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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA – UEFS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA - DCHF


PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - PPGH

Hernandes Silva de Souza

As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de


Sedução e as Sociabilidades da Cidade
Princesa 1940\1960

Feira de Santana
2015
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Hernandes Silva de Souza

As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as


Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História, Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Estadual de
Feira de Santana, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História.

Orientadora: Profª.: Dra. Márcia Maria da Silva


Barreiros.

Feira de Santana
2015

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Hernandes Silva de Souza

As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades


da Cidade Princesa 1940\1960

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em


História, Universidade Estadual de Feira de Santana,
pela seguinte banca examinadora:

Márcia Maria da Silva Barreiros – Orientadora_________________________________


Pós-doutora em História pela Universidade do Estado de São Paulo (USP)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Andréa da Rocha Rodrigues________________________________________________


Doutora em História, Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Cecília Conceição Moreira Soares___________________________________________


Doutora em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Rinaldo Cesar Nascimento Leite (SUPLENTE)________________________________


Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Sharyse Piroupo do Amaral (SUPLENTE)____________________________________


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Feira de Santana, 2015

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

“A verdade é como o sol, dissipa os mais


densos nevoeiros.” – Allan Kardec

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

AGRADECIMENTOS

Seguindo a boa e velha máxima, inicio afirmando “são tantos e tão especiais que fica
realmente difícil agradecer a todos e todas que de um modo ou de outro
contribuíram...” Mas a verdade é que talvez não exista realmente outra frase que possa
significar a aflição de aqui agradecer.

Continuando sem dispensar os mais sinceros e indispensáveis clichês, agradeço


inicialmente aos meus pais e a minha família pelos mais verdadeiros laços de carinho,
de admiração e de amor. A todos vocês, entrego o meu reconhecimento e tudo que há de
melhor em meu coração. Agradeço por terem acreditado e confiado em mim, por
persistirem e por me amarem, em especial, a minha mãe, anjo que Deus colocou em
minha vida e que eu não canso diariamente de agradecer a amar!

Gostaria de agradecer aos muitos amigos que, em variadas circunstâncias, me


estimularam e souberam entender e respeitar as minhas dificuldades e ambições. Dentre
estes, gostaria de destacar alguns. Começo por Tácila Magalhães. Mais do que ninguém,
você sabe de todas as aflições e felicidades que envolveram essa minha trajetória. Sou
muito grato por cada minuto de atenção e cada palavra dita. Você sempre será minha
confidente. Obrigado! Aos queridos Jacson Caldas e Magno Oliveira, colegas de
graduação e atualmente mestrandos em outras instituições. Agradeço a atenção desde
quando tudo era um sonho, pelos momentos de dúvidas e pelas nossas muitas
mistificações mundo afora. Minha gratidão a todos os colegas de turma nesse programa
de pós-graduação. A vós, muito obrigado pelas discussões travadas, pela companhia nos
eventos e pelos momentos de diversão que tivemos. Nesse grupo, gostaria de destacar
figura de Iracélli Alves, divertidíssima parceira de muitas horas e João Pedro, por ler
meu projeto quando nos preparávamos juntos para a seleção. Um beijo mais do que
especial em Eneida, Michelle, Aline, Djalma e Chablink. Vocês são muito queridos!

Não poderia jamais deixar de mencionar os meus antigos amigos de graduação também
na UEFS. Amizades sinceras, que não mudam, passe o tempo que passar. Desde aquela
época eu sou muito feliz, pois tenho o carinho e a amizade de vocês. Agora,
infelizmente, nos vemos muito menos que antes, mas o reencontro é sempre poético,
amável e inspirador. As mesmas conversas, as mesmas piadas, os mesmo programas.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Tudo isto poderia compor um mosaico entediante, mas não é e nem nunca será. Aqui se
inserem Nayara Fernandes, Yolanda Leony, Danilo Bezerra e Aline Laurindo. Muito
obrigado! Agradeço também as queridas Tammy Assad, Lívia Andrade e ao querido
André Carvalho. Das terras de “Sergipe Del Rey”, agradeço ao meu mais puro sangue
azul: Jeferson Vidal e Cruz. Os livros doados não chegaram a tempo, mas o carinho
sim. Obrigado! Dos amigos de Serrinha, não deixaria jamais de agradecer a Carolina
Cerqueira pela mais sincera afeição.

Aos professores, gostaria de agradecer primeiramente a minha orientadora Márcia


Maria da Silva Barreiros, grande mulher, portadora de inteligência ímpar. A você
agradeço o entendimento, a paciência e o livre arbítrio oferecido às minhas escolhas
desde a graduação, quando passou a me acompanhar e me inspirar a produzir mais e
mais. Também ao professor Clóvis Frederico Ramaiana Morais de Oliveira agradeço
por ter me ajudado na leitura e escrita do projeto, pelos muitos materiais sugeridos e
pelo papo estimulante sempre! As professoras Cecília Soares e Andrea Rodrigues que
aceitaram gentilmente a tarefa de avaliar este trabalho, desde a qualificação, quando só
existia uma pequena parte desta dissertação. A professora Ana Maria, pelas aulas
sempre divertidas e pelo passeio de carro no centro da cidade de Feira de Santana,
apresentando lugares e narrando histórias. Talvez não se lembre, mas muito daquele
final de tarde está neste trabalho. Agradeço a todos os professores deste programa e aos
funcionários também, especialmente na figura de Julival, sempre atencioso.

Um especial agradecimento a Aline Aguiar. Talvez você não se recorde, mas a


inspiração para o título desse trabalho eu devo ao seu humor afiado que amo de paixão.
Agradeço também ao querido Luis Alberto Lima. Tenho muito orgulho em poder contar
com sua amizade em muitas ocasiões. Agradeço os livros doados, os textos sugeridos,
os convites oferecidos e atenção sempre dispensada. Você mora em meu coração.

Finalizo agradecendo a qualquer um que não mencionei, mas que em alguma


circunstancia tenha dispensado um singelo sorriso, uma vibração positiva, uma oração.
Que Deus os abençoe!

Muito obrigado!

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

RESUMO

As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade


Princesa 1940\1960 é uma reflexão sobre o crime de sedução e as imagens da
virgindade feminina pela ótica dos profissionais do judiciário, dos acusados, das
testemunhas e das ofendidas em Feira de Santana, na Bahia. Ela busca problematizar, a
partir da análise das sociabilidades das moças envolvidas nessa tipologia criminal, os
discursos que mistificam a experiência da modernidade neste município. Ao contrário
do alarmado crescimento material, do progresso e do desenvolvimento de novas
urbanidades na primeira metade do século XX, a documentação pesquisada permite que
se questione os limites desse avanço, uma vez que a grande maioria das envolvidas nos
processos dessa natureza demonstra possuir sociabilidades que vão de encontro as
construções histórias que consolidaram determinadas imagens sobre a urbanidade de
então. Partindo da perspectiva teórica da categoria gênero, este trabalho objetiva, ainda,
demonstrar que as imagens tradicionais sobre a virgindade feminina persistiram entre as
camadas populares enquanto sofreram modificações entre os profissionais do judiciário.
.

PALAVRAS-CHAVE: História, Gênero, Sexualidade, Crimes Sexuais, Feira de


Santana, Bahia.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

ABSTRACT

The "Descabaçadas" of the Wild: The Crime of Seduction and Sociabilities City
Princess 1940 \ 1960 is a reflection on the seduction of crime and the images of female
virginity through the eyes of the professionals of the judiciary, the accused, witnesses
and offended in Feira de Santana, Bahia. It raises questions, from the analysis of the
sociability of the girls involved in this criminal type, the speeches that mystify the
experience of modernity in this township. Unlike alarmed materials growth, progress
and development of new urbanities in the first half of the twentieth century, searched
documents permit an inquiry into the limits of this development, since the vast majority
of cases involved in such shows have sociabilities. They run counter to the stories
constructions that have consolidated certain images on urbanization then. Starting from
the theoretical perspective of gender category, this work aims to also demonstrate that
traditional images of the female virginity persisted between the working classes have
been changed as among professionals of the judiciary.

KEYWORDS: History, Gender, Sexuality, Sexual Crimes, Feira de Santana, Bahia.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................11

CAPÍTULO I - Feira de Santana: Origem, Progresso e Contradições...........................20

1.1 - Feira: Crescimento Material e Urbanização................................................27

CAPÍTULO II - O Crime De Sedução: Discursos e Prática Jurídica............................45

2.1 - O Avanço dos Costumes.............................................................................56

2.2 – A Queixa-Crime..........................................................................................75

CAPÍTULO III - As “Descabaçadas” do Sertão..........................................................88

3.1 – Seduções “Modernas”?.............................................................................109

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 120

FONTES.......................................................................................................................125

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

INTRODUÇÃO

Por muitos anos às mulheres foram marginalizadas, relegadas à sombra da História,


consideradas meras espectadoras dos grandes acontecimentos promovidos pelos
homens, quando muito. Nesta perspectiva, elas só eram incluídas

quando ocupavam, eventualmente, o trono, ou a república, por trás das


cortinas, dos panos, do trono ou seja lá do que for, numa clara
insinuação sensual/sexual que pensa que as coisas são decididas nos
leitos de amantes. Estes leitos costumam ser considerados os
responsáveis pelas ‘grandes’ decisões da história e promovem a queda
e ascensão de governantes’1

Então dominante, o pensamento tradicional positivista privilegiava os grandes eventos,


feitos e fatos políticos restritos à esfera governamental das sociedades, sempre
considerando a figura masculina como sujeito universal.

A emergência da História Social, e posteriormente a Cultural, trouxe o início do


processo de investigação do conhecimento específico das experiências femininas, o que
é bastante recente nas produções historiográficas. O desenvolvimento dos campos de
conhecimento do saber histórico aliado às contribuições de outras ciências afins, como a
Antropologia, deu destaque às experiências e sociabilidades de mulheres através dos
tempos e realidades as mais diversas, objetivando sempre o desapego da visão
tradicional da mulher como elemento complementar ao homem e confinado ao
cotidiano do lar e ao cuidado com o bem estar familiar.

A História dos Gêneros emerge assim considerando as mulheres como sujeitos ativos,
atuantes e imbuídos de consciência individual, coletiva e de subjetividades. Nesse
sentido, este campo do conhecimento histórico não atua como o mero objetivo de
descrição biográfica ou enquanto legitimação da mulher como coadjuvante ao homem.
1
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa
histórica. História 2005, vol.24, n.1, 2p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Tem, indiscutivelmente, contribuído para a desmistificação da ideia de sujeito universal,


seja ele feminino ou masculino. Ao contrário das ideias difundidas pelo movimento
feminista da década de 1970, vem ainda revisitando o mito da mulher como categoria
feminina, negando o biologicamente feminino. Nesta perspectiva, avançam pesquisas
que questionam a essencialidade feminina, destacando a existência de múltiplas
identidades de mulheres, enfatizando a pluralidade e atentando para a condição de
tempo, lugar, geração, raça e classe, já que a identidade de sexo não se faz suficiente.
Assim, “As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da
Cidade Princesa 1940\1960” se insere nesse contexto de buscas por estas múltiplas
histórias protagonizadas por mulheres, especialmente as pobres da cidade de Feira de
Santana-Bahia.

A instauração do regime republicano no Brasil, em fins do século XIX, traz consigo


inúmeras ambições em torno da modernização da sociedade brasileira e da consequente
reorganização de seus costumes, códigos e condutas morais. O início do processo de
liberalização da vida matrimonial e a crise da família patriarcal, identificadas a partir
das primeiras décadas do século XX, são eventos associados à cessão do poder e da
autoridade paternas para as mãos do Estado. Neste ínterim, há o desenvolvimento de
novos conhecimentos em muitas ciências, especialmente a Medicina, que, aliada à
família, ressignificam novas condutas para o comportamento moral e sexual dos
cidadãos brasileiros. Nesse contexto, o corpo feminino passa a ser o mais
problematizado e tutelado, pois se partia da premissa de que era necessário disciplinar
as mulheres para que elas não se desviassem da ordem social idealizada para o novo
país em processo de gestão. Virgindade, castidade, casamento e maternidade, nesse
universo de idealizações, foram categorias de feminilidade disseminadas pelas múltiplas
redes institucionais, uma vez que às mulheres era atribuída a responsabilidade pelo zelo
do que se considerava honra. Não apenas sua enquanto sujeito, mas também a de sua
família.

Muitos trabalhos historiográficos desenvolvidos por OLIVEIRA (2000) e (2011);


SIMÕES (2007); SILVA (2000); SOUSA (2001); SANTOS (2012); RAMOS (2007)
dão conta de que o município de Feira de Santana - cidade do interior da Bahia –
vivenciou, de forma bastante intensificada no recorte acima apontado, muitos choques e
conflitos em torno dos desejos de modernização. Essas pesquisas expõem muitas das
ambições das elites locais no tocante ao interesse de estabelecer novas normas e

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

disciplinas para a cidade e seu povo, especialmente tomando como princípio norteador a
necessidade de reformas físicas na malha urbana e do estabelecimento de determinados
princípios comportamentais, bem como novas sociabilidades. Elas indicam ainda que os
ideais modernizadores e de condenação às referências do passado rural faziam parte dos
muitos discursos políticos e das variadas vozes da imprensa local. Muitos indivíduos de
então acreditavam que, para que a cidade não fosse dominada pelo que era considerado
uma “degeneração”, seria fundamental que sujeitos da elite feirense se apresentassem
como os responsáveis pela nova configuração. Nesta perspectiva, a cidade de Feira de
Santana, ao menos discursivamente, ganhava novos contornos. E a transformação física
se deu a partir da atuação de segmentos dos poderes públicos, reconfigurando
fisicamente a arquitetura do centro urbano.

Ocuparam destaque nos discursos sobre o processo de modernização feirense os muitos


conflitos e debates em torno da honra sexual e as imagens concebidas para os homens e
mulheres da sociedade supostamente em transição. Embora diversas, essas falas
estiveram relacionadas a uma hierarquização social que focalizou sujeitos de uma
determinada camada social como modelos de sociabilidade e de conduta ideal.
Discutindo a respeito, RAMOS (2007) 2, privilegiando a experiência feminina da elite
deste lugar, indica que as novas exigências da urbanidade e da modernização trouxeram
esse segmento para o cenário urbano, ampliando a atuação deste nas ocupações de mãe
e esposa. As mulheres deveriam apresentar-se publicamente, segundo ela, com
civilidade, recato e educação, no entanto, sem perder os signos tradicionalmente
associados à feminilidade, como a obediência, por exemplo. Na sua leitura, as
transformações pelas quais a cidade passou nas primeiras décadas do século XX
responsabilizaram esses sujeitos pelos encargos e símbolos da modernidade.

As discussões em torno da moralidade dos costumes na cidade de Feira de Santana


também fizeram parte de um cenário nacional onde os princípios jurídicos e da
criminologia atuaram diretamente no cerne desta questão. Os debates sobre a definição
da honra a nível pátrio eram constantes, pois tinham como principal pauta as correções
no Código Penal de 1890 em relação aos crimes sexuais. Para muitos sujeitos surgia a
necessidade de proteger as prescrições morais e sociais em meio ao que se considerava

2
RAMOS, Cristiana Barbosa de Oliveira. Timoneiras do bem na construção da cidade princesa:
mulheres de elite, cidade e cultura 1900-1940. Dissertação (Mestrado) UNEB, 2007.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

o “progresso dos costumes”. Assim, a partir do Decreto Lei no 2.848 de 07 de


dezembro de 1940, promulga-se o novo Código Penal Brasileiro, onde os crimes
sexuais apareceram então sob o título de “Dos crimes contra os costumes” e na sua
interpretação fica evidente a comprovação de que os avanços da modernidade
concederam as mulheres uma liberdade excessiva que prejudicava o pudor e as tornava
experientes e conhecedoras dos “segredos do sexo” 3. Baseados nessas conclusões, os
juristas defendiam que “os perigos da vida moderna” exigiam a expansão da proteção
da Justiça em relação à honestidade feminina, a partir da criminalização de
determinadas práticas sexuais, especialmente o crime de “Sedução”. Substrato empírico
deste trabalho, o estudo de processos-crime dessa tipologia criminal - contemplada no
Código Penal de 1940 no artigo 217 - oferece um cenário rico para a compreensão de
mentalidades constituídas sobre o papel das mulheres e de sua honra nas cidades
brasileiras, bem como em Feira de Santana.

Trabalhando com processos-crime de “Defloramento” - a antiga denominação do


Código de 1890 para o crime de Sedução, melhor discutido no Capítulo I – Martha de
Abreu Esteves e Sueann Caufield, respectivamente nos livros “Meninas perdidas: os
populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque” 4 e “Em defesa da
5
honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940” buscam
discutir os relacionamentos amorosos entre os populares, dedicando-se a trajetórias de
mulheres que tiveram comportamentos contrários aos estabelecidos socialmente para
elas. Essas autoras problematizam os padrões de sociabilidades desses sujeitos,
objetivando entender o que representavam para eles o namoro, a honra e sua
solidificação na integridade física da membrana hímen, o sexo antes do casamento e o
amasiamento, lançando um novo olhar para a vida sexual mulheres pobres do Rio de
Janeiro envolvidas na mencionada tipologia criminal. Além disso, dedicam-se também a
ação dos sujeitos jurídicos que atuaram frente aos costumes e a criminalidade sexual,
considerados ameaçadores da modernização da então capital federal.

3
MEDEIROS, Darcy Campos de, MOREIRA, Aroldo. Do crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1960.54p.
4
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989.
5
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidades, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Destacando a crescente participação feminina no mundo do trabalho formal e nos


círculos sociais, bem como para o surgimento de comportamentos urbanos compatíveis
com a modernização, ESTEVES E CAULFIELD concluíram que as mulheres populares
há muito possuíam uma vida que lhes possibilitava um convívio social fora do âmbito
da casa, realidade que as tornava vulneráveis a relacionamentos que desviavam dos
padrões estabelecidos.

Como se davam tais questões em uma cidade interiorana? Como apareciam entre os
envolvidos em crimes sexuais em Feira de Santana, noções de honra, virgindade e
família? Esta dissertação, fruto de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana\PGH-
UEFS, intitulada “As ‘Descabaçadas’ do Sertão: O Crime de Sedução e as
Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960” objetiva, partindo da categoria teórica
gênero e da análise de processos-crime de sedução, compreender um pouco das
sociabilidades e da sexualidade de moças pobres de Feira de Santana dentro de um
contexto mais amplo de reconfiguração urbana do município e do estabelecimento de
novas sociabilidades consideradas avançadas e oriundas do crescimento material e
cultural da urbe.

O recorte proposto é meados do século XX (1940-1960). O início, na década de 1940,


dá-se em virtude de esse ser o ano em que ocorre, como mencionado, a promulgação
novo Código Penal Brasileiro. Ele apresentou mudanças e novas concepções jurídicas
para muitas tipologias criminais, inclusive para sedução, cujos processos-crime serão à
base desta investigação. O fim, em 1960, dá-se em virtude do surgimento - ao longo
dessa década - de novas discussões em torno da conceituação deste crime, onde se
pondera a necessidade de uma reavaliação do entendimento jurídico, especialmente em
torno da redução da idade mínima do “sujeito passivo” ou da “vítima” de 18 para 16
anos. Embora essa alteração não tenha ocorrido definitivamente até os dias atuais, a
verdade é que foi nesse momento em que se passou a problematizar a real
operacionalidade da concepção de sedução presente no código de 1940 diante dos
avanços dos costumes identificados a partir de 1960. Desde então, a jurisprudência tem
abrandado a interpretação do texto legal, de sorte que vem crescendo a
descaracterização deste preceito penal na sociedade brasileira contemporânea.

A possibilidade que a trajetória das jovens envolvidas nos processos dessa natureza seja
compreendida se dá na medida em que, embora vítimas, elas eram as principais

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

investigadas. Para mostrarem-se merecedoras da proteção judicial e alcançarem o


casamento como uma “reparação ao mal sofrido”, elas precisavam revelar durante a
investigação que foram moças recatadas, com um comportamento considerado
respeitável e, acima de tudo, que tiveram sua sensibilidade e seus corpos manipulados
erroneamente em virtude de sua fragilidade e desconhecimento sexual. Nesse ínterim,
todas as falas presentes nos processos dessa tipologia criminal (vítima, acusados,
testemunhas e sujeitos jurídicos oficiais) visavam estabelecer ou não, a partir de suas
perspectivas e interesses, o direito da vítima a proteção da Justiça e o reconhecimento
da condição de seduzida.

No primeiro capítulo, intitulado “Feira de Santana: Origem, Progresso e


Contradições”, se faz uma breve discussão a respeito da ocupação histórica do território
onde atualmente se situa esse município, bem como se problematiza os seus mitos de
fundação e as muitas místicas que envolvem o seu surgimento. Atentando para o
crescimento da cidade de Feira, motivado pelo crescente comércio do gado, se discute
também os debates a respeito ideias de modernização, crescimento material, progresso e
civilidade, analisando as representações que foram construídas sobre esta urbe e a
relação que destes discursos têm com os universos femininos e suas sociabilidades.
Entre essas representações, destaca-se a que dá conta de Feira de Santana como a
“Petrópolis Baiana”, fazendo alusão ao seu clima ameno e a sua suposta “natureza sã;
e a “Princesa do Sertão”, representação associada à ideia de desenvolvimento material.
Esta parte deste trabalho trata-se de uma revisão bibliográfica acerca de algumas
perspectivas sobre a urbe feirense, bem como funciona como uma contextualização da
mesma.

O segundo, denominado “O Crime De Sedução: Discursos e Prática Jurídica”, oferece


inicialmente um panorama acercas dos muitos debates jurídicos e médicos em torno da
reconfiguração do crime de sedução presente no código de 1940. Após a referida
mudança ele passa a ser contemplado no artigo 217 nos seguintes termos: “seduzir
mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção
6
carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança” Antes dessa
promulgação, durante a vigência do mencionado código de 1890, ele respondia pelo
título de “defloramento”. Deste modo, este capítulo se inicia discutindo os muitos

6
MEDEIROS, Darcy Campos de, MOREIRA, Aroldo. Do crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1960, 30p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

pontos de vista - oriundos do saber médico-legal desenvolvidos por pesquisadores


brasileiros e europeus - que se conflitaram em torno dessa alteração, tratando
especialmente das contribuições que puseram em cheque noções arraigadas acerca da
ginecologia feminina.

Até então, a membrana hímen era uma parte da vulva feminina cuja integridade era
entendida, dentro do crime de “defloramento”, como um item anatômico cuja avaliação
seria imprescindível na apuração do desvirginamento de mulheres. No entanto, desde a
década de 1920 calorosos debates se davam entre especialistas nacionais e estrangeiros
em torno do recém-descoberto “hímen complacente”, membrana cuja elasticidade, entre
outras coisas, resistiria à relação sexual com menor probabilidade de romper-se durante
a penetração do órgão sexual masculino. Essa descoberta admitiu que se questionasse a
tradicional concepção de rompimento da membrana himenial como prova de uma
prática sexual. Dentro do universo jurídico, esses novos saberes questionaram, então, a
operacionalidade da antiga interpretação e puseram em relevo debates em torno de
novas formas de avaliação de um desvirginamento destacando a necessidade da
conceituação da chamada “virgindade física” e da “virgindade moral” das mulheres.

Para além das discussões entre especialistas, observa-se que no senso comum muitas
das tradicionais associações entre estado anatômico da membrana hímen e a virgindade
feminina ainda eram presentes no imaginário popular. Deste modo, o presente capítulo
também problematiza o alcance desses saberes dentro da medicina legal e sua real
operacionalidade dentro das investigações empreendidas em Feira de Santana. Reflete
sobre como os entendimentos tradicionais e alheios aos novos saberes médicos se
manifestaram dentro dos processos; como homens e mulheres humildes se referiam à
virgindade feminina e quais critérios utilizavam para defini-la. Ele investiga, ainda, a
real amplitude do avanço material do município de Feira de Santana, identificado por
muitos autores como OLIVEIRA (2000 e 2011); SIMÕES (2007); SOUSA (2001);
SANTOS (2012); RAMOS (2007). Pela realidade empírica das fontes, é possível que se
problematize a afamada “modernidade” feirense, atentando para o fato de que a
seduções identificadas se deram em lugares alheios as novas artérias urbanas e distantes
das sociabilidades identificadas como possíveis corruptoras da moralidade feminina,
como será discutido na terceira e última parte desta dissertação.

Para finalizar, tece um itinerário das burocracias judiciais enfrentados por vítimas,
acusados e testemunhas diante de uma investigação de sedução. Refletindo desde o

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

passo a passo da queixa-crime em delegacia e chegando ao sumário de culpa nos fóruns


e pretorias, busca discutir como os populares se manifestavam diante dos sujeitos
“jurídicos oficiais”, na expressão de Marisa Correa; quais as maiores dificuldades
enfrentadas por homens e mulheres, acusados e vítimas, respectivamente; quais os
discursos mais recorrentes diante dos papeis sociais destinados a cada um dos sexos; em
qual medida o pertencimento a cada uma dessas identidades poderia se configurar como
um atestado de culpa ou inocência, de merecimento ou não de proteção judicial.

O terceiro e último capítulo, chamado “As ‘Descabaçadas’ do Sertão”, a partir da


análise das sociabilidades das moças envolvidas no crime de sedução, lança um novo
olhar para os discursos que mistificam a experiência da modernidade em Feira de
Santana. Ao contrário do alarmado crescimento material, do progresso e do
desenvolvimento de novas urbanidades, a documentação pesquisada permite que se
questione os limites desses discursos, uma vez que a grande maioria das envolvidas nos
processos dessa natureza demonstram possuir experiências e trajetórias de vida que vão
de encontro a mistificação do crescimento da cidade. Suas narrativas evidenciam
trânsitos e relacionamentos que quase nenhum contato tiveram com a modernização.
Nas zonas rurais, e mesmo nas áreas urbanas ainda praticamente ruralizadas, os
relacionamentos amorosos em conflito nos deixam como legado informações a repeito
de que as transformações advindas do crescimento desta cidade em meados do século
XX se deram num recorte humano e espacial bastante restrito. As novas urbanidades e
as alterações na malha urbana não foram as responsáveis pela “corrupção” dos
costumes das moças encontradas na documentação. Elas mantiveram relacionamentos
amorosos e práticas sexuais motivadas por interesses distintos daqueles que
preocupavam os que se arrogaram responsáveis pela modernização. Em que se pese a
limitação deste estudo, esta leitura propõe que se questione os tradicionais discursos e
mistificações acerca do crescimento desta cidade, possibilitando que narrativas
tradicionais sejam ressignificadas a luz de outras evidências e fontes históricas.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO I

Feira de Santana: Origem, Progresso e


Contradições

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO I

Feira de Santana: Origem, Progresso e Contradições

Feira de Santana, situada no interior da Bahia, é uma cidade localizada há


aproximadamente cento e dez quilômetros da capital do estado, Salvador, a qual se liga
através da BR-324. Ela fica no centro-norte do baiano e está nos limites entre o agreste
e o sertão, sendo por essa localização também chamada de "A Princesa do Sertão".
Atualmente possui uma grande importância econômica e política, sendo a mais
importante cidade do interior estado e do interior do nordeste brasileiro, além de ser o
maior entroncamento rodoviário do Norte-Nordeste7.

A ocupação do território onde hoje se encontra este município originou-se de uma


fazenda da paróquia de São José das Itapororocas denominada Santana dos Olhos
D'água, por volta do final do século XVII e primeiras décadas do século XVIII. De
propriedade do casal Domingos Barbosa de Araújo e Ana Brandão, narra-se que por
esta região formou-se nesse tempo uma “estrada de boiadas”, espécie de trajeto por
onde passavam tropeiros e negociantes de gado com os seus animais oriundos de
diversas localidades do sertão brasileiro rumo a Salvador, Cachoeira e Santo Amaro,
importantes centros comerciais de então. A narrativa tradicional dá conta de que, com o
passar do tempo, os vaqueiros e outros viajantes começaram a pousar com frequência
nos arredores desta propriedade para descansar e, seguindo o exemplo dos poucos
moradores por ali existentes, saciar a sua sede e de suas reses com a abundante oferta de
água existente nos "Olhos D'Água", fonte também localizada na referida fazenda, bem
como nos outros diversos minadouros e tanques naturais da região. (POPPINO, 1968;
SILVA, 2000).

Diante da cada vez mais frequente movimentação de negociadores de gado, além de


motivados pela fé católica que professavam, os donos da mencionada propriedade
doaram algumas “braças” de terra e no local da doação construíram uma capela em

7
Feira de Santana - Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Feira_de_Santana > Acesso em 3 de
junho de 2015

20
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

louvor a Nossa Senhora Santana e São Domingos, em 28 de setembro de 1732. Ao redor


desta, conta-se que se desenvolveu de forma “espontânea” uma pequena “feira”,
informalmente transformando este local num ponto de encontro dos muitos viajantes,
boiadeiros, vaqueiros, tropeiros, criadores, compradores e comerciantes de gado que
pela “estrada das boiadas” transitavam e reuniam-se para negociar víveres e
especialmente gado, alimentando a futura tradição comercial e pecuarista do município.
(POPPINO, 1968; SIMOES, 2007; SILVA, 2000).

“A marcha das boiadas”, desse modo, foi se constituindo como um elemento


fundamental na ocupação do território onde hoje se encontra a cidade de Feira de
Santana e o desenvolvimento primitivo do povoado de Santana dos Olhos d’Água se
relaciona a atividade de criação e comércio de gado entre o litoral e o sertão. Ao se
estabelecer como um ponto estratégico no trânsito entre o interior do Brasil e a região
litorânea, nas primeiras décadas do século XIX, esta cidade foi ao poucos definindo o
comércio e a pecuária como uma das suas principais atividades econômicas. O arraial de
Santana dos Olhos D’Água, assim, prosperava a cada ano junto a sua feira livre que se
avolumava, atraindo um cada vez mais crescente trânsito de pessoas e mercadorias e,
consequentemente, das relações de compra e venda no local. (POPPINO, 1968;
SIMOES, 2007; SILVA 2000).

Analisando a influência do comércio do gado e suas relações com o crescimento da


cidade de Feira, o brasilianista Rollie E. Poppino em sua obra “Feira de Santana”,
(1968), afirma que, ainda nas primeiras décadas do século XIX, este município já se
consolidava como o mais importante mercado de rebanho de gado do estado da Bahia.
No “campo do gado”, local na cidade onde se travavam as variadas negociações de
compra e venda de bovinos e de caprinos, além de ovinos e suínos de forma secundária,
o volume das transações só cresce ao longo desse século e primeiras décadas do século
subsequente. Segundo este autor, no final do século XIX, especificamente em 1880,
foram negociadas 10.000 cabeças de gado, número que progride com o passar dos anos,
atingindo a marca de 60.000 três décadas depois, em 1910, e 100.000 em 1929 8.

Para este autor, o papel de entreposto comercial que a cidade assume - inicialmente para
o comércio bovino e posteriormente para os negócios de outras mercadorias, bem como

8
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Editora Itapuã: Salvador, 1968, 157-159pp.

21
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o trânsito de viajantes - de fato fundamenta o destaque de Feira de Santana no cenário


comercial de então. Segundo sua leitura, a facilidade de acesso possibilitada pelas
muitas estradas que surgiam fez de Feira uma região com grandiosa população
flutuante. As tropas de animais e de grandes volumes de mercadorias que passavam por
este local rumo ao litoral ou aos sertões eram acompanhadas por muitos condutores e
tropeiros que permaneciam na cidade por alguns dias para descansar ou abastecer-se de
víveres, dando, em seguida, prosseguimento aos seus trajetos naturais. Assim, a
facilidade de acesso, bem como os recursos oferecidos à manutenção das viagens,
tornaram esta cidade um ponto de confluência “natural” para a variada população de
negociantes, diante dos trânsitos comerciais e territoriais que desenvolviam então. A
respeito dessa facilidade de locomoção em torno da região de Feira de Santana, Poppino
menciona a inauguração da linha férrea Central da Bahia, em 1876, diminuindo
distâncias entre a capital da Província, Salvador, e a cidade de Feira. A antiga viagem,
que pelos caminhos tradicionais levaria em média três dias, poderia então efetivar-se em
pouco mais de vinte horas 9.

Criticando as narrativas tradicionais para a origem e ocupação da região onde hoje se


situa Feira de Santana, Clóvis Frederico Ramaiana Morais de Oliveira em “‘Canções da
cidade amanhecente’: urbanização, memórias urbanas e silenciamentos em Feira de
Santana, 1920-1960”, (2011), afirmou que:

a história idealizada, com eleição de alguns mitos, projetava Feira de


Santana não como resultado de diversas experiências de lutas e
conflitos, mas como um tranquilo desenvolver de uma cidade marcada
para crescer.

Nesta perspectiva, em que pese o tom romantizado dado a narrativa apresentada acima,
é importante destacar que OLIVEIRA (2000) e (2011), SILVA (2000) e SIMOES
(2007) afirmam que o mito de fundação deste município a partir da mencionada capela é

9
C.f. SILVA, Aldo José M. Op. Cit. 19p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

uma versão historiográfica que tem por objetivo “silenciar a participação de outros
grupos sociais na estruturação da cidade”. Deste modo, muito antes de significar um
destino natural da urbe se consolidar como um importante entreposto comercial e
mercado de gado no estado na Bahia, a posição adquirida pela “Princesa do Sertão” ao
longo dos anos reflete um projeto de conquista de uma específica posição na economia
baiana, uma vez que, para SIMOES (2007):

A municipalidade desde o século XIX movimentou esforços na tarefa


de multiplicar os canais de ligação com outras localidades baianas, o
que iria defini-la como principal entroncamento do Estado. Tal
condição possibilitava um melhor deslocamento das boiadas à feira do
gado, bem como facilitava o acesso de boiadeiros, vaqueiros,
criadores, compradores, visitantes, por estradas pavimentadas que
diminuíam o tempo da viagem, permitindo menor desgaste das
boiadas, assim como teciam uma rede de ligações importantes entre
Feira de Santana e os mais diversos pontos da região10.

Assim, é importante destacar que o crescimento e projeção desse município ao longo do


século XIX como um importante entreposto comercial deve ser interpretado como fruto
dialético de uma série de lutas, conflitos, sujeitos e investimentos, encerrando tramas
históricas motivadas por conflitos diversos entre os interesses coletivos e individuais. A
reflexão em torno dessa relação é muito importante para a compreensão do fenômeno da
origem e do crescimento de Feira de Santana. A valorização do discurso que alimenta a
“vocação comercial” desta cidade pode ser considerada o elemento primordial que
permitiu historicamente, ao longo do século XIX, a organização de esforços em prol do
interesse em comum, no caso, o que arrogava para a cidade de Feira a necessidade de
consolidar-se como uma urbe dinâmica em suas atividades comerciais. De toda a sorte,
é fato que:

10
SIMOES, Kleber José Fonseca Simões. Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade
Masculina em Feira de Santana\1919-1938. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. UFBA: Salvador-BA, 2007, 24-25pp.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Até fins do século XIX, a documentação sobre a cidade de Feira de


Santana e seu comércio é unânime em retratar uma praça comercial de
porte médio, que envolvia um volume restrito de transações,
envolvendo algumas cidades vizinhas e, a partir do século XX, a
construção de estradas traria uma nova dinâmica comercial. Com o
regime republicano, o poder municipal conseguiria consolidar sua
malha rodoviária, que teria uma importância estratégica no contato de
Feira de Santana com outras regiões. A articulação com os municípios
vizinhos proporcionou um ensaio inicial nas atividades atacadistas,
que viriam a dar uma nova dinâmica a economia feirense. Alem disso,
a construção de estradas municipais que ligavam a sede do município
com as fazendas locais e seus distritos pode ser verificada pelo
número significativo de requerimentos feitos à Câmara Municipal de
pedido de abertura de estradas, construção de pontes, bem como de
suas manutenções - o que também indica o esforço do poder público
municipal em viabilizar tais melhorias11.

Dialogando muito bem com as informações e com as leituras historiográficas


apresentadas acima, os dados demográficos para as primeiras décadas do século XX
permitem identificar um salto populacional entre 1910 e 1930, quando a população da
cidade de Feira de Santana passa de 20.000 para 100.000 habitantes, respectivamente 12
Esse intenso aumento na demografia deste município em muito esteve ligado aos
investimentos materiais e simbólicos ligados ao comércio do gado, especialmente a
ampliação das estradas que possibilitavam um trânsito maior entre as populações dos
demais interiores baianos, colaborando intensamente no afluxo de indivíduos e
compondo, com bastante diversidade, a populacional local. Além disso, ele serviu para
alimentar a fama de cidade bem-sucedida entre os demais municípios do interior baiano
e também de outros estados do Nordeste brasileiro, atraindo cada vez mais um volume
de pessoas que diversificava a população local, compondo um mosaico humano em
Feira de Santana com elementos das mais variadas regiões do estado da Bahia e do
Brasil.

11
IDEM, 25pp.
12
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Editora Itapuã: Salvador, 1968, 56p.

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Sem sombra de dúvidas, a feira semanal deste município foi a maior beneficiada por
esse cada vez mais crescente afluxo de indivíduos. Certamente estes números cresceram
especialmente nos primeiros anos do século XX, já durante o regime republicano
brasileiro, quando a cidade começa a receber muitos investimentos na melhoria de sua
malha urbana. A respeito especificamente do crescimento material do centro urbano e
das áreas comerciais do município, nesse recorte, pode-se apontar o exponencial
aumento no número dos estabelecimentos comerciais entre as décadas finais do século
XIX e as primeiras décadas do século XX. Ainda segundo Rollie E. Poppino, em 1875
estavam registradas na cidade aproximadamente cem casas de comércio. Em 1932, por
sua vez, esse montante salta para quase quinhentos, permitindo que se entenda que há
uma estreita relação entre a afluência de pessoas forasteiras, com o consequentemente
crescimento populacional, e o avanço material e aumento do número das casas de
comércio em Feira de Santana 13.

Kleber Fonseca Simões (2007) aponta que, a partir da década de vinte do século XX o:

Executivo e Câmara municipais seriam formadas basicamente por


homens ocupados com as atividades comerciais, o que traz algumas
implicações que contribuiu na definição de Feira de Santana como um
importante entreposto comercial para a região.

[...]

O estabelecimento da cidade de Feira de Santana como centro


comercial é fruto da atuação de segmentos sociais ligados as
atividades comerciais que implementaram mudanças a fim de
estabelecer uma posição de destaque da cidade em relação a outros
centros de comércio da região, servindo-se certamente da boa
localização geográfica da qual dispunham14.

13
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Editora Itapuã: Salvador, 1968, 159pp.
14
SIMOES, Kleber José Fonseca Simões. Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade
Masculina em Feira de Santana\1919-1938. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. UFBA: Salvador-BA, 2007, 28-29pp.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Nesse ínterim, os elementos discursivos que alimentam e arrogam para a cidade de Feira
de Santana a imagem de “especialidade” e de “vocação” comercial podem ter o seu
tom romântico e de “destino manifesto” problematizados pelas evidências históricas
que contemplam experiências múltiplas em prol do fortalecimento dessa mentalidade.
Assim, não foi o movimento autônomo e involuntário da economia e comércio feirenses
que encerraram para o município uma “característica” para as atividades comerciais ou
pecuaristas, mas um devir histórico marcado pelos conflitos de interesses individuais e
coletivos.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

I.1 - Feira: Crescimento Material e Urbanização

Em escala nacional, a partir da instauração do Regime Republicano, transformações que


se processaram na sociedade brasileira a partir das últimas décadas do XIX e primeiras
do século XX fizeram com que as “elites” instruídas se mobilizassem em prol da ideia
de reproduzir, em ares nacionais, os estilos de vida, bem como as particularidades das
grandes metrópoles do continente europeu. Tentando impor, na medida do possível, a
remodelação cultural dos sujeitos, bem como a reconfiguração das cidades brasileiras de
acordo com princípios higienistas, buscou-se por em prática medidas que visavam
“modernizar” as urbes com base em novas ambições arquitetônicas e urbanistas.

Uma das experiências mais conhecidas dentro desse contexto trata-se da transformação
urbanística pela qual passou a cidade do Rio de Janeiro – então capital do país - cuja
remodelação foi idealizada pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) que promoveu uma
transformação urbana em áreas centrais desta urbe. Seguindo o exemplo do primeiro
prefeito deste município, Barata Ribeiro (1843-1910), ele deu novo impulso a
demolição de todos os cortiços do centro urbano, alegando que os seus moradores não
respeitavam as regras de higiene exigidas pela prefeitura. Os habitantes, sem
alternativas e expulsos pela demolição determinada pelo governo municipal, mudaram-
se em sua grande maioria para os morros próximos, evidenciando que o projeto de
reforma urbana que fora empreendido por essa administração foi especialmente
segregacionista e marcou a história dessa cidade. Parte deles ergueram suas casas em
uma encosta que ficava atrás dos velhos cortiços derrubados, o Morro da Providência,
que posteriormente passou a ser considerada a primeira favela do Rio de Janeiro. A
capital fluminense, assim, ganhou novas casas, novos palacetes e novos
estabelecimentos comerciais. As ruas, anteriormente sinuosas e estreitas, foram
amplamente alargadas e urbanizadas, formando os boulevards que, na lógica de então,
facilitavam o controle moral e sanitário das multidões. (CAUFIELD, 2000;
CHALHOUB, 2001; ESTEVES, 1989).

A medicina sanitarista que legitimou esses discursos e comportamentos, além de


inspirar outras práticas por todo o país, condenava a casa do pobre, principalmente a do
pobre urbano. Os cortiços, as casas de cômodos e as habitações coletivas e precárias

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

passaram a ser consideradas ambientes prejudiciais à saúde, à produtividade (ao avanço


do capitalismo) e, especialmente, à moral dos seus moradores. Segundo Caufileld
(2000):

As autoridades municipais do século XIX viam o centro do Rio de


Janeiro não somente como uma ameaça à saúde pública, mas também
como um ‘teatro dos vícios’. Chalhoub argumenta que, durante o
Império, os escravos e os libertos – que chegaram a compor mais que
a metade da população – criaram uma cidade ‘negra, arredia e
alternativa’ no centro do Rio de Janeiro, uma cidade com prática e
costumes sociais próprios, que pareciam incivilizados e perigosos aos
olhos dos encarregados de impor a ordem. Para muitos, a cidade tinha
dois polos sociais opostos, que Chalhoub descreve como ‘a cidade
codificada e desejada pelos brancos e a cidade instituída pelos
negros’. Era impossível, porém, demarcar com precisão as categorias
raciais e as diferenças culturais. 15

A ideia central que se foi construindo no imaginário social brasileiro a partir dessas
práticas discursivas representava o pobre como potencialmente perigoso, legitimando e
engendrando políticas de Estado que privilegiavam um tipo de controle social baseado
em ações policialescas, repressivas e quase nunca sociais. A partir dessa época, as
classes populares passaram a ser vistas como “classes perigosas”, especialmente
porque, para os sujeitos reformadores, a classe trabalhadora pobre não entendia a
oposição entre o espaço público e o privado da mesma forma que os médicos, juristas e
outros defensores da sociedade “higiênica”. (CAUFIELD, 2000; CHALHOUB, 2001;
ESTEVES, 1989; LEITE, 1996; FAUSTO, 2001; FERREIRA FILHO, 1999).

Essa avaliação sobre o pobre e o seu espaço de moradia, como apontado acima, não foi
uma invenção brasileira. Em Paris, na França do no início do século XIX, as
intervenções executadas pelo Barão Haussmann (1809-1981), durante o governo de
Napoleão III (1808-1873), tinham a intenção de promover uma reforma urbana não

15
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidades, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, 118-119pp.

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apenas para embelezar a cidade e torná-la imponente e grandiosa, mas também para
acabar com o seu antigo desenho medieval, cujo traçado - considerado caótico, intricado
e apertado - facilitava as barricadas das insurreições populares. Para alcançar esses
objetivos foi preciso demolir construções antigas, mudar a disposição e a diagramação
das ruas, expulsando os moradores das áreas centrais, removendo-os também para a
periferia da cidade. Paris, assim, foi remodelada e reorganizada de forma geométrica e
funcional, ao menos em suas áreas centrais. (CAUFIELD, 2000).

Essa política de modernização, no Brasil, não esteve restrita apenas a então capital
federal e demais metrópoles da nação. Estendeu-se, também, a outras cidades brasileiras
que passaram por amplos e variados processos de reconfiguração urbana, bem como
medidas que tentavam controlar o comportamento e as sociabilidades das suas
respectivas populações, dando especial atenção à segregação das camadas
marginalizadas, consideradas, como mencionado, “perigosas”. (FERREIRA FILHO,
1999; LEITE, 1996; RODRIGUES, 2007). Em Salvador, capital do estado, LEITE
(1996) em “E a Bahia civiliza-se: ideais de civilização e cenas de anti-civilidade em um
contexto de modernização urbana em Salvador\1912-1916 observou que a penetração
das ideias modernizantes na sociedade soteropolitana do século XX e o seu projeto
higienizador inicialmente direcionaram suas vistas para os problemas relacionados à
estrutura física, para as infraestruturas urbanas e para a qualidade das habitações. No
entanto, também não tardou a se ocupar dos hábitos da população, assumindo uma
dimensão social com feições de processo civilizatório, que procurava promover
intervenções nos hábitos da população. Para Alberto Heráclito Ferreira Filho (1999) em
“Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em
Salvador (1890-1937)”:

As intervenções reformadoras em Salvador guardaram questões


peculiares, uma vez que elas não se impuseram, como no Rio de
Janeiro e São Paulo, como resultado de um crescimento demográfico
vertiginoso, propiciado, no Centro-Sul, pela industrialização em
rápida escala. Se Pereira Passos, no Rio lutava contra as feridas do
progresso J. J. Seabra, na Bahia, tentava curar as chagas do "passado
colonial", que haviam transformado, paradoxalmente, os vestígios do

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

nobre e opulento passado colonial baiano na expressão de sua


decadência, frente à nova ordem modernizadora.16

Nessa perspectiva, é importante que se leve em consideração que os municípios


brasileiros envolvidos nessa ambição vivenciaram e ambicionaram a “modernidade”
que lhe fora possível. A intensidade e os limites dos processos que almejavam
transformações e avanços materiais dependeram em grande medida das particularidades,
da disponibilidade econômica de recursos materiais e também políticos, sociais e
culturais dos locais onde podem ser identificados. Ou seja, esta não foi uma realidade
histórica onde se é possível identificar uma homogeneidade. Muito embora essas ações
tenham sido engendradas por múltiplos sujeitos e se aportem em aspectos comuns no
tocante à higiene, a moralidade e ao urbanismo, as apropriações desses valores por
conta dos dirigentes das respectivas urbes ganharam sentidos próprios e
particularizados, o que se pode identificar com muita clareza na cidade de Feira de
Santana que, assim como boa parte do Brasil nessas décadas iniciais do século XX,
viveu intensamente múltiplos conflitos em prol dos ideais de progresso material e
humano.

Na “Princesa do Sertão”, as ambições em torno dos sonhos de avanço também surgem


nesse momento histórico, sendo que, do mesmo modo que no restante do Brasil, se
intensificam ao longo das primeiras décadas do século XX. Com o crescente incremento
das atividades comerciais no município e o aumento demográfico ao longo dos anos,
como apontado, vários sonhos de “modernização” foram idealizados por muitos
elementos das elites locais, especialmente por sujeitos membros da imprensa local,
médicos, advogados e profissionais liberais de um modo em geral, bem como
comerciantes de gado e grandes proprietários de terras. Diante dessa diversidade de
indivíduos e ambições, não foram poucos os conflitos em torno da transformação da
cidade.

Em Feira essas ambições de mudança e progresso referiam-se em grande parte -


seguindo o modelo das grandes capitais brasileiras - às intervenções físicas na malha

16
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. “Desafricanizar” as Ruas: Elites Letradas, Mulheres Pobres
e Cultura Popular em Salvador \1890-1937. Afro-Ásia, nºs 21-22, 1998, 241p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

urbana municipal, às obras de infraestrutura, com o consequente alargamento de ruas, a


criação de novos logradouros e avenidas, a valorização estética com a implantação da
iluminação pública e arborização de praças e vias. Ao nível cultural, a disciplinarização
da feira livre local e da feira do gado, especialmente com a imposição de novos hábitos
comportamentais a população rural e a idealização dos chamados “currais modelos”.
Na leitura de OLIVEIRA (2011):

Na luta cotidiana contra “práticas atrasadas”, outros agentes e


comportamentos são guindados à condição de inimigos dos cultos e
avançados, destacadamente trabalhadores que remetessem às formas
de sociabilidade oriundas da velha cidade, daquela que ainda não
havia sofrido intervenções públicas significativas na paisagem urbana.
A produção escrita em torno dos aguadeiros, a cobrança de
intervenções do poder público no sentido de fazer uma mediação o
que, na prática, seria uma ação contra os trabalhadores faziam parte de
um mesmo desejo: o de controlar a população urbana e manter sob
regras rígidas homens e mulheres que circulassem no perímetro da
cidade. 17

Ambicionava-se disciplinar e, quando possível, eliminar das ruas um conjunto de


práticas e sociabilidades que remetessem, visualmente, ao passado agrário/rural. A
população local, ruralizada em sua grande maioria, deveria adquirir novos hábitos
urbanizados, disciplinando práticas sertanejas e “arcaicas” que, aos olhos dos
reformadores de então, destoavam de uma cidade idealizada como “Princesa”. Esses
conflitos e debates em prol de novas práticas de urbanidade e civilismo para os
moradores de Feira de Santana deixam bem claro os conflitos e antagonismos existentes
entre os modelos de vida urbano e rural. Nesta perspectiva, muitas das referências
históricas e culturais que foram traçadas para simbolizar Feira de Santana, nas muitas
tentativas de configurá-la como moderna e civilizada, remetem às ambições em torno da
urbanidade e da civilidade. Importante considerar que ser civilizado naquele momento
17
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. Canções da cidade amanhecente: urbanização,
memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. 2011, 263. Tese (Doutorado).
UNB, Brasília-DF, 2011, 37-38pp.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

significou seguir as regras impostas pela modernidade observada nas grandes cidades
brasileiras e europeias.

A busca incessante pela transformação dessa cidade interpôs um imenso espaço de


significados, um muro de práticas sociais que sugeriam novas sociabilidades ao mesmo
tempo em que interditava outras, especialmente as que remetessem a ruralidade dos
comportamentos. Os vaqueiros, representados de forma ambígua, nesse contexto foram
os mais rechaçados. Não são poucas as narrativas jornalísticas de então que criticam a
prática das corridas e vaquejadas no centro urbano, bem como contemplam o trânsito
desorganizado de reses e carroças, enfeando o deveria ser belo. OLIVEIRA (2000) e
(2011); SIMÕES (2007).

Assim, nas primeiras décadas do século XX, emerge em Feira de Santana muitas
ambições e sonhos em torno das ideias de modernização urbanizadora, cujos ideais
giravam em torno da construção de funcionalidades citadinas e da consequente
problematização e reorganização de códigos, costumes e condutas morais de seus
moradores. Muitos trabalhos historiográficos revelam que este município viveu
intensamente inúmeros conflitos em busca de progresso e crescimento material
OLIVEIRA, (2000) e (2011); SIMÕES, (2007); SILVA, (2000); SOUSA, (2001);
SANTOS, (2012); RAMOS, (2007). Essas pesquisas evidenciam a ambição das elites
locais em normatizar e disciplinar a urbe e a população através de reformas urbanas e do
estabelecimento de padrões de comportamento e de sociabilidades.

Segundo esses autores, os projetos de civilização nesta cidade do interior da Bahia


sempre estiveram diretamente articulados à de uma memória que a transformou em uma
urbe, exercendo liderança na região na qual esteve inserida. No entanto, ao contrário do
que se propagava (crescimento tranquilo e apaziguado), o processo de internalização das
ideias de crescimento foi marcado por conflitos. Seja nas relações sociais, seja nas
relações familiares, a modernidade se impunha e com a tradição conflitava,
configurando o convívio marcado por tensões. Neste ínterim, os ideais civilizatórios, de
modernização e de combate aos “maus costumes” se faziam presentes nos discursos
políticos e nas falas da imprensa. Acreditavam que, para que a cidade não fosse
dominada pela degeneração, era necessário que a elite feirense se apresentasse como a
responsável pela ordem social, através dos seus intelectuais higienizadores.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Os choques de interesses gestados por estas aspirações de civilizar e modernizar a


cidade, de um modo em geral, explicitavam contradições entre modos de rurais e
urbanos, mas os antagonismos não estiveram apenas na oposição entre as elites
feirenses e as camadas populares - ruralizadas em sua maioria - mas também dentro
dessas mesmas elites. Neste sentido, muitas formas de sociabilidades encontradas neste
município ao longo das décadas iniciais do século XX vão se transformando como parte
dos conflitos modernizadores identificados então. Os campos cultural e social, que se
configuraram como lócus de choques e disputas, também problematizaram as muitas
práticas de lazer e, segundo SANTOS (2012) em “Diversões e Civilidade na ‘Princesa
do Sertão’ (1919-1946) - Feira de Santana”, são uma mostra de como as muitas
contradições se manifestavam:

A cidade feirense foi e é o local onde acontecem diversas formas de


sociabilidade, entre elas as diversões. Nas suas artérias urbanas, em
suas praças e coretos ocorreram desfiles musicais das filarmônicas, os
circos, os jogos de futebol, as festas de sábado de Aleluia realizadas
pelos cordões carnavalescos da cidade, a Festa de Nossa Senhora de
Santana, o Bando Anunciador, o Carnaval e a Micareta. Nas sedes de
suas instituições, conferências, saraus, recitais, bailes dançantes; no
teatro, espetáculos diversos; e no cinema, a imagem em movimento
“que faz sonhar”. Os desdobramentos desse processo de perspectivas
progressistas se estenderam para esse emaranhado de diversões
cotidianas. 18

Neste ínterim, variadas formas de diversão foram também práticas portadoras de


múltiplos ideais de civilidade e de progresso e foram utilizadas como meios de difusão
de costumes considerados mais citadinos e cosmopolitas, alimentando outros olhares
para Feira de Santana. Os sujeitos, representando seus respectivos “grupos”,
elaboraram, assim, seus discursos e representações para a cidade, gerando embates e
conflitos que buscavam legitimar suas subjetividades e desejos. Ainda segundo
18
SANTOS, Aline Aguiar Cerqueira dos. Diversões e Civilidade na ‘Princesa do Sertão’ (1919-1946) -
Feira de Santana. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação e História. UEFS: Feira de
Santana-BA 2012, 20p.

33
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

SANTOS (2012), entre as representações mais emblemáticas e conhecidas para esta


cidade, é possível destacar duas: uma que concebe a cidade como um lugar que possuía
um clima ideal para cura de doenças ou para temporadas de férias, a “Petrópolis
Baiana”; e a “Princesa do Sertão”, epíteto já mencionado neste texto que faz referência
às potencialidades econômicas e comerciais desse município, destacando sua
“vocação” para o comércio.

As práticas discursivas que davam conta de alimentar a fama de clima “ameno” para
Feira de Santana, segundo SILVA (2000) em “Natureza Sã, Civilidade e Comércio em
Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no
interior da Bahia (1833 - 1927)”, já estavam sendo veiculadas pelos jornais locais
desde os finais do século XIX. Para este autor essas falas eram baseadas em princípios
médicos de então, valorizando elementos como higiene e salubridade, supostamente
fáceis de serem encontrados nas características climáticas da cidade, portadora de uma
“natureza sã”, segundo se acreditava. Até as três primeiras décadas do século XX é
possível se identificar nos periódicos feirenses muitas alusões a esta cidade como a
“Petrópolis Baiana”, em referência a cidade fluminense de Petrópolis, cuja mística do
seu desenvolvimento no período imperial brasileiro esteve relacionado às ambições de
Dom Pedro II e toda a sua corte que desejavam um lugar ameno para passar os meses de
verão que eram considerados extremamente quentes na então capital Imperial, o Rio de
Janeiro. A partir desse desejo, narra-se que palácios e palacetes foram erguidos aos
montes e que este município passou a possuir várias construções desses gêneros. Essa
atmosfera imperial, aliada a deslumbrantes paisagens montanhosas, fez crescer a fama
da cidade por todo o país, servindo de forte inspiração para a construção de ambições
semelhantes em Feira de Santana que se imaginava passível de tornar-se também um
polo turístico, atraindo pessoas em busca de requinte, sossego e saúde, transformando-
se em um lócus de pousadas charmosas e gastronomia de primeira.

Outras elites locais, por sua vez, estabeleceram como elementos ideais para a construção
simbólica de Feira, aspectos subjetivos como a “civilidade” e o “progresso”,
amparados no epíteto de “Princesa do Sertão, surgido a partir da visita de Ruy Barbosa,
em 1919, quando este realizou uma conferência na cidade e em seu discurso cunhou
essa expressão que se consolidou no imaginário local. A partir de então, a urbanização
tornou-se uma ambição histórica para alguns sujeitos que recusavam os aspectos rurais e

34
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

arcaicos que pudessem remeter ao aspecto de vila de interior e optaram, ao menos


discursivamente, por elementos que configurassem determinada urbanidade para a
cidade de Feira de Santana, buscando consolidá-la como a mais importante do interior
do estado, ordenando seus diversos espaços, disciplinarizando os comportamentos de
seus moradores.

Essa ambição, segundo OLIVEIRA (2011), foi cristalizada com a promulgação, em


vinte e nove de dezembro de 1937, do Código de Posturas Municipal, documento que
explicitava muitas das pretensões das autoridades em relação ao dia a dia feirense.
Atualizando a versão de 1893, esse novo programa trouxe elementos interessantes que
possibilitam o conhecimento de novas ideias sobre o espaço citadino e os olhares dos
administradores locais, bem como ordenava normatizações em torno das práticas e
procedimentos dos sujeitos nos espaço público. Na leitura de SIMOES (2007):

ele formaliza a perseguição aos animais soltos e constrói uma outra


imagem de cidade que procura ajardinar a praça segundo planos
modernos, renegando as cenas que trouxessem a tona sua posição de
Princesa do Sertão-pastoril baiano. Mas o programa comprimia outros
cenários e posturas do dia a dia da Feira. 19

Além disso, ele abarcou uma série de intervenções sobre a cidade e seus habitantes,
ambicionou redimensionar os espaços urbanos, alterando muitos ambientes e buscando
modificar e regulamentar as relações sociais identificadas no cotidiano da cidade:

Caminhando com os legisladores feirenses, ou seja, com aqueles que


tinham a função de tentar dar ordem aos desejos de enquadrar a urbe
sob a ótica progressista, pode ser observada a cristalização de alguns
dos projetos feitos para introduzir um habitus equiparado com as
transformações que estavam em sendo desenvolvidas. A projeção do

19
SIMOES, Kleber José Fonseca Simões. Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade
Masculina em Feira de Santana\1919-1938. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. UFBA: Salvador-BA, 2007, 52p.

35
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

sonho ganhou forma nos artigos do Código de Posturas, instrumento


regulador construído com o objetivo de dotar a urbe de um conjunto
de preceitos e interdições. 20

Em que pese o interesse em racionalizar práticas e espaços, é importante que se


destaque que os múltiplos sujeitos da cidade de Feira de Santana conservaram
sociabilidades que pertenciam às práticas socioculturais costumeiras que transgrediam
as normas. Por maior que fosse o interesse em consolidar novas urbanidades e
arquiteturas, os elementos rurais não foram abandonados e eram facilmente
identificáveis na vida da cidade, especialmente em subúrbios e áreas um pouco
afastadas do centro urbano, local privilegiado para as investidas na malha urbana. Os
discursos e sonhos de urbanidade refletem, em contrapartida, um mosaico de práticas
arcaicas, costumes antigos e de sociabilidades rurais típicas de uma cidade interiorana e
sertaneja que se objetivava engrandecer:

o subúrbio tinha uma vida própria, marcada por sociabilidades de


labor, por festejos realizados em casa de amigos. Eram, também,
pontos de apoio para familiares que se deslocavam para a cidade.
Pessoas que vinham de outros estados também poderiam encontrar
moradia e trabalho na região. Recheados de lagoas, pequenas catingas
e muitas roças, os subúrbios também eram pontos de contato entre as
culturas rurais e a sociedade urbanizadora que era erguida nas ruas
centrais de Feira de Santana, terra onde poderia se ouvir chulas e ver
as primeiras lâmpadas elétricas. 21

A despeito dessas permanências mais poderosas do que se imaginava, não são poucas as
narrativas nos discursos jornalísticos que dão conta do desejo incessante de civilizar. Se
havia a defesa constante da “civilização”, muito provavelmente havia práticas que
destoavam do idealizado, fortalecendo a necessidade de combater o considerado

20
IDEM, 111p.
21
IBIDEM, 171p.

36
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

incivilizado e inconveniente. Os articulistas do Jornal Folha do Norte, importante


periódico local e principal propagador das ambições progressistas, em incontáveis
manchetes e reportagens destacam comportamentos condenáveis para as ambições de
então e:

a camada mais pobre da população era o principal alvo de tais


acusações, e práticas como o roubo de flores nos jardins, o futebol nas
ruas, animais soltos perambulando pelas vias públicas e as brigas
cotidianas apresentavam-se como reclamações corriqueiras nesse
periódico. As reclamações sobre essas ações sugerem que tal esforço
recorrente parece provar que o projeto de ordem enfrentou
dificuldades em penetrar nos costumes locais, os quais insistiam em
não aceitar os moldes da urbanicidade, em desorganizar suas artérias
fugindo dos padrões estabelecidos. 22

Assim, o perfil da cidade, ao menos no discurso da imprensa, começava a ganhar novos


contornos e a transformação física progressivamente também se dava através dos
poderes públicos que investiam e buscavam cada vez mais reconfigurar o centro urbano.
Na tentativa de substituição de uma ordem rural por uma urbana, com o objetivo de
tornar a urbe “moderna e civilizada” de acordo com os anseios das elites feirenses,
havia, para OLIVEIRA (2000) e (2011), a condenação de quaisquer elementos da
herança negra, de práticas que remetessem ao “passado pastoril da cidade” e,
especialmente, o desejo de retirar do cenário urbano a presença dos vaqueiros e suas
boiadas, cada vez mais relegadas ao ostracismo e a inconveniência:

Por um lado, a criminalização das corridas vaqueiras. Para atingir tal


objetivo, foi montado um aparato discursivo, um campo de
significados que deslocava o sujeito/vaqueiro do seu lugar de fala e

22
SANTOS, Aline Aguiar Cerqueira dos. Diversões e Civilidade na ‘Princesa do Sertão’ (1919-1946) -
Feira de Santana. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação e História. UEFS: Feira de
Santana-BA, 2012, 33p.

37
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

atuação, silenciando-o. Através de escritos jornalísticos, foram


produzidas narrativas que permitiam a associação das práticas
vaqueiras com vocábulos e expressões negativas, uma codificação que
possibilitava ao leitor construir uma imagem dos trabalhadores da
pecuária mais próxima dos indesejáveis à ordem urbana. Essa
construção linguística foi uma contraposição à noção segundo a qual
seriam os ginetes os fundadores, com seus cavalos e boiadas, da
sociabilidade/sertão e, por consequência, de Feira de Santana. Estava
em jogo, nos diversos textos produzidos sobre as corridas pelas ruas,
uma reinvenção da cidade, uma fala fundadora que deslocava práticas
e memórias sedimentadas sob a poeira deixada pelas tropas de
viajantes. 23

As ressignificações não se deram apenas do ponto de vista físico e cultural, mas também
açambarcaram subjetividades. SIMÕES (2007) demonstra que, nessa busca pela
instituição de um novo modelo de cidade os conflitos em torno da construção das
identidades masculinas também tiveram palco privilegiado. Para ele, entre os anos de
1918 e 1938 as indisposições em torno das subjetividades masculinas se deram entre os
representantes de uma “identidade comercial e moderna” para o município e entre
aqueles que defendiam a manutenção da “tradição do pastoreio” na cidade. A partir da
crítica a violência na resolução dos conflitos pessoais, da defesa da etiqueta e da moda
como sinais de prestígio social entre os homens, os comerciantes sustentavam o seu
projeto de modernização no plano cultural e se autoafirmavam como os “novos donos
do poder”. Para esses, nessa nova cidade, então em construção, também haveria espaço
para a concepção de um novo homem que fosse igualmente “civilizado”.

Por sua vez, frente a esses ideais de modernização verificados nos discurso dos
comerciantes que advertiam sobre a necessidade da reconstrução da paisagem urbana e
dos hábitos culturais, os representantes da “civilização do pastoreio” lançaram mão de
mecanismos estratégicos pela defesa da tradição, associando os elementos de
modernidade e os valores culturais chamados de modernos a feições femininas e

23
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. Canções da cidade amanhecente: urbanização,
memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. 2011, 263. Tese (Doutorado).
UNB, Brasília-DF, 2011, 69p.

38
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

atribuindo significações negativas e depreciativas. Este comportamento visava diminuir


a força dos discursos de progresso, relegando a estes uma posição inferior na cidade.
Para SIMÕES (2007), deste modo se estruturam as disputas para a composição de um
homem ideal na cidade:

A confecção das identidades masculinas do homem moderno


encontra-se no processo de luta que reordena forças no cenário social
e Político na Princesa do Sertão. Tais identidades figuram enquanto
mecanismos simbólicos de disputa que darão ao grupo vencedor não
só a hegemonia de sua identidade masculina, como também
proporcionará o acesso aos privilégios do gênero promovendo a
afirmação de sua dominação, sua força, sua autoridade e seu poder aos
inimigos e subversivos por meio do aparelho estatal, por exemplo. 24

Também nesse ínterim, Ione Celeste de Sousa (2001), estudando a vida urbana feirense
que se expandia a partir da influência da instituição de ensino Escola Normal em
“Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalistas em Feira de Santana - 1925 a
1945” compreendeu que este colégio, com seu “arsenal civilizador” (livros,
professores, bibliotecas, livrarias, academias de letras e círculos de leituras), expressou
políticas de moralização de costumes e de expansão de determinadas urbanidades,
especialmente para o seu alunado majoritariamente feminino. Para esta autora, muitas
civilidades surgiram para as professorandas normalistas, especialmente sua participação
no cenário urbano, uma vez que precisavam transitar pelas ruas da cidade para chegar à
escola. Esse trânsito, contudo, não foi efetivado sem normas e espaços especiais de
disciplinarização, forjação e modelagem das moças estudantes, pois ser professoranda
normalista era ser uma mulher diferente: pública, mas de uma publicidade especial, já
que sua atividade era valorizada; intelectualizada; capaz, mas com moral ilibada e
religiosidade evidente.

24
SIMOES, Kleber José Fonseca Simões. Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade
Masculina em Feira de Santana\1919-1938. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. UFBA: Salvador-BA, 2007, 66p.

39
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Ainda que em Feira de Santana a modernidade tivesse conotações diferenciadas e suas


muitas limitações - quando se comparada às grandes cidades brasileiras, como Rio e
São Paulo - de fato apareceriam novas sociabilidades e formas de lazer que
proporcionavam aos sujeitos convivências mais próximas, mais aspectos de urbanidade
e civilismo, bem como eram compartilhadas novas formas de sensibilidade e visões de
mundo. A década de 1940, em especial, é bastante emblemática nesse sentido, pois é
nela que surgem na cidade espaços públicos de folga e diversão compatíveis com as
ambições modernas, como o Feira Tênis Clube, o Cassino Irajá e o Cinema Íris, todos
inaugurados no ano de 1946 (OLIVEIRA, 2011). Este último “espécie de metonímia
25
dos tempos vividos pela cidade ” foi construído na Avenida Senhor dos Passos e,
além de alargar os territórios para a circulação de moças e rapazes feirense, ampliou as
possibilidades de passeios e divertimentos. O Cinema Íris trouxe, ainda, muitos
impactos no tocante a diversão de determinados jovens e adolescentes. Nesse endereço
houve a:

Consagração pública de novas sociabilidades, na rua enquanto ponto


de passagem, como elemento facilitador de ligações entre diferentes
territórios, ao mesmo tempo em que servia de passarela para a
exibição de corpos jovens vestidos com roupas da última moda. Esse
modelo de artéria era, dessa maneira, contraposto ao que observava na
rua uma extensão de sociabilidades privadas, lugar de jogos de salão,
leituras de fim-de-tarde, longas palestras sobre assuntos extensos,
futebol e, não há como deixar de citar, ‘correrias de vaqueiros’. 26

De modo semelhante, também ocupariam grande destaque nos debates acerca da


modernidade feirense os conceitos de honra sexual e as imagens idealizadas das moças
da “sociedade moderna”. Elas vinham ligadas a uma hierarquização social que
focalizava mulheres dos grupos dominantes como exemplos de sociabilidade e de boa
conduta social. Fazendo uma frutífera discussão acerca desse “novo lugar” que cabia a
25
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. Canções da cidade amanhecente: urbanização,
memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. 2011, 263. Tese (Doutorado).
UNB, Brasília-DF, 2011, 113p.
26
IDEM, 114p.

40
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

mulher no cenário urbano feirense frente às mudanças na urbe, RAMOS (2007) em


“Timoneiras do bem na construção da cidade princesa: mulheres de elite, cidade e
cultura 1900-1940” aponta que os primeiros quarenta e cinco anos da “antiga vila de
vaqueiros do sertão” foram marcados por uma incessante busca das elites pela
transformação de Feira de Santana. Através de investidas de reformulação da sua malha
urbana, bem como fiscalização e controle do comportamento da população, objetivava-
se modernizar a cidade. Essas novas exigências trouxeram a mulher da “elite” para o
cenário urbano, ampliando as ações de mãe e esposa, devendo esta apresentar-se em
público com civilidade, recato e educação, sem perder os símbolos da feminilidade,
como a obediência.

Esse novo modelo normativo de mulher pregou novas formas de comportamento e


etiqueta às moças de famílias mais abastadas e estas expectativas foram,
paulatinamente, estendidas e ressignificadas as meninas ruralizadas e das classes
trabalhadoras. No mesmo momento em que se identifica a crescente urbanização e o
desenvolvimento comercial, se solicita a presença feminina nas ruas, praças e nos
acontecimentos da vida social, especialmente os ligados a assistência social e
religiosidade. Exaltando virtudes como a fragilidade, a laboriosidade e, especialmente, a
submissão, forja-se uma representação simbólica da mulher feirense ideal: esposa, mãe,
dona de casa afetiva, mas sempre assexuada.

RAMOS (2007) entende que as transformações sociais responsabilizaram as mulheres


sobre os encargos e símbolos da modernidade, devendo estas atuar na filantropia social,
atividades espirituais, entre outras, colaborando para a construção da cidade “moderna”.
Essa nova situação cobrava uma contrapartida: o cerco de discursos e práticas sobre a
mulher, trazendo a necessidade de disciplinar o corpo feminino para que ele não
burlasse a ordem social da virgindade, castidade, casamento e maternidade, categorias
de feminilidade difundida pelas redes institucionais, uma vez que as mulheres eram
responsáveis pela sua honra e de suas famílias.

Assim, é inegável notar que durante as primeiras décadas do século XX a cidade de


Feira de Santana de fato passaria por um considerável crescimento material,
especialmente ligado ao seu afamado comércio, alcançando, em virtude disso, uma certa
visibilidade nacional que implicaria para o cotidiano da cidade uma reorganização e
mesmo alteração dos hábitos e condutas que estivessem concernentes à configuração da

41
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

urbe “moderna”. Como apontado acima, neste momento também ganham destaque para
a discussão acerca da moralidade dos costumes o comportamento sexual feminino e a
Justiça Pública da cidade também assumiu seu quinhão na preocupação com a
moralidade e as novas sociabilidades femininas a partir da criminalização de
determinadas práticas sexuais que pudessem por em risco a moralidade das mulheres.
Ainda nesse recorte, a nível nacional, o pensamento jurídico também se debatia sobre
questões sexuais, como virgindade, uniões consensuais e crimes passionais e sexuais,
tomando, muitas vezes, vieses e interpretações distintas, como se verá mais
profundamente adiante a respeito do crime de sedução, especificamente.

Diante do que parecia ser a transformação desordenada dos princípios morais da


sociedade, simbolicamente representada pela “liberação” da “mulher moderna”,
muitos sujeitos jurídicos argumentavam que já não era possível proteger
verdadeiramente a honestidade feminina. Outros, aclamando positivamente a
modernização dos costumes sociais, insistiam que os princípios jurídicos a respeito do
que se chamava de “honra das famílias” estavam ultrapassados, precisando serem
readequados às novas demandas oriundas da modernidade e do progresso. Havia ainda
quem pensasse que as “novas ameaças” aos valores morais antigos tornavam a defesa
da honra feminina uma realidade muito mais premente. Para intelectuais mais
progressistas, contudo, as noções mais tradicionais sobre as relações de gênero eram
constantemente atacadas por serem julgadas como grandiosos impedimentos à
modernização da nação. Assim, a preocupação sexual era parte de uma grande
inquietação que movia as discussões dos sujeitos que se julgavam representantes de
uma vanguarda intelectual. Essa preocupação com a virgindade e a honra sexual das
mulheres e a sua cada vez maior publicidade revelava disputas mais amplas pelo poder
de definir o futuro cultural e político da nação. (CAUFIELD, 2000; CHALHOUB,
2001; ESTEVES, 1989; FAUSTO, 2001; FERREIRA FILHO, 1999; RODRIGUES,
2011).

Na punição dos crimes sexuais bem como na investigação tradicional da sexualidade


feminina, às avaliações da honestidade das mulheres estiveram por muito tempo
atreladas as marcas físicas da virgindade, especialmente relacionadas à inteireza da
membrana hímen. A partir de 1930 (CAUFIELD, 2000; ESTEVES, 1989, FAUSTO,
2001; RODRIGUES 2011), todavia, muitos intelectuais ligados à Medicina Legal e ao

42
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Direito passariam a criticar essas noções tradicionais que davam conta de que a
preocupação social com a virgindade das mulheres seria um sinal de superioridade
moral e de uma civilização avançada. Ao contrário, argumentavam que tal ideia
evidenciava o atraso das instituições. Embora levantassem essas discussões, de fato a
preocupação com o avanço dos costumes e seus efeitos na moralidade das mulheres era
uma constante no período.

Contudo, analisando os processos-crime de sedução em Feira de Santana entre os anos


de 1940 e 1960, pode-se inferir que grande parcela dos envolvidos nessa tipologia
criminal foram sujeitos populares, trabalhadores pobres, moças de famílias humildes,
ruralizadas em sua ampla maioria. Em oposição às elites profissionais e aos discursos
intelectualizantes aludidos acima, esses sujeitos, ao envolverem-se com as instâncias
jurídicas visando à resolução de alguma querela sexual, não se preocupavam com as
ideias e com os princípios de “construção da nação” ou “elevação da moral
brasileira”, mas sim com suas demandas familiares e com insatisfações motivadas por
relacionamentos que se desenrolavam distintamente das pretensões sociais.

Assim, analisando cada caso individualmente, as concepções sobre honra, virgindade e


moralidade das moças envolvidas nos crimes de sedução não refletiram um
compromisso com a afirmação da “modernidade feirense”. É patente que com seu
comportamento e senso de honra passando por transformações, as jovens de Feira de
Santana, ao mesmo tempo em que reproduziam a vida de suas mães e avós, respondiam
às novas exigências da vida numa sociedade em mudança. No cotidiano essas meninas
começavam a reinterpretar, reavaliar e mesmo preservar as tradições que tornaram essas
noções fundamentais para as suas experiências. Analisando desta forma muitas das
trajetórias das mulheres envolvidas nessa tipologia criminal, se pode avaliar que as
narrativas e descrições presentes nas falas da acusação e defesa, bem como nos
depoimentos dos demais envolvidos, trazem importantes informações que permitem a
problematização dos discursos que mistificam\romantizam a experiência da
“modernização” da cidade de Feira.

Por se tratarem de narrativas e casos que abordam majoritariamente a experiência de


moças pobres e rurais que pouco ou quase nenhum contato tiveram com os ambientes
descritos como potencialmente perigosos para a moralidades das moças recém-inseridas
no espaço público, a “modernidade” de Feira de Santana pode ser redimensionada, seus

43
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

espaços “modernos” e o perigo a eles atribuídos podem não ter tido amplitude
significativa para atingir\alterar as sociabilidades das moças envolvidas nesse crime
sexual, que será melhor discutido no capítulo que se segue.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO II

O Crime de Sedução: Discursos e Prática


Jurídica

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO II

O Crime De Sedução: Discursos e Prática Jurídica

O Código Penal Brasileiro de 1940 contempla o crime de Sedução no seu artigo 217 nos
seguintes termos:

seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e


ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou
justificável confiança. 27

A virgindade sexual feminina, explicitamente um elemento essencial do crime de


sedução, nem sempre teve a mesma definição e importância jurídica. No Código Penal
de 1890, que foi substituído pela versão promulgada em 1940 citada acima, esta figura
delituosa respondia pelo título de Defloramento, artigo 267¸ e consistia em “deflorar
28
mulher menor de idade (21 anos), empregando sedução, engano ou fraude” . O
referencial interpretativo dessa última tipologia criminal reiteradamente reforçava a
importância de se precisar os chamados “dados materiais” do crime que necessitavam
ser comprovados para a caracterização do delito: a confirmação da cópula carnal
(completa ou incompleta - respectivamente com ou sem o clímax sexual, a ejaculação e
o orgasmo masculino) com o rompimento da membrana hímen. Para FERREIRA
FILHO (2001):

Tal atitude era respaldada pelo Código Penal brasileiro de 1890,


Capítulo VIII, relativo aos “Crimes Contra a Honestidade das

27
MEDEIROS, Darcy Campos de, MOREIRA, Aroldo. Do crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1960, 30p.
28
IDEM

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”. [...] Caracterizava-se a


sedução, o engano ou a fraude, quando a “vontade da mulher está
subjugada aos interesses do autor do delito”, sendo esta, portanto,
vítima de um ato de que não vislumbrava as consequências. A pena
estipulada era de 01 a 04 anos de prisão, sendo que, não havendo
impossibilidade jurídica, o casamento tornava nulo o delito. 29

Essa formulação refletia a preocupação central de uma sociedade que materializava a


honra das mulheres em uma peça anatômica. A membrana hímen representava um
elemento biológico/corporal facilitador do controle da sexualidade feminina e a partir
dele, pensavam, poder-se-ia distinguir as moças puras e impuras. Era dever das
mulheres manter o seu “selo” intacto e ao homem restava o temor em expor-se ao
ridículo de se relacionar e, especialmente, casar-se com uma menina ou jovem,
empregando o termo popular, “descabaçada”.

Fazendo uma importante genealogia da criminalização de determinadas práticas sexuais


consideradas desviantes na História do Brasil, CAUFIELD (2000) 30 aponta que o verbo
“deflorar” não foi uma novidade jurídica do referido Código Penal de 1890. Segundo
ela, na justiça brasileira esta terminologia foi uma inovação quando da promulgação do
Código de 1830, que fazia implicitamente uma comparação metafórica entre a
membrana hímen e a delicadeza de uma flor. Deflorar, então, teria o sentido de “tirar a
flor”, romper o hímen. Antes deste último código, por sua vez, vigoravam as
Ordenações Filipinas que eram menos específicas e apenas condenavam genericamente
o homem que “dorme com” ou “corrompe” uma mulher virgem ou uma viúva honesta.
Apontando ainda mais ancestralmente a criminalização de determinados
comportamentos sexuais, a autora desenvolve a ideia de que a utilização da
terminologia “defloramento” é bastante tributária do direito romano, que já havia
utilizado termos latinos como “desvirginatio” e “desvirginare”:

29
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. As delícias do nosso amor: comportamento feminino e
crimes sexuais em Salvador (1890-1940). In.: Revista Fazendo Gênero na Historiografia Baiana. Orgs:
Cecilia M.B. Sardenberg, Iole Macedo Vanin e Lina Mª Brandão de Aras Salvador: NEIM/UFBA, 2001,
67p.
30
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidades, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, 75p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Cenas semelhantes haviam sido previamente montadas nos tribunais


da Roma Antiga e nos reinos medievais regidos por leis canônicas,
muito antes de os portugueses trazerem essas tradições legais para o
Brasil do século XVI. Embora não existam estatísticas do número de
reclamações sobre virgindades perdidas e quebras de promessas de
casamento ao longo dos séculos, parece que acontecimentos como
estes foram corriqueiros em várias regiões do Brasil, desde o período
colonial até a década de 1970. No entanto, as características dos casos
variam de acordo com as circunstâncias históricas. 31

Muito embora várias nações modernas punissem a sedução de menores de acordo com
legislações específicas, estas geralmente não incluíam a virgindade anterior das
mulheres como uma evidência primordial nas investigações. Portugal e alguns países
latino-americanos, por exemplo, adotaram leis peculiares sobre a sedução ou o estupro
de meninas virgens, mas somente no Brasil se chegou a existir o defloramento, dando
tamanha ênfase ao chamado “elemento material do crime”, ao rompimento do hímen.
A fixação nesta membrana como sinal de pureza sexual e honestidade feminina, bem
como a insistência no rompimento dela como comprovação material de um delito
sexual, caracterizou o que muitos juristas reformadores das primeiras décadas do século
XX denominaram “himenofilia” dos brasileiros (CAUFIELD, 2000; RODRIGUES,
2007).

Nessa perspectiva, o momento do desvirginamento de uma mulher para os juristas,


vítimas e demais envolvidos no crime de defloramento, durante a vigência do código de
1890, era bastante valorizado. A perda da virgindade e a rotura da membrana hímen nas
narrativas das meninas que aparecem nos processos de defloramento sempre são
associadas à ocorrência de dor e sangramento. A ideia de que uma virgem
anatomicamente normal ao ser desvirginada sente muita dor e sangra era compartilhada,
ou ao menos utilizada, antes dos anos 1940 pelos legistas, pelos profissionais do
judiciário, pelas ofendidas e pelos acusados. Pesquisando esta tipologia criminal entre
1900 e 1911, Martha de Abreu Esteves, no estudo “Meninas perdidas: os populares e o
cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque” (1989), percebeu que:

31
IDEM, 28p

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

As mulheres que desejavam ser protegidas pela Justiça, além de


atribuírem em seus relatos toda a ação ao homem, deviam dar muita
ênfase à dor e ao sangue. Eram os emblemas da perda de virgindade
(...). Tinham que sentir muita dor e sangue na primeira relação sexual.
Algumas ofendidas até chegam a exagerar a quantidade de sangue ao
declararem que manchou a roupa (saia e blusa) e os lençóis. O próprio
Viveiro de Castro recomendava a seus leitores reparar esse fato, pois é
uma prova significativa, mesmo que não determinante, e valorizada
por várias sociedades. 32

Entre uma restrita elite intelectual, contudo, essas tradicionais concepções começaram a
ser desmistificadas, especialmente a partir do final do século XIX e durante as primeiras
décadas do século XX, quando muita literatura médica e jurídica foi produzida no Brasil
sobre o estudo da anatomia da vulva feminina, com especial atenção à membrana
hímen. Escrevendo para o público na grande imprensa ou mais comumente dirigindo-se
aos seus colegas em revistas e periódicos especializados, os juristas e médicos-legistas
representavam-se como uma vanguarda intelectual da sociedade, cujo dever era colocar
freios ao instinto sexual da população para garantir a sobrevivência do organismo
social. Nesse ínterim, os estudiosos brasileiros tornaram-se as principais autoridades
mundiais na morfologia desta anatomia. Profissionais de renome como Nina Rodrigues,
Nascimento Silva, Agostinho J. de Souza Lima, Miguel Sales, Flamínio Favero e Oscar
Freire, por exemplo, publicaram extensos estudos visando a corrigir erros tributários de
noções científicas que eles consideravam antiquadas, não somente de profissionais
brasileiros, mas também de especialistas europeus. Esses grupos de juristas, e de outros
profissionais, iriam combater o que eles consideravam tradições retrógradas e perversas
a respeito da honra sexual que eram mantidas no direito penal do Brasil (CAUFIELD,
2000; ESTEVES, 1989; FAUSTO, 2001; FERREIRA FILHO, 2001; RODRIGUES,
2007).

32
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989, 61p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Eles tentavam demonstrar que a evidência médica do defloramento era imperfeita em


virtude da existência por eles comprovada do chamado “hímen complacente” - aquele
que se apresentaria mais maleável ou elástico e, deste modo, muito mais resistente à
penetração do pênis, não se rompendo com facilidade nas primeiras relações sexuais ou,
muitas vezes, não se dilacerando nunca. Além disso, consideravam outras
possibilidades, embora raras, da ruptura desta membrana por meios diferentes da
penetração do órgão sexual masculino, como acidentes e masturbação, por exemplo.
Alguns apontavam até a possibilidade da ausência desta membrana em determinadas
mulheres, em virtude de uma provável má formação congênita. Por conta dessas novas
concepções, esses inúmeros profissionais argumentavam que a observação empírica do
hímen era uma maneira pobre de se avaliar a virgindade e o desvirginamento. Deste
modo, estavam particularmente interessados em provar que o “hímen complacente” era
muito mais comum do que se imaginava. Seria um grandioso contrassenso,
consideravam, definir a virgindade de uma menina pela ausência ou ruptura da “flor”.
Nessa perspectiva, muitos juristas começaram a defender a substituição do termo
jurídico “Defloramento” por “Sedução”, ainda nos primeiros anos do século XX, com
o objetivo de eliminar o que se considerava uma “ambiguidade da prática médico-
legal” (CAUFIELD, 2000).

Contudo, foi apenas a partir da publicação do livro Sexologia Forense por Afrânio
Peixoto 33, em 1934, que o posicionamento dos profissionais do judiciário que viam na
rotura do hímen um indício do desvirginamento começou a mudar (CAUFIELD, 2000;
ESTEVES, 1989; FAUSTO, 2001; FILHO 2001; RODRIGUES, 2007). Em seus
estudos, ele confirma e aprofunda saberes sobre a existência de uma grande variedade
de hímens - especialmente o complacente – além da possibilidade de rompimento desta
membrana por outros meios que não por relação sexual, como apontado acima. Suas
investigações e descobertas eram muito mais conclusivas do que as de muitos
estudiosos europeus, uma vez que sua amostragem empírica era muito maior. Segundo
CAUFIELD (2000), enquanto Peixoto chegou a examinar pessoalmente 2170 hímens,
no período entre 1907 e 1915, os clássicos mestres europeus como Brouardel, Hofmann
ou Maschka, “num fim de vida, [com] 30 anos de médico-peritos não contariam 300”.
É importante salientar que, antes disso, a membrana complacente era conhecida
somente por pouquíssimos especialistas e que os ensinamentos da Medicina Legal em
33
Preconizador do IML - Instituto Médico Legal (antigo Serviço de Medicina Legal do Rio de Janeiro).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

fins do século XIX e início do XX eram extremamente rudimentares. Para a grande


maioria dos sujeitos jurídicos, e também para o senso comum, até a década de 1920 a
virgindade era avaliada pela inteireza do hímen e também por outros critérios para além
do estado dessa membrana, incluindo aí evidências anatômicas rejeitadas
posteriormente pela Medicina Legal, como a flacidez dos seios e dos grandes e
pequenos lábios vaginais:

Além da violência que sofriam nos exames médico-legais, possuir


vagina dilatada, seios flácidos, grandes e pequenos lábios também
flácidos tornou-se um sinal de ser muito “afeita”a contatos sexuais e
de ter perdido a virgindade há muito tempo. Os corpos das mulheres
eram considerados atestados de sua moralidade. As partes sexuais
flácidas levantavam para os juristas suspeitas de prostituição e
afastavam a hipótese de terem precedentes normais, dificultando a
punição do suspeito. Com corpo flácido, as ofendidas infringiam
outras normas. 34

A esse propósito, é bastante valiosa a reprodução de uma imagem (incomum na


documentação pesquisada) encontrada no processo-crime movido pela família de
Luciana - menina de 15 anos de idade, costureira e natural da cidade de Feira de
35
Santana - contra o suposto ofensor Milton . Sua trajetória será útil em outros
momentos nesse texto, mas por ora é importante destinar um pouco de atenção ao seu
laudo de conjunção carnal, também chamado de perícia médica e imprescindível na
apuração dos delitos sexuais:

34
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989, 61p.
35
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra H. R. C. – E.: 03; Cx.:80;
Doc.:1521 - (1948-1955). Para preservar a identidade dos indivíduos envolvidos, todos os nomes
apresentados são fictícios, inclusive nas posteriores citações.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Na figura acima, pode-se observar uma reprodução da vulva feminina, com ênfase na
vagina e na sua anatomia. Há a representação do monte do púbis e seus pelos, dos
grandes e dos pequenos lábios vaginais, do clitóris, do orifício da uretra e,

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

especialmente, da membrana hímen, que recebe do médico legista um destaque em lápis


vermelho, buscando precisar com o máximo de cuidado o local do seu rompimento. É
apropriado chamar atenção para a divisão dessa parte do corpo feminino em quatro
quadrantes, identificados pelas siglas “Q.S.D.” (quadrante superior esquerdo), “Q.S.E.”
(quadrante superior esquerdo), “Q.I.D.”, (quadrante inferior direito) e “Q.S.E”.
(quadrante interir esquerdo). O interesse na apuração precisa de evidências que
pudessem comprovar a cópula carnal pode ser percebido no preciosismo dos médicos
legistas que fixaram cuidadosamente cada ruptura encontrada na membrana hímen
analisada, como pode se observar a partir das expressões escritas manualmente em tinta
azul: “rutura completa” e “rutura incompleta”.

Além dessa ilustração, acompanhava essa perícia médica um formulário padrão


respondido manualmente e um breve texto produzido pelo legista, diagnosticando
detalhes fenotípicos da vítima, como sua idade, cor da pele, estatura, peso, estado dos
seios, da vagina e do resto do corpo em geral (quando esta imagem não é encontrada, o
laudo pericial restringe-se ao formulário e ao texto do médico). Muitas dessas últimas
informações, embora viessem perdendo importância ao longo das décadas dentro do
processo-crime, não caíram totalmente em desuso pelos médicos-legistas. Até a década
de 1960, dentre os pesquisados, é possível encontrar-se nos laudos de conjunção carnal
informações como as aludidas acima, muito embora nenhum advogado de defesa ou
acusação, promotor ou outro sujeito jurídico as tenha utilizado visando criar um perfil
de culpa ou inocência para algum envolvido. Como previram muito juristas, era o
declínio da “himenofilia”.

Essas mudanças eram tributárias da publicação de Afrânio Peixoto. A partir dela as


vinculações entre o estado anatômico do corpo da mulher e o seu possível
comportamento sexual deixaram de ser frequentes e caíram em desuso, pelo menos do
ponto de vista de uma boa parcela dos sujeitos jurídicos. Para o senso comum, todavia,
há muitas evidências na documentação pesquisada de que a associação entre integridade
da membrana hímen e a virgindade sexual das mulheres era uma mentalidade
recorrente. A esse propósito, pode se citar o processo crime movido contra Faustino 36,
acusado da sedução de duas jovens, Teresa e Joana, em Jaguara, distrito rural de Feira

36
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A.S.B. – E.: 03; Cx.: 90; Doc.:
1733 - (1958-1968.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

de Santana. No auto de perguntas feitas ao denunciado em 30 de dezembro de 1958 –


ainda durante as interrogações iniciais da queixa-crime na delegacia - este não negou as
relações sexuais com nenhuma das meninas, contudo afirma que a respeito da primeira,
Teresa, não se sentia totalmente responsável pelo desvirginamento, uma vez que a
mesma asseverou-lhe que, em certa ocasião, “havia ferido um pouco de sua virgindade
num tanque metendo o dedo, ou melhor, em um rio quando tomava banho com outras
moças” 37. Dentro de sua mentalidade, não poderia ser o responsável por esta sedução,
já que a jovem mesmo havia rompido a sua “flor” em uma suposta masturbação. Não
negou as relações sexuais, diga-se de passagem, repetidas reiteradas vezes ao longo de
um ano, mas se acreditava injustamente imputado pelo crime, já que não a considerava
uma moça virgem por não possuir mais o hímen intacto, mesmo que não rompido pela
penetração do órgão sexual masculino.

O acusado Henrique, em outro episódio, demonstra ter uma concepção semelhante


acerca da virgindade feminina. Negando a responsabilidade a respeito do
desvirginamento de Neuza, recusa também todas as informações das testemunhas a
respeito da seriedade e publicidade da sua relação com a vítima. Afirma que eram
apenas vizinhos e que em inúmeras ocasiões fugiu das investidas da jovem, que
frequentemente enviava recados e insinuava-se. Diz ter rejeitado a paquera, pois já sabia
por boatos que Neuza não era mais uma menina virgem, porém a confirmação desse seu
estado ocorreu num encontro acidental entre ambos no quintal das casas que, segundo
narra, eram coladas:

Resolveu-se certificar-se do estado de honradez de Neuza e


experimentou-a com o dedo; que nessa ocasião Neuza fez um
movimento, que ele respondente não esperava, obrigando o seu dedo a
penetrar na sua vagina; tendo ele verificado que Izabel não era mais
virgem, teve com ela relações sexuais. 38

37
IDEM (10fls). A escrita foi atualizada, mas a pontuação original foi mantida. Seguindo a mesma lógica,
estão as demais citações ao longo do texto.
38
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra B.S. – E.: 04; Cx.: 109; Doc.:
2255 - (1940) - (10fls).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Esses exemplos mostram que, para os populares, a virgindade feminina não era
concebida ou avaliada como ausência de relação sexual, mas como uma peça anatômica,
um aparato físico cuja destruição ou “ferimento”, na linguagem do primeiro envolvido
mencionado, faria da mulher inadequada e impura para o casamento, além de indigna da
proteção judicial. Para sujeitos jurídicos, contudo, essas mentalidades continuam a ser
desmistificadas pelo avanço do saber médico. A dor paulatinamente deixa de ser
considerada uma sensação inexorável às mulheres no momento da primeira relação
sexual e o sangramento, quando ocorre, tende a ser discreto. Assim, o crime de
“Defloramento” passará a ser denominado “Sedução” e, a partir do Código Penal de
1940, entendido como uma violação da liberdade sexual da mulher (CAUFIELD, 2000;
ESTEVES, 1989; FAUSTO, 2001; FERREIRA FILHO, 2000; RODRIGUES, 2007).

Acreditava-se, então, que a liberdade sexual feminina poderia ser violada pelo uso da
força – nos casos de “Estupro” - ou pela “Sedução”, na qual uma “donzela honesta”
somente cederia por “inexperiência ou justificável confiança” no homem ao qual se
relacionava. A inexperiência significava que a mulher era inocente, desconhecedora dos
segredos do sexo, o que poderia possibilitar a um homem abusar dessa ignorância e,
através de várias formas - incluindo carícias - alterar os seus sentidos, sua capacidade de
discernimento, levando-a a ceder ao ato sexual. Dentro dessa lógica, não era o desejo
feminino que impelia as mulheres consideradas honestas ao ato sexual, mas a esperteza
masculina. O homem impõe, penetra, machuca, faz sangrar. Ele domina e é o único a
satisfazer-se. As mulheres sentem, sangram e se submetem pelo amor e pela
inexperiência. Por “donzela honesta”, por sua vez, entendia-se aquela que mantinha o
resguardo dos bons costumes, recatada e que fora criada de acordo com determinadas
condutas consideradas ideais para o comportamento feminino do contexto.

55
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

II.1 - O Avanço dos Costumes

As redefinições das interpretações jurídicas em torno do desvirginamento de mulheres


no Código de 1940 não estavam ligadas somente aos novos saberes médicos-jurídicos
acerca da ginecologia. A nova lógica presente nesse entendimento fez parte de um
universo maior de problematização de novas sociabilidades e experiências públicas
femininas oriundas das transformações econômicas, urbanísticas e culturais pelas quais
passavam as cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX, quando o Brasil
convivia com uma série de pressupostos ligados aos ideais de progresso e de
crescimento material, discutidas no capítulo anterior. Eles conduziram uma boa parte
dos políticos, intelectuais e também pessoas comuns ao desejo de transformar as cidades
brasileiras em espaços modernos, compatíveis com os moldes europeus. Dentro dessa
perspectiva, noções de honra, moralidade e modernidade se misturaram, permitindo que
uma diversidade de discursos e posições ganhasse destaque no interior da sociedade
brasileira em transformação. Em virtude disso, para a caracterização do crime de
sedução, também foi dada ênfase ao comportamento social das meninas envolvidas
neste delito, em detrimento da fixação no rompimento da membrana hímen. Tais
prerrogativas aparecem com frequência em vários trabalhos historiográficos que se
ocuparam do Rio de Janeiro – então capital do país – e de São Paulo, cidades que, no
contexto em estudo, se encontravam em amplo desenvolvimento e crescimento
demográfico (BORIS FAUSTO, 1984; CARVALHO, 1989; CHALHOUB, 1996;
CAULFIELD, 2000; ESTEVES, 1989; LEITE, 1996; RAGO, 1985 e 1991).

Para esses autores, a partir da instauração da República em fins do século XIX, emerge
um Brasil em processo de modernização urbanizadora, girando em torno da construção
de funcionalidades citadinas e da consequente problematização e reorganização de
códigos, costumes e condutas morais. Nesse contexto, nas décadas iniciais do século
XX, o processo de liberalização da vida conjugal e a crise da família patriarcal foram
assinalados pela transferência do poder e da autoridade paterna para as mãos do Estado.
Assim, aliado aos novos conhecimentos médicos, este último e a família mesclam-se
para edificar uma nova conotação social para as condutas morais, sexuais e a
moralização do corpo social, sendo o primeiro o principal veiculador desta
reorganização dos costumes, tutelando o corpo feminino, especialmente. Em Feira de
56
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Santana muitos outros trabalhos historiográficos revelam que este município também
viveu intensamente o conflito em busca de progresso e crescimento material. Essas
pesquisas evidenciam a ambição das elites locais em normatizar e disciplinar a urbe e a
população através de reformas urbanas e do estabelecimento de padrões de
comportamento e de sociabilidades, conforme discutido anteriormente. (OLIVEIRA
2000 e 2011; SANTOS, 2012; SILVA, 2000; SIMÕES 2007; SOUSA 2001; RAMOS
2007).

O já citado acima Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de


39
Janeiro da Belle Époque, de Martha de Abreu Esteves - a partir de processos-crime
de defloramento - busca compreender as relações amorosas nas camadas populares,
atentando para a atuação de mulheres que tinham comportamentos contrários aos
estabelecidos socialmente para elas. A autora problematiza padrões de sociabilidades de
mulheres humildes, entendendo o que significavam para elas o namoro com suas regras
e rituais, a honra e sua materialização na integridade física do hímen, as relações sexuais
antes do casamento o amasiamento, redimensionando melhor o sentido da virgindade e
da honra para moças pobres do Rio de Janeiro. Além disso, dá um importante destaque
a atuação dos segmentos jurídicos que, para ela, exerceram o seu poder frente aos
costumes e a criminalidade sexual, considerados ameaçadores da modernização carioca.
Salienta ainda como através da punição de crimes sexuais a Justiça ampliava, pelo lado
moral, o seu controle sobre o trabalhador.

Sueann CAUFIELD (2000), dedicando-se a mesma documentação, mas com recorte


temporal distinto, discute na obra Em defesa da honra: moralidade, modernidade e
40
nação no Rio de Janeiro, 1918-1940 – também já mencionada anteriormente - a
honra sexual na nascente modernidade do Rio de Janeiro, explorando, além da vasta
produção de pesquisadores brasileiros, os discursos de advogados e de juristas,
depoimentos de acusados, ofendidos e de suas famílias em 450 inquéritos. Seu trabalho
demonstra no cotidiano urbano as mudanças de comportamento e o confronto entre a
prática da honra sexual das mulheres populares e dos segmentos sociais que a discutiam
sob a ótica do conhecimento jurídico e médico. Chamando a atenção para a crescente

39
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989.
40
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidades, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

participação da mulher no mercado de trabalho e nos círculos sociais, para o surgimento


de comportamentos urbanos compatíveis com as identidades modernas divulgadas pelo
cinema e pelas revistas femininas ESTEVES (1989) e CAUFIELD (2000), constataram
que as mulheres das classes populares - em virtude das atividades laborais que exerciam
para garantir a sobrevivência familiar - há muito possuíam um cotidiano que lhes
possibilitava um convívio social fora do âmbito da casa, o que consequentemente
aumentava a possibilidade de relacionamentos amorosos e sexuais que fugiam aos
padrões e limites estabelecidos.

Andrea da Rocha Rodrigues, em “Honra e Sexualidade Infanto-Juvenil na Cidade do


41
Salvador \ 1940-19701” , estuda as representações e práticas relativas à sexualidade
infanto-juvenil na capital baiana. Partindo do princípio de que os conceitos de infância,
adolescência e sexualidade são construídos a partir de variáveis sociais e históricas, ela
busca discutir os mecanismos simbólicos que emergem no contexto em estudo para
representar estas duas fases da vida e a sexualidade nelas contidas. Tratando
especificamente da violência sexual exercida sobre os corpos de crianças e adolescentes
através do estudo de crimes contra os costumes e da legislação que regulava sua
punição, ela também analisa os estreitos vínculos entre os conceitos e representações
idealizadas sobre honra sexual e o controle da sexualidade feminina, especialmente de
moças humildes moradoras das periferias soteropolitanas, apontando como o avanço do
urbanismo punha em choque noções arraigadas acerca das sociabilidades femininas e de
suas práticas sexuais.

Diante dos muitos avanços identificados, não caberia mais, portanto, enclausurar as
mulheres apenas ao espaço do lar e assim se construíram os modelos ideais das
mulheres que vivem nas sociedades que ambicionaram uma modernização. As velhas e
novas formas de lazer passavam a ser problematizadas e, principalmente, os novos
hábitos passaram a ser alvo de preocupação até mesmo dos “homens da lei”, pois estes
poderiam corromper os bons costumes e ser um meio de abalar a honra e a moral:

Para as raparigas modernas não há segredo, nem ingenuidade. [...] A


vida moderna, com seus exageros, os noticiários escandalosos dos

41
RODRIGUES, Andrea da Rocha. Honra e Sexualidade Infanto-juvenil na Cidade do Salvador,
1940-1970. 2007, 2011. Tese (Doutorado). UFBA, Salvador-BA, 2007.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

jornais, as revistas livres, os filmes amorais, as danças lúbricas tudo


isto passou pelo crivo do seu conhecimento, de sua análise e
comparação. 42

Nesta perspectiva moralizante, no novo Código Penal de 1940 os crimes sexuais -


incluindo-se o de “Sedução” - apareceriam então sob o título de “Dos crimes contra os
costumes” e fica evidente a constatação de que o chamado “modernismo” trouxera
tantas facilidades e concedera as jovens um excesso de liberdade que aos poucos ia
minando o senso de “autorrespeito”, tornando-as experientes e conhecedoras dos
segredos do sexo: “desapercebe a mulher que seu maior encanto e a sua melhor defesa
43
estão no seu próprio recato” . Com base em tais verificações, os juristas, defendiam
que os perigos da vida moderna requeriam a expansão da proteção legal à honestidade
feminina a partir da criminalização do desvirginamento de mulheres.

Tanto o crime de sedução, como o de defloramento, contudo, convergiam para um fim


comum que era o início indevido da vida sexual da mulher. No entanto, os juristas
deram ao primeiro um tratamento mais racional e lógico ao configurar de forma mais
clara o “elemento moral”, “subjetivo” em detrimento do “elemento material”,
valorizado anteriormente. No entendimento jurídico dessa tipologia criminal a vítima
não é só a moça que nunca teve conjunção sexual. É também aquela que, além da
integridade de seu hímen, guarda pudor no convívio entre os seus. A começar pela
própria denominação, também se afastou das interpretações anteriores em torno da ideia
de “deflorar”, exigindo da vítima a inexperiência ou a justificável confiança no
acusado, valorizando a subjetividade da vítima do crime, “a virgindade moral”, em
detrimento da exclusividade da “virgindade física”.

Deste modo, não se tratava simplesmente da alteração de uma nomenclatura jurídica, já


que a jurisprudência debateu-se em torno da conceituação da ideia do elemento
subjetivo, eliminando controvérsias que existiram, especialmente no que diz respeito à
condição material exigida anteriormente: a ruptura da membrana hímen. Conforme foi
aludido acima, no Código de 1940 e no conceito dos escritores da Medicina Legal sobre

42
MEDEIROS, Darcy Campos de, MOREIRA, Aroldo. Do crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1960, 35p.
43
IDEM.

59
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

desvirginamento, não se indagava mais sobre a ruptura do hímen como exclusividade


para configurar-se uma conjunção carnal ilícita, ou seja, uma sedução. Assim, o Direito
Penal de 1940 subjaz no crime de sedução um sentido individualizado que não é
encontrado antes, como se verifica na busca de sua historicidade.

O caso da jovem Mariana - branca, 16 anos e estudante normalista - é emblemático


nesse sentido. A queixa crime foi prestada pelo seu pai em 14 de julho de 1955. Em seu
depoimento ela afirma que o namoro com o acusado Heitor havia se iniciado no Natal
do ano anterior à denúncia e que, desde o começo da relação, ele insistia para que
mantivessem relações sexuais. Ela narra sua constante recusa a estes pedidos até que
cedeu no dia 08 de fevereiro de 1955, movida por promessas de casamento e carícias,
no local denominado Campo da Usina de Algodão. Na sequência, afirma que manteve
outras relações sexuais que resultaram na sua gravidez e que Heitor, após tomar
conhecimento da gestação, forneceu-lhe remédios para que pudesse realizar um
abortamento (as embalagens dessa medicação foram anexadas e enviadas aos médicos
legistas para a fundamentação das provas do crime). Por conseguir comprovar um
comportamento considerado lícito e estar dentro de determinadas expectativas jurídicas,
alcançou a proteção judicial e teve seu casamento realizado por obrigatoriedade da
justiça, um dos poucos casos onde isso acontece, dentre os pesquisados. No pedido de
prisão preventiva do acusado, visando à coerção ao matrimônio, o juiz de direito faz
uma releitura romantizada do momento do desvirginamento da vítima, citando
personagens e trechos do livro O primo Basílio, do escritor realista português Eça de
Queiroz, reproduzindo um discurso de fragilidade e passividade feminina diante do
sexo, bem de acordo com determinados pressupostos da chamada “virgindade moral”
exigida para a comprovação do delito de sedução:

Dizem os autos que a menor MARIANA nasceu a quinze de


novembro de mil novecentos e trinta e oito. Conhecendo o indiciado
há cerca de nove meses, abandonou o seu então namorado, de nome
SEBASTIÃO, para tomá-lo como seu novo e promissor amor. Isto
ocorreu no mês das festas natalinas, quando CUPIDO anda as soltas,
travesso como sempre, e mais procura atingir os corações alegres das
moças casamenteiras. Mal entrava o ano e já HEITOR pretendia
romper o sinal, antecipando a conjunção carnal ao casamento. Ainda

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

dominando os sentimentos e deixando que a razão predominasse sobre


o coração, MARIANA resiste, contém-se, domina-se e dá-lhe um não.
Mas o namorado não desiste. Volta a carga. Renova o convite. Insiste
no convite. Sussurra-lhe aos ouvidos palavras de eterno amor.
Compromete-se a reparar o mal com o casamento, se mal houvesse em
se amarem. E, naturalmente ao ouvir a reiterada recusa da enamorada,
HEITOR, como o PRIMO BASÍLIO ao ouvir de LUISA negativa
igual, percebendo que na voz de MARIANA ‘havia o arrastado duma
lamentação, com a moleza de uma carícia’ também não hesitou –
prendeu a namorada nos braços.

MARIANA teria ficado inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados e


HEITOR ‘pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça
para traz, beijou-lhe as pálpebras devagar, a face, os lábios depois
muito profundamente; os beiços dela entreabriram-se, os seus joelhos
dobraram-se’. E quando de repente todo o corpo da vítima se
endireitou, com um pudor indignado e afastou o rosto, já era tarde
demais. MARIANA já havia perdido a sua virgindade. Estava
satisfeito o conquistador. Estava consumado desejo e extinto o fogo.
Nascera o tédio. Quanto a vítima, de temerosa e vacilante durante a
trama do amor, tornara-se, naturalmente, apaixonada após o apelo
sexual, ao qual aquiescera sob a promessa de casamento, sob a
influência de carícias que lhe fizeram desaparecer a percepção nítida
das coisas e adormecer-lhe os sentimentos mais nobres e quebrarem-
se as resistências psíquicas.44

Para além de uma preocupação anatômica, percebe-se no trecho acima que a urgência
na punição desta sedução partia do princípio da necessidade de proteção dos costumes e
da sexualidade de Mariana em sua dimensão ética e sua finalidade biológica de
reprodução. Assim, na leitura do juiz de direito, a sedução tem outros sentidos: pedidos,
afagos, carícias, meiguice, esperteza e vilania masculina. Não há alusões ao estado do
hímen da vítima, nem referências à situação anatômica de outras partes de seu corpo -
como seios ou lábios vaginais - muito menos a menção a sangramentos ou dores. O

44
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J. C. B. – E.: 01; Cx.:10;
Doc.:196 - (1955) - Grifos e destaques com letras maiúsculas no original.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

desvirginamento não é descrito como o mero rompimento da membrana himenial e para


efetivar a sedução atua exclusivamente a figura masculina, manipulando
conscientemente a delicadeza, ingenuidade e confiança, elementos subjetivos, imateriais
que servem para atestar um estado de pureza sexual da vítima. Vislumbra-se a ideia
subjacente de que as mulheres possuem uma sexualidade que pode ser aflorada, se não
adequadamente orientada. Implicitamente desenvolve o juízo de que as moças
consideradas honestas não deveriam facilitar a vivência sexual antes do casamento, pois
isto poderia levá-las ao conhecimento dos prazeres sexuais, da anticoncepção e das
práticas abortivas, comprometendo a constituição da família ideal.

A trajetória de Luciana45 moça de 15 anos de idade, costureira e ex-asilada do Asilo


Nossa Senhora de Lourdes também em Feira de Santana (cuja imagem do laudo de
conjunção carnal foi citada anteriormente), de modo semelhante evidencia a primazia
dos discursos em prol da “virgindade moral” preconizada nas novas acepções jurídicas
em torno crime de sedução. Segundo seu depoimento prestado em 01 de abril de 1948,
seu suposto ofensor de nome Milton era habitual hóspede de uma pequena pensão de
pertencimento de sua mãe, há mais de três anos. Após ter deixado o asilo em que era
internada, um ano antes do ocorrido, foi residir com sua genitora na referida pousada,
onde conheceu o seu ofensor. Desde então, de acordo com ela, o mesmo começou a
escrever-lhe cartas apaixonadas que eram trazidas por um empregado. Nessas missivas
ele mencionava a possibilidade de alugar carros para que ela fugisse de casa rumo a
Alagoinhas, onde prometia viver com ela e casar-se. Embora reitere sua recusa a tais
propostas, pois sabia que se tratava de um homem casado, foi por ele desvirginada
quinze dias antes da queixa em delegacia, às três horas da manhã, enquanto dormia
sozinha em um quarto invadido pelo acusado, que se aproveitara de um pequeno defeito
na fechadura da porta.

O seu processo move-se de forma relativamente rápida no primeiro ano do inquérito,


quando se comparado aos demais já analisados. Tal afirmação pode ser feita na medida
em que toda a averiguação começa em 1948 e, no ano seguinte, 1949, a investigação
encontra-se praticamente completa, com todas as testemunhas já arroladas e ouvidas.
Não há o atestado de miserabilidade comprovando a impossibilidade da família em

45
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra H. R. C. – E.: 03; Cx.:80;
Doc.:1521 - (1948-1955).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

custear os autos e talvez essa agilidade esteja relacionada ao caráter particular da ação
penal. Não precisando dos serviços da defensoria pública, seu advogado, obviamente
recebendo pelos seus serviços, atua com agilidade visando o solucionamento imediato
da questão. No primeiro pedido de arrolamento de testemunhas feito por seu defensor,
há uma releitura dos fatos, destacando a atuação perversa do acusado no tocante a
iniciativa da sedução da jovem:

Data daí, as propostas feitas por Milton a Luciana, através de cartas


sempre trazidas pelo empregado do mesmo de nome Angelino, para ir
morar com o acusado na cidade de Alagoinhas. E, muito embora, tais
propostas fossem sempre rejeitadas devido o estado de casado do
queixado, continuou ele, obstinadamente, desejoso de um dia poder
satisfazer seus instintos venusianos.

Assim é que, na madrugada de 15 de janeiro findo, aproveitando-se do


adormecimento de todos, penetrou astuciosamente no quarto em que
dormia a menor Luciana e, após suplicas de amor, blandícias
envolventes, carícias que desgovernaram e ofuscaram o entendimento,
enfraquecidas, portanto, as resistências pundonorosas da dita menor,
consegui desvirgina-la, abusando de sua justificável inexperiência.46

Luciana não demonstrou interesse. Pelo contrário, ao longo das investidas indevidas de
um homem casado, ela soube muito bem demarcar o seu lugar de moça honesta,
recusando a paquera e dispensando os convites de fuga. Cedeu sob circunstâncias onde
não poderia jamais defender-se. Ao ser abordada “astuciosamente” pelo seu ofensor,
teve as emoções de seus corpos indevidamente afloradas por um sedutor contumaz,
visto que em outras ocasiões já havia também desvirginado outras meninas, como
apontam os autos. Semelhante ao caso da jovem Mariana, citado anteriormente, também
não há menção ao estado físico de determinadas partes do corpo, muito menos as
informações oriundas do exame de conjunção carnal são usadas para atestar um estado

46
IDEM (13-15 fls.).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

anterior de integridade da membrana hímen. Na linguagem do advogado de defesa,


todos os elementos que podem comprovar o estado de pureza e de merecimento de
proteção judicial são apontados em torno da inexperiência, da fragilidade e das emoções
despertadas em momento inconveniente e pelo homem inadequado. Semelhante
interpretação dos fatos também é encontrada no relatório do caso expedido pelo
delegado Arsênio Alves de Souza e direcionado ao Promotor Público, visando à
instauração de um sumário de culpa:

O acusado mete-se de paixões pela menor e utiliza de todos os ardis


em que já é mestre a fim de levar a desolação e desonra ao seio da
pobre família. Faz declarações, suplica, manda recados, escreve cartas
comprometedoras, à jovem dá-se ao patético, fingindo que sofre,
finge-se enciumado, até pelo fato de Luciana servir a mesa a outro
hospede. Bastava isso, para que o acusado, visivelmente nervoso e
contrafeito, abandonasse o recinto, retirando-se sem a refeição.

O acusado faz repetidos convites a vitima para residirem juntos, na


cidade de Alagoinhas, do que dá conhecimento a outras pessoas e
chega mesmo por algumas vezes, a chamar carros de aluguel para
fugirem. Luciana, porem, menina pobre, mas honesta, de ótimo
comportamento, tendo aprimorado seu caráter na prática das virtudes
cristãs entre religiosas merecedoras de todo acatamento e respeito,
resiste a todos os ardis do sedutor, ante o seu estado de homem
casado. Este porem não desanima e lança-se a outro estratagema: faz
chegar ao conhecimento da progenitora da menor que vai abandonar a
esposa. O assunto por certo é comentado.

[...]

Admitamos que a vítima aos 15 anos que é sua idade, com instrução
rudimentar, tivesse noção de lei e soubesse mesmo que não há
divórcio no Brasil. Todavia seria fácil tarefa ao sedutor convencê-la
que ao recurso do casamento religioso ou civil com outra mulher
quando não se realizou estas duas formas com a mulher de quem se
separa, ou ainda a artimanha de falar em ‘desquite’ ‘nulidade’ e até no

64
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

amoral casamento comercial47 e queijandas, facilmente aceitáveis por


pessoas inexperientes e semialfabetizadas. Em sã consciência, não se
pode subestimar essas hipóteses.

[...]

Luciana foi uma vítima não apenas da requintada perversidade de seu


sedutor o acusado Milton mas, sobretudo da impunidade do mesmo
quando da sedução e defloramento de outras vítimas, impunidade que
o animou a continuar na senda de tão abomináveis crimes contra a
honra de mulheres virgens e honestas.48

Fica bastante evidente, então, que a honestidade de Luciana era medida e avaliada a
partir de sua conduta (passada e presente), especialmente construída por trás de uma
ideia de ingenuidade e desconhecimento. Amparada num atestado emitido pelas madres
superioras do asilo católico onde esteve residindo em momento pretérito, teve
comprovação do seu comportamento recatado durante o intervalo de tempo em que lá
viveu. Seu procedimento presente também não deixa a desejar os olhos dos sujeitos
jurídicos. Morando com sua mãe em uma pensão, não deixava de auxiliá-la nos afazeres
considerados femininos da pequena hospedaria. Seja na limpeza ou servindo as
refeições dos demais hóspedes, Luciana mostrava-se dedicada, ingênua, inexperiente e
frágil. Sua abnegação ao trabalho com sua genitora foi inclusive um dos motivos pelos
quais o acusado mostrou-se enciumado em inúmeras ocasiões, pois ele incomodava-se
ao vê-la servindo almoço aos outros hóspedes homens da hospedaria. Na leitura do
advogado, esse incômodo não evidenciava uma emoção genuína ou um ciúme sincero,
mas um ardil friamente manipulado com o objetivo de alimentar na jovem a imagem de
homem apaixonado e movido por um verdadeiro desejo de anular o seu casamento e
com ela contrair matrimônio.

Apesar de semelhante histórico e de tão positiva imagem inspirada nos sujeitos


jurídicos, Luciana não logrou proteção judicial, pois o seu processo apresentou-se sem
movimentação durante oito meses consecutivos. Em virtude disso, o advogado de

47
Grifo no original.
48
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra H. R. C. – E.: 03; Cx.:80;
Doc.:1521 - (1948-1955) \31-32 fls.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

defesa do réu solicita amparado no código processual brasileiro, a “perempção”


(arquivamento) do processo:

[...] De 15 de novembro de 1948, de então para cá esteve paralisado o


processo, sem qualquer intervenção da parte queixosa no sentido de
pleitear a efetivação da reparação a que se dizia com direito.
Abandonada esteve, por completo, repetimos, a causa de 15 de
novembro de 1948 até 30 de agosto de 1949, ou seja por oito meses e
meio... [...]

O art. 60 do Código de Processo Penal, preceitua que, ‘nos casos em


que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á perempta a
ação penal ... quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover
Em processos de parte, cabe a esta produzir demonstrações constantes,
continuas, assíduas, desenganadas, de que está vigilante, de que está
ativa, de que quer que o feito ande, pouco lhe importando a ela a
paralisação do foro, ou o intenso movimento deste, pouco se lhe
dando que a marcha do seu processo embarace a dos mais antigos,
antes insistindo que por isso aconteça, que a ela – por vigilante, e,
como tal, receosa da perempção que acarreta, o que interessa, é
grandemente, é a movimentação do seu processo, e por ato seu, uma
vez que a lei não atribui a outros a atividade que é só sua, e não pode,
por isso mesmo, ser suprimida por autos daqueles nem por aqueles,
quando inexistentes, justificada.

[...]

Apoquentar o juiz em ações como esta não significa censurável


impertinência, senão louvável demonstração de que a parte está
vigilante e ativa, de que se interessa pela sua ação e deseja seu
andamento. Não apoquentar, sim, é que merece censura, a da lei, que
faz presumir da inércia do querelante, que este passou a desinteressa-

66
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

se do processo, abandonou a ação, desistiu tacitamente de prosseguir


na mesma.49

Além do compromisso de evidenciarem condutas específicas de acordo com identidades


sociais idealizadas para mulheres honestas, restava ainda as moças interessadas na
proteção judicial a obrigação de oferecerem reiteradas demonstrações de desejo na
defesa de sua sexualidade através da assiduidade nos fóruns e pretorias, reivindicando,
na medida de suas possibilidades, o andamento de suas questões e a defesa de suas
respectivas honras, ainda que representadas legalmente por advogados.
Comportamentos contrários, como o demonstrado por Luciana ao longo de oito meses,
seriam “indícios” do desinteresse pela proteção de suas respectivas honras ou o não
merecimento do amparo judicial, como ironiza no primeiro parágrafo do trecho citado o
advogado de defesa.

Contudo, ao longo do processo Luciana apresentou-se grávida do acusado. A sua


família parece, por essa razão, ter se desestimulado em relação à possibilidade de que
um casamento com o ofensor se realizasse, pois, como se tratava de um homem já
casado, não havia esperanças de que o matrimônio com ele se consumasse – o divórcio
ainda não existia. Para casos semelhantes, restava ainda como penalidade ao acusado a
prisão, como previa a legislação. Conhecedor dessa possibilidade, o advogado de defesa
do réu tratou logo de utilizar a artimanha jurídica aludida acima como forma assegurar o
direito a liberdade de seu cliente. Nesse ínterim, Luciana seria apenas uma simples
desconhecedora das leis? Seria ela desinteressada na prisão do acusado? Estaria talvez
sem condições financeiras para continuar custeando uma ação penal privada? Ou teria
reorganizado sua vida afetiva casando-se ou amasiando-se com outro homem? Pelos
autos não há como responder a essas questões, mas a realidade é que não eram poucas
as dificuldades encontradas pelas jovens que aspiravam à defesa jurídica prometida pelo
crime de sedução, presente no Código Penal Brasileiro de 1940. A trajetória dos
processos pesquisados demonstra que eram inúmeras as controvérsias judiciárias e os
desfechos os mais diversos, para além do casamento idealizado no momento da queixa
por muitas famílias.

49
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra H. R. C. – E.: 03; Cx.:80;
Doc.:1521 - (1948-1955) \ 42-53 fls.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

A interpretação dos casos acima, deste modo, permite perceber que, no entendimento do
crime de “Sedução”, proteger a virgindade de meninas inexperientes significava
proteger a sociedade. Agindo como repressora, a Justiça demonstrava estar preocupada
com os fatos que atentavam a organização da família e do pudor público. Defendia
determinada moral e tradição em defesa da família, em última instância. A função dessa
lei na concepção jurídica seria forçar os indivíduos a pautarem suas condutas de acordo
com determinados princípios e ditames condizentes com determinada moralidade,
sempre um exercendo uma dominação. Todavia, há em comum entre os juristas que
divergiam em torno da nomenclatura jurídica do crime – “Defloramento” ou “Sedução”
- o consenso de que, ao punir essa prática sexual, a lei protegia um princípio moral e
não somente uma marca fisiológico-anatômica. A definição desse princípio moral, por
sua vez, foi tão difícil quanto à comprovação do elemento material a partir da perícia
ginecológica, tão preconizada no crime de “Defloramento”. É importante destacar
também que, no Código de 1940, a jurisprudência e a doutrina igualmente se
debruçaram sobre as especificidades de outras práticas sexuais consideradas desviantes,
visando do mesmo modo minimizar imprecisões e atualizar o conhecimento jurídico aos
novos saberes produzidos pela Medicina Legal. Assim, o “Estupro” passa a ser
entendido como a introdução do pênis na vagina; outros atos sexuais, como o sexo anal
ou oral, configuravam o “Atentado ao Pudor”.

No crime de sedução há um novo destaque, uma mudança na hierarquia dos fatores


tidos como possíveis de comprovarem a “honestidade feminina”. Os aspectos
psicológicos, comportamentais e morais, ganharam destaque sobre os elementos
anatômicos, objetivos. Para obter o título de vítima não bastará à moça provar que era
virgem antes da primeira cópula com o acusado – coisa praticamente impossível de
comprovar-se -, pois, segundo ESTEVES (1989), o exame de corpo de delito, que era
imprescindível na apuração dos delitos sexuais:

Era considerado muito falho, pois podia afirmar o defloramento e a


mulher estar virgem, como negar o fato e a mulher ter sido violada.
Por isso, era muito comum o uso retórico das dores e do sangue,
acrescido ainda de circunstâncias que demonstrassem a honestidade da
ofendida e, consequentemente, sua sedução. Os exames médicos eram
precariamente realizados na primeira metade do século. Os

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

formulários, segundo Afrânio Peixoto, eram sucintos e as descrições


evidenciavam muitas imperícias e confusões a respeito da época do
defloramento e da integridade do hímen. O Código Penal ainda
aumentava os problemas, pois associava o defloramento com
virgindade e ruptura do hímen. 50

Além dessas ambiguidades que poderiam ser oriundas da observação empírica do estado
material da membrana hímen, havia a possibilidade de outras imprecisões motivadas
pela subjetividade dos avaliadores da genitália de determinada jovem, construindo
olhares que poderiam beneficiar ou prejudicar acusado ou ofendida, como muito bem
observa FAUSTO (2001):

O exame de corpo de delito introduz o saber técnico em um grau só


encontrado nos raros casos em que se apela para a psiquiatria. As
conclusões do exame tomam a forma de respostas a questionários em
que a especialização se instaura ao longo dos anos: questionários
específicos para os defloramentos, para as violências carnais em geral,
para os atos de pederastia. Como se costuma dizer, o saber técnico não
é neutro. Nos defloramentos os peritos devem esclarecer se o fato
ocorreu, se é recente ou remoto. Dentro desses limites na aparência
estreitos, há muitas formas de reforçar a acusação ou, pelo contrário,
auxiliar a defesa. Assim, a observação de que o ‘defloramento remoto
parece ter acontecido na época indicada pela ofendida’ vem em favor
desta, o que não ocorre com a simples referência a ‘defloramento em
data remota. 51

Muito embora não se tenha encontrado nos processos analisados as tradicionais


associações entre integridade do hímen e virgindade, ainda restava a mulher a
necessidade de inspirar a certeza de ser moça de vida honesta, comprovando uma
conduta condizente com aquela condição. A proteção jurídica volta-se para a virgindade

50
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989, 62-63pp.
51
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1888-1924). São Paulo: Editora
da USP, 2001, 203p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

moral, mantendo a exigência do controle sobre as mulheres, as quais estavam cada vez
mais invadindo os espaços públicos, libertando-se da vida doméstica dentro de seus
lares. À medida que não mais se considerava possível deduzir a honestidade de uma
moça a partir da presença ou ausência do hímen, a única forma de se averiguar se ela era
“honesta” e merecedora da proteção legal, seria demonstrando sua inexperiência sexual
ou justificável confiança no acusado. Provando um comportamento considerado lícito
ela poderia obter o perdão do Estado, o reconhecimento da sua condição de seduzida.

A jovem Isabela52, menor de 17 anos de idade, segundo narra, era empregada doméstica
na casa do seu ofensor, conhecido vulgarmente como Zeca. Em determinada noite,
enquanto dormia, conta que foi por ele surpreendida em seu quarto, amordaçada e
obrigada a realizar o ato sexual. Não havia entre ambos um namoro, nem outro tipo de
relacionamento afetivo, apenas a relação de trabalho. Apesar de minimamente pobre,
não conta nos autos desse processo um atestado de miserabilidade, sua idade foi
comprovada com a presença de um atestado de batismo expedido pelo vigário a pedido
do delegado para a comprovação da menoridade e o laudo de conjunção carnal datou o
desvirginamento aproximadamente oito meses antes da queixa em delegacia. No
desenrolar do processo, não são poucas as falas que detratavam o comportamento e a
honra da vítima. Acusada especialmente de ambiciosa, sua queixa, na leitura do acusado
e de suas testemunhas, visavam apenas extorquir e tirar algum benefício da família, em
retaliação ao fato de haver sido despedida pela esposa do acusado. Zeca, em seu
depoimento nega a denúncia de desvirginamento e de qualquer outro contato íntimo
com Isabela, utilizando um discurso desmoralizador do comportamento da vítima para
defender-se, ele afirma que:

Isabela foi despedida pela senhora dele respondente porque o seu


procedimento que passa a expor não permitia que a mesma
continuasse como empregada numa casa de família; que Isabela saia a
noite sozinha e só voltava para casa tarde da noite e quando
repreendia, tornava-se malcriada e respondia muito a senhora dele
respondente e a ele próprio. [...] Que não foi só na casa dele

52
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J. A. E.: 01; Cx.:10; Doc.:205
- (1941).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

respondente que Isabela, teve esse procedimento, pois quando


empregada de Justo também entrava em casa fora da noite. 53

Além dessas informações, ele apresenta três testemunhas que corroboram o seu discurso
acerca do péssimo comportamento de Isabela e seu hábito inveterado de sair de casa e
voltar tarde da noite, sem querer dar satisfações aos patrões. Essas afirmam ainda, com
veemência, que a vítima tinha um noivo e que este pusera fim ao relacionamento por
haver tomado conhecimento dessa má conduta. A testemunha mais incisiva de todas
assevera que:

Sempre viu Isabela em casa de mulheres da vida livre nesta cidade,


envolvida com as mesmas e os homens que frequentam suas casas;
[...] ela respondente preveniu a senhora dele que não aceitasse Isabela
em casa como empregada, pois era uma mulher de mau procedimento
e que só vivia em companhia de mulheres de vida livre

[...]

Que isto afirma porque sempre viu Isabela acompanhada de mulheres


da vida livre, a encontrou nem só de dia como a noite, em lugares
ermos desta cidade, como seja a estrada de Rodagem, fundo da
estação da Estrada de Ferro, acompanhada de homens em atitudes
imorais, como fosse deitada com os mesmos, nos matos e recostada
em muros, etc.

[...]

Não pode citar os nomes, uma vez que era tão vergonhoso o estado em
que estava Isabela Elisa com estes homens, que ela respondente
procurava virar o rosto para o outro lado envergonhada que ficava. 54

53
IDEM 7fls.
54
IBIDEM, 11fls.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Em que se pese a veracidade de suas informações, já que se tratava de uma testemunha


do acusado, é interessante perceber como ela denuncia lugares específicos e ermos da
cidade de Feira de Santana. Possivelmente esses seriam locais conhecidos por serem
espaços onde se exercia uma sexualidade considerada indevida, além de outras práticas
comportamentais condenadas, mesmo que se considere que suas acusações sejam
exageradas ou inverídicas. Estar nesses locais, seria por si só uma denúncia de más
práticas e ações vergonhosas, especialmente para uma moça que queria inspirar a ideia
de que foi seduzida. Isabela munida somente pelas suas simples declarações e sem
apresentar indícios outros ou testemunhas que pudessem corroborar sua denúncia,
impossibilitou a promotoria de tomar maiores iniciativas visando à punição do acusado.
Por esse motivo, teve sua queixa indeferida e o seu processo arquivado.

FERREIRA FILHO, analisando trajetórias semelhantes de jovens desvirginadas na


cidade de Salvador, especialmente as que eram subordinadas aos seus ofensores por
alguma relação de trabalho, conclui que:

Independentemente da veracidade ou não das acusações,


desigualdades sociais e preconceitos são constantemente
reforçados nos processos-crime, e por vezes antecipam a
sentença dos mesmos. Em nenhum caso no qual a empregada
doméstica alegou ter sido deflorada pelo patrão ou parente deste
(três casos), há sentença favorável à vítima. Como esclarecia o
ilustre jurista carioca Viveiros de Castro, ficava difícil acreditar
em ‘uma criada (...) de condição humilde e baixa que se diz
iludida pela promessa de casamento que lhe fez seu amo,
homem rico ou de elevada posição social’. 55

55
FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. As delícias do nosso amor: comportamento feminino e crimes
sexuais em Salvador (1890-1940). In.: Revista Fazendo Gênero na Historiografia Baiana. Orgs: Cecilia
M.B. Sardenberg, Iole Macedo Vanin e Lina Mª Brandão de Aras Salvador: NEIM/UFBA, 2001, 73p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Assim, a virgindade que a lei de 1940 protegia, não era tão só anatômica, mas moral.
Embora o exame ginecológico de Isabela tenha evidenciado o rompimento de sua
membrana hímen, essa informação não a auxiliou em sua defesa. No entendimento do
crime de “Sedução”, seduzir moça depravada e moralmente corrompida, embora
anatomicamente virgem, seria crime impossível. Para tanto, seria preciso uma análise
acurada dos seus comportamentos e do tipo de relacionamento que estabelecia com o
namorado – como se deu o início do namoro, os dias, horários e lugares dos encontros,
se a relação era autorizada e acompanhada pelos pais ou responsáveis, seus hábitos de
lazer, sua convivência familiar, suas companhias, em suma, o seu histórico amoroso e
comportamental. Portanto, para os profissionais do judiciário não teria importância
decisiva nos argumentos saber se ocorreu ou não sangramentos, se a ofendida sentiu ou
não dor no momento do desvirginamento. Importará a avaliação dos comportamentos
cotidianos das ofendidas e das opiniões que as mesmas emitiram durante os
depoimentos.

Uma moça possuidora de conhecimentos não-práticos sobre o ato sexual e suas


consequências também poderia ser seduzida, consideravam. Não só a moça ignorante
quanto ao sexo poderia ser vítima de sedução. Também poderia considerar-se vítima
desse crime a mulher que realizasse o sexo no contexto de um namoro autorizado ou
noivado, por exemplo, onde o homem conseguiu a sua confiança e autorização ao
oferecer-lhe certeza na realização do casamento após o sexo, sugerindo a antecipação
dos “direitos” do futuro marido, mesmo que tivesse conhecimento das implicações de
sua prática. Em ambos os casos – conhecimento e desconhecimento sexual - a liberdade
sexual da moça teria sido violada, pois a decisão pela prática sexual deu-se sob
condições em que sua razão, suas emoções e a sua capacidade de discernimento estavam
sendo manipuladas, pensavam. Aqui, evidencia-se uma tendência a vitimização da
figura feminina, tendendo a supervalorizar a superioridade afetiva e intelectual do
homem, portador de um maior autocontrole. Segundo CHALHOUB (2001), o modelo
dominante de relação homem-mulher considerava a mulher:

Criatura fraca por natureza as principais virtudes femininas passam a


ser a sensibilidade, a doçura, a passividade e a submissão [...]
Dominado pela sua virilidade, o homem amava menos que a mulher e

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

seu interesse estava mais voltado para o gozo puramente sensual. O


homem era mais seco, racional, autoritário e duro. 56

Assim, esses inúmeros conflitos se revelaram nos debates sobre honra feminina,
especialmente intensificando as discussões sobre a definição de honra sexual, o papel
das mulheres em sociedade e como deveria ser a atuação dos juristas em sua defesa.
Essas acaloradas discussões evidenciaram que os segmentos jurídicos e a sociedade em
geral não estavam tão confiantes de como defender a honra das mulheres no direito,
assegurando a tão sonhada marcha para a civilização.

56
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle époque. 2.ed. São Paulo: UNICAMP, 2001, 117p.

74
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

II.2 – A Queixa-Crime

O procedimento usual nesse universo dos crimes de sedução era o seguinte: após
tomarem conhecimento do suposto desvirginamento de uma jovem, os pais, parentes,
vizinhos e amigos se mobilizavam em prol de uma queixa-crime que tinha uma causa
em comum: levar o sedutor a “reparar o mal feito à donzela”. Em Feira de Santana, as
moças rurais – em sua grande maioria - recorriam a Polícia e a Justiça para que essas
instituições intermediassem seus conflitos que envolviam a perda da virgindade
geralmente com esperança de que as autoridades forçassem os acusados a se casar -
final de uma história que, pelo menos na aparência, reintegraria os comportamentos
inadequados ao mundo da ordem.

Embora não seja o objetivo específico desse capítulo, convém neste momento destacar
algumas informações acerca da classe social das vítimas envolvidas nos crimes dessa
natureza em Feira. A metodologia empreendida na leitura dos processos não se deu de
forma a obter dados quantitativos acerca da vida material dessas jovens, contudo a
abordagem qualitativa desenvolvida com a análise dos discursos permitiu inferir que a
maioria das meninas envolvidas no crime de sedução, dentro do recorte proposto, eram
trabalhadoras rurais e, dentro da linguagem jurídica do período, consideradas
“miseráveis” ou “minimamente pobres”. Esse entendimento pode ser corroborado, para
além da interpretação das informações oferecidas por vítimas, testemunhas e acusados,
pela existência, dentro da grande maioria dos processos pesquisados, do “atestado de
miserabilidade”, que, para a Justiça, simbolizava que a família não podia arcar com o
custo do processo, o que justificava a intervenção do Ministério Público e a gratuidade
dos trâmites e burocracias legais.

Ao longo desse capítulo, todavia, foram citadas as trajetórias de duas jovens que eram
naturais do perímetro urbano de Feira de Santana e não migraram de áreas rurais em
57
busca de trabalho na cidade, como é o caso da jovem Isabela que ajudava sua família
nas lavouras, quando decidiu empregar-se como doméstica na casa de um comerciante
de relativo respeito na cidade, como foi citado anteriormente. Essas meninas que
57
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J. A. E.: 01; Cx.:10; Doc.:205
- (1941).

75
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

nasceram e residiram na área citadina aparentam possuir uma vida menos sofrida,
especialmente quando se analisa que elas tiveram acesso a alguma escolarização e em
seus processos não consta a existência do atestado de miserabilidade. A primeira delas,
Mariana58, era uma estudante normalista e pode-se inferir a partir da documentação que
tivesse uma boa condição social, especialmente pelo fato de poder escolarizar-se em
uma instituição educacional de grande prestígio na cidade, a Escola Normal de Feira de
Santana, estabelecimento que expressou políticas de moralização de costumes e de
expansão de determinadas urbanidades, especialmente para o seu alunado
majoritariamente feminino de elite (SOUSA, 2001). Nas entrelinhas esta realidade já
revela que sua família possuía uma situação financeira que poderia oferecer uma vida
bastante diferenciada das outras jovens seduzidas dentro do recorte deste trabalho.

A segunda moça – Luciana59 – era filha da proprietária de uma pequena pensão. A posse
desse imóvel não parece, pelos autos, indicar uma situação financeira tão boa quanto à
da jovem anterior. Além do fato de haver permanecido internada durante alguns anos
em uma instituição assistencialista – Asilo Nossa Senhora de Lourdes onde teve acesso
a uma relativa escolarização - ela ajudava sua mãe nas atividades da hospedaria, seja na
limpeza e higienização do local ou servindo as diversas refeições dos hóspedes. Se fosse
realmente uma pousada que permitisse lucros consideráveis, muito provavelmente
haveria funcionários destinados a exercer cada uma dessas tarefas, sem a necessidade da
exposição da jovem aos instalados no local. Seu processo, como já mencionado,
também não conta com o atestado de miserabilidade e é um, dentre pouquíssimos, que
se movimenta com mais celeridade, especialmente pela atuação do advogado de defesa
que, ao menos no primeiro ano, apresenta-se bastante presente. A relação da vítima com
as testemunhas é bastante próxima, já que eram em sua maioria hóspedes e amigos de
sua genitora, dona da hospedaria. Não é possível, dentro da documentação, precisar os
limites dessa aproximação – especialmente do ponto de vista financeiro, embora em
alguns momentos tenha ficado claro que duas testemunhas homens em alguma situação
emprestaram dinheiro ou pagaram pequenos débitos da jovem. Todavia, pelo abandono
da questão meses depois - notadamente após a descoberta da gravidez – parece que ela

58
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J. C. B. – E.: 01; Cx.:10;
Doc.:196 - (1955).
59
CEDOC - Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra H. R. C. – E.: 03; Cx.:80;
Doc.:1521 - (1948-1955) .

76
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

deixa também de receber o auxílio desses amigos, impossibilitando a manutenção da


defesa e o abandono do processo.

Luciana, assim, apesar de não parecer pertencer a uma elite feirense, não tinha uma
realidade tão miserável como a das demais jovens envolvidas. Possuía uma relativa
escolaridade, bem como bens materiais que asseguraram uma vida remediada e sem
dificuldades em torno de subsistência, ao contrário das demais jovens envolvidas que,
embora não explicitem profissões específicas, designavam-se como rurais. Sua
trajetória, bem como a da jovem anterior, é relativamente diferenciada e serve para que
não se incorra no erro de homogeneizar as experiências das meninas seduzidas
feirenses, inferindo erroneamente que todas eram exclusivamente originárias do mundo
rural. A respeito da grande maioria, contudo, não há informações que permitam
identificar se realmente se dedicavam ao trabalho de lavrar a terra, mas é certo que suas
famílias parecem não possuir mais do que pequenas propriedades destinadas a uma
agricultura familiar. Seus discursos e dos demais envolvidos permitem confirmar que a
subsistência delas era oriunda do trabalho rural ou do comércio de produtos originários
dessa produção. São assim, em sua maioria, meninas pobres, humildes trabalhadoras
rurais as mais envolvidas em crimes de sedução em Feira de Santana, em que se pese,
evidentemente, a realidade entre a “criminalidade real” e a “criminalidade apurada”,
problematização dos dados das queixas e processos criminais discutida por FAUSTO
(2001):

Como é sabido, os delitos sexuais caracterizam-se pela enorme


diferença entre criminalidade real e criminalidade apurada, em
consequência de fatores como a resignação, as composições entre as
partes, que vão da indenização em dinheiro ao casamento, a tendência
da vítima a evitar vexames tornando pública a perda da virgindade ou
a agressão sexual, a expectativa de realização de promessa de
casamento etc.60

60
BORIS, Fausto. Crime e Cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2001, 198p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Voltando ao início da queixa crime em delegacia, verifica-se que o tipo de


relacionamento entre vítima e o homem acusado do crime de sedução variava
enormemente. São encontrados casos em que os envolvidos mantinham um
relacionamento superficial, até outros em que estavam formalmente comprometidos.
Esses conflitos pessoais iam parar nas delegacias por inúmeras razões: porque o homem
abandonara a moça depois de tê-la desvirginado ou porque se envolvera em outro
relacionamento; por briga de casal; porque as fofocas sobre o desvirginamento
começavam a circular entre os conhecidos; porque os pais ou responsáveis pela menina
descobriam o ocorrido; porque a moça engravidara... O casamento era a solução
(reparação) desejada para boa parte dessas situações.

Na delegacia o processo começava com o registro da queixa-crime, geralmente feita


pelo pai ou mãe, ou outros responsáveis com variados graus de parentesco, como
irmãos, tios, madrinhas etc. Em seguida, o delegado e escrivão tomam as primeiras
medidas, como a coleta do depoimento da ofendida, a expedição da guia de solicitação
do laudo de conjunção carnal que será enviado à perícia médico-legal e a exigência da
apresentação de uma documentação comprobatória da menoridade, imprescindível no
enquadramento do delito como sedução: certidão de nascimento ou certidão de batismo,
também chamada de batistério.

Essa cobrança é uma realidade praticamente universal em todos os casos. Frequentes


são os processos cujo arquivamento ou indeferimento da denúncia se dá pela ausência
dessa comprobação material de menoridade. São comuns também os episódios onde o
delegado faz “vistas grossas”, em relação à autenticidade das informações contidas na
documentação apresentada, demonstrando sua subjetividade no interesse de posicionar-
se em favor da vítima. Contudo, mais adiante, quando da realização do sumário de culpa
ou do andamento do processo em outras instâncias para além da delegacia de polícia, o
advogado de defesa ou mesmo o promotor apontam a falha ou o equívoco nas
informações prestadas e dá-se o arquivamento do caso. Esse é o caso, por exemplo, da
jovem Eliana61.

Segundo denúncia feita em 13 de agosto de 1958 pelo seu pai, foi desvirginada pelo seu
namorado com promessas de casamento. Em seu depoimento, narra que se manteve

61
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra E. V. C. – E.:03 ; Cx.:84 ;
Doc.: 1532 – (1958-1959).

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

silenciosa sobre o ocorrido entre os seus familiares, pois aguardava Luis, seu namorado,
organizar-se financeiramente para contrair o matrimônio. Após sete meses de espera e
de várias outras relações sexuais, descobriu que estava Luis se relacionando com outra
jovem. Temendo ser preterida, narrou ao genitor seu desvirginamento e decidiu procurar
a justiça desejando o casamento. Como prova de sua menoridade, apresenta uma
certidão de nascimento lavrada poucos dias antes da queixa-crime. Seria um indício
questionável no momento da denúncia ainda na delegacia, especialmente pela aparência
do papel, apresentando - à época - ser recente, com tinta e caligrafias bem nítidas. No
entanto, nesse primeiro momento essa documentação é aceita e a investigação continua
com a inquirição das testemunhas. No decorrer do processo, contudo, o advogado de
defesa do réu questiona a validade deste documento, apontando o recente lavramento.
Amparado no Código Penal, solicita que se apresente outra documentação, como a
certidão de batismo. A vítima não apresenta essa outra comprovação e tem o seu
processo arquivado por falta de provas que atestem a sua menoridade.

Essa, talvez, seja uma das primeiras dificuldades encontradas por mulheres humildes na
resolução dos seus conflitos sexuais e amorosos dentro dos aparatos jurídicos. Pelo que
se observa empiricamente nas fontes, é possível inferir que o acesso a instâncias oficiais
responsáveis pelo registro civil não fosse uma realidade imediata ou um itinerário
simples para muitas dessas famílias. É comum perceber, para além do caso acima
mencionado, como muitas moças não possuem a certidão de nascimento, já que não
foram sequer registradas. Quando essa situação ocorre, também é frequente que se
recorra a documentação eclesiástica católica, através da solicitação ao pároco local que
emita um pequeno parecer atestando que se encontra nos livros de batismo a cerimônia
de determinada jovem. Em muitos casos, o batismo é encontrado, mas a data atribui à
respectiva moça uma idade maior do que os dezoito anos previsto em lei para a proteção
judicial; em outros, por sua vez, não são encontrados registros. Além disso, muitas não
se recordam precisamente da data do seu batizado, dificultando ainda mais a procura por
essas informações dentro dos gigantes livros de batismo. Amparadas apenas nos falas
das testemunhas que atestam ser a jovem “menor”, tem sua denúncia indeferida ou o
processo arquivado. Nesse ínterim, como refletiu FAUSTO (2001), a Justiça e as
instituições jurídicas com suas linguagens e especificidades eram intimidatórias para
sujeitos humildes, sem acesso a uma mínima escolarização e completamente
desconhecedores do universo legal.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Para além das contradições acima discutidas em torno da documentação oficial que
comprovasse a menoridade das vítimas, muitos outros encaminhamentos da queixa e do
desenrolar do processo-crime causavam acanhamento e constrangimentos aos
envolvidos nesses conflitos, frequentemente prejudicando desejos particulares em torno
da punição ou absolvição de outrem. As falas das vítimas, acusados e demais
testemunhas e envolvidos, não raro, eram marcadas pela tensão e pelo medo de que
alguma informação oferecida pudesse ser mal interpretada pelos agentes oficiais da
Justiça. Sobre cada um desses sujeitos, pesava a esperança de construção de um
discurso que se adequasse a determinadas expectativas. A eles restava o dever de
elaborar linguagens que se ajustassem aos moldes de suas respectivas identidades
sociais e de gênero. Para além das palavras, é importante se levar em consideração que
o pertencimento a determinadas identidades se traduzia também pelos gestos e pelo
modo de vestir-se, por exemplo. Especialmente para as mulheres isso poderia se traduzir
pela preocupação em relação à maneira de sentar-se, de responder aos questionamentos
oferecidos ou de posicionar-se diante de sujeitos jurídicos e do corpo de jurados,
durante os sumários de culpa:

Para uma pessoa das classes populares, sobretudo, o aparelho policial


e judiciário representa ume perigosa máquina, movimentada segundo
regras que lhe são estranhas. E bastante inibidor falar diante dela; falar
o menos possível pode parecer a tática mais adequada para fugir as
suas garras. Condicionada por esses elementos, a fala da testemunha
também é dirigida pelos manipuladores técnicos, na feliz expressão de
Mariza Corrêa. Em regra, ela só discorre sobre aquilo que lhe é
perguntado, sua palavra é cortada quanto a narrativa, a critério das
autoridades, não é pertinente para o esclarecimento dos fatos. Seu
discurso deve ajustar-se ao padrão de identidades sociais vigentes,
atestando a correspondência ou não correspondência das partes
envolvidas a esse padrão. 62

62
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1888-1924). São Paulo: Editora
da USP, 200, 33p.

80
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Esse desconhecimento pode ter prejudicado, por exemplo, o resultado final do processo
envolvendo Emília, menor de 17 anos, analfabeta. A queixa-crime foi feita por sua mãe,
Maria Josefa – senhora de 60 anos de idade - em 1942. No entanto, a investigação só é
concluída e arquivada em 1949, sete anos depois. Nesse intervalo, inúmeras vezes a
genitora e denunciante foi oficialmente intimada a depor em juízo, onde ofereceria
novamente as informações prestadas outrora na delegacia. No processo consta que
várias foram as visitas dos oficiais de justiça ao longo dos anos rumo ao distrito rural de
Limoeiro - local de sua moradia - visando notificá-la acerca das intimações judiciais.
Todavia, há uma confusão em torno do seu nome. Ao delegado, ela forneceu a sua
designação de batismo, constante na certidão de nascimento da sua filha entregue como
comprovação da menoridade da ofendida. Nesse momento, ela não ofereceu um apelido
ou outra nomenclatura que pudesse identificá-la facilmente entre seus vizinhos. Na
comunidade onde vivia ela era conhecida como Maria José, mas os serventuários que
iram procurá-la mencionavam a denominação oficial oferecida por ela, porém
desconhecida entre os membros da localidade onde residia. Por conta desta confusão,
por anos ela não foi encontrada e não pode ser ouvida, impedindo que a investigação
prosseguisse a sua burocracia habitual. O promotor Cândido Cerqueira, em seu
relatório, lamenta os atrasos motivados pelo sutil equívoco:

Perdurará na memória de quantos assistiram o depoimento da preta


Maria Josefa, que é a mesma Maria José, o atraso e a ignorância dessa
infeliz parte da nossa população. Para a pobre roceira, tanto faria
Maria Josefa como Maria José e, se há mais tempo não atendeu a
intimação do juiz, era porque não era encontrada, já que julgara tudo
tinha acabado. 63

Dentro desse intervalo de sete anos marcados por desencontros, a vítima Emília resolve
o seu conflito com rearranjos privados, desinteressando-se pela atuação judicial movida
inicialmente por sua mãe. Ela amasia-se com um segundo homem e, ao final do

63
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J. C. A. – E.:02 ; Cx.:47 ;
Doc.: 794 – (1942-1947), 02 fls.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

processo, quando ela e a mãe são encontradas e ouvidas novamente em juízo, já tinha
gerado dois filhos, uma menina falecida e outro com apenas 10 meses de vida (talvez
tenha partido daí o entendimento de sua mãe de que “tudo tinha acabado”).

Ainda no itinerário da queixa-crime na delegacia de polícia, há também a coleta dos


depoimentos do acusado e das testemunhas de acusação e de defesa, onde o delegado
faz uma investigação da vida passada do suspeito e da vítima, além de recolher os dados
pessoais de ambos e de suas testemunhas, finalizando – quando a denúncia a seu critério
é procedente - com um relatório do caso emitido e destinado ao Promotor Público.
Todos esses encaminhamentos tinham seu prosseguimento com a instauração de um
processo judicial que levaria os envolvidos a entrarem em contato com outra vasta
burocracia judicial, mais exigente ainda que a da delegacia de polícia. A queixa,
contudo, com muita frequência era tratada com morosidade, até mesmo a ponto de, em
alguns casos, extinguir a pena ou anular a ação em função da demora. A respeito desses
múltiplos elementos levados em consideração na delegacia de polícia e em juízo para a
apuração do delito de sedução FAUSTO (2001) traz uma importante entendimento:

Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito


a dois ‘acontecimentos’ diversos: aquele que produziu a queda da
norma penal e outro que se instaura a partir da atuação do aparelho
repressivo. Este último tem como móvel aparente reconstruir um
acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a ‘verdade’
da qual resultará a punição ou a absolvição de alguém. Entretanto, a
relação entre o processo penal, entendido como atividade do aparelho
policial-judiciário e dos diferentes atores, e o fato considerado
delituoso não é linear, nem pode ser compreendido por meio de
critérios de verdade. [...] Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o
crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou
absolver. 64

64
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1888-1924). São Paulo: Editora
da USP, 200, 31-32pp.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

É dentro desse universo de variadas manipulações e controles que a vítima e suas


testemunhas procuravam demonstrar a honestidade da primeira, reafirmando os votos de
casamento que o acusado supostamente lhe fizera; os defensores da inocência do réu,
por sua vez, objetivavam em seus depoimentos tornar questionável a integridade da
moça, atacando seus modos, seus costumes, o ambiente familiar em que residia, as
pessoas que a acompanhavam pelas ruas, dentre tantas outros aspectos que
contribuíssem para comprovar sua imoralidade. CORRÊA (1983) estudando as
representações jurídicas de papeis sexuais a partir da análise de processos criminais de
homicídios passionais na cidade de Campinas entre os anos de 1952 e 1972 reflete que,
em seus respectivos depoimentos, cada um desses sujeitos objetivava desenvolver a sua
versão dos acontecimentos da forma que julgava ser mais agradável às autoridades:

No momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em


versões, o concreto perde quase toda a sua importância e o debate se
dá entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do ‘real’ que
melhor reforce o seu ponto de vista. 65

Para os indivíduos acusados de desvirginarem suas namoradas, existiam três elementos


fundamentais que tornariam possível reconhecer numa mulher, no momento da primeira
relação, a sua virgindade. Primeiro: ter percebido sangramento no momento da
penetração e da rotura do hímen; segundo: ter encontrado dificuldade física para realizar
essa penetração, percebendo que a membrana himenial existia; por fim, a manifestação
de dor. Esta seria uma sensação física sentida pela mulher: o homem apenas poderia
tomar conhecimento pelo que lhe fosse dito e evidenciado por ela. A facilidade na
penetração e a falta de manifestação de dor e sangramento são argumentos utilizados
comumente pelos acusados para afirmarem a “não-virgindade” da ofendida no
momento do sexo.

65
CORRÊA, Mariza, Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro,
Graal, 1983, 32p.

83
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Num momento onde os segmentos jurídicos começavam a desconsiderar a sensação


física da dor e do sangramento como “marcas físicas” da virgindade é válido buscar
compreender o porquê de os acusados tanto destacarem esses elementos como
comprovação de que as moças não eram mais virgens. É importante que se leve em
consideração que essas noções eram muito usuais nesses homens simples, em sua
grande maioria trabalhadores pobres e com baixo grau de escolaridade, muito dos quais
sabiam apenas ler e escrever (o que na maioria dos casos pode ser interpretado como
somente sabendo assinar o próprio nome). Nesse sentido, não estavam informados das
descobertas realizadas pelos médicos a respeito da anatomia do corpo feminino.

Essas falas seriam, então, meras estratégias de defesa ou um real desconhecimento sobre
a anatomia feminina? Seriam, talvez, expressões de valores antigos? As leituras de
ESTEVES (1989), CAUFIELD (2001), FILHO (2001) e RODRIGUES (2007) indicam
que enquadrar os testemunhos dos acusados e seus entendimentos sobre o ser e o não
ser virgem somente dentro de uma estratégia de defesa ou como reflexo de uma
ignorância sobre o corpo feminino e as emoções das mulheres, não permite a
compreensão desses homens dentro de uma cultura que influenciava e constituía
mentalidades sobre o masculino e o feminino. Assim, não se tratava somente de uma
estratégia de defesa ou de desconhecimento, mas sim de valores que faziam sentido para
os homens das camadas populares envolvidos nos processos por sedução. Assim, o mais
provável é que essas atitudes de defesa por parte dos acusados tenham sido
amadurecidas e construídas como falas estratégicas à medida que os processos foram
evoluindo e os envolvidos passaram a contar com alguma assistência jurídica. No
entanto, ao falarem na dificuldade ou facilidade para introduzir o pênis, em terem ou
não percebido sangue ou dor por parte da seduzida, os homens não estariam criando
algo inédito. Talvez estivesse somente utilizando em benefício de si próprios uma
espécie de crença presente em seu grupo social. Para eles, dificuldade de penetrar,
sangue e dor eram elementos que realmente deveriam acontecer e serem perceptíveis no
momento em que uma virgem fosse desvirginada.

As falas das ofendidas e os elementos utilizados como referência na perda da virgindade


são os mesmos encontrados nos testemunhos dos acusados: sangramento, dor e
dificuldade na penetração. O seu uso, por sua vez, é diferente. Conforme foi
explicitado, os homens de um modo em geral tentavam convencer os sujeitos jurídicos

84
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

de que a ausência desses elementos servia como prova de que a mulher não era mais
virgem quando da relação sexual. Nesse ínterim, são inúmeros processos onde é
possível identificar que o acusado altera o seu depoimento dado na delegacia em relação
ao que é prestado em juízo, com o objetivo de convencer o juiz de não haver encontrado
a jovem virgem quando com ela manteve relações sexuais. Esse é o caso, por exemplo,
de André 66 que afirmou:

Realmente levou Naiara para o Alto do Cruzeiro, dentro de uns matos,


onde manteve relações sexuais, relações essas que foram normais,
pois encontrou Naiara já deflorada; que o primeiro encontro que teve
com Naiara, [...] manteve relações sexuais e que nesta relação sexual
ainda quis usar uma camisa de Vênus mas [Naiara], recusou alegando
que uma colega dela era acostumada a extrair filhos em Salvador, e se
caso ela aparecesse grávida, também saberia ir a Salvador extrair; que
todas as vezes que manteve relações sexuais com Naiara, pagava
como se paga a qualquer mulher da vida.67

Ao narrar o acontecido dessa forma, seu objetivo era deixar o juiz em dúvida sobre a
virgindade da ofendida no momento da primeira conjunção carnal. No caso aludido
acima, a situação da jovem complicou-se um pouco mais, uma vez que, além de tudo,
são apontados como agravantes o fato de possuir supostas amizades acostumadas a
abortos clandestinos e de haver recebido dinheiro em troca do sexo, caracterizando
prostituição.

As mulheres, por sua vez, objetivavam convencer que eram virgens e por isso houve
uma introdução difícil do pênis, com sangramento e dor. Se os elementos que
compunham essas interpretações desses homens e mulheres sobre o momento da
primeira relação sexual são idênticos, os usos que deles foram feitos, por sua vez,
diferenciaram-se. As moças envolvidas nas seduções, até mesmo pela necessidade de

66
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra V. M. C – E.: 03; Cx.: 63;
Doc.: 1182 - (1941).
67
IDEM.

85
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

provarem um estado anterior de pureza, davam ao momento, na maioria dos casos, um


maior tom dramático e de trauma.

Apesar de revelar-se movida pela astúcia do seu suposto ofensor que soubera bem
aflorar a sua sensibilidade e demais emoções de seu corpo com carícias e promessas de
matrimônio, Naiara não narrou sentir naquele momento um mínimo prazer ou
satisfação. Pelo contrário, enfatiza o sofrimento destacando a presença do seu choro.
Atentando para o momento da penetração, quando já havia permitido que sua pudícia
fosse vencida, destaca bem a presença do sangue, anunciador do rompimento da sua
membrana hímen. Exagerando na quantidade do liquido, afirma que o mesmo chegou a
manchar farda que havia sido retirada momentos antes... Deste modo, nas falas
masculinas e femininas é perceptível que a construção do momento é similar, porém,
cada gênero se utiliza do imaginário conforme seus interesses. Ambos não inventam ou
criam um perfil tão somente com a finalidade de agradar os sujeitos jurídicos, mas
falam aquilo que existia em seu meio cultural. Fazer referências a esses elementos como
prova de virgindade só fazia sentido porque eles estavam contidos no universo cultural
dessas pessoas.

Por outro lado, também é possível encontrar declarações onde apenas um dos elementos
é apontado; declarações em que a dor e o sangramento persistiram até o dia seguinte ao
sexo; casos em que as referências a esses elementos não são encontrados. Este último é
o exemplo de Luana, menina de 17 anos de idade, doméstica natural da cidade de Monte
Alegre, mas residente em Feira de Santana na Avenida Maria Quitéria na casa de uma
viúva muito amiga de seus pais. Relatando o seu desvirginamento, conta que:

Há dois anos mais ou menos, em um dia que a viúva saiu para tratar
da matricula das filhas no colégio, ela respondente ficou só em casa
com Toni, o que reclamou a viúva dizendo que não pegava bem ela
respondente sozinha, com o irmão da viúva em casa e achou melhor
que ela respondente também saísse com a viúva [...]; que esta disse
que não quis, dizendo que ia matricular as meninas não precisava que
ela acompanhasse, pois voltava poucos minutos depois; que ela
respondente ficou e quando estava encostada na mesa da sala de
jantar, Toni fechou as janelas [...] e ela respondente disse a Toni que

86
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

não gostava de brinquedo e virando as costas foi por ele [...] pegada de
surpresa por detrás, sendo segura pelos pulsos e encostada sobre a
mesa e apesar dos esforços que fez para livrar-se de Toni foi por este
desvirginada.68

Apesar da lenta chegada dos avanços da Medicina Legal sobre a anatomia da vulva
feminina aos sujeitos jurídicos habituados com as concepções tradicionais acerca da
“virgindade física”, experiências como a da jovem Luana podem indicar que de fato as
novas concepções em torno da virgindade das mulheres começavam a adentrar cidades
interioranas, como Feira de Santana. Em seu depoimento prestado na delegacia, ela
prestou as informações acima. Poderia ter se esquecido de mencionar a dor e o sangue,
ou, talvez, em sua relação esses elementos não tenham se evidenciado, mas o fato é que
o delegado que ouviu as suas declarações não a interrogou nesse sentido.

Assim, se esses homens e mulheres possuíam um objetivo ao irem às delegacias, supor


que eles portavam uma “estratégia discursiva” não é simples de se demonstrar.
Representar o desvirginamento feminino por dor, sangue e dificuldade na penetração
sugere que os populares utilizavam-se dessas imagens, buscando impressionar positiva
ou negativamente os juízes. Não faziam isso, porém, tão somente porque sabiam que
esta era a “estratégia” a ser usada. A questão primordial não é saber se essas falas e
referências são ou não verdadeiros, se correspondem ou não ao que diz a Ciência (até
porque, para a Medicina Legal dos anos 1940, 1950 e 1960, essas imagens não
corresponderiam à realidade), mas de reconhecê-las como um saber por eles tido como
verdadeiro, que expressaria as coisas como elas deveriam acontecer. Além disso,
analisar a perspectiva dos depoimentos dos populares como apenas estratégias de defesa
exige sempre que se demonstre em que momento o depoimento adquiriu uma estrutura
discursiva que possa ser conceituada como estratégica, isto é, quando e como os
depoimentos dos populares passaram a dizer, conscientemente, aquilo que os
profissionais do judiciário gostariam de ouvir.

68
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra J.F. – E.: 03; Cx.: 83; Doc.:
1582.

87
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO III

As “Descabaçadas” do Sertão

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CAPÍTULO III

As “Descabaçadas” do Sertão

Não pairam dúvidas de que a virgindade constituiu um valor caro às mulheres de Feira
de Santana, para as moças ruralizadas, mais ainda. Isso não significa, entretanto, que nas
zonas urbanas a moralidade se apresentasse de forma distinta ou não ocorresse o que se
considerava um desvio. Da forma como os conflitos em tornos das seduções chegavam
aos tribunais feirenses, fica evidente que os embates sobre os desvirginamentos nas
famílias de classe média e alta eram resolvidos no âmbito privado, no domínio do
particular. Entretanto, a partir da documentação pesquisada, é patente que nem todas as
jovens desta cidade respondiam as novas exigências da vida numa sociedade em
transformação. O crescimento da cidade, a ampliação demográfica, o desenvolvimento
do comércio, o surgimento de novas urbanidades foram potencialmente discutidos como
perigosos para a moralidade feminina. Seguindo o exemplo de grandes cidades
nacionais, a vigilância frente à chamada “mulher moderna” passou a ser a tônica dos
discursos jornalísticos e, como apontado no capítulo anterior, preocupação também de
muitos sujeitos jurídicos que ambicionavam a manutenção de valores tradicionais frente
ao que se considerava o “avanço dos costumes”.

Nessa lógica, o termo “mulher moderna” ganha um sentido pejorativo, quando se


debruça acerca de sua historicidade. Sua utilização não se destinava apenas às mulheres
públicas ou trabalhadoras, mas especialmente aquelas consideradas atrevidas, ousadas,
namoradeiras, voluntariosas e, até mesmo, andróginas. Muitos dos discursos sobre elas
viriam a refletir falas que simbolizavam receio diante das transformações aceleradas nas
primeiras décadas do século XX, tornando um desafio para a “família tradicional” lutar
pela manutenção da ordem social de outrora:

A invasão do cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz


uma abrandamento das exigências morais, como atesta antigos tabus,
como o da virgindade. Ao contrário, quanto mais ela escapa da esfera

89
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança


sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante
do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas
longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista e filantrópico
acena para ela, de vários pontos do social, como o perigo da
prostituição e da perdição diante do menor deslize. Não é a mulher
esta carne fraca, presa fácil das paixões, que sucumbe sem resistências
ao olhar insistente ou aos galanteios envaidecedores do sedutor?
Vários procedimentos estratégicos masculinos, acordos tácitos,
segredos não confessados tentam impedir sua livre circulação nos
espaços públicos ou a assimilação de práticas que o imaginário
burguês situou nas fronteiras entre a liberdade e a interdição. 69

Assim, até meados do século XX, em que pese o ritmo relativizável dos avanços nas
cidades pequenas do interior do Brasil, como Feira de Santana, a oposição entre os
espaços públicos e privados e entre as mulheres consideradas “puras” e “impuras”
ainda era claro. A Justiça Pública, os noticiários e, especialmente, o senso comum
continuavam a associar a falta de compostura à exposição das jovens aos locais
coletivos. No entanto, pelas mais variadas interesses, muitas mulheres necessitavam
ocupar áreas cada vez maiores do espaço da rua, sejam motivadas pelo trabalho, sejam
motivadas pelas lutas pelos espaços de lazer. Segundo BARREIROS (2001),

Para as mulheres das camadas intermediárias e abastadas, a inserção


no mundo do trabalho e da rua ocorreu de modo diferente. São outros
os motivos que levaram senhoras e senhorinhas à esfera pública. O
desenvolvimento de uma educação formal, a participação mais ativa
na família, o ingresso em profissões liberais, a restrição à prática de
enclausuramento concorreram para essas mulheres ingressarem com
mais intensidade no domínio público. A presença feminina em
ocupações como a filantropia e o assistencialismo social, na literatura,

69
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1885, 63p.

90
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

no magistério, nos divertimentos, evidencia formas de sociabilidades


que servem para avaliarmos as suas práticas e o significado dos seus
papéis. 70

Assim, para as moças de elite, os bailes, os passeios públicos e as atividades ligadas à


religiosidade, ao assistencialismo e até mesmo ao trabalho tornavam-se cada vez mais
uma realidade presente. Passear, trabalhar, atuar filantropicamente traziam momentos de
prazer e ludicidade e nos ambientes públicos

se podia dançar, cantar, assistir a peças teatrais e filmes, entabular


conversas, constituir namoros e amizades. Fora dos limites e controles
comuns do espaço doméstico, as mulheres se organizavam de outra
maneira nas festas realizadas na rua. Apesar do espaço público
também possuir seus códigos de ocupação, ele comportava
imprevistos, novidade, ação e movimento. No mundo da rua, os papéis
sociais podiam ser reelaborados e as hierarquias transformadas. 71

Este tipo de comportamento estava substituindo o isolamento habitual, o confinamento


doméstico das moças consideradas honestas. Mesmo que muitos dos discursos
conservadores associassem essa independência e publicidade à “perdição”, as jovens
“modernas” eram culpadas pela argúcia e pelos conhecimentos e sociabilidades
consideradas indecorosas que se desenvolviam nesses ambientes. Mesmo que cada vez
mais independentes frente à disciplina de seus pais e demais familiares

um novo modelo normativo de mulher, elaborado desde meados do


século XIX, prega novas formas de comportamento e de etiqueta,
inicialmente as moças de famílias mais abastadas e paulatinamente às

70
BARREIROS, Márcia Maria da Silva. As damas da caridade: Sociabilidades Femininas na Bahia
Republicana. In.: Revista Fazendo Gênero na Historiografia Baiana. Orgs: Cecilia M.B. Sardenberg, Iole
Macedo Vanin e Lina Mª Brandão de Aras Salvador: NEIM/UFBA, 2001, 90p
71
IDEM, 99p.

91
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

das classes trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas da


laboriosidade, da castidade e do esforço individual. Por caminhos
sofisticados e sinuosos, se forja uma nova representação simbólica da
mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa, afetiva, mas assexuada, no
momento mesmo em que as novas exigências da crescente
urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que ocorrem
nos principais centros do país, solicitam sua presença no espaço
publico das ruas, das praças, dos acontecimentos da vida social, nos
teatros, cafés, e exigem sua participação ativa no mundo do trabalho.
72

Se todas essas transformações da vida urbana incitavam a uma maior visibilidade das
mulheres na esfera pública, o preço que elas pagavam era o da eterna vigilância sobre os
seus gestos e “emancipação”, “liberação” e “independência” passaram a ser palavras
utilizadas para traduzir a corrupção dos costumes e a “promiscuidade” de mulheres que
se expunham a filmes, livros, passeios públicos e salões de dança. Sob um foco trivial,
estes tipos de lazer eram considerados facilitadores do contato das meninas com o
mundo público, possibilitando situações de disponibilidade para paqueras e namoros,
facilitando o contato com sujeitos sedutores.

Para se compreender esse um pouco desse fenômeno na cidade de Feira de Santana,


lócus desse estudo, é necessário uma reflexão histórica dos aspectos que envolviam o
dia a dia desta cidade em meados do século XX. Na leitura de OLIVEIRA (2000) e
(2011); SIMÕES (2007); SILVA (2000); SOUSA (2001); SANTOS (2012); RAMOS
(2007), como vimos, assistia-se a uma alteração dos papéis sociais destinados a homens
e mulheres, em grande parte motivada pelos discursos da modernidade, caracterizada
por reformas urbanas e pelo estabelecimento de novas sociabilidades para homens e,
especialmente, para as mulheres. Em que se pese o alcance de todas essas
transformações, como foi problematizado, Feira de Santana ainda possuía muitas
peculiaridades que a caracterizavam como marcadamente rural e interiorana.

72
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1885, 62p.

92
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Dados demográficos para o recorte proposto realmente podem indicar que o


crescimento da urbe se dava de modo acelerado e evidente. Especificamente tratando da
população urbana, segundo OLIVEIRA (2011), em 1940 o município possuía 19.660
habitantes. Esse número quase de duplica na década seguinte, chegando a 37.227 em
1950 e atingindo a marca de 60.8884 a partir de 1960. Contudo, as muitas alterações
arquitetônicas e culturais pelas quais a cidade passou ao longo desses anos, motivadas
entre outros fatores pelo incremento demográfico, se deram num universo urbano
bastante restrito, especialmente nas ruas e avenidas mais centrais do município, alvo
especial dos que se consideravam reformadores da “Princesa do Sertão”. Levar em
consideração que outros espaços mais afastados das artérias centrais possuíam um ritmo
menos “frenético” no que se refere crescimento urbano, alterações físicas e
comportamentais é bastante importante, uma vez que os endereços que são citados nos
depoimentos dos envolvidos nos processos-crime de sedução permitem inferir que a
cidade ainda era caracterizada por muitas regiões com áreas predominantemente rurais e
com intenso trânsito de sociabilidades consideradas ultrapassadas e que se
contrapunham ao ideal.

A tensão existente no aspecto moral e sexual dos discursos dos reformadores feirenses
estava ligada especialmente ao aspecto físico e urbanístico da cidade, evidenciando um
choque de perspectivas entre a tradição e a modernidade. Eles propagavam que a
presença das mulheres nos espaços públicos e de lazer oriundos do progresso deveria
ser efetivada de forma discreta e controlada, sempre acompanhada de algum membro
masculino da família (de preferência pai ou irmão) e como uma extensão do ambiente
doméstico. No caso das mulheres de elite, essas regras envolviam aspectos
diferenciados daqueles das moças dos segmentos populares, já que essas últimas, por
questões ligadas ao universo do trabalho e subsistência, teriam naturalmente um trânsito
diferenciado, mais ativo, frequente e inevitável. Nesse choque de realidades, emerge a
marginalização das moças pobres e que possuíam a necessidade de trabalhar fora de
casa, consideradas vulneráveis e facilmente corruptíveis. CAUFIELD (2000),
ESTEVES (1989) E RAGO (1885) acreditam que as mulheres da classe trabalhadora
não compreendiam a dicotomia entre o público e o privado de forma semelhante aos
médicos, juristas e outros defensores da família tradicional. Elas argumentam que:

93
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

(...) ‘a designação convencional de segurança ou perigo, limpeza ou


sujeira, valorização ou degradação’ colocava a casa como segura e a
rua como perigosa. Para as empregadas domesticas, esses significados
eram inversos. Elas eram constantemente submetidas a situações
perigosas e a abusos físicos e sexuais nas casas onde trabalhavam ao
passo que a rua lhes dava uma relativa autonomia em relação aos
patrões e contato com pessoas de sua própria comunidade. Da mesma
forma, Esteves mostra que as mulheres da classe trabalhadora se
socializavam abertamente em locais públicos e, em geral, não sabiam
que o fato de saírem sozinhas poderia comprometer sua reputação nos
tribunais. 73

De toda a sorte, os locais apontados como cenários da ocorrência do crime de sedução


diferem bastante dos ambientes descritos pelos reformadores da moral social como
espaços potencialmente perigosos para a honestidade feminina. Não eram nos cinemas,
nos bailes ou nos passeios vespertinos pelas novas artérias iluminadas e arborizadas da
cidade de Feira de Santana que as seduções e o sexo ocorriam, porém em áreas rurais,
distritos afastados do perímetro urbano, terrenos baldios, roças de mandioca e feijão, em
locais ermos ou mesmo dentro das próprias residências. Eram relacionamentos que
quase nunca se estreitavam no cotidiano do espaço público da rua, onde muitos contatos
verbais e visuais entre jovens enamorados poderiam acontecer, como imaginavam. A
grande maioria desses episódios não estava envolvidos diretamente com as novas
urbanidades consideradas modernas e alvo de intensa vigilância e grande preocupação.

Pela análise dos processos-crime de sedução, fica evidente que em Feira de Santana a
maioria desses delitos ocorria com moças pobres, que residiam em distritos rurais e
bairros distantes do centro. Isso não quer dizer, contudo, que as moças da elite não
cometessem o que era considerado um deslize, no entanto esses casos eram abafados e
tratados com muito mais discrição, como aponta FAUSTO (2001) ao refletir sobre a
mencionada “criminalidade real” e “criminalidade apurada”.

73
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, 120-121p.

94
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Seguindo um raciocínio semelhante, FERREIRA FILHO (2001) analisando crimes


sexuais na capital do estado, Salvador, nas primeiras décadas do século XX, afirma que:

É certo que os processos-crime constantes do Arquivo Público do


Estado da Bahia nem de longe espelham a real extensão do fenômeno
em Salvador. A justiça era um recurso dos mais extremos, só sendo
solicitada a atuar quando os arranjos, dos mais variados, não se
tornavam possíveis. Isto explica, por exemplo, a ausência de processos
envolvendo mulheres de família das classes média e alta. Casamentos
apressados, maridos arranjados, reclusão em conventos, foram, dentre
outras, estratégias utilizadas por famílias desses segmentos para
livrarem-se dos escândalos deflagrados por incidentes de tal natureza,
ajudando assim a preservar intacta a cultuada imagem pública. 74

A documentação pesquisada em Feira de Santana segue princípios análogos, mostrando


que os relacionamentos que envolviam as jovens seduzidas e os seus sedutores
apresentavam uma variedade de trânsitos mais de acordo com as tradições rurais e
interioranas, não sendo influenciados diretamente pela pelas novas sociabilidades em
desenvolvimento. Dentro dessa lógica está a trajetória de Angelita, jovem lavradora,
analfabeta, preta, católica, com 17 anos de idade e natural do distrito rural de Humildes.
A sua denúncia foi feita por sua mãe em 03 de outubro de 1952. Segundo sua narrativa,

de dois anos pra cá a declarante deu para desconfiar de sua filha


Angelita porque a mesma sempre se mostrava inquieta e tendo saídas
furtivas e apesar de ser inquirida várias vezes jamais lhe descobrira o
que com si ocorrera, e somente no mês de janeiro deste ano a sua filha
descobriu que não era mais moça e que o autor era um seu parente de
nome Pedro; acrescenta que desta parte em diante sabe com certeza
que Pedro tem mantido repetidas vezes relações sexuais com a sua

74
FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. As delícias do nosso amor: comportamento feminino e crimes
sexuais em Salvador (1890-1940). In.: Revista Fazendo Gênero na Historiografia Baiana. Orgs: Cecilia
M.B. Sardenberg, Iole Macedo Vanin e Lina Mª Brandão de Aras Salvador: NEIM/UFBA, 2001, 68p.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

filha e a qual somente agora passados oito meses e tantos dias é que
veio pedir providencia a autoridade. 75

Segundo a seduzida Angelita, o seu desvirginamento se deu em sua casa, dois anos
antes da denúncia. Relata que não revelou imediatamente a sua mãe o ocorrido, pois
acreditou e esperou o cumprimento da promessa de casamento de seu primo e sedutor
Pedro. Afirma que manteve com ele durante todo esse tempo inúmeras relações sexuais
e que só decidiu prestar queixa a Justiça porque o referido não mais a procurava como
fazia anteriormente. O acusado, por sua vez, traz outras versões para o fato. Na sua
narração afirma que:

Em verdade tivera relações sexuais com Angelita, isto acerca de dois


anos isto mesmo porque a mesma exercia a vida livre, e como não
tivesse responsabilidade a procurou, ficando surpreendido quando a
mesma junto a sua mãe apresentaram queixa na polícia. [...] Tudo isso
prende-se tão só e exclusivamente ao fato dele possuir uma fazendinha
e ter do que viver, o que tem despertado forte cobiça na sua prima. 76

Em que pese os choques entre as versões, é perceptível nas falas de ambos (acusado e
vítima) que o encontro inicial, a sedução e o relacionamento informal que se
desenvolveu ao longo de dois anos, nunca teve nenhum contato com lazeres ou espaços
modernos em Feira de Santana. A jovem, dentro do seu universo campesino, encontrava
meios de ludibriar a vigilância familiar para encontrar-se com o seu amante. Ao longo
de muitos meses, consegui transitar pelos espaços rurais, migrando da pequena
propriedade rural de sua família para a propriedade também rural de seu namorado,
despertando poucas suspeitas entre seus familiares, talvez pelo fato de que as suas
andanças não possuíam nada de anormal para quem vive no universo campestre. Apenas
quando o relacionamento passa por uma crise é que a mãe percebe alterações

75
Processo contra M.S. – E.: 04; Cx.: 117; Doc.: 2386. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa -
UEFS.
76
IDEM.

96
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

emocionais na filha e decide procurar a Polícia. Em nenhum momento, ao longo da


investigação, são identificados encontros em espaços públicos, urbanos e considerados
possíveis de corromperem a moral de uma moça virgem.

Pela leitura dos processos, de um modo geral, pode-se perceber que a jurisprudência
tendia a favorecer a defesa, caso a acusação não apresentasse testemunhas coerentes
capazes de convencer o juiz que a ofendida era moça submissa aos pais e recatada.
Fazendo parte desse ínterim, Angelita, sem apresentar sujeitos que pudessem comprovar
a oficialidade de sua relação, muito menos sua moralidade, teve a denúncia arquivada.
No entanto, sem negar os incontáveis encontros no sítio do acusado, sua trajetória vai de
encontro a uma cultura misógina de negação do desejo feminino. Enquanto muitas
meninas se colocavam na posição de passividade frente à ação dos namorados
sedutores, afirmando que foram transportadas para os locais e forçadas a levantar as
vestes contra as suas vontades, ela desafia o monopólio da excitação masculina ao
enganar por tanto tempo a sua mãe para seus encontros amorosos e sexuais.

Experiência semelhante teve a jovem, Suzana 77 brasileira, baiana, solteira, com 15 anos
de idade, descrita como “branca”, doméstica, católica pobre e residente em Pacatu,
povoado rural de Santa Bárbara, distrito da cidade de Feira de Santana. Segundo narra
em seu termo de declarações - em vinte de abril de 1956 - desde o mês de dezembro do
ano anterior a queixa ela mantinha um relacionamento público e estável com o acusado
Lucas. De acordo com sua narrativa, assegura que frequentava com muita assiduidade a
casa do mesmo e de seus familiares, contudo faz o que para ela seria uma importante
ressalva, destacando que sempre voltava para sua casa no máximo “às nove horas da
noite”. Diante dessa situação, afirma que havia entre as famílias e entre o próprio casal
o desejo de contrair matrimônio, pois Lucas, seu namorado e ofensor, trabalhava como
motorista de um caminhão de propriedade do seu genitor e já possuía condições de
manter a subsistência de ambos.

Continuando a contar a sua versão, assegura que no dia 25 de março de 1956 - pouco
menos de um mês antes da queixa-crime em delegacia - numa casa inabitada de
propriedade de amigos de seus pais (cujas chaves os donos do imóvel mantiveram em
posse da sua família) foi pelo acusado desvirginada, tendo mantido com ele dois outros

77
Processo contra S. B. E. – E.: 05; Cx.: 136; Doc.: 2639. CEDOC – Centro de Documentação e
Pesquisa - UEFS.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

congressos sexuais no mesmo local. Na sua primeira relação sangrou um pouco, tendo
esse líquido manchado a sua calça, peça do seu vestuário que ela lavou no dia seguinte,
escondida de sua mãe. Após esse episódio, conforme mencionado, mais duas vezes
pegou as chaves da casa às escondidas de seus familiares. Essa sua assiduidade à este
local para a manutenção de relações sexuais trouxe ao seu namoro e desvirginamento
grande publicidade e repercussão na localidade onde vivia. Tendo a sua mãe tomado
conhecimento por terceiros do ocorrido, resolveu procurar a ajuda policial.

Durante a investigação, no seu depoimento, a vítima foi questionada a respeito de outros


relacionamentos amorosos anteriores ao namoro que supostamente causara o seu
desvirginamento. A esse propósito, descreve que formal mesmo apenas o seu namoro
com Lucas, mas que “como menina não deixou de ter predileções, como menina em
festas, com um primo da declarante chamado Raildo, sem que entretanto senão isso um
78
namoro de longe e passageiro” . Inquirida sobre sua presença em festas e outras
sociabilidades responde que: “as vezes ia a festas em companhia da tia e prima dela
79
declarante.” . Conta, ainda, que residiu durante quatro anos com freiras em um
convento assistencialista - Convento São José, em Pacatu - em virtude da morte de seu
pai e da impossibilidade financeira de sua mãe em custear sua subsistência. Sem
especificar exatamente as datas nem mesmo a idade que possuía no momento dessas
experiências, continua narrando que, ao sair do aludido convento, foi conviver em
Salvador com uma tia, no bairro da Federação. Lá trabalhou nas lojas “O Cruzeiro”,
porém não precisou função desempenhada. A despeito da dimensão do fragmento
abaixo ser consideravelmente extenso, faz-se relevante mencioná-lo, pois traz muitas
informações preciosas a respeito dessa fase de sua vida e de seus relacionamentos
afetivos pregressos. Ela assevera que

seus namoros até a presente data consistiram em dois em Salvador


com os quais perdeu cerca de treze meses quanto ao primeiro e cerca
de oito quanto ao segundo; que esse primeiro namorado de Salvador
chamava-se Antônio Andrea e o namoro era inteiramente respeitoso
pois sob as vistas de sua tia com quem a declarante morava; que o

78
IDEM, 6fls.
79
IBIDEM.

98
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

segundo foi Carlos que também manteve o namoro respeitoso nunca


passando de um ou outro beijo pois a declarante já lhe tinha muita
amizade e o namoro foi acabado porque Carlos passou a se interessar
igualmente por outra moça;

Que vindo para Santa Bárbara a declarante acertou namoro de seu


primo Raildo o qual residia, como reside em Feira de Santana; que
esse namoro não passou de trinta dias, sendo que a maior parte do
tempo Raildo permaneceu em Feira, só apareceu em Santa Barbara
aos domingos; que o único passeio que fez com Raildo foi na data de
trinta e um de dezembro por volta das vinte e duas horas porém em
companhia de uma Irma de Raildo de nome Tereza, sendo que o
convite para esse passeio partira da própria Teresa; que o namoro com
Raildo foi uma espécie de passa tempo de festa ou de período de festa
e por insistência da irmã de Raildo;

Vindo após Lucas com quem namorou a partir de dezessete de janeiro


acabando pelo carnaval, quando tornou a namorar Raildo. Que durante
as festas havidas em Santa Bárbara, festas de São Silvestre e Ano
Bom, frequentou muito a casa [...] da avó de Raildo por ser esta a tia
da declarante [...], também frequentou a casa da mãe de Raildo
durante os citados dias de festa ai os encontros entre a declarante e
Raildo foram mais frequentes. 80

A trajetória amorosa e afetiva dessa jovem é emblemática em muitos aspectos,


especialmente nos que dizem respeito à natureza de suas sociabilidades e de seus
trânsitos públicos. Ao contrário da preocupação dos reformadores feirenses que
insistiam na periculosidade do centro urbano com suas “modernidades”, a moça Suzana
não menciona nenhum contato com a urbanidade feirense e, mesmo quando narra o seu
período em Salvador, não faz alusão a passeios públicos e sociabilidades consideradas
avançadas. Boa parte de seus relacionamentos, muito breves por sinal, desenvolveram-
se em ambientes e festividades rurais. Foram nas festas religiosas, que mobilizavam
com intensidade as comunidades campesinas do Nordeste brasileiro, que ela conheceu e

80
Processo contra S. B. E. – E.: 05; Cx.: 136; Doc.: 2639. CEDOC – Centro de Documentação e
Pesquisa – UEFS, 17-18fls.

99
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

se envolveu com muitos pretendentes. Nas rezas e quermesses familiares, nos finais de
semana passeando com suas “camaradas” pelo distrito rural onde residia, encontrou
mecanismos para burlar a vigilância de sua genitora – se é que existia - e efetivamente
encontrar-se com rapazes, inclusive com o acusado Lucas, a quem atribui a
responsabilidade pelo seu desvirginamento.

É possível pensar que, para ela e outras meninas com histórias de vida semelhantes,
esses comportamentos - namoros efêmeros, quebra da passividade feminina –
revelavam valores morais, concepções de honra, virgindade e casamento com
significados diferentes dos que os ilustres juristas e reformadores afirmavam:

Os conceitos de namoro oficial e noivado, realizados, aliás, sem


nenhuma solenidade especial, muito menos através da troca de
alianças. Eram vividos pelas moças pobres dentro de circunstâncias de
vida e de valores específicos, embora também considerados honestos:
decisões próprias, vigilância superficial, passeios a sós e liberdade de
movimentos. 81

Em que pese a sua trajetória, aos olhares da época considerada condenável, o seu
discurso acerca de suas experiências afetivas buscava comprovar que ela possuía algum
valor a respeito do que tange namoro, virgindade e honra, já que em relações anteriores
não se permitia algumas carícias, como beijos, por exemplo. Mas o fato é que sua
narrativa acabou revelando uma prática bem diferente da que desejou inspirar:
relacionamentos mais “livres” e curtos, uniões sem os pré-requisitos do comportamento
“recatado”. Seu processo, como o da grande maioria, arrasta-se por anos na Justiça
Pública, sendo abandonado algum tempo depois. Não há como identificar o desfecho
final desse conflito, mas pelas narrativas de algumas testemunhas no ano de 1959, três
anos após a queixa-crime, pode-se inferir que o casamento como “reparação ao mal”
idealizado por sua genitora anos antes não se efetivou. O promotor Público afirmou que

81
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, 161p.

100
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

desde os doze anos a vítima vem revelando comportamento


indisciplinado a ponto de ter sida expulsa do colégio de Freiras de
Pacatu, daí seguindo para Salvador para casa de irmãs dela vitima, as
quais não a suportaram e expulsaram de casa, sendo a vítima, hoje,
mulher de vida fácil e possuindo dois filhos, que a vítima no período
de mocinha namorava com varias pessoas e assinala que a vitima
possui uma irmã de doze anos que consta entregar-se a libidinagens .82

Regina83, com 16 anos de idade, doméstica, analfabeta, preta e pobre, segundo denúncia
feita em seis de julho de 1956 por seu pai, João de Deus - lavrador, pobre, preto,
católico e com 36 anos de idade - foi seduzida e desvirginada por seu sobrinho Rosalvo.
Diante desta realidade, procurou a sua irmã, mãe do ofensor, além de seu respectivo
esposo, para resolverem a situação, recebendo uma recusa ao seu pedido de “reparação
ao mal”. Cabisbaixo e insatisfeito ele saiu em disparada nervoso, andando sem rumo
por uma estrada vicinal onde, por acaso, deparou-se com o sedutor de sua filha. Esse
encontro casual gerou um desentendimento maior onde o mesmo conseguiu apropriar-se
astuciosamente de uma espingarda até então em posse do acusado que estava no local a
“caçar passarinhos”. Ao apontar a arma ameaçando alvejar o suposto desvirginador de
sua filha, foi golpeado seriamente com uma foice por um amigo do ofensor que estava
no mesmo lugar também a caçar.

O acusado Rosalvo – brasileiro, solteiro, com vinte e um anos de idade, lavrador,


analfabeto, mestiço, católico e pobre – por sua vez, nega a autoria do desvirginamento,
mas confirma o sexo e o namoro com a prima Regina. Segundo narra, no início do
relacionamento de fato tinha a intenção de casar-se e insistiu no sexo como forma de
comprovar o estado de “pureza” de sua amada antes do matrimônio. No entanto, no
momento da penetração assegura ter percebido que a mesma não era mais uma “moça
pura”, pois não sentiu resistências, nem sangramentos. Não pôs fim de imediato ao

82
Processo contra S. B. E. – E.: 05; Cx.: 136; Doc.: 2639. CEDOC – Centro de Documentação e
Pesquisa – UEFS, 36fls.
83
Processo contra S. B. E. – E.: 04; Cx.: 114; Doc.: 2322. CEDOC – Centro de Documentação e
Pesquisa – UEFS, 23fls.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

namoro e manteve outras relações sexuais. Contudo, com o passar do tempo, sentiu-se
“desgostoso” com a situação e resolveu terminar a relação.

Regina, ao descrever características de seu relacionamento também não menciona


comportamentos ou sociabilidades que fossem de encontro ao que se esperava de uma
jovem rural. Não faz alusão a cidade de Feira de Santana como um lugar que já tenha
frequentado e nem faz referência a contatos com o que era motivo de preocupação para
as famílias feirenses que se ocupavam com a moralidade feminina. Segundo conta:

há muito tempo vinha gostando do seu primo Rosalvo e que este


sempre lhe fazia proposta de casamento ao tempo em que propunha
ter relações sexuais consigo fato que sempre se negara dizendo-lhe
que ele a pedisse em casamento a seu pai e que depois do mesmo
realizado é que seria sua para sempre, entretanto, José continuava
insistindo até que, em dias do mês de maio do corrente ano, confiada
em suas promessas consentiu que ele a desvirginasse, fato que teve
lugar na caatinga isto em pleno dia e que após o ato referido ainda
tivera relações com a declarante umas duas vezes. [...]. Que José
Rosalvo está mentindo quando diz não ter sido o autor de sua desonra,
apontando como tal o seu primo Ricardo, com quem afirma jamais ter
tido relações sexuais, pois, de consciência tranquila, afirma ter sido
desvirginada pelo seu primo e namorado Rosalvo em quem confiara
com promessas de casamento. 84

Há o exame de corpo de delito confirmando o desvirginamento, a certidão de


nascimento com lavramento recente, o batistério que comprova a menoridade e o
atestado de miserabilidade. Embora com a inicial “Sedução”, este processo caminha
para a discussão da culpabilidade do amigo do acusado e de suas motivações quando
golpeou o pai da vítima com a foice. A investigação da sedução em si perde o destaque
e o processo-crime segue os encaminhamentos naturais dentro das instâncias jurídicas,
instaurando o sumário de culpa com a intimação do acusado e do seu “camarada” por

84
Processo contra S. B. E. – E.: 04; Cx.: 114; Doc.: 2322. CEDOC – Centro de Documentação e
Pesquisa – UEFS, 23fls, GRIFO MEU.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

meio de citação em jornal em duas ocasiões, alguns anos depois. Em juízo, a discussão
ainda se prende a agressão, relegado a um plano secundário o desvirginamento. Em
1960 o processo é finalizado com a absolvição do agressor, sem mencionar o
solucionamento ou não da sedução.

Natural do distrito rural de Pacatu, Francisca 85, brasileira, baiana, sem prole, doméstica,
analfabeta, mestiça, católica, com 13 anos de idade conta que:

Que era namorada de um rapaz Elias filho de Firmino; que ela


declarante era namorada de Francisco filho de Chiquinha; que
terminando o seu namoro que durou muito tempo foi namorar com
Elias; que ela declarante não sabia o dia e a hora que foi desvirginada
porque não tem o mês certo; que ela declarante efetivamente
namorava com Francisco, porém nunca teve relações sexuais com o
mesmo; que a progenitora de Elias pediu a declarante que lhe desse
uma ajuda numa planta de mandioca; que ela declarante indo dar uma
ajuda a mãe de Elias de nome Gerônima e quando chegou a casa da
mesma não encontrou Gerônima, pois só quem estava era Elias; que ai
Elias lhe puxando para o mato, disse que só se casaria com a mesma
depois que conhecesse a declarante como moça; que ai Elias lhe
desvirginou e depois lhe pediu que não falasse com ninguém, que ele
iria preparar os papeis para se casar [...] que teve relações com Elias
muitas vezes.” 86

O pai da vítima – brasileiro, baiano, casado, com quatro filhos, lavrador, pardo, católico
e com instrução primária – presta queixa-crime em delegacia no dia em 27 de setembro
1947. Segundo ele, além de desvirginada, Francisca estava grávida. Ao tomar
conhecimento dessa situação por intermédio de sua esposa, procurou o acusado que,
como de costume nos crimes dessa natureza, negou a responsabilidade.

85
Processo contra S. B. E. – E.: 02; Cx.: 42; Doc.: 686. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa –
UEFS
86
IDEM, 3fls, GRIFO MEU.

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As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Neste exemplar, não há o tradicional exame de corpo de delito que comprove o


desvirginamento e tente precisar a idade da gestação e, embora não siga por completo os
trâmites legais, possui muitas narrativas e informações que dão conta dos trânsitos
rurais da vítima que em muitos momentos faz menção às suas sociabilidades pela zona
rural onde morava, ajudando vizinhas e parentes no trabalho da lavoura e produzindo na
agricultura familiar itens que iriam ser destinados tanto a sua subsistência e de sua
família, quanto ao comércio. Não há menção a passeios públicos, nem sua presença em
festas, mas o fato de ser convidada pela mãe de seu namorado reforça a existência de
laços de solidariedade que justificariam trânsitos entre as moças rurais envolvidas nos
processos dessa natureza. Não menciona dor e sangramentos, nem muito menos aponta
a data do ocorrido, mostrando uma relação diferenciada com o tempo cronológico e sua
demarcação.

Analisando os discursos dos legisladores feirenses e daqueles que tinham o desejo de


dar ordem aos sonhos progressistas, pode ser identificada a cristalização de muitos
projetos que supostamente introduziram novos hábitos de acordo com as transformações
que estavam sendo desenvolvidas. Qual o real alcance deles? O Código de Posturas
Municipal, instrumento regulador já mencionado e construído com o objetivo de dotar a
urbe de um conjunto de preceitos e interdições atingia a quem? Será que na Avenida
Senhor dos Passos e nas muitas caminhadas vespertinas lá efetivadas de fato se
produziam amores, como dão conta muitas narrativas românticas que mistificam a
experiência da modernização da cidade de Feira de Santana? Quais moças, nos
pequenos passeios pelas novas calçadas e jardins do centro urbano compartilhavam
novas formas de sensibilidade e visões de mundo? Será que Heloísa, nascida em 18 de
abril de 1942, doméstica, analfabeta, católica e pobre 87?

Segundo ela descreve, o seu o namoro com o acusado Vivaldo começou no ano anterior
a queixa, 1958, quando o mesmo passou a visitá-la na casa onde trabalhava como
empregada doméstica em Feira de Santana. Nessas muitas visitas, ele se opunha ao seu
emprego e sugeria que a mesma retornasse a Humildes, distrito rural da cidade de Feira,
para morar com sua a família. Embora recusasse a esse seus pedidos, narra que muitas
vezes dirigia-se a esse local para visitar seus familiares. Numa dessas visitas, no período

87
Processo contra S. B. E. – E.: 02; Cx.: 60; Doc.: 1128. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa
– UEFS, 3fls.

104
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

das festividades natalinas do ano de 1958, o mesmo a desvirginou numa cancela


próxima a residência de sua família, com promessas de matrimônio que só se realizaria
caso ela abandonasse o trabalho. Em sua narrativa, ela faz alusão a sangramentos, mas
não faz referências a dores durante ou depois do sexo, embora descreva mais dois
congressos sexuais.

Segundo informações prestadas pela queixosa, a genitora da vítima – mãe solteira com
nove filhos, residente no Sítio das Flores em Humildes - o acusado possuía o costume
de frequentar sua casa acompanhado de um primo, mas deixou de fazê-lo quando a sua
filha foi morar em Feira de Santana para trabalhar como empregada, em meados do mês
de setembro do ano 1958. Essas idas a sua residência voltaram a se repetir quando a
jovem retornou ao seu distrito rural de origem, por volta de dezembro do mesmo ano.
Conta que, durante essas visitas ele mostrava-se muito solicito e interessado na relação.
Pelo fato de possuir uma “venda”, se ofereceu por várias ocasiões para vender “fiado”
a mesma. Despertada a confiança, ela começou a comprar seus víveres alimentícios no
referido local, oportunidade na qual o acusado aproveitou para seduzir sua filha, jovem
que inúmeras vezes se dirigia ao seu pequeno comércio e era por ele acompanhada no
seu regresso, ajudando-a a carregar as compras até próximo da sua residência. Este
costume foi inúmeras vezes repreendido. Segundo a mãe da vítima, o adequado seria
que ele a levasse até a “porta da casa”.

Dias depois dessa reclamação, soube do desvirginamento de sua filha e acionou a


Polícia. O delegado inquire sobre o fato de a menina ter ido trabalhar em Feira de
Santana, insistindo no “perigo” que envolvia a mesma estar fora de casa, longe da
vigilância se seus familiares. Sem testemunhas que pudessem comprovar um
comportamento adequado longe de sua residência e se deus familiares, Heloísa foi mais
uma jovem condenada em nome de práticas que provavelmente não possuía. Não há
menção à sociabilidades urbanas pela cidade, nem mesmo no depoimento das
testemunhas de acusação. Desamparada juridicamente, contando apenas com os
serviços precários da Defensoria Pública, teve sua denúncia indeferida e o acusado foi
inocentado:

105
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Esta autoridade não pode julgar ser o mesmo o verdadeiro responsável


pelo desvirginamento da ofendida, visto ser essa pessoa que vivia de
há muito quase que por sua verdadeira responsabilidade, como seja:
andava a altas horas da noite pela cidade de Feira de Santana sozinha
por onde bem queria e entendia, seguiu sozinha também para a cidade
de Feira de Santana, onde passou uma temporada, dizendo estar
empregada. Que esta autoridade vê-se também sem provas
testemunhais para acusar Vivaldo como o verdadeiro acusado. 88

O indeferimento de seu caso reflete um somatório de motivações onde as dificuldades


de sobrevivência, a ausência de propriedades e a instabilidade econômica somavam-se a
costumes antigos e à dificuldade em lidar com referenciais institucionais pertencentes a
outras camadas sociais. Como provar na Justiça sua honestidade, se ela foi julgada e
condenada pelos padrões de sociabilidade que atingiam possivelmente apenas as
mulheres da elite feirense? Foi justamente dessa forma que a Justiça Pública em Feira
de Santana exerceu seu papel dominador frente às camadas populares, exercendo uma
nítida estratégia de difusão de um modelo familiar e comportamental.

Muitas narrativas de jovens rurais já foram mencionadas e, para finalizar a apresentação


de trajetórias dessa natureza, é relevante que se conheça a experiência de Aurélia89,
brasileira, baiana, moradora do distrito rural de Maria Quitéria, sem filhos, doméstica,
católica, parda, pobre e com 16 anos de idade - comprovados com uma certidão de
nascimento com lavramento no mês anterior a denúncia em delegacia, em 17 de junho
de 1958. Seu processo-crime é um exemplar que, em virtude de muitas folhas
desaparecidas, teve o seu entendimento prejudicado no que diz respeito ao que parece
ser o seu processo adotivo, quando recém-nascida. Essa adoção indica ter sido efetivada
aos moldes legais da época, pois há uma documentação anexada indicando que foi
registrada juridicamente a tutela legal da vítima em favor da denunciante. Não há
maiores esclarecimentos a respeito das motivações da doação, nem sobre os seus
genitores biológicos.

88
IDEM, 22fls.
89
Processo contra S. B. E. – E.: 02; Cx.: 55; Doc.: 948. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa –
UEFS.

106
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Segundo narrativa da responsável legal, esta percebeu alterações emocionais em sua


filha e decidiu pressioná-la, questionando o porquê do seu comportamento abatido e
cabisbaixo. A partir de então, a menina confessou-lhe o desvirginamento no mês de
janeiro do mesmo ano, contando que seu namoro com Edélcio começou informalmente
a partir de investidas do acusado e afirmando que seu relacionamento foi mantido às
escondidas da família. Assevera que o acusado sempre a convidava para manterem
relações sexuais, mas ela sempre rejeitava. Certa feita, quando foi buscar água numa
fonte local às sete horas da manhã, no mês de janeiro de 1958, foi por ele surpreendida e
convidada ao ato sexual. Ele que já queria “fazer-lhe o mal”, aproveitou-se da situação
de vulnerabilidade e agarrou-a, mantendo relações sexuais a beira do referido açude.
Apesar de mencionar sangue em demasia, tendo que “banhar-se” nas águas do local
para remover o excesso objetivando evitar desconfianças em casa, não fez referências a
dor. Diz que dois dias depois foi novamente procurada pelo mesmo em busca de novos
congressos sexuais, condição que ela permitiu até ser inquirida pela mãe.

O acusado Edélcio, brasileiro, baiano, solteiro, lavrador, moreno, pobre, sabendo assinar
o nome, residente no distrito rural de Canavieras, nega a autoria do desvirginamento e
narra que manteve relações sexuais com a mesma, mas a convite dela, como muitos
outros homens do lugar: “Susinha, Feliciano, Francisco, Altino, Lídio, ‘Belisco’ e
90
Valdo” . Conta também que a mesma o convidara utilizando as seguintes palavras:
91
“Danzinho vamos fazer um bocadinho aqui, pois não sou mais moça” . Conta que se
aproveitou para manter relações com ela da mesma forma como muitos outros homens
da região. As testemunhas de acusação arroladas também reproduzem as mesmas
informações. Todas afirmam que a vítima possuía vida livre, relacionando-se com
muitos rapazes. A primeira delas assevera que: “manteve relações com a vítima na casa
de farinha da mesma a convite dela”; a segunda, por sua vez, conta que praticou sexo
também com a vítima e assombra-lhe a procura pela Justiça por parte da família de
Aurélia, pois na zona rural de onde vivem esta é publicamente conhecida como uma
menina prostituída; a terceira reitera os convites da jovem a ele e aos demais homens
mencionados, além de contar que manteve congressos sexuais no quintal da casa da
própria vítima, bem como “nos matos”, quando a mesma cortava lenha.

90
IDEM 13fls.
91
IBIDEM.

107
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Em que se pese a veracidade dessas narrativas, o fundamental em cada versão abordada


não é desvendar o que realmente se passou – apesar de isto ser possível em algumas
trajetórias – e sim buscar compreender como se produzem e como se explicam as
diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada
história. Os diferentes discursos produzidos por esses sujeitos são avaliados neste
contexto como símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar. Os sinais,
muitas vezes longínquos, emitidos por esses indivíduos nos processos são ambíguos e
contraditórios. Aguçando a percepção, talvez se possa sentir os gestos desalinhados do
padrão sexual moral, revelando um pouco da “realidade” dos fatos.

Quiçá Aurélia tenha se relacionado com todos esses homens; com alguns deles; ou,
talvez, até mais do que eles. É possível que tivesse o comportamento acusado, da
mesma forma como tudo pode ter sido construído de forma a desmoralizá-la, já que
eram testemunhas aliadas ao acusado. De toda sorte, nenhuma delas mencionou ter
conhecido a vítima ou ao menos ter entabulado conversas no centro urbano da cidade de
Feira de Santana. Aurélia não conheceu esses homens, nem se relacionava com eles no
cinema, nos bailes ou nas festividades urbanas. Seus supostos envolvimentos se deram
com rapazes rurais, sujeitos da comunidade onde vivia. A relativa emancipação da
mulher feirense, sua livre circulação nas ruas e praças, sua entrada no mercado de
trabalho, a criação de um espaço público literário, a solicitação para que frequentasse
reuniões sociais, restaurantes da moda ou temporadas líricas não contemplaram a
experiência de Aurélia, mesmo dentre os discursos daqueles que supostamente estariam
interessados em detratá-la.

108
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

III.1 – Seduções “Modernas”?

Cássia - jovem de quatorze anos de idade, natural da Vila de Humildes, mas residente
em Feira de Santana à Rua Sete de Novembro, solteira, empregada doméstica - segundo
denúncia feita por sua madrinha em seis de julho de 1942 foi desvirginada por Lauro.
Ele, aproveitando-se de sua ausência em casa, adentrou a sua residência e seduziu a sua
afilhada, mantendo com ela relações sexuais. De acordo com a vítima, este era o seu
namorado e apenas cedeu por que o mesmo fizera promessas de casamento. Os trâmites
legais do processo trouxeram à tona alguns hábitos comportamentais controversos desta
jovem. Segundo testemunhas e o próprio acusado do crime, Cássia tivera outros
namorados, inclusive um empregado na Estrada de Rodagem Rio - Bahia com quem,
além de conversar em “lugares impróprios”, fugiu de casa “levando dias fora” por
causa da recusa da madrinha em aceitar o relacionamento. Precisou ser entregue de
volta à sua responsável pela Polícia. O advogado do réu em favor do seu cliente alegou:

“Não resta dúvida, pela prova dos autos que o exame foi procedido92
em uma mulher já poluída, cuja vida não era protegida pelo recato.
Fugiu certa feita com José, fato que foi para a polícia, e acredita que
daquela feita nada houvesse 93... apesar de [...] dormir fora de casa.

Ora, Sr. Dr. Juiz de Direito, que valor pode ter a acusação em que a
suposta queixosa, vem de revelar tais fatos, praticados por uma mulher
sem o devido recato, despida de pudícia, fugindo a noite para
encontros licenciosos, com seus amantes, a fim de satisfazer seus
desejos lúbricos, materializando a amor sem aqueles elos de
espiritualidade?

São elas próprias que estragam a sua moralidade e o valor intrínseco


da sua virgindade, se entregam a praticas indecorosas, vão a

92
O exame aqui aludido é a perícia médico legal, imprescindível em qualquer processo desse tipo visando
à apuração da prática de delitos sexuais.
93
Grifo no original.

109
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

passividade, que é o início da degradação da abdicação da


personalidade.[...]

São mulheres, livres, como muitas, que pensam que agem, se


conduzem noites a fio pelas ruas desertas entregando-se a
sensualidade, porque não é interessante a vida humilde e recatada.

[...] como quer a queixosa, e afirmam as ultimas testemunhas,


buscava outros homens para recalco dos seus apetites sexuais,
entregando-se ao silencio noturno...” 94

Embora seja considerável que ele tenha fantasiado ou exagerado um perfil revelador de
uma procedimento não-honesto para vítima visando proteger o seu cliente, as palavras
do advogado possuem um eco no imaginário social e faz da mulher ofendida a
responsável pelo ato praticado pelo homem. Contudo, como o desenrolar do inquérito
indica, os conceitos morais, os padrões comportamentais de conduta, namoro e recato
não faziam parte da vida de Cássia. Gestados na elite, muitos ideais eram comumente
generalizados para todas as classes sociais, criando contrastes e estabelecendo
comportamentos desviantes, como foi considerado o desta jovem.

Em que se pese seu condenado trânsito pela cidade, mais agravado ainda pelas suas
fugas e horários noturnos com o intuito de estar fora de casa e namorar tranquilamente
sem a autorização de sua responsável, no processo de Cássia também não há menção a
presença dessa jovem nas ruas, praças e demais locais considerados adiantados no
município de Feira de Santana. A citação acima menciona o seu trânsito por “locais
ermos”, durante o “silêncio noturno”, dormindo fora com seu namorado no alojamento
dos trabalhadores da estrada de rodagem ainda em construção. Não faz alusão, como se
houvera de esperar, sobre o seu desfile solitário e descompromissado pela urbanizada
Avenida Senhor dos Passos ou sua presença nos filmes exibidos pelo Cine Íris,
sociabilidades essas consideradas modernas e alvo de constante preocupação e
vigilância.

94
Processo contra V J.L. – E.: 02; Cx.: 59; Doc.: 1124. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa -
UEFS.

110
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

A jovem Larissa95, por sua vez, residia na área urbana do município, no bairro chamado
Ponto Central. A denúncia foi feita pela irmã da vítima, sua responsável, uma vez que
os pais eram falecidos. Segundo narra a denunciante, várias vezes alertara sua irmã a
respeito do perigo da relação que se desenvolvia com Luciano, o acusado. No auto de
declarações no dia 04 de novembro de 1949, afirmou que:

Encontrou Luciano conversando com Larissa na porta da declarante e


por isso falou com o mesmo, dizendo que já havia reclamado com
Larissa por vir demonstrando ter qualquer coisa com ele Luciano,
pedindo ao mesmo Luciano que deixasse de assediar sua irmã pois
sabia que não queria fazer a felicidade dela. 96

Após esse episódio, relata que ambos confirmaram que o desvirginamento já havia
corrido e que a jovem estava grávida. Diante de tais informações, decide procurar a
Polícia. A vítima, Luciana, em suas declarações fala que não se lembra exatamente o dia
do desvirginamento, mas conta que estava em casa com a irmã do acusado e uma outra
amiga. Ambas saíram do cômodo onde estavam e ela ficou só com o acusado, que a
seduziu e, com força, desvirginou-a. Assegura que logo após este acontecimento a sua
irmã chegou e encontrou a casa às escuras e apenas os dois no seu interior. Repreendeu-
a, mas tudo “ficou por isso mesmo”. O depoimento do acusado nunca foi colhido, pois
o mesmo evadiu-se para um paradeiro desconhecido.

Duas testemunhas foram arroladas pela acusação e ambas são irmãs do acusado. Seus
depoimentos dão mais detalhes do que a própria vítima a respeito daquele que teria sido
o dia no qual possivelmente ocorrera o desvirginamento e a sedução. Segundo narram,
estavam todos na frente de casa da vítima conversando diante de uma fogueira, pois
seria uma semana de festas juninas. A vítima levantou-se e disse que iria a cozinha
beber um copo d’água. Sentindo a falta da mesma e estranhando a demora no seu

95
Processo contra V J.L. – E.: 04; Cx.: 91; Doc.: 1784. CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa -
UEFS.
96
IDEM, 5fls.

111
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

reegresso, ambas dirigiram-se a cozinha à sua procura e depararam-se com o casal em


uma atitude considerada suspeita, “indecorosa”.

Após o depoimento de suas irmãs, o acusado é intimado em inúmeras ocasiões, sem ser
encontrado. Há inclusive uma notificação em jornal, buscando alertá-lo, mas em vão.
Ambos, acusado e vítima, são menores de idade – 14 e 17 anos respectivamente. A
morosidade da Justiça Púbica impede a investigação satisfatória do acontecido. Dois
anos depois, quando novamente as irmãs do acusado são ouvidas em juízo, durante o
sumário de culpa, informam que a Larissa viveu amasiada apenas um mês com o
acusado e que se separaram, posteriormente. Afirmam, então, que naquele momento a
vítima encontra-se no meretrício, tendo inclusive dois filhos, um deles abandonado na
porta da casa de uma das duas.

Os discursos dessas testemunhas que asseveram a prostituição para a vítima Larissa


respaldam-se numa dicotomia muito debatida entre pesquisadores que se debruçaram
sobres crimes sexuais em outras localidades, como CAUFIELD, (2000); CHALHOUB,
(2001); ESTEVES, (1989); FAUSTO, (2001); FERREIRA FILHO, (1999):

não havia espaço para meio-termo ou meias-palavras. Ou as pretensas


ofendidas se comportavam como mulheres honestas e higienizadas
dentro dos padrões estabelecidos (saindo pouco, e só o fazendo
quando acompanhadas) ou se caracterizariam como prostitutas. 97

Dessa forma, a desobediência às normas da identidade social, dos juristas e dos


higienistas e da sociedade em geral atrelava as mulheres solteiras e desvirginadas o
estigma da prostituição. Não é possível precisar, a partir dos autos, se a jovem
mencionada enveredou por este caminho, mas o fato é que a emancipação desencadeada
pelo desvirginamento demonstra que muitas mulheres pobres pouco tinham de passivas
frente às imposições sociais e a figura da prostituta emergia como um poderoso
fantasma no imaginário social. De toda sorte, embora tenha sido uma jovem urbana, seu

97
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, 53p.

112
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

namoro, seu desvirginamento, seus congressos sexuais deram-se na periferia onde


morava e sua sedução dentro de sua casa, durante uma festividade típica das cidades
nordestinas, como Feira de Santana. As testemunhas que possivelmente desmoralizaram
a vitima não mencionaram a sua vida urbana em contato com a urbanização, nem sua
entrada nas fábricas, escritórios, escolas, no comércio ou nos serviços de infraestrutura
urbana que ameaçavam subverter os códigos cristalizados de sociabilidades e de
participação feminina na vida social.

A experiência de algumas pouquíssimas jovens, contudo, serve de exemplo para


identificar que sociabilidades urbanas advindas do progresso, de fato, lentamente
atingiam sujeitos femininos das camadas populares, promovendo novos contatos entre
estas e os rapazes. Nesse ínterim, pode se inserir a trajetória de Cacilda98, jovem
feirense de 17 anos de idade desvirginada pelo seu namorado André, segundo a
denúncia feita por sua mãe em cinco de fevereiro de 1964. As investigações
evidenciaram facetas do comportamento da jovem que põem em cheque o ideal de
recato e reclusão e exemplificam o que foi aludido no capítulo anterior acerca da
chamada “virgindade moral”, valorizada pelos juristas de então. Ao contrário do que
disse genitora, as testemunhas de acusação e a própria Cacilda, esta não era considerada
bem comportada e era acostumada a filar aulas e frequentar demasiadamente o “ponto
da Kombi” na cidade, fazendo passeios furtivos e puxando “conversinhas
interessantes” com os motoristas.

Com semelhante histórico comportamental, restou a jovem a culpabilidade pelo crime


ao qual sua mãe denunciara André. Teve a sua denúncia indeferida e o acusado foi
inocentado. No pedido de suspensão da prisão preventiva do réu, o advogado de defesa
em favor do seu cliente afirmou:

A vítima, segundo se pode deduzir dos depoimentos de sua genitora,


seu próprio e do interrogado, não possui o elemento moral, para se
considerar uma moça recatada. Basta que se leiam os depoimentos das
testemunhas [...] para se observar que se trata de uma menina que
possuiu um noivo por quatro meses [...] e um namorado, também por

98
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra V. M. C. – E.: 03; Cx.: 63;
Doc.: 1181.

113
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

pouco tempo. Alem disso, gostava de tomar kombis de vários


motoristas, de Manoel, Oscar, ao ponto, tamanha a frequência da
mocinha, de o chefe do serviço reclamar. [...] Assim procedendo esta
moça não pode alegar que foi desvirginada pelo réu, como não se
pode admitir e caracterizar, inicialmente a figura da SEDUÇÃO 99.

[...] Como se vê [...] como se admitir honra, recato, pudor,


ingenuidade, inexperiência na mulher virgem que [...] deixa que este
rapaz lhe tire as calças (ponto vulnerável as mulheres de vergonha) e,
em seguida, pratique a cópula? 100

Em seu depoimento ela deixa transparecer indícios de que houve por parte dela atitudes
que denunciam interesse no namoro. Segundo narra, ia à escola com sua irmã, que
estudava em uma unidade escolar diferente da sua. No dia em que foi desvirginada
conseguiu filar aula e retornar a escola sem que sua mana desconfiasse de nada. Poderia
até ser virgem anatomicamente, com o hímen intacto no momento do encontro com seu
sedutor, mas para a jurisprudência de então, não possuía o importante elemento da
“virgindade moral”. Considerada dissimulada, ardilosa e esperta por conseguir enganar
muitos para poder transitar a vontade pelo centro urbano, não poderia ser tida como uma
moça ingênua. Embora possivelmente anatomicamente virgem, ela era moralmente
corrompida e não poderia ser facilmente seduzida.

O seu trânsito pelas ruas e artérias da cidade, pegando transporte coletivo com
motoristas desconhecidos era o tipo de comportamento desaprovado pelos reformadores
para as moças de então. Não há menção no seu inquérito a sua presença em bailes,
cordões de micareta ou festas, todavia era uma jovem que aproveitava da sua liberdade
oriunda da possibilidade de estudar e trabalhar um turno numa movelaria no centro
comercial para divertir-se com passeios públicos e “conversinhas interessantes” com
homens desconhecidos. No cenário público, ela não se apresentava recatada e foi
seduzida pela liberdade que possuía. Sem a devida orientação, corrompeu-se.

99
GRIFO NO ORIGINAL.
100
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra V. M. C. – E.: 03; Cx.: 63;
Doc.: 1181.

114
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

Embora a corrupção de seus hábitos tenha se dado em virtude de um contato


considerado equivocado com os avanços do progresso feirense, o seu desvirginamento,
não teve a sua efetivação no cenário urbano, nem nos muitos locais centrais que ela
costumava frequentar assiduamente. Seu contato sexual foi realizado em um cenário
rural. Conforme narra, seu sedutor levou para um passeio de carro e dirigiu o veículo a
um lugar ermo e afastado do perímetro urbano. Segundo ela, a Kombi foi estacionada
em uma zona rural distante, numa localidade conhecida como Limoeiro.

Ainda a respeito da citação acima, embora seja uma releitura dos fatos narrados pela
jovem feita pelo advogado de defesa do acusado, esta fala exibe elementos que
exemplificam claramente que os sujeitos jurídicos aceitavam a contraposição da
ingenuidade das moças honestas e de família ao cinismo das mulheres não submetidas à
vigilância familiar, as quais eram consideradas facilmente corruptíveis e dissimuladas.
Neste sentido, ainda acerca do momento do desvirginamento, o mesmo advogado
ironiza:

Com um namoro de 23 dias, a vítima cede ao primeiro convite para a


cópula, mantendo no interdício do inicio do namoro e da cópula,
encontros furtivos. Não existia laço amoroso, nem namoro alongado.
Logo, como se admitir a figura da sedução? Como se admitir a
culpabilidade do réu? Como se poder manter preso André por um
crime que não cometeu? 101

Uma moça honesta não cederia tão imediatamente aos impulsos sexuais. Não era o
desejo que a impelia de ter relações sexuais, mas sim a esperteza masculina. Ele se
impõe, ele penetra, ele machuca, ela a faz sangrar, ele domina e ele é o único a
satisfazer-se. Ela sente, sangra e se submete pelo amor e pela inexperiência. Por não
encontrar-se dentro dos padrões de sociabilidades femininas da sociedade feirense - ser
dada a filar aulas, realizar passeios furtivos de Kombi e trabalhar fora - Cacilda teve seu

101
CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra V. M. C – E.: 03; Cx.: 63;
Doc.: 1181.

115
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

namoro e sua sexualidade utilizadas de forma a retirar dela a proteção judicial. Como
diz Maria CORREA (1983): “os atos se transformam em autos, os fatos em versões” 102.

102
CORRÊA, Mariza, Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro,
Graal, 1983, 33p.

116
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dizer tão somente que a cidade de Feira de Santana de meados do século XX progredia
e que passava por significativas mudanças urbanísticas, arquitetônicas e no campo da
moral e das sociabilidades, seja de homens e mulheres, não explica com facilidade as
experiências de vida das muitas moças envolvidas nos processos crime de sedução. Suas
origens e suas trajetórias entram em conflito com as muitas místicas da modernidade
feirense, servindo de elemento para a problematização de muitas noções arraigadas
acerca do crescimento e transformação da cidade de Feira.

O fenômeno da modernidade neste município e o afamado advento de muitas


sociabilidades consideradas avançadas - muito aclamados inclusive no senso comum,
para além do universo acadêmico – assumiram conotações diferenciadas e bastante
específicas, como se pode inferir a partir da documentação. De fato a cidade crescia, sua
condição material alterava-se e os dados demográficos, entre outros, servem de
substrato empírico para essa interpretação, contudo é importante que se pese bastante as
dimensões desse desenvolvimento, questionando especialmente suas dimensões sociais
e humanas, refletindo o alcance dessas alterações para os variados segmentos sociais da
cidade. Realmente havia no recorte proposto alguns avanços importantes, no entanto
também são identificáveis inúmeras formas de resistências à chegada da vida moderna,
muitos resquícios da tradição rural do município e, claro, os inevitáveis choques de
gerações.

A análise dos processos de sedução evidencia a consolidação de importantes mudanças


no saber médico e no saber jurídico a respeito da anatomia e da virgindade feminina. O
judiciário feirense não objetivou construir uma caracterização das meninas seduzidas a
parir de sua anatomia. Ausência do hímen, dor e sangue não são elementos que ganham
destaque entre o judiciário local. Seguindo a tendência da tipologia criminal do código
de 1940, as investigações e os julgamentos se deram a partir da análise dos
comportamentos e do cotidiano, abandonando as antigas referências aos “elementos
objetivos” do anterior crime de defloramento. Essas investigações deram suporte a
problematização dos limites progresso feirense em múltiplos aspectos.

117
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

A atenção dispensada à análise do cotidiano dos sujeitos populares envolvidos nas


investigações criminais em torno do crime de sedução, por outro lado, possibilita inferir
que os ofensores e também as vítimas, ao falarem da dificuldade na penetração ou falta
dela durante a prática sexual, bem como dos sangramentos e dores, compartilhavam da
ideia de “virgindade fisiológica”. Essa imagem, para o senso comum, seria necessária
para a identificação de mulheres socialmente consideradas honestas, honradas, muito
embora esses envolvidos fizessem usos diferentes desse elemento.

Como se pode identificar ao longo dessa dissertação, a multiplicidade dos discursos


encontrados em Feira de Santana das primeiras décadas do século XX tiveram como
alicerce as relações socioculturais que se almejava significar e ressignificar diante do
curso do desenvolvimento da cidade. Projetos e atitudes que estiveram presentes no
processo da modernidade delinearam-se notavelmente na percepção e no propósito de
viver um novo tempo. Esta realidade de transições trouxe consigo a necessidade de
proteger a “ingenuidade” feminina, estabelecendo interdições e regras, compondo uma
moralidade interessada em despertar o sentimento da responsabilidade e de observância
da moral familiar. Na discussão desta peculiar modernidade, as mulheres
desempenharam papel central na elaboração da imagem de Feira de Santana como uma
cidade moderna e honesta. As moças honradas e modernas foram utilizadas para
acomodar os padrões normativos de conduta dos sujeitos e para esboçar papéis sociais
destinados às identidades femininas e masculinas. Temas como sexualidade das jovens,
a virgindade e as sociabilidades foram avaliados sob o prisma dos valores tradicionais,
estabelecendo um convívio entre tradicional e o moderno marcado por tensões.

Todavia, analisando os casos de sedução individualmente, é possível perceber que a


vida tradicional e a sexualidade das moças envolvidas não passavam por mudanças
significativas, não se caracterizavam pelos signos da modernidade, alvo de preocupação
por parte das elites deste local. Essas meninas, sem sombra de dúvidas, desafiavam,
mesmo que inconscientemente, as noções de honra, recato, virgindade e família, já que
se relacionaram afetiva e sexualmente fora dos padrões estabelecidos, no entanto suas
trajetórias mostram que quase nenhuma relação mantiveram com a afamada
modernidade desta cidade. A documentação pesquisada permite que se problematize um
pouco os limites do avanço material e cultural do período. A partir dela, é possível
inferir que as novas sociabilidades surgidas e alarmadas não condizem com as
trajetórias das meninas envolvidas nos processo de sedução. Em sua maioria, as vítimas

118
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

dessa tipologia criminal eram formadas por mulheres pobres, moradoras de bairros
afastados e distritos rurais que não foram contemplados pelos avanços e transformações
materiais identificadas. A condição social dessas jovens, a sua relação com o mundo do
trabalho e mesmo a tradição familiar não permitiam que ingressassem nos avanços
identificados no período. Ao se analisar a trajetória de muitas jovens, percebe-se que
eram alheias as novas sociabilidades feirenses. Nesse sentido, pode-se depreender que o
processo de modernização em Feira de Santana pode ser problematizado a luz de novos
olhares, novas pesquisas e novos documentas. Do ponto de vista da moral sexual e do
avanço das urbanidades, a modernidade feirense foi uma concepção, representação ou
criação simbólica, produzida pelos grupos sociais para significar uma série de
comportamentos e atitudes a si próprios atribuídos.

119
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

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03; Cx.:83; Doc.: 1587 - (1959);

128
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A. S. P. \ E.:


05; Cx.:129; Doc.: 252 - (1958);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra F. P. P. \ E.:


04; Cx.:91; Doc.: 1761 - (1960);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra D. P. \ E.: 04;


Cx.:103; Doc.: 219 - (1952);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra R. C. R.\ E.:


01; Cx.:05; Doc.: 107 - (1959);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra R. F. R. \ E.:


03; Cx.:61; Doc.: 1147- (1941);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra V. S. \ E.: 04;


Cx.:94; Doc.: 1041 - (1945);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra E. O. S. \ E.:


01; Cx.:22; Doc.: 419 - (1954);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra B. G. S. \ E.:


04; Cx.:10; Doc.: 223 - (1953);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A. S. S. \ E.:


31; Cx.:88; Doc.: 1712 - (1960);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra F. O. S. \ E.:


01; Cx.:09; Doc.: 188 - (1941);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra R. P. S. \ E.:


04; Cx.:95; Doc.: 1998 - (1948);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra M. C. S.\ E.:


02; Cx.:53; Doc.: 996 - (1949);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra M. S. S. \ E.:


04; Cx.:95; Doc.: 2005 - (1954);

129
As “Descabaçadas” do Sertão: O Crime de Sedução e as Sociabilidades da Cidade Princesa 1940\1960

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A. P. S. \ E.:


02; Cx.:34; Doc.: 584 - (1959);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A. S. \ E.: 03;


Cx.:83; Doc.: 1617 - (1948);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra M. M. S. \ E.:


02; Cx.:59; Doc.: 1120 - (1949);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra P. F. S. \ E.:


02; Cx.:57; Doc.: 1030 - (1957);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra C. E. S. \ E.:


02; Cx.:59; Doc.: 1113 - (1958);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra I. F. S. \ E.:


02; Cx.:25; Doc.: 870 - (1959);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra G. A. S. \ E.:


03; Cx.:61; Doc.: 1149 - (1959);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra F. L. S. \ E.:


05; Cx.:132; Doc.: 252 - (1953);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra M. S. \ E.: 05;


Cx.:121; Doc.: 242 - (1969);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra G. T. \ E.: 04;


Cx.:95; Doc.: 1197 - (1948);

CEDOC – Centro de Documentação e Pesquisa - UEFS. Processo contra A. T. \ E.: 02;


Cx.:56; Doc.: 1991 - (1949).

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