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Denise Ferreira Da Silva - Diferença
Denise Ferreira Da Silva - Diferença
Acompanhando as reações dos países europeus à “crise dos refugia- 1 Ler, por exemplo, os
comentários de Slavoj
dos” resultante das últimas guerras do Capital Global – isto é, conflitos
Žižek disponíveis em
locais e regionais pelo controle de recursos naturais –, é evidente como inthesetimes.com/
a gramática e o léxico raciais efetivamente funcionam como descritores article/18385/slavoj-zizek-
european-refugee-crisis-
éticos. Sem as declarações dos cidadãos europeus amedrontados diante
and-global-capitalism.
da onda de “estrangeiros”, seria mais difícil para eles justificar a Acesso em 2016.
construção de muros e programas de deportação para conter centenas
de milhares de pessoas fugindo de conflitos armados no Oriente Médio 2 Ver o plano da
Comissão Europeia
e por todo o continente africano.1 Pois, segundo a falsa narrativa sobre
para lidar com a crise
o “Outro” perigoso e indigno – o “terrorista muçulmano” disfarçado divulgado em setembro
de refugiado (sírio) e o “africano faminto”, de candidato a asilo –, as de 2015. Disponível
em europa.eu/rapid/
diferenças culturais sustentam declarações de incerteza que realmente
press-release_IP-15-
dificultam reivindicações de proteção dentro da esfera dos direitos 5700_enMe.htm. Acesso
humanos, apoiando assim o emprego do aparato de segurança da em 2016.
União Europeia.2
Medo e incerteza, sem dúvida, têm sido os pilares da gramática
racial da modernidade. Desde o início do século 20, articulações
da diferença cultural no texto moderno agregaram um significante
científico social projetado para delimitar o alcance da noção ética de
humanidade. As ferramentas críticas disponíveis, precisamente por
também serem construções do pensamento moderno, não suportam
a ideia de uma intervenção ético-política que reduza a capacidade da
diferença cultural de produzir uma separação ética intransponível.
Isto é, elas não são capazes de efetivamente interromper o emprego
de uma violência total que em outro contexto seria inaceitável contra
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3 Isso é inspirado na aqueles que estão do “Outro” lado (cultural) da humanidade. Por quê? sugerindo que os componentes fundamentais de todas as coisas, de 4 O efetivo (nível
noção de plenum de atômico e supra-
Porque elas também participam da construção da imagem do texto tudo, poderiam ser, simplesmente, o virtual (as partículas subatômicas)
Leibniz. Ver, por exemplo, atômico) e o virtual
G. W. F. Leibniz, moderno d’O Mundo como um todo composto de partes separadas, tornando-se real (no espaçotempo), o que é também uma recomposi- (subatômico) se referem
Discourse on Metaphysics relacionadas através da mediação de unidades de medida constantes e/ ção de todas as outras coisas.4 Há décadas os resultados contraintuiti- a diferentes momentos
and Other Essays. – respectivamente,
ou de uma força violenta limitadora. Quando empregada para pensar vos dos experimentos da física quântica vêm superando as descrições
Indianapolis: Hackett, atômico e supra-atômico
1991 [ed. bras.: Discurso o social, essa imagem faz da socialização uma contingência do habitar d’O Mundo com aspectos – incerteza5 e não localidade6 – que violam e subatômico – de tudo
de metafísica e outros as mesmas partes (jurídicas, espaciais ou temporais) do mundo. os parâmetros da certeza. Experimentos que, proponho, nos convidam aquilo que existe.
textos. Trad. Marilena
Um programa ético-político que não reproduza a violência do a imaginar o social sem as distinções mortíferas do Entendimento e
Chaui et al. São Paulo:
5 O princípio da
Martins Fontes, 2004]. pensamento moderno exige repensar a socialização por fora do texto seus letais dispositivos de (re)ordenamento.
incerteza de Heisenberg
moderno. Porque apenas o fim do mundo tal como o conhecemos, O que está em jogo aqui? Do que precisaremos abrir mão para se refere a experimentos
estou convencida, será capaz de dissolver a ideia de coletividades liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o que contrariam a opinião
de que as medidas
humanas como “estrangeiras” com os atributos morais fixos e que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo de outra maneira?
das propriedades
irreconciliáveis que as diferenças culturais engendram. Isso exige Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos correspondem a
que libertemos o pensamento das amarras da certeza e abracemos matéria e forma. Dos primórdios da filosofia natural (Galileu, 1564- acontecimentos na
realidade que não
o poder da imaginação para criar a partir de impressões vagas e 1642 e Descartes, 1596-1650) e da física clássica (Newton, 1643- podem ser alterados pela
confusas, ou incertas, que Kant (1724-1804) postulou serem inferiores 1727) herdamos uma visão da matéria da Antiguidade – com a noção intervenção humana.
às produzidas pelas ferramentas formais do Entendimento. Uma que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam Ver Werner Heisenberg,
Physics and Philosophy.
configuração d’O Mundo alimentada pela imaginação nos inspiraria presentes no pensamento, como solidez, extensão, peso, gravidade, e Amherst: Prometheus
a repensar a socialização sem as imutabilidades abstratas produzidas movimento no espaço e no tempo. De todo modo, a alegação de que Books, 1999 [ed. bras.:
pelo Entendimento e a violência parcial e total que elas autorizam a mente humana seria capaz de conhecer as propriedades dos corpos Física e filosofia, 4ª ed.
Trad. Jorge Leal Ferreira.
– contra os “Outros” culturais (não brancos/ não europeus) e físicos com certeza, sem a mediação do regente divino e autor do Livro da Brasília: Editora UnB,
(mais-que-humanos). Natureza, se basearia em duas rupturas com a filosofia escolástica. 1999].
Em primeiro lugar, os filósofos do século 17 que se autodenominavam
6 O princípio da não
“modernos” criaram um programa do conhecimento preocupado
localidade se refere
PENSAR O MUNDO como o que chamavam de “causas secundárias (eficientes)” do a medidas de uma
movimento – que geram transformações na aparência das coisas na propriedade de uma
partícula (como a posição)
Depois de romper os muros vítreos, formais e fixos do Entendimento, natureza – e não com as “causas primordiais (finais)” das coisas, ou
que instantaneamente
liberada do jugo da certeza, a imaginação pode conceber um rearranjo com o propósito (finalidade) de sua existência. Em segundo, em vez fornecem a medida de uma
dos componentes fundamentais de tudo para refigurar O Mundo como de se basearem na necessidade lógica de Aristóteles (384-322 a.C.) propriedade relacionada
(como o momentum)
um todo complexo sem ordem. Consideremos uma possibilidade: e se, para garantir a correção de suas descobertas, filósofos como Galileu
de outra partícula,
em vez de O Mundo Ordenado, pudéssemos imaginar O Mundo como se apoiaram na necessidade característica da matemática, mais pre- independentemente da
uma Plenitude, uma composição infinita3 em que cada singularidade cisamente nas demonstrações geométricas como base para a certeza. distância entre as duas.
Ver Robert Nadeau e
existente está sujeita a se tornar uma expressão possível de todos os Indiscutivelmente, esses filósofos são herdeiros dos primeiros escritos
Menas Kafatos, The Non-
outros existentes, com os quais ela está emaranhada para além do sobre a excepcionalidade do Homem – sua alma, seu livre arbítrio, sua Local Universe. Oxford:
espaço e do tempo. Há décadas os experimentos da física quântica capacidade de raciocínio etc. O que Descartes introduziu no século Oxford University Press,
1999.
surpreendem os cientistas do espaçotempo e os leigos com descobertas 17 foi uma separação entre a mente e o corpo segundo a qual a mente