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Vis la Vie!

Na vibrante e misteriosa Nova Orleans, vivia um zumbi muito


peculiar, chamado Julien Arquette. Ele não era um zumbi comum,
daqueles infectados por algum vírus criado em laboratório. Não,
Julien foi trazido de volta dos mortos pela encantadora arte do
Vodu, e foi somente após sua primeira morte que ele descobriu o
valor da vida.
Veja bem, a coisa toda não foi mais que mero acaso. Julien
apenas cometeu o erro de aceitar um sanduíche de Madame
Zepherine, uma sacerdotisa vodu viajante, que havia parado seu
trailer próximo ao condomínio dele no Garden District, em troca de
consertar seu vazamento no telhado. Mal sabia ele que o
sanduíche continha um ingrediente extra - uma pitada de Pó de
Zumbi. Uma mordida, e após uma morte horrível de intoxicação
alimentar, lá estava ele, reanimado. Ao retornar ao local onde o
trailer havia estado, Madame Zepherine havia fugido sem deixar
nada para trás, e ele nunca teve a chance de agradecê-la.
É que a vida humana nem sempre nos dá a perspectiva que
deveria sobre as coisas simples da vida. Apreciar coisas pequenas,
como se sentar em silêncio sob as estrelas ou sentir o cheiro da
chuva, são coisas facilmente negligenciadas ou esquecidas no dia
a dia caótico de quem precisa trabalhar para comer e sobreviver. E
agora, não havia nada disso. Por sorte, ele não possuía vontade
alguma de devorar cérebros, embora o apreço pelo sabor da
comida havia diminuído drasticamente, é claro, com a exceção dos
açucarados Beignets da padaria. Mas com o tempo, e o clima
úmido da cidade, ele notou que seu corpo começava lentamente a
mostrar sinais de deterioração.
Como esperado de um zumbi moderno, ele pensou em uma
solução moderna. Internet. Mas uma longa busca mostrou que não
haviam comunidades de humanos reanimados em nenhuma rede
social, e o fato dos zumbis criados por vírus serem considerados os
únicos “zumbis de verdade” era realmente frustrante. Seria esta a
desvantagem de seu estado? Ser extremamente solitário? Ainda
assim, ele buscou ajuda, descrevendo seu problema em detalhes,
em um grande fórum público. As primeiras respostas foram apenas
comentários de pessoas que acreditaram que aquilo tudo era
apenas uma história inventada. Até que uma mensagem privada
chegou. Era uma garota inglesa, que vivia em alguma parte da
Europa, e que, sem perguntar muito mais, apenas deu uma
solução inconvencional para seu dilema de decomposição.
Embalsamamento. Claro, aquilo fez muito sentido. Ele não tinha
tido tempo de realmente ser encontrado após morrer, logo não
havia sido embalsamado. Ela enviou um endereço, e um número
de telefone, e disse que aquele agente funerário poderia ajudá-lo.
Sem se despedir, ela desapareceu.
Não havia muito em Nova Orleans para Julien, embora ele
realmente amasse o clima, a cultura e a autenticidade do local.
Então, com suas últimas economias, ele pegou seu querido amigo
felino Meia-Noite, algumas roupas e entrou no primeiro voo que
conseguiu. As mudanças já não eram tão assustadoras assim, já
que não havia muito a perder. Foi fácil encontrar a casa. Era uma
construção vitoriana em um bairro residencial de alto padrão, e a
primeira pessoa que ele viu quando a porta do consultório se abriu
foi ela. Misteriosa e vestida de preto, com mais piercings em seu
rosto do que dedos nas mãos. Maquiagem pesada, cabelos
escuros, presos em dois coques meio espetados, e uma franja em
forma de V, com pontas pintadas de verde-limão. Realmente, uma
deusa. Tão, tão (surpreendentemente) cheia de vida, sangue
correndo por suas veias pulsantes sob a maquiagem que tornava
sua pele tão mais clara. Ela soube imediatamente quem ele era, e
o fez entrar e sentar. Um homem bem mais velho, de cabelos
brancos e óculos redondos de armação de metal, vestido com um
uniforme impecavelmente branco apareceu, e ela brevemente
explicou a situação.
A primeira vez que Julien passou pela máquina de
embalsamamento foi notavelmente desconfortável. O procedimento
é, em resumo, a substituição total do sangue por uma solução de
formaldeído e água, e a adição de um fluído conservante para as
vísceras. Não é nada agradável de ouvir, e menos ainda de
experienciar. Além disso, o custo era bem alto, mas por sorte, a
primeira foi por conta da casa. Se sentindo renovado, e com uma
aparência claramente mais “viva”, ele ficou feliz em saber o nome
de sua benfeitora: Charlotte. As conversas fluíam bem, e era muito
bom não se sentir sozinho no mundo, se sentir finalmente
compreendido. Charlotte compartilhou um pouco sobre sua vida,
explicando que sua mãe também havia sido vítima incauta de uma
maldição vodu, e havia se tornado um cadáver ambulante anos
antes. Seu pai cuidou muito bem dela, embalsamando-a
cuidadosamente a cada mês até o dia em que ela resolveu que já
era hora de descansar, e ser cremada.
Julien nunca havia considerado que esta era uma opção. Fora
o desconforto mensal do embalsamamento, não haviam grandes
desvantagens sobre sua vida pós morte, mas deveria ser diferente
para casais. Ele olhou sonhadoramente para Charlotte, seu sorriso
amigável e seus lábios negros como o pelo de Meia-Noite. Como
seria se… O toque do celular dela os interrompeu, e ela sorriu
olhando ao redor. Logo uma mulher alta, com roupas sociais e
cabelos negros se aproximou, e cumprimentou Charlotte com um
beijo carinhoso. A garota apresentou a namorada, chefe do
departamento de polícia, que apertou a mão cadavérica de Julien
com firmeza. Elas não tardaram a se despedir, deixando o
endereço do local que Charlotte havia indicado que ele ficasse.
Não haviam grandes desvantagens, era verdade… Mas
aparentemente um coração ainda se quebra, mesmo depois que
para de bater.

O miado despreocupado de Meia-Noite na caixa de transporte


assim que Julien transpassou aquele portão de metal preso aos
muros baixos da mansão foi seguido de um arranhar de leve no
ferrolho que significava que ele estava pronto para sair. Colocando
a caixinha no chão, ele atendeu ao pedido, e observou a pelagem
preta desaparecer pelo mato alto que cobria os jardins. Olhando
para a grande construção de atmosfera sinistra que se prostrava à
sua frente, ele sorriu. Tinha algo da sua antiga vida que ele
gostaria de continuar, e isto era a restauração e reforma de casas
antigas. Haviam centenas delas em Nova Orleans, e aquele era um
projeto gigantesco, que demandaria muito, muito tempo – algo que
ele agora tinha de sobra. Ele pegou a caixinha de transporte do
chão, e fez um estalido com a língua, o que fez Meia-Noite retornar
imediatamente dos fundos e esperar por ele na varanda. Como que
convidando-o a entrar, a porta se abriu, e, sem medo, ele adentrou
na escuridão, seguido pelo felino, que lançou um último olhar para
o jardim, de onde todo tipo de sombras negras os observavam em
silêncio.

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