIEU, P. PASSERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 1992.
CFP. Referências técnicas para a atuação de psicólogos (a) na atenção básica. Conselho Federal de Psicologia- 2º edição.
Brasília: CFP, 2019.
CORREIOPORTALDOSCARAJÁS. Irmãos são mortos na mesma madrugada em Marabá. Disponível em: Irmãos são
mortos na mesma madrugada, em Marabá - Correio de Carajás (correiodecarajas.com.br). Acessado em: 26/11/2023.
DOLCARAJÁS. Corpo boiando no rio e afogamento são registrados em Marabá. disponível em: Corpo boiando no rio e
afogamento são registrados em Marabá • DOL. Acessado em: 26/11/2023.
BRASIL (1990). Estatuto da criança e do adolescente : Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Lei n. 8.242, de 12 de outubro
de 1991
GIROPORTAL. Homem morre dois dias depois após ser baleado pelo filho de 15 anos, em Marabá. Disponível em: Homem
morre dois dias após ser baleado pelo filho de 15 anos, em Marabá - Notícias | Giro Portal. Acessado em: 26/11/2023.
SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. Edição Comemorativa. Campinas: Autores Associados, 2008.
SINDEAUX, B. J; SANTOS, S.A.M. MACEDO. J. Mulheres negras do bairro Cabelo Seco (Marabá-PA): Entre o
silenciamento e a afirmação de uma identidade negra. Disponível em: MULHERES NEGRAS DO BAIRRO “CABELO
SECO” (MARABÁ-PA): ENTRE O SILENCIAMENTO E A AFIRMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NEGRA |
Plataforma Espaço Digital (editorarealize.com.br). Acessado em: 26.11.2023.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Relato de atuação com um grupo de homens no Centro


Especializado em Reabilitação de Macapá, Amapá

Nazir Rachid Filho1

Fui chamado (o serviço de Psicologia) para discutir com uma colega estratégias
de enfrentamento para lidar com pacientes, todos do sexo masculino, com um mesmo
problema em comum: o Traumatismo Raquimedular (TRM). A maior dificuldade
apresentada por essas pessoas parecia ser a adesão ao tratamento e o humor rebaixado
presente em todos, de imediato precisei me familiarizar com a patologia, não era algo do
meu domínio. Trabalho em um Centro Especializado em Reabilitação (CER) de porte III,
atualmente atendendo reabilitação física, intelectual e auditiva.

De acordo com o hospital Albert Einstein o TRM é uma lesão traumática que
acomete a medula espinhal, localizada no interior do canal vertebral da coluna cervical
e torácica; provocando injúria do tecido neural, resultando em algum déficit de função
motora e/ou sensitiva. 81% dos casos afetam homens e a idade média é de 42 anos,
a maioria é causada por acidente automobilístico (38%), seguido de quedas (30,5%) e
violência (principalmente arma de fogo, 13,5%); existem registro de acidentes deste tipo
em lesões provocadas por esportes (9%) e algumas complicações cirúrgicas (5%). Este tipo
de acidente pode causar um déficit neurológico, resultando em um quadro de paraplegia
(quando o paciente não consegue movimentar ou sentir as pernas) ou tretraplegia (quando
compromete os membros superiores, tronco, membros inferiores e pélvis).

O grupo foi composto por 05 (cinco) homens na faixa dos 17 a 35 anos, todos
residentes da cidade de Macapá. Os encontros aconteciam sempre às 6ª feiras com
regularidade de 90 minutos e eram divididos em 2 momentos distintos. O primeiro
momento era de orientação específica do quadro e eram trabalhadas questões específicas
como: limpeza da sonda, cuidados no banho, como passar da cadeira para outros lugares,
amparo legal trabalhista, etc. O segundo momento uma entrevista, estilo conversa informal,
com o grupo. Um dos integrantes precisou mudar de turno de tratamento, abandonando
assim o grupo logo no início, ficando apenas 4 participantes, assim descritos:
• Participante 1: casado, sem filhos, residia com a mãe e a esposa, trabalhava como
garçom em um restaurante da cidade quando testemunhou a discussão de dois outros
homens no trabalho. Os homens haviam consumido álcool e já demonstravam sinais
de alteração e embriagues. A discussão partiu para agressão física, foi quando ele
e outras pessoas próximas resolveram intervir. Sem saber explicar como, um dos
homens envolvidos na briga teria puxado uma arma de fogo e efetuado um disparo que
acidentalmente o atingiu, lesionando sua cervical;

• Participante 2: casado, com um casal de filhos, morava com a família e trabalhava com
transporte de mercadoria, dirigia uma moto (seu instrumento de trabalho), lembra de
ter sido ‘fechado’ no trânsito, o que o fez perder o equilíbrio, derrubando-o da moto,
causando o traumatismo.

1
Psicólogo CRP-10/740. Psicólogo do CER Amapá e conselheiro coordenador da Seção Amapá do CRP-10.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

106
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

• Participante 3: separado, tinha voltado a morar na casa da mãe, estava trabalhando na


construção civil e ao subir em um telhado, sofreu um desequilíbrio e caiu de costas em
uma altura equivalente a aproximadamente 2 metros, fraturando a coluna;

• Participante 4: era o mais novo do grupo e o mais inconformado com a condição,


muito resistente, era descrito como revoltado, sendo essa a referência mais usada a
seu respeito. Morava com a mãe, irmãos e sobrinhos, mas não se relacionava muito
bem com eles. Era usuário de substâncias psicoativas e seu acidente foi provocado por
uma ‘tocaia’ para acerto de uma dívida financeira da pessoa que lhe fornecia a droga.
Também atingido por arma de fogo.

O curioso nesse aspecto é que mesmo em uma realidade específica, num possível
recorte amazônico, percebe-se que algumas experiências não diferem de contexto.
Acredito que essa realidade seja semelhante em outros espaços. Existem aspectos que
não mudam. Assim como o fator eliciador dos acidentes se assemelha com os dados
nacionais, arrisco em dizer que as demandas trazidas possam ser as mesmas em lugares
díspares.

Histórias muito diferentes que dificilmente se encontrariam em outro contexto


agora conviviam e trocavam experiências. Inicialmente a resistência parecia ser o ponto
central deste grupo. Em seu artigo “A Resistência olha a resistência” Jorge Ponciano
Ribeiro lembra que o grupo resiste enquanto não se sente seguro, nem acolhido, o silêncio
parece ser a resposta mais simples até que as verdades comecem a ecoar. Já no primeiro
encontro após o encerramento da orientação inicial foi aberto para a fala livre e solicitado
que sugerissem temas para serem trabalhados ao longo dos encontros. De forma muito
acanhada alguns temas foram saindo, temas esses pensados para trabalharmos no grupo,
até que uma envergonhada pergunta surgiu como uma fonte de esperança para uma
conversa ampla, um dos participantes perguntou: a gente pode falar sobre sexo? Meio
que esperando uma resposta negativa ou repressiva, foi então que respondi: claro, o que
querem saber? E todos, num sonoro eco (quase que ensaiado) responderam: Tudo!!!!

Acordamos que nos primeiros 30 minutos iniciais um assunto relacionado ao


atendimento e evolução do tratamento ia ser trabalhado, tiraríamos as dúvidas e no tempo
restante o assunto era livre, não teria um tema central, embora o assunto sexo tenha feito
parte de todos os encontros subsequentes. Para facilitar a exposição das falas após a
orientação eu ficava só com os participantes. O fato de não ter uma figura feminina no
ambiente pareceu ser um fator que facilitou a fala dos integrantes, eles não se sentiam
constrangidos de falar sobre o assunto entre eles e como sentiam que eu recebia o
assunto sem barreiras, a resistência do início foi se diluindo, até um “Cadeira sutra” foi
apresentado, uma versão adaptada do kama sutra com posições sexuais mais prazerosas
para o cadeirante.

O único encontro em que a dinâmica foi alterada foi o último. Tivemos a


presença de um ex-paciente do centro, cadeirante, que dividiu a história de seu acidente,
seu tratamento e sua resiliência com o problema. Essa troca de experiência foi muito
estimulante para todos, as dificuldades, revoltas, desafios e conquistas serviram de
estímulo para que muitos sentissem a esperança em um futuro de possibilidades.

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Embora a quantidade de encontros fosse limitada o processo de amadurecimento


foi bem explorado no período, a impressão que tenho é que aqueles homens precisavam
desesperadamente de alguém que realmente os ouvissem e talvez por questões associadas
ao gênero ou outras barreiras relacionadas, todas as pessoas que eles tinham alguma
intervenção terapêutica eram mulheres, a enfermeira, a fisioterapeuta, a terapeuta
ocupacional. É provável que não se sentissem à vontade para falar sobre essas questões
relacionadas a sexualidade, pelo menos não sem antes entenderem suas próprias
sexualidades, principalmente agora que estavam reaprendendo coisas sobre seus próprios
corpos.

Uma das questões que mais os incomodava era a própria visão de homem, era
difícil se verem como homens, tinham uma deficiência e acreditavam que as pessoas
que estavam cuidando deles era por algum sentimento de piedade ou algum tipo de
obrigação. Para esse grupo, aprender a ver sexo, afeto, carinho, cuidado e alguns outros
termos relacionados foi meio que ser ensinado a escreverem novas histórias. Lembro
particularmente de uma narrativa que foi muito discutida no grupo devido a representação
que talvez possa ter causado em cada um e nos valores coletivos contidos no grupo.
Um dos integrantes extremamente constrangido e envergonhado, com muita dificuldade
dividiu uma experiência vivida há algumas semanas, relatou que ao ser auxiliado pela
mãe na hora do banho, teve uma ereção.

O episódio pareceu ter sido muito impactante; ereção e mãe na mesma frase, era
como se não coubesse no contexto, acredito que só nas aspirações mais intimas no contexto
edípico possa ter espaço para esse tipo de pensamento, mas não naquele grupo de homens.
Uma espécie de culpa invadiu o recinto, falamos sobre respostas involuntárias, reflexos e
ações involuntárias do sistema nervoso. Precisamos mostrar num encontro seguinte o que
eram as sinapses e um pouco de toda essa resposta física. Parecia ser mais um obstáculo
a ser superado, não bastava o corpo não obedecer, ele ainda iria ter vontade própria?

Aos poucos toda aquela fala técnica começava a fazer sentido, os espasmos
pelo corpo, principalmente nas pernas, as ereções involuntárias que “não” ajudavam
os momentos de intimidade dos casais, como se o corpo tivesse uma vontade própria,
principalmente no começo do tratamento. Esses homens foram apresentados a uma
sexualidade que desconheciam, aprenderam a conhecer seus próprios corpos, os das suas
parceiras, foram descobrindo outras áreas que não eram exploradas e acima de tudo a ver
o sexo de uma forma diferente de como o percebiam antes do acidente.

Sujeitos com histórias tão distintas, com condutas tão individualizadas estavam
aprendendo a ouvir os companheiros, aprendendo com a experiência alheia, aprendendo
a ser um pouco mais humanos (quiçá empáticos), não era mais o meu problema, mas o
problema que atravessava o cotidiano de tantos, até de muitos anônimos não materializados
naquele ambiente, mas que certamente sofriam as mesmas inquietações, um bálsamo que
ecoava uma certeza “não se está sozinho”.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Trabalho em Psicologia com Mulheres e Gênero


na Amazônia: um relato de experiência

Eveny da Rocha Teixeira1

Esse relato começa com uma denúncia/confissão: não tive uma única aula sobre
gênero na minha graduação de psicologia, tomada entre 1995 e 2000 na Universidade
Federal do Pará. O tema, contudo, se interpôs como central na minha prática profissional,
marcadamente quando fui atuar na maior maternidade pública do norte do Brasil, ainda
na saúde do trabalhador. Nesse contexto, ainda no início dos anos 2000, passei a atender
majoritariamente mulheres. Mulheres racializadas e sobrecarregadas por plantões extras,
dando conta de pais que envelhecem e adoecem, filhos que adolescem e engravidam
namoradas, filhas e noras dependentes de si, maridos em subempregos e de um longo e
marcante histórico de violências. Como resultado, altos índices de depressão e ansiedade
e uma necessidade pujante de escuta e validação.

Se a imagem da Amélia da década de 40 estabelecia como companheira ideal a


que aceitava privações de toda ordem de forma resignada e amorosa, no espaço do lar, das
novas Amélias, as que trabalham “fora”, exige-se que sejam “guerreiras” e deem conta
do trabalho reprodutivo e do produtivo - uma tripla jornada de casa, trabalho e filhos
– ou seja, aumentou-se a sobrecarga feminina sem mudar a tônica da romantização do
sofrimento da mulher, aquela que mantém azeitada a engrenagem capitalista.

Ouvia o sofrimento das mulheres esgotadas, mas era eu ainda uma “guerreira”
em início de carreira, que acumulava cargos, mas ainda não vivenciara a experiência tão
solitária da maternidade. As outras seis horas de trabalho corrido eram em uma Vara de
violência contra mulheres. Psicólogas e assistentes sociais e pedagogas recém-concursadas
testemunharam a virada da Lei Maria da Penha e a adaptação dos Tribunais para a
implementação da Lei 11.340/06 e o crescente entendimento do potencial emancipatório
de um trabalho na justiça comprometido com a equidade de gênero.

Nessa costura entre a vida laboral, pessoal e acadêmica, vi a necessidade de ampliar


o arcabouço teórico para lidar com o fenômeno da desigualdade de gênero. O curso de
Aperfeiçoamento em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça (300h), resultado da
parceria da Secretaria de Políticas para Mulheres – SPM/PR e da Secretaria de Promoção
da Igualdade Racial – SEPPIR/PR (ambas criadas em 2003 pelo Governo Lula e existentes
até o ano de 2015, quando foram incorporadas ao Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial e dos Direitos Humanos, pela Presidenta Dilma), foi meu passaporte de entrada
para a compreensão da premência do adequado exercício dos direitos humanos, dos
esforços continuados de desconstrução de estereótipos e preconceitos, do protagonismo
das histórias de luta e resistência das mulheres racializadas, enquanto partes de grupos
historicamente marginalizados, na luta contra a condição de subalternidade de todas as
mulheres.

Ainda assim, embora o letramento racial tenha me dado críticas chaves de leitura
dos sistemas de opressão das mulheres racializadas, seja com o reconhecimento dos
1
Psicóloga - CRP10/1519. Psicóloga da FSCMP e do TJ-PA, mestra em teoria e pesquisa do comportamento pela UFPA e conselheira
do CRP-10 representante no CEDM-PA.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

privilégios da branquitude e da onipresença dos códigos machistas e racistas nas relações


sociais entre os gêneros, percebo que ainda adotava uma perspectiva citadina e apartada
da multiplicidade de vozes das mulheres do campo, da floresta e das águas, “nosotras”
de uma Amazônia indígena, quilombola, ribeirinha, da agricultura familiar, da pesca e do
extrativismo.

Expostas as fragilidades do meu lugar de fala, sendo uma mulher cisgênero,


lida como branca no norte do Brasil, onde moro desde 1993, criada na lógica da
heterossexualidade compulsória, mas com plush em mulheres que compõem uma grande
e importante rede de afetos, tanto no ambiente imediato quanto no meio virtual, de classe
média-alta, pós-graduada, concursada, na segunda metade da quarta década de vida,
separada e feliz com o mal-estar da maternidade, passo a relatar minha vivência com o
trabalho com gênero na Amazônia, quando da saída da saúde do trabalhador e do início
de uma experiência de atuação em turno noturno na maternidade, em especial, a violência
institucional contra mulheres que abortam, a violência obstétrica e a violência contra
pessoas transgênero.

Há sete anos passei a ter proximidade com o Programa Aborto Legal da Fundação
Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP), durante os atendimentos em regime
de plantão noturno. O referido Programa é resultado da articulação e mobilização dos
movimentos de mulheres paraenses e funciona, na Unidade de Urgência e Emergência
Obstétrica da FSCMP, desde 1998. Ainda hoje, contudo, mulheres em situação de violência
sexual enfrentam entraves sexistas e de ordem moral na garantia de um direito previsto
em Lei. Um destes é a declaração de objeção de consciência por parte do médico que lhe
presta atendimento. Ora, é sabido que nenhum médico será obrigado a realizar qualquer
procedimento que se oponha aos ditames de sua consciência e aos seus princípios –
religiosos ou não; contudo, se o serviço de saúde é referência no atendimento a mulheres
que sofreram violência sexual, cabe o acionamento imediato de outro profissional que
realize a Interrupção Legal da Gravidez. O que se observa é a permanência de mulheres
no Setor de Urgência e Emergência Ginecológica/Obstétrica por plantões consecutivos
ou a dispensa da usuária do serviço de saúde, para que retorne somente no plantão de
um profissional que entenda que esta modalidade de aborto é, fundamentalmente, ética e
humanitária, e realize o procedimento conforme direito da paciente.

A equipe psicossocial, parte do corpo multidisciplinar dos serviços de saúde,


precisa atuar como garantidora de direitos das mulheres, não raro, intervindo junto à equipe
médica e à direção dos serviços de saúde para relembrar os ditames da Norma Técnica
e para evitar a revitimização da mulher que sofreu violência sexual, por parte da equipe
de saúde que duvida da veracidade de seu relato ou a deixa exposta a desmoralizações e
humilhações.

A constatação de reiterados atos de negligência e imperícia por parte da equipe de


saúde que atua na Triagem Obstétrica da FSCMP fomentou uma reação dos Movimentos
de Mulheres que contribuíram para a implementação do Programa Aborto Legal no Pará,
apoiados pelo Conselho Regional de Psicologia – CRP-10, que solicitaram uma reunião
junto à Presidência da FSCMP e participaram ativamente do Seminário “Aborto: Uma
questão de saúde pública” realizado por ocasião da Virada Feminista no Pará em setembro

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

de 2018, que contou também com a presença de Hélio Franco (então secretário estadual
de Saúde Pública), um importante apoiador do Programa Aborto Legal por ocasião de sua
instalação, além da Comissão de Direitos Humanos da OAB e da Comissão de Gênero do
CRP-10, na qual já estava inserida, mesmo antes de ser eleita como Conselheira para este
XI Plenário.

Como resultado de tantas inquietações, um Projeto de Pesquisa foi apresentado


à Coordenação do Curso de Especialização em Controle, Prevenção e Intervenção na
Violência, do Instituto de Ciências da Saúde, da Universidade Federal do Pará, em 2019,
com fito de facilitar a troca de experiência entre profissionais do serviço de saúde da
FSCMP, em um espaço de diálogo seguro e respeitoso, por meio do uso de práticas
restaurativas (Teixeira, 2020).

Reconhecendo a presença constante das mulheres negras e periféricas como as


principais vítimas das insuficiências institucionais do sistema de saúde público no país,
bem como o risco de violência institucional à qual homens transgêneros estão submetidos
durante a gestação, parto e puerpério, o projeto anterior foi ampliado, de modo a incluir
outras duas pesquisas conduzidas por psicólogos residentes da FSCMP, o que resultou
na condução de seis práticas circulares nos moldes dos Círculos de Construção de Paz
(Pranis, 2011) com profissionais de saúde envolvidos na assistência a pacientes da
Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, entre 2019 e 2020.

Os efeitos da intervenção foram avaliados por meio de questionário de satisfação,


a partir dos quais foram elaboradas categorias de análise, que evidenciaram a efetividade
da prática em possibilitar a emersão de sentimentos e subjetividades no processo dialógico
e ratificaram o impacto da prática na transformação de realidades adversas a partir da
interrogação da branquitude, dos privilégios, da lógica cisheteronormativa e binária da
qual está imbuído o modelo médico de atendimento no Estado. Os resultados detalhados
dessa intervenção podem ser conhecidos em Teixeira, Silva e Pontes (2021).

Paralelamente ao trabalho exercido desde 2006 na FSCMP, minha atuação junto


à Central de Equipe Multidisciplinar das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher do Tribunal de Justiça do Estado do Pará também demandou um constante
aperfeiçoamento sobre a perspectiva de gênero, me aproximando de uma perspectiva
decolonial. Essa visão de mundo passou a me afetar de maneira irrevogável quando da
realização da Especialização em Teorias de Gênero e Feminismos na América Latina
– GEPEM/UFPA (2020-2023). Assim, meu fazer na psicologia passa a, cada vez mais,
assumir uma forma de intervir no mundo que questiona e aponta para as permanências
e desigualdades provenientes do processo de colonização das Américas, da África e da
Ásia, analisando os impactos da colonialidade do poder, do saber e do ser nas vidas das
mulheres negras e racializadas.

Passo então a me apoiar no olhar feminista decolonial de Vergés (2021), que expõe
e se contrapõe a um patriarcado neoconservador e neoliberal que sustenta e encoraja o ódio
contra minorias, trans, queer, trabalhadoras do sexo, racializades, migrantes, muçulmanos.
O feminismo decolonial se afasta de uma lógica binária, assumindo a violência como
componente estruturante do patriarcado e do capitalismo, e não como uma especificidade

Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

111
PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

masculina. Assim, se afasta também do feminismo hegemônico, branco e eurocentrado,


este que reforça a construção social do inimigo, do homem negro e racializado como
naturalmente violento, um estuprador em potencial.

A leitura de Vergés sobre a violência interpreta o feminicídio como a expressão


última de um continuum de poder que começa com a prevalência das desigualdades sociais
e econômicas, do assédio sexual, das violências sexuais e das representações sexistas
que estruturam o imaginário social e o espaço público (2021). As leituras feministas
decoloniais sustentam que os esforços de desvulnerabilização de pessoas atingidas por
sistemas de opressão que se interseccionam passam por políticas públicas que também
fomentem as redes de cuidado, de solidariedade e de realização coletiva do Bem-Viver.

Travar essa discussão sobre a decolonialidade em espaços de poder tem sido


um exercício bastante recompensador, desde que encontrei eco para o debate das
interseccionalidades no Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero (2021),
editado pelo Conselho Nacional de Justiça. O judiciário, com essa publicação, avançou
na direção de reconhecer que a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do
racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, não se restringindo à
violência doméstica, e produzem efeitos na sua interpretação e aplicação, inclusive, nas
áreas de direito penal, direito do trabalho, tributário, cível e previdenciário.

Uma formação dirigida aos magistrados e magistradas, durante a Semana da


Justiça pela Paz em Casa em agosto de 2021, que orientou sobre perspectiva de gênero e
antidiscriminatória, foi conduzida pela então juíza auxiliar da coordenadoria Estadual das
Mulheres em situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Pará
(TJPA), Reijjane Ferreira e por mim, como psicóloga vinculada às Varas de Violência
Doméstica.

Com a instituição da obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas,


relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional,
por meio da resolução n. 492, de 17 de março de 2023, a Escola Judicial do Poder
Judiciário do Estado do Pará - EJPA aprovou de bom grado o projeto do Curso Saberes
Transdisciplinares para o Julgamento com Perspectiva de Gênero, em novembro de 2023.
Conduzido por mim e por mais um psicólogo da Central de Equipe Multidisciplinar da
Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Ananindeua, respectivamente
e por uma pedagoga da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência – CEVID/
TJPA, o curso incluiu, em sua ementa, os temas “sexo, gênero e sexualidade”, “violência
doméstica baseada no gênero”, “direitos humanos das mulheres” e “uma teoria feminista
da violência”.

A defesa intransigente dos direitos de todas as mulheres e suas interseccionalidades


também restou evidenciada na Carta Compromisso2 fruto das reflexões e diálogos
promovidos durante o “Germinário Mulheres, Psicologia e Enfrentamento às Violências”,
promovido pelo Sistema Conselhos de Psicologia, em novembro de 2022 e que vem
embasando as ações do XI Plenário do CRP-10, do qual faço parte como Conselheira
eleita, com assento no Conselho Estadual de Direitos da Mulher (CEDM).
2
https://site.cfp.org.br/sistema-conselhos-de-psicologia-lanca-carta-compromisso-em-defesa-dos-direitos-das-mulheres/
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Ainda no Contexto de atuação como Conselheira do CRP-10 com assento no


CEDM, estivemos presentes na 7a Marcha das Margaridas, em agosto de 2023, pela
reconstrução do Brasil e pelo Bem Viver, com destaque para a Plenária dos Povos
“Mulheres da Amazônia pela justiça socioambiental e pelo Bem Viver”, em um esforço
para organizar as diversas formas de resistência das mulheres camponesas, indígenas,
quilombolas, negras, populares, das águas, das florestas e das cidades, mulheres trans
e lésbicas enquanto força de resistência em defesa da vida. A participação do CRP-
10 na Marcha evidencia que a psicologia na Amazônia se coaduna aos princípios do
feminismo anticapitalista, antirracista e antipatriarcal. Um feminismo que valoriza a vida,
vinculado à defesa da agroecologia, dos territórios, dos bens comuns e da soberania e
autodeterminação dos povos.

As possibilidades de uma psicologia feminista na Amazônia foram a pauta


trazida para uma discussão, em agosto de 2023, com psicólogas e psicólogos que atuam
com gênero, na rede de enfrentamento à violência, incluindo a equipe de psicologia do
Parapaz Mulher, a Ouvidoria da Mulher/TJPA e analistas judiciárias vinculadas às Varas
de Violência Doméstica na capital e no interior do Estado.

Outra pauta recorrentemente trazida, no ano de 2023, tanto às reuniões do


Conselho Estadual de Direitos da Mulher com a recém-criada Secretaria das Mulheres
– SEMU, quanto às do Grupo de Trabalho (GT) para mapeamento e acompanhamento
da legislação que versa sobre direitos das mulheres, capitaneada pela Procuradoria
Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Estado, diz respeito a uma falta. Como
psicóloga vinculada a serviços que atendem majoritariamente mulheres paraenses, ao
longo dos últimos 17 anos, me ressinto de não ter um serviço, no Estado, que preste
acompanhamento psicológico de mulheres com perspectiva de gênero, i.e., apto a trilhar
com mulheres diversas o caminho do questionamento e da desconstrução de estereótipos
de gênero, abordar as dinâmicas de poder e as estruturas de opressão relacionadas ao
gênero e articulado com outros programas e políticas produtores de autonomia emocional,
relacional, educacional, financeira, de saúde reprodutiva, autonomia digital e cidadã.

Com a conclusão de que não há possibilidade de uma psicologia na Amazônia


que não seja feminista, antirracista e decolonial, haja vista que não é possível falar de
saúde mental no nosso contexto sociocultural sem analisarmos as questões relacionadas
a gênero, agroecologia, justiça social, colonialismo e bem-viver, em uma perspectiva
intransigente de defesa dos direitos humanos das mulheres, encerro (provisoriamente)
esse relato de experiência apontando a necessidade de se fomentar, cada vez mais, espaços
de formação e letramento de gênero e racial para psicólogas, psicólogos e psicólogues na
Amazônia e de políticas e programas de Saúde Mental para as mulheres ancorados na
perspectiva de gênero.
REFERÊNCIAS
PRANIS, Kay. Círculos de Justiça Restaurativa e de Construção de Paz: guia do facilitador. Tradução de Fátima de Bastiani.
Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Departamento de artes gráficas. 2011.
TEIXEIRA, Eveny da Rocha. Práticas circulares na sensibilização dos profissionais de saúde para a prevenção da violência
de gênero nos cuidados em obstetrícia. Projeto de pesquisa apresentado ao comitê de ética em pesquisa da Fundação Santa
Casa de Misericórdia. 2020.
TEIXEIRA, Eveny, SILVA, Lilian e PONTES, George. Práticas Circulares na Sensibilização de Profissionais de Saúde Sobre
Violências Institucionais Contra Pessoas com Capacidade Gestativa. Gênero na Amazônia, Belém, n. 20,jul./dez.,2021
VERGÈS, Françoise. Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção. São Paulo: Ubu Editora,
2021.
Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região – Pará e Amapá (CRP-10)

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Fator amazônico e as práticas da psicologia na reconstrução do SUAS:


estrutura, financiamento e territórios1

Saudações a todas e todos. Para construir essa fala, acionei colegas da região
Norte, que atuaram e/ou atuam no SUAS ou em contextos atravessados pelo SUAS, alguns
mencionados nominalmente e outros de maneira anônima . Essa rede foi acionada por
meio da psicóloga Letícia Palheta, do CREPOP do CRP-10, e por intermédio da psicóloga
Rebeca Larissa dos Santos Marinho, da ABRAPSO Norte. A partir dessas conversações,
tomei como ponto de partida o diálogo com o psicólogo Max da Costa Alves, que atua em
Abaetetuba, no Pará, é vice-presidente do CRP-10 e membro da Comissão Especial de
Psicologia na Assistência Social.

Para ele, falar de Amazônia é falar de nuances, de um cenário complexo, que


coloca desafios objetivos e subjetivos para a psicologia no SUAS. Como salientou a
psicóloga e professora Eloísa Amorim de Barros, de Óbidos-PA, atuante em Santarém-PA,
durante o encontro da ABRAPSO: “é preciso falar das Amazônias”. Na mesma direção,
a psicóloga Lidiane Colares de Faro, da gestão estadual da assistência social no Amapá,
e que integra a CONPAS, trouxe a preocupação com relação a geografia da Amazônia
Amapaense, trazendo aspectos como o difícil acesso a alguns territórios como um desafio
para a constituição de equipamentos do SUAS, como também do recurso humano para o
trabalho: “o que está especificado não dá conta dessa realidade”.

O mesmo ocorre, conforme conversamos, mediante a grande riqueza étnico-


cultural, com a questão da pluralidade de concepções sobre família, infância, entre outras
categorias que atravessam a política pública, e que também configuram uma contradição
que necessita ser pensada no controle social, problemática que é apontada na Referência
Técnica para atuação da Psicologia junto aos Povos Indígenas:

[...] A PNAS prevê a necessidade da adoção de mecanismos que possibilitem


às(aos) indígenas ações que garantam o direito aos seus costumes, crenças,
tradicionalidades, bem como a promoção de um trabalho social equitativo, porém
não dá indicações metodológicas de como este trabalho poderia ser realizado.
Somente em 2014 é lançado o caderno de orientação técnica sobre o “Trabalho
Social com Famílias Indígenas” [...] (...) Para a efetivação da assistência
diferenciada aos povos indígenas, especialmente no que tange a matricialidade
sociofamiliar e socioterritorial, é importante a tomada de concepções ampliadas
do conceito de família e território, principalmente, quando referenciados desde as
compreensões cosmológicas dos próprios povos. Entretanto, a tímida proximidade
dos conhecimentos originários na elaboração das políticas conduz à reprodução
de noções ocidentais, normatizando funções e modos de atuação em modelos
restritos. (CFP, 2022, p. 153-154).

Falar das Amazônias reconstruindo o SUAS, portanto, parece apontar para a


necessidade de ouvir-se as vozes dos povos e construir práticas horizontais, a fim de
promover serviços diferenciados. Contudo, ainda há que se dizer que nessas Amazônias
1
Por André Benassuly Arruda Andreza, Evangelista Guimarães Tavares, Carmen Hannud Carballeda Adsuara, Eloísa Amorim de
Barros, Fernanda Ingredy Dantas de Araújo, Giovany dos Santos Lima, Larisse Mayla Araújo de Souza, Leandro Amorim Rosa,
Letícia Maria Soares Palheta, Lidiane Colares de Faro, Marcela Acioli, Max da Costa Alves, Rebeca Larissa dos Santos Marinho,
Robenilson Moura Barreto, Socorro de Fátima Moraes Nina, Suelí Marques Ferraz e Valber Luiz Farias Sampaio.
2
Fala coletiva, apresentada por Carmen Hannud Carballeda Adsuara, no Webinário da Região Norte, promovido pelo Conselho
Federal de Psicologia, preparatório para a 13ª Conferência Nacional de Assistência Social, ocorrido em 26/07/2023.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

muitas vezes o Estado não se faz presente, havendo uma ausência da própria psicologia
nos territórios, como pude vivenciar quando morei com o povo Ãwa na Ilha do Bananal
no Tocantins, como também em ocupações urbanas. Há uma questão geográfica, mas
também uma intencionalidade política, portanto.

Nesse sentido, não é possível falar dessa diversidade sem falar de ataques aos
direitos; dos assassinatos no campo; do trabalho escravo, cenário acirrado nos anos de
pandemia e pandemônio. No caso do Acre, isso fica muito evidente na conversa que tive
com o psicólogo socioambiental Leandro Rosa, atuante com movimentos populares. Ele
me explicou que a psicologia socioambiental tem sido construída em seu Estado a partir
da luta dos seringueiros, e o desafio que se coloca no território tem sido pensar em como
essa Psicologia pode vincular-se à questão da crise climática e que o que tem sido pensado
a partir da tradição de Chico Mendes, junto às alianças dos povos da floresta, é que a crise
climática não pode ser superada dentro do capitalismo, implicando na necessidade de
uma reestruturação social e de se pensar em uma sociedade não capitalista.

Vale dizer, é preciso falar sobre isso especialmente no contexto do SUAS, que é
uma política que, desde a concepção, trabalha diretamente com violências e violações
de direitos, como sinalizou o psicólogo e professor Robenilson Barreto, com histórico
de atuação em diferentes no Tocantins e no Pará. Ou seja, para além de uma escuta dos
territórios, se faz necessário pensar com muita seriedade e compromisso na segurança
dos profissionais, reconhecendo-lhes como “agentes de direitos humanos”, conforme o
psicólogo e professor André Benassuly trouxe em nossa conversa.

André contou que em 2006, quando atuou no município de Trairão-PA, trabalhou


no CRAS e fez um trabalho com as famílias de crianças e adolescentes em condição de
vulnerabilidade, realizando ações que “bateram de frente” com a “mafia” de prostituição
infantil na cidade. Foi ameaçado de morte e pouco tempo depois foi embora. Ele
explicou que apenas a partir dessa experiência se deu conta de que era um agente de
direitos humanos - algo que acredito que precise estar nítido na política pública, acerca da
identidade profissional no SUAS.

No Encontro ABRAPSO, em Santarém-PA, um colega de Rondônia, denunciou


sobre os riscos contra sua vida, na defesa dos direitos humanos na assistência social.
Ele relatou o seguinte: “Os juízes agrários de Rondônia criminalizam a luta pela terra.
Deu reintegração de posse para grileiros [...]. E nos intimou a ir até a fazenda conversar
com o movimento da Liga dos Camponeses Pobres e explicar que eles tinham que sair.
Mas o endereço na sentença era o da fazenda. Fomos interceptados pelos seguranças
[...] Semanas depois desse fato, veio a expulsão das famílias de forma violenta. Fomos
obrigados a manter um abrigo provisório para estas famílias[...] recebemos mais de 500
pessoas e nenhuma estrutura para manter o abrigo. Foi uma semana e meia de terror, sendo
ameaçados pela PM e Força Nacional. Sempre ameaçando invadir o abrigo, prender e até
matar as pessoas, incluindo o psicólogo”.

Contudo, as violências contra os profissionais podem ser protagonizadas por


diferentes atores. Outro companheiro da psicologia que possui histórico de atuação no
nordeste do Pará relatou que quando era técnico na medida socioeducativa, passou por

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

uma situação desafiadora no acompanhamento de um jovem. O rapaz tinha o entendimento


de que a equipe que o acompanhava estava do lado do juiz e decidiu ameaçar as pessoas.
Ele lembra que foi seguido mais de uma vez e depois recebeu ameaças. Ele procurou
orientação junto ao CREPOP, e a partir disso fez um diálogo com a gestão do serviço
que resultou em um seguro de vida para a equipe. Esse fato abre vários debates acerca
de como trabalhar a segurança em um serviço “portas abertas” e que merece um olhar
cuidadoso do controle social.

No contexto específico de Roraima, uma companheira psicóloga denunciou que


“temos duas questões: facções e garimpo [...]. Não só os profissionais, mas as próprias
famílias são vítimas. Em determinados casos de violência, os agressores são membros de
facção, e por vezes, conseguem contatar os profissionais que acompanham as vítimas. Por
algum motivo, enxergam nossa atuação como um risco para eles. Já recebi telefonemas
também já fui avisada que estava sendo ‘vigiada’ e que qualquer conduta que desagradasse,
teria consequências. Mais recentemente, vimos muitos casos de exploração sexual [...] E
o mesmo mecanismo de ameaça [...]. Acredito que isso seja reforçado pela atuação do
judiciário de utilizar nossos relatórios [...] como parte de suas decisões nos processos”.

Em Roraima, Andreza Evangelista Guimarães Tavares, que atua no CREAS em


Boa Vista, relatou algo convergente: “houve situações em que meu parecer técnico para
desligamento de casos não foi acatado por juízes da Vara da Infância. [...] O sentimento
é de que sua capacidade técnica não vale nada diante de um ‘cumpra-se’ da justiça. Faz
parecer que os psicólogos do SUAS prestam serviços jurídicos e são constantemente
acionados para tapar brechas onde faltam profissionais”.

No interior do Tocantins, Sueli Marques Ferraz, psicóloga pesquisadora da


população em situação de rua, ao tentar articular a rede de políticas públicas junto a essa
população sofreu perseguições e ameaças: “diversas vezes quando conversava com as
pessoas em situação de rua elas me alertavam sobre os cuidados que eu devia ter pois
tinha pessoas me seguindo. [...] fui seguida [...] Recebi ligações com ameaças. [...] Para
terminar a pesquisa, precisei acionar minha rede de apoio para fazer ronda enquanto eu
permanecesse no local”.

As violências contra psicólogos atuantes com direitos humanos no SUAS ou em


contextos atravessados pelo SUAS são as mais diversas, ocorrendo também nos espaços
de trabalho. Voltando para o nordeste paraense, no CREAS, um outro relato de profissional
trouxe o conhecido assédio moral como uma violência contra o psicólogo defensor da
política pública e dos direitos. A partir da recusa em realizar uma prática anti-ética para
beneficiar determinada família, o psicólogo foi ameaçado de demissão por um vereador.
Situação semelhante aconteceu comigo no Estado do Tocantins, em um contexto
atravessado pelo SUAS. Quando trabalhava em uma instituição de ensino superior privada,
ao mesmo tempo em que atuava no Movimento Nacional de Luta pela Moradia, junto
com Robenilson Barreto, em uma cidade do interior, por meio do movimento estávamos
buscando fortalecer a auto-organização dessa população na defesa do acesso à saúde e
à assistência. Após alguns tensionamentos com a gestão do município e com o conselho
tutelar, no contexto do movimento social, fui ameaçada de demissão na instituição
particular, gerando adoecimento psíquico.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Outro relato, anônimo, veio de uma colega que possui experiência no Pará e no
Amapá, que partilhou sobre a precarização do serviço: “Um serviço que tem que ser
ofertado de qualquer forma, com demandas enormes; e quando a gente não faz aquilo que
eles esperam que a gente faça, nós somos taxados como maus profissionais. Já recebi de
formas absurdas situações de assédio moral, de rechaçamento, por não fazer aquilo que
eles queriam que eu fizesse. [...] Aí eu tinha que me impôr, se não as crianças não tinham
seu direito garantido [...]. Em outro município no Pará, próximo a Belém, eu recebi muitos
questionamentos do Conselho Tutelar [...], que levava a maioria dos acolhidos pra lá. E
eles queriam que a gente tratasse os acolhidos da forma que eles tratavam [de maneira
punitiva e violenta]”.

Em Roraima, uma companheira da psicologia relatou de maneira convergente


que “a atuação de diversos profissionais dentro do SUAS [...] é perpassada pelo assédio
moral. Tanto da gestão, quanto dos órgãos da justiça, e conselhos tutelares. Isso inclui
atribuição de demandas de outras políticas, perseguição, multas advindas do judiciário”
etc.

Quando perguntei para a psicóloga e professora Socorro de Fátima Moraes Nina


sobre o cenário de violências contra os profissionais em Manaus, ela comentou que isso a
fez lembrar de situações que ela mesma passou no contexto do SUS, e sobre o que ela não
pensava há algum tempo, pois “estavam invisíveis”. Sobre o SUAS, em específico, ela
não conseguiu identificar nenhuma situação junto a outros colegas, mas isso não significa
que não ocorra; ela mesma enfatizou que “a psicologia tem sempre que escolher um lado”.
É possível que as psicólogas passem por violências e não reconheçam aquilo, fazendo-se
necessário se questionar sobre isso. Considerando esse cenário possível, ela acha muito
importante pesquisar sobre as violências contra profissionais da psicologia no SUAS, e
em outras políticas públicas, a fim de tornar isso visível.

Conversando com Max da Costa Alves, refletimos que nesse território complexo, a
condição de trabalho fortalece a segurança do profissional na contramão de uma condição
sem recurso, sem estrutura e sem rede para realizar nossas práticas. Letícia Palheta, relatou
sobre encontros que tem realizado “com psis da assistência, e o que temos discutido [...]
gira em torno da rotatividade de profissionais e a precariedade dos vínculos de trabalho.
Os serviços ainda preconizam [...~] equipes mínimas, dificultando a realização [...] do
acompanhamento das famílias”, pautas que dialogam com o financiamento do SUAS.

Por outro lado, conforme Robenilson Barreto, “não necessariamente a questão


orçamentária resolve o problema das ameaças e da fragilidade da relação de trabalho”,
é importante que ocorra “uma pactuação entre as federações e entidades[...]: a abertura
de canal de denúncia, uma aproximação mais efetiva desses profissionais com o sistema
judiciário; um tipo de relação que garanta o exercício legal do nosso trabalho”.

Em meio a esse debate, considerando que o Sistema Conselhos de Psicologia


ocupa espaços no controle social a fim de defender os direitos dos usuários dos nossos
serviços, vale refletirmos que para que o direito dos usuários do SUAS seja garantido,
quem defende esse direito precisa ter respaldo. Para reconstruir o SUAS, reinventar

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

as práticas conectadas com as realidades dos territórios, para defender direitos, se faz
necessário pensar atentamente sobre essa relação. Nesse sentido, para fechar minha
contribuição gostaria de fazer algumas proposições em diálogo com os colegas; quais
sejam:

• Com relação à pauta étnico-cultural, citando Robenilson Barreto, “o SUAS tem


que ter como princípio ser anti-racista”, nesse sentido, tendo em vista a demanda de
fortalecer o aspecto diferenciado no atendimento às diferentes comunidades, faz-
se importante pensar e criar estratégias para que as lideranças indígenas, negras,
quilombolas e tradicionais estejam cada vez mais participantes do controle social
no cotidiano do SUAS;

• Sobre a pauta de formação e fortalecimento de vínculos em um contexto


socioambiental próprio, emerge cada vez mais a necessidade de se pensar o
SUAS junto aos movimentos populares, a exemplo do que tem sido feito no Acre
com uma “práxis política socioambiental para uma transformação estrutural da
sociedade, fortalecendo coletivos e vínculos a partir do horizonte de mudança
estrutural na sociedade, conforme Leandro Rosa;

• No que se refere à pauta da proteção das psicólogas, faz-se necessário criar espaços
para articulação de uma rede de proteção e prevenção das violências contra os
profissionais. Robenilson Barreto partilhou que seria interessante pensarmos em
um Observatório, ou em um Fórum, enfim, em uma pactuação entre psicologia,
defensoria, ministério público, movimentos sociais, sindicatos, universidades,
entidades da psicologia, etc, que possa realizar ações de vigilância, criar canais
de denúncias, produzir relatórios, acompanhar, etc, em relação às “violações de
direitos dos trabalhadores do suas”;

• Nesse sentido, somo forças com a professora Socorro Nina e com o professor
Robenilson Barreto na proposta de produção de uma pesquisa, portanto, acerca
das “violações de direitos dos trabalhadores do suas e de contextos atravessados
pelo SUAS”, como um conhecimento de realidade a ser produzido em caráter de
urgência pelo controle social a fim de desvelar essa realidade de trabalho para a
reconstrução do SUAS.

Por fim, agradeço ao CFP pelo convite, e a todas e todos colegas parceiras e
parceiros pela construção conjunta. Espero que esse trabalho singelo, mas coletivo
e comunitário, tenha contribuído na caminhada rumo à 13ª Conferência Nacional do
SUAS, de modo que as pautas do Projeto Social das Psicologias Amazônidas possam
somar na reconstrução não apenas do SUAS, mas do Projeto de Sociedade como um todo.
Obrigada!

REFERÊNCIAS
CFP, Conselho Federal de Psicologia. Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) junto aos povos indígenas.
Conselho Federal de Psicologia, Conselhos Regionais de Psicologia, Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas
Pública. — 1. ed. — Brasília: CFP, 2O22.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

O CRP-10 pela Memória, Verdade e Justiça na Amazônia:


entrevista com Jureuda Duarte Guerra1

COTEC/CRP-10: Você pode se apresentar?


Fale um pouco de você como psicóloga.

Jureuda: Eu sou psicóloga com formação em psicologia pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, mas até o bacharelado no ano de 92, eu fiz aqui em Belém, terminei
pela UNESPA, antiga UNESPA, atual UNAMA. E fiz a formação de psicólogo, formando
em 94 na UERJ. É, 94/95 na UERJ. Minha trajetória sempre foi ligada à saúde mental.
Quando eu fui pro Rio de Janeiro, eu conheci o hospital universitário Pedro Ernesto, onde
eu comecei a fazer estágio, e lá tinha um serviço, chamava-se Hospital Dia, já ligado à
Reforma Psiquiátrica. O ano era noventa e três, noventa e dois, noventa e três, e nós já
começávamos a fazer. Tinha acabado de sair, né? Da Constituição de 88, e começava-se
a criar os primeiros serviços ligados ao Sistema Único de Saúde. E o Hospital Dia era
preconizado, foi preconizado na quinta [conferência] nacional de saúde, na quinta ou na
sexta, na oitava conferência nacional de saúde. E baseava-se nos serviços substitutivos,
onde os primeiros serviços substitutivos que aconteceram foram em Santos e São Paulo a
partir de 87, 88. Então 92, 93 ainda estava tudo muito recente.

COTEC/CRP-10: Você tem uma atuação na psicologia muito ligada à pauta dos
direitos humanos, não é? O que te levou a fazer o curso de psicologia e como foi o teu
processo de formação?

Jureuda: Desde muito jovem, começo a me interessar pelas aulas de história, pela minha
formação familiar, um pai progressista, uma família onde se podia debater, e vivíamos a
minha adolescência ainda antes da ditadura. Então, eu com 13 anos, eu tive oportunidade
de assistir na Avenida 1º de Dezembro, hoje Avenida João Paulo, o discurso pelas Diretas
Já e fui levada pelo meu pai e eu tinha 13 anos. Saí dali já para criar o Grêmio Estudantil
no Colégio Moderno e minha chapa ganhou uma chapa de meninos ligados a grupos,
grandes grupos empresariais aqui no estado, grupos de televisão, e minha chapa ganhou
uma chapa que tinha o nome de Novos Passos, ganhou a chapa que se chamava Black Tie,
não por atoa, era uma compreensão ideológica já e política, Novos Passos ali se forjando
e a pequena gente ia se candidatando com uma chapa chamada Black Tie e não parei.

Então, desde a sétima série, quinta série, sexta série, sempre ligada ao Grêmio Estudantil.
Quando eu entro na universidade em 88, eu fui para o primeiro Centro Acadêmico de
Psicologia, lá ligado à Unespa, que hoje é o UNAMA e a partir de então, várias lutas
naquela época se forjavam, lutas pela meia passagem, não se tinha passe estudantil, se
tinha só um vale, tipo um vale de transporte, era só 33, a luta para que se fosse 66 passes,
ida e volta e um final de semana e a gente queria o passe livre, conseguimos a meia
passagem estudantil, com muita luta, manifestações com 10 mil estudantes na rua e eu,
nessa época, era presidente do centro acadêmico, logo depois fui presidente do centro, não
fui presidente, fui da direção, estendida da direção do Diretório Central dos Estudantes da
Unespa e já entendendo que eu tinha uma grande liderança, porém, era mulher e naquela
1
Entrevista realizada pelo coordenador técnico do CRP-10 Robert Rodrigues e transcrita pela estagiária da Coordenação Técnica
(COTEC) Dalila Clementino.
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

época só tinham duas mulheres no movimento estudantil na minha universidade, as duas


da psicologia.

Tinham meninas também do Centro Acadêmico de Serviço Social, no ano seguinte e a


partir de então começa o movimento estudantil, então eu comecei a fazer movimento
estudantil, militar no movimento estudantil. No momento que você contava as mulheres
na mão, então tinham 10, 15 meninas participando de reunião; um assédio, um machismo,
hoje com essa compressão que nós temos, que era assédio e machismo, nós vivemos tudo
aquilo. Muito cuidado, tinha muito cuidado com o meu corpo, porque eu percebia muita
malícia, muita maldade e as aulas de antropologia, nos primeiros anos de psicologia, me
possibilitaram a ir traçando o meu caminho dentro de uma psicologia, nos olhando para
a minha região, para a América Latina, já me chamava a atenção de não terem autores
da América Latina, mas a antropologia foi me buscando autores como Martim Baró,
que eu fui uma das únicas que conhecia na minha formação e eu fui entendendo que
aquelas reuniões que eu fazia ligadas pelas Direta Já no ano de 80, iam me engajar para
ter um entendimento, porque 88 a gente sai da ditadura, o Brasil volta, não a votar para
presidente, a minha primeira eleição para prefeito foi em 88, minha primeira vez que eu
voto já em 88, a primeira eleição para prefeitura, eu lembro perfeitamente de quem eu
votei, votei já na Socorro Gomes, do Partido Comunista do Brasil, em 88 para vereadora
e foi a vereadora mais votada, teve muitos votos.

E aí eu começo a entrar numa, a perceber a importância que tinha a organização política na


minha vida e a luta pelos direitos humanos e aí eu fui traçando o meu curso de psicologia,
pensando, trabalhando com as mulheres quebradeiras de castanha, trabalhando em
serviços da creche ligada ao que hoje é a SEASTER, antigamente era a Febespe e aí
sempre pensando nesse caminho para as crianças e adolescentes, mulheres em situação de
violência e vivendo que não tinha isso na minha formação, não se falava nisso, mas eu tinha
uma professora na UNAMA, na UNESPA, que era professora Sandra Brandão, histórica
militante nos direitos das mulheres, que me ajudou muito a pensar essa psicologia que
hoje, a campanha nacional do Conselho Federal de Psicologia, lançada agora no último
dia 10 de dezembro, é exatamente essa psicologia que eu já me atentava há 30 anos atrás.

COTEC/CRP-10: E dentro da psicologia, como foi o teu processo de aproximação do


sistema conselhos de psicologia?

Jureuda: No ano de 92, eu estava no Centro Acadêmico, 91, 92, e comecei a participar
a convite do próprio Conselho de Psicologia, chamando o Centro Acadêmico. A gente
fazia muitas semanas da Psicologia, e nós, pelo Centro Acadêmico, também fazíamos
muitas atividades. Só que o Conselho de Psicologia, o sistema, ainda era ligado ao CRP-
01. Então, em 88, quando eu entro na Psicologia, ainda era ligado a Brasília, 88, 89,
90, 91 eu participo das primeiras reuniões para desmembramento do CRP-01 e o nosso
CRP, pela data de inscrição e solicitação para o Conselho Federal, nós fomos o décimo
Conselho a ser criado, por isso que nós somos CRP-10. Pela grandiosidade da Amazônia,
nós fomos o primeiro CRP a ser desmembrado, em 92, e nós recebemos o décimo lugar
de desmembramento, por isso CRP-10. E pela aproximação com o Estado do Amapá,
nós ficamos sede no Pará e uma Sessão no Amapá. Em 92, eu era do Centro Acadêmico,

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

mas só que eu me transfiro para terminar a formação de psicólogo no Rio de Janeiro


e participo das reuniões mais ligadas ao Movimento da Luta Antimanicomial no Rio
de Janeiro, os primeiros movimentos, primeiras reuniões ali, já pensando na influência
que tinha a reforma psiquiátrica em função da reforma sanitária, em função das reuniões
que eu ia do Conselho Nacional de Saúde, eu participava de reuniões do Movimento da
Luta Antimanicomial ligada ao... Paulo Amarante me fez convites, professores da UERJ,
professoras que hoje recebem o nome do Prêmio de Direitos Humanos do Conselho
Regional de Psicologia, que é o Prêmio Margareth, esqueço o nome dela, mas é o Prêmio
do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, é a esposa do meu professor que
me fez o convite, professor Demir Pachelli, que me fez o convite para ir para estagiar
com ele no Hospital Pedro Ernesto, e aí eu começo a me aproximar, eu fui em reuniões
do Conselho de Psicologia, conheci Cecília Coimbra, através da Cecília Coimbra que foi
a primeira presidente do Conselho Federal, da Comissão Nacional de Direitos Humanos
do Conselho Federal de Psicologia, a Cecília Coimbra, eu conheço o grupo Tortura Nunca
Mais. Eu era casada na época com o Paulo Fonteles e nós frequentávamos o atendimento
da ONG Tortura Nunca Mais para atendimento psicológico a pessoas vítimas da ditadura
militar no Brasil, e aí eu começo sempre fazendo essa ponte, ditadura, conselho, esse
sempre foi o meu tripé, luta de direitos humanos, resistência e enfrentamento ao que resta
da ditadura nas nossas relações e a psicologia com o embasamento de uma psicologia
social e crítica, uma psicologia transformadora, uma psicologia que eu passo a conhecer
também a partir dos anos 90, o movimento Cuidar da Profissão.

O movimento Cuidar da Profissão era um movimento que foi sendo pensado e criado por
pessoas que já faziam parte do Conselho Federal de Psicologia, que era a Ana Bock, o
Marcos Vinícius, o Odair Furtado. São pessoas que, a partir da reconstrução do Brasil,
a partir do finalzinho dos anos 80, teve toda uma militância na PUC de São Paulo, de
resistência, na Bahia, Marcos Vinícius, Minas Gerais, São Paulo, porque no Rio de
Janeiro, onde eu morava, havia até intervenção do Conselho Federal, porque era um
conselho muito atrasado, um conselho confuso, depois que a Cecília Coimbra entra no
Conselho, mas em 91, 92, era bem confuso. Esse pessoal, Cecília Coimbra, vai fazer parte,
a Margareth vai fazer parte a partir de 94, 95, 96, e aí junta com o pessoal de São Paulo,
ligado ao Cuidar da Profissão, no Rio de Janeiro era o Ética e Profissão, em São Paulo
era o Cuidar da Profissão. E esse pessoal vai assumir o Conselho Federal de Psicologia e
vai possibilitar uma psicologia mais democrática, uma psicologia olhando para o Brasil,
uma psicologia com compromisso social, construindo um pensamento crítico e político
para a psicologia brasileira. Tanto que é no início dos anos 2000, efetivamente em 2005,
que a gente faz a reforma, eu já estava em Belém, já tinha voltado para o Brasil, porque
eu saio em um período, vou estudar a reforma psiquiátrica italiana, que dá origem à nossa
reforma psiquiátrica brasileira, eu saio do Brasil em um período, quando eu me formo, não
volto logo para Belém, vou fazer Saúde Pública e Saúde Mental na Fundação Oswaldo
Cruz, conheço mais aproximadamente, me torno próxima e estagiária do Paulo Amarante,
vou para fora do Brasil, e aí eu volto no início dos anos 2000 para Belém, para ajudar a
construir os serviços de saúde mental em Belém. Em 2005, por exemplo, eu participo das
reuniões para a reforma do Código de Ética, a gente fez um grande movimento nacional,
com muitas reuniões nacionais, o Código de Ética foi todo construído coletivamente,
foram movimentos belíssimos da construção.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

COTEC/CRP-10: E o que te levou a se aproximar da pauta da memória, verdade e


justiça?

Jureuda: Bom, Memória, Verdade e Justiça estão em mim desde os meus 13, 14 anos.
Eu assisti ao ato público aqui em Belém, nas campanhas das Diretas. Eu não cheguei
nem perto do palco, mas eu vi a festa. Lembro de longe a Fafá de Belém cantando o Hino
Nacional, vi muita gente na rua, vi a alegria que o meu pai tinha. Teve quando a gente
ficou com aquela confusão com a morte do Tancredo, assumiu o Sarney. Meu pai dizia
que não ia mudar muita coisa, mas já era o começo. Então ele comemorava muito essas
pequenas vitórias. Eu me lembro perfeitamente dele abrindo uma garrafa de uísque no dia
em que votou em 88 e foi ele quem me apresentou o voto a Socorro Gomes em 88, então
lembro dele comemorando. Em 89, conheço o Paulo Fonteles Filho que nasce na prisão,
filho de Ecilda e Paulo Fonteles. Paulo nasce na prisão em 72, fica afastado de Ecilda até
74, quando Ecilda é solta porque estava presa aqui em Belém, no presídio de São José,
atual Polo Joalheiro São José Liberto. Ele só vai ter contato com a mãe em 84. Quando a
gente começa a namorar em 89, o pai dele, Paulo Fonteles, tinha sido assassinado havia
dois anos. Então, a gente conversava muito sobre memórias da ditadura, sobre medos que
ele tinha do escuro, medo de baratas. E aí, depois de muitos anos, temos o relato da Ecilda
que durante a sua prisão ficou em um quarto muito escuro, cheio de baratas. A barata
andava no corpo dela, e ela teve que controlar o medo, proteger a boca e os ouvidos para
que a barata não entrasse no corpo dela, de tanta barata que tinha. Para ela poder dormir
com barata andando nela.

Acho que eu tinha uma dívida histórica, uma dívida histórica que a psicologia também
tomou para si. A partir de 2011, eu conheço a Vera Paiva, psicóloga, psicanalista, filha do
Rubem Paiva, brutalmente assassinado em 72, e só em 2012 tiveram a confirmação da
morte do pai, vivendo 40 anos com trotes e mentiras provocadas pela ditadura, uma tortura
constante. E eu achava que eu tinha um compromisso com a psicologia porque muitos
psicólogos também desenvolveram técnicas de tortura psicológica para os militantes de
direitos humanos presos, para os militantes políticos presos, e eu achava que a psicologia
tinha uma tarefa histórica.

Atendi muitos pacientes em surto psicótico provocados pela guerrilha do Araguaia. Muitos
foram barbaramente torturados no sul e sudeste do Pará, na região de Marabá, Serra das
Andorinhas. Eu conheci muitos camponeses presos e torturados. Eu achava que a psicologia
tinha uma dívida histórica aqui com o nosso estado. Eu fui a primeira pesquisadora desse
tema, com um mestrado sobre a emergência, a urgência e a emergência da Comissão
Estadual, da Comissão Nacional da Verdade. Estive representando o Conselho Regional
de Psicologia na Comissão Estadual da Verdade, que apurou os crimes da ditadura militar
aqui no estado do Pará.

COTEC/CRP-10: Como foi construir a comissão estadual da verdade no Pará?

Jureuda: A convite do Comitê Estadual de Memória e Verdade e Justiça, o Conselho


Regional de Psicologia foi convidado a ter assento, um pouco seguindo o modelo da
Comissão Nacional da Verdade. A Presidenta Dilma, ao criar o Plano Nacional de Direitos

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

Humanos, o terceiro plano Nacional de Direitos Humanos, praticamente pronto pelo


presidente Lula, com o Paulo Vannucchi na Secretaria Especial de Direitos Humanos,
fez um convite. Quando a Presidenta Dilma assumiu a Presidência do Brasil, ela pegou o
plano praticamente pronto, com quem seriam os atores da Comissão Nacional da Verdade.
Ela fez uma única mudança, que foi a inclusão da Maria Rita Kehl como psicanalista,
entendendo todo o trauma psicológico, no sentido amplo da palavra “trauma”, que a
psicanálise e o trabalho de Maria Rita Kehl traziam. Foi feito o convite para Maria Rita
Kehl pensar na violência transgeracional.

Nessa linha, foi feito o convite para o Conselho Regional de Psicologia, e eu era vice-
presidentea do Conselho Regional de Psicologia, presidente da Comissão de Direitos
Humanos do Conselho Regional de Psicologia. Aí, eu participei da Comissão Estadual da
Verdade, que apurou os crimes da ditadura militar no estado do Pará.

Durante os relatos na Comissão Estadual da Verdade, as minhas perguntas na comissão


eram sempre ligadas ao trauma psicológico, às relações familiares, às perdas familiares
que o trauma havia causado, às dependências emocionais, algumas dependência química
através do álcool, que algumas pessoas desenvolveram em tratamento a insônia, angústia,
tristeza, depressão desenvolvida pela dinâmica de terem sido violentamente torturados,
violência física e sexual nos seus corpos durante a ditadura no Brasil.

COTEC/CRP-10: Quais foram os principais crimes cometidos pela ditadura militar


no Pará?

Jureuda: Então, a primeira coisa que eles fazem é destituir a UAP, que era o presidente
Pedro Galvão, o João Jesus Paes Loureiro, que são presos, torturados, destituir o governador
Hélio do Carmo e a ditadura fica aqui, perseguindo os estudantes. Ela vai endurecendo,
tanto que a Ecilda e o Paulo Fonteles, que eram daqui de Belém, da legalização popular
AP, eles saem daqui de Belém e vão para Brasília para reconstruir a União Nacional dos
Estudantes. Quando são presos em Brasília, em 72, um dos piores momentos da ditadura
no Brasil. Nesse momento, está acontecendo aqui a Guerrilha do Araguaia, que é mais
ligado... Quem veio para a Guerrilha do Araguaia, quem entrou para a Guerrilha Armada,
entendendo que a revolução precisa ganhar o campo, os moldes da Guerrilha, os moldes
da China, que era o PCdoB maoísta, ligado ao Mao Tse Tung, o pensamento maoísta,
que é esse pensamento da revolução cultural, precisava sair do atraso feudal à China e o
Brasil a mesma coisa, um atraso feudal ligado ao nosso Brasil, era feudal praticamente,
feudal é um exagero, um eufemismo, mas a condição que o Brasil se encontrava ali nos
anos 70 era terrível. E aí a Guerrilha do Araguaia veio para cá, com os militantes do
PCdoB, fazer a Guerrilha do Araguaia, só a gente do sul e sudeste do Brasil, os paulistas,
como eles eram chamados. Então, a ditadura aqui no Brasil, aqui no Pará, foi muito
forte em relação à Guerrilha do Araguaia. Aqui em Belém, o movimento estudantil foi
barbaramente atingido, a sede da UAP é onde hoje um antigo hotel, o Hotel Regente, que
nem está funcionando mais como hotel, mas como o Hotel Regente compra a sede da
UAP, como destrói a sede da UAP, quem dá essa autorização? Então, são perguntas que
não se teve resposta.

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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

COTEC/CRP-10: Pelo que você conhece, tem sido feito algo no sentido de encontrar
a verdade, resgatar a memória e garantir a justiça em relação a esses crimes?

Jureuda: Recentemente, a Comissão da Verdade do Estado do Pará conseguiu, em 31 de


março de 2023, sendo instituída em 2012 e 14, ela demorou de 14 a 23, para o relatório
ficar pronto. Muitas perdas ao longo do caminho, Paulo Fonteles Filho, Egídio Salles,
que eram membros da Comissão Estadual da Verdade, morreram e a comissão ficou meio
perdida. A gente conseguiu terminar os relatórios. O relatório da Comissão Estadual da
Verdade recebe o nome de Paulo Fonteles Filho, em homenagem ao Paulinho, e muito do
resgate histórico, mas pouco tem sido feito. Recentemente, o Governo do Estado fez um
memorial lá no polo, lá na Casa das Onze Janelas, onde o João de Jesus Paes Loureiro, a
Violeta Réfes Kaléfsky, o Pedro Galvão ficaram presos, lá no polo joalheiro, lá na Casa
das Anjos Janelas, no andar de cima, e lá tem uma placa. Nós entendemos que todos esses
locais onde houve tortura precisam ser recebidos, uma placa onde houve tortura.

Então, onde a Ecilda foi torturada e presa por dois anos lá no Polo Joalheiro tem que ter
uma placa tem que ter uma placa no 14 Bis, tem que ter uma placa lá em frente à Praça
Brasil, Comando do Norte tem que ter uma placa aqui, foi um local de tortura e serviços
de atendimento às pessoas remanescentes da Guerrilha do Araguaia, soldados. Ainda hoje,
muitos soldados jovens paraenses que foram obrigados a ir para a Guerrilha do Araguaia
não receberam nenhum tipo de indenização do Governo. Nenhum tipo de indenização.

COTEC/CRP-10: Como você observa os efeitos na saúde mental das pessoas que
sofreram com os crimes da ditadura militar?

Jureuda: Muitos autores pesquisam a violência transgeracional vivida pelos descendentes


de judeus que sobreviveram aos campos de concentração nazista e nessa mesma linha de
pensamento que nós vamos ter essa linha de pensamento.

Conforme Falcke e Wagner (2005), o fenômeno da transgeracionalidade diz respeito a


processos transmitidos pela família de geração a geração, perpassando toda a história
familiar. Sobre a transgeracionalidade, esse conceito é compreendido como um fenômeno
que se apresenta de forma alienante, a pessoa é levada por uma cadeia de transmissões
psíquicas sem se dar conta de que está realizando estas transferências de conteúdos, mitos,
medos, traumas etc. sem o devido processamento destes eventos.

Vivenciando de forma angustiante toda vez que este assunto torna aparece. E é assim que
os traumas da ditadura militar permanecem mesmo nos filhos, filhas, das pessoas que
sofreram, foram torturadas. Um campo importante de intervenção para a psicologia.

COTEC/CRP-10: Por fim, qual o papel da psicologia e qual a contribuição que ela
pode dar, tanto para a luta pela memória, verdade e justiça, quando para que crimes
iguais os da ditadura militar não voltem a ocorrer?

Jureuda: Nós todos temos a responsabilidade de fazer a memória, de termos, nós todos
brasileiros, temos que ter uma memória, uma memória real, coletiva, uma memória
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PSICOLOGIA DA AMAZÔNIA: a trajetória do CRP-10 e o fazer profissional na região

contada nos livros de história do Brasil. Não uma memória seletiva, até que a gente pode
contar. Não, precisa ser contado o fato, que é o que eu estudo na minha dissertação de
mestrado, eu faço uma análise entre a Lei de Anistia, em 79, que permitiu que muitos
brasileiros voltassem, tem até aquela música Volta do Irmão do Enfio, e tanta gente que
partiu. A volta dessas pessoas em 79 foi muito importante para que a gente retomasse a luta
interna, muita gente estava em exílio, exílio político, porém, o fato da lei de anistia votada
em 79, foi uma anistia ampla, geral e irrestrita. Irrestrita quer dizer que ela coube para os
militantes exilados e coube para os crimes impetrados pelos militares e seus torturadores.

Qual é o problema disso? Botamos para baixo do tapete a verdade sobre os crimes da
ditadura e botamos sobre o tapete as corrupções que começaram ali, por isso que a gente
chama de ditadura cívico-militar, porque muitas empresas sustentaram e bancaram a
ditadura. Não adianta só fazer uma mea-culpa e pedir desculpa como fez a Rede Globo
no ano de 2012, 2013, não vou lembrar, 2014. Não adianta só reconhecer publicamente
que as duas ditaduras. Precisa ter políticas de enfrentamento à ditadura nossa de cada dia.
Nós assistimos, em 2016, um golpe instituído e ajudado pela mesma Rede Globo, que
ajudou a fomentar o nome do Lula ligado à corrupção, tem um monte de estudo sobre
isso, comprova como isso foi embutido e incutido no imaginário popular. Então Lula
é ladrão, Lula é ladrão, criado pela Rede Globo e isso desenvolveu um fenômeno que
possibilitou a ascensão do fascismo, já era uma ascensão do fascismo na América Latina e
um dos expoentes desse fascismo, que volta de novo agora na Argentina, mas uma dessas
ascensões do fascismo chama-se Jair Messias Bolsonaro, que sem projeto de governo
e assumindo que não entende de economia, ele elegeu baseado num tripé, um tripé da
ditadura, um tripé ligado ao fundamentalismo religioso, pátria, Deus e não sei o que. E aí
ele, baseado nesse tripé da moral, ele fica solto para instituir uma perseguição ideológica
fascista, com uma série de ministros todos, alguns ligados a grupos fascistas, tanto que
teve um aumento de comportamentos nazistas, perseguição ao povo negro, perseguição
às pessoas de orientação sexual LGBTQIA+.

Então assim, teve uma autorização social para essa perseguição, também em relação às
pessoas ligadas aos movimentos sociais, também vinculada à imprensa da criminalização
dos movimentos sociais. Então tudo isso foi através dessa exceção que nós presenciamos
com a ascensão do fascismo. E aí a psicologia tem um papel de desvendar, de apontar,
de mostrar a importância da luta pela memória, da verdade como um princípio. Não
morreram e foram torturados igual para os dois lados. Então a gente está falando aí de
uma desproporcionalidade, de uma guerra. E a psicologia tem um papel transformador
porque ela é um dos poucos códigos de ética que trazem os seus princípios fundamentais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e vários itens e artigos e alíneas ligadas
ao Código de Ética Profissional do Psicólogo está na sustentação da defesa dos direitos
humanos. Então nós jamais podemos atribuir, o psicólogo não pode atribuir uma fala
fascista criada na ditadura, uma fala fascista criada na ditadura, que direitos humanos é
coisa de bandido. O psicólogo não pode ter esse tipo de conduta. Psicólogo, psicóloga não
pode dizer que bandido bom é bandido morto. Tudo isso são restos e resquícios da ditadura
do Brasil. Nós não podemos ter esse comportamento misógino, machista, LGBTfóbico,
enquanto profissionais de psicologia que atuamos em políticas públicas, que atendemos
no consultório, que somos baseados por resoluções como a 01 de 99, como resoluções

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como a 018 de 2002, com resoluções de 2018, a 01 de 2018, nós temos princípios, nós
temos princípios éticos que compõem a prática profissional, seja no âmbito público, seja
no âmbito privado, porque se eu incorrer em alguma questão ética, eu vou responder,
porque tem um conselho forte que fiscaliza a prática profissional e que possibilita tirar
da prática profissional o mau psicólogo, aquele que tem práticas fascistas, machistas,
LGBTfóbicas, aquele que alicia, aquele que violenta a mulher, aquele que violenta a
criança e adolescente.

Então a gente tem que ter a responsabilidade, entender que a nossa conduta pessoal e
moral tem que estar antenada, entendendo como é a minha conduta ética, ligada ao meu
código de ética, baseado num conselho, tanto regional quanto no conselho federal, num
sistema de conselhos que abrange o país inteiro, unificado no mesmo pensamento. O
pensamento da psicologia é um pensamento libertador.

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