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Ficha Técnica

Título: O Último Europeu – 2284


Autor: Miguel Real
Capa: Rui Garrido
Edição: Maria do Rosário Pedreira
ISBN: 9789722056526

Publicações Dom Quixote


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O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.


Para a Filomena, o David,
a Inês, a Bebé, o Alfa e a Noa,
pelo muito que lhes devo.

Em homenagem a Thomas More,


nos 500 anos da publicação de
Utopia, em 1516.

Para a Patrícia Portela e o José Eduardo Reis,


que me deram a ideia em 2012.
PRIMEIRA PARTE
I

OS ÚLTIMOS EUROPEUS

A minha função de Reitor, membro superior da direcção dos museus da


História da Europa, tem-me feito conviver com espólios ancestrais,
autênticas relíquias do passado, que não me canso de contemplar,
espantando-me, tal a barbaridade primitiva de que são compostos.
Entre eles, o livro, uma das preciosidades provindas de um tempo
europeu incógnito, objecto que, aos poucos, fui aprendendo a manusear, a
seleccionar pelo título e pelo conteúdo impresso ou a apreciar pelas
ilustrações, descobrindo, nos seus caracteres a tinta preta ou nas suas
pinturas realistas, mundos reais e fictícios, históricos e ilusórios,
personagens maravilhosas ou astuciosas, que têm aberto – e muito – o
horizonte do meu conhecimento do passado.
Para dizer a verdade, apaixonei-me pelo livro, objecto ausente neste meu
tempo, dominado pela comunicação mental e pela leitura em linguagem
Universalis projectada em ecrãs informáticos.
Os nossos museus abundam de livros, uns corpos materiais feitos de pasta
sólida e dura de celulose, designada por «papel» (se fechados do tamanho
de uma mão, se abertos de duas mãos). No papel, os nossos ancestrais, com
uma tinta líquida, usando um instrumento designado por «caneta»,
registavam as suas reflexões e os seus peculiares modos de vida,
transpostos, por via de caracteres móveis de chumbo ou de computadores,
para cadernos tipográficos e livros.
Juntavam-nos às centenas, aos milhares, mesmo aos milhões, em edifícios
apropriados, as Bibliotecas, onde os nossos ascendentes acorriam para
estudar os tempos passados.
Outros, comprados em lojas denominadas Livrarias, eram levados para
casa, constituindo objecto de distracção para adultos, como os brinquedos o
eram para crianças.
Tudo cabia dentro do livro, tanto a formação mais especializada como o
divertimento mais atrevido, ou, ainda, a reflexão mais espiritual.
Com efeito, constituía para os nossos antepassados um autêntico objecto
maravilhoso, a que atribuíam uma importância desmesurada, genuíno
repositório da cultura de cada uma e de todas as épocas desde a criação dos
lendários Impérios Fenício e Grego, no Mediterrâneo.
No tempo presente, na Nova Europa, espantar-me-ia que algum dos meus
contemporâneos reconhecesse o significado da palavra Livro, com
excepção, evidentemente, dos Reitores que, como eu, se debruçam sobre o
passado, mantendo viva a memória de antigas civilizações.
Admirar-me-ia que os nossos Cidadãos Dourados, a maioria da população
dos Conglomerados, soubessem interpretar a palavra Livro sem necessidade
de activar a sua Enciclopédia Neuronal.
O mesmo direi dos instrumentos que lhe estão intimamente ligados, como
caneta, lápis, tinta, papel, ou, recuando mais ainda, cálamo, pena, estilete,
papiro, manuscrito, palavras decerto correntes no seu tempo mas hoje
praticamente desconhecidas.
Desde há 150 anos que projectamos e registamos o nosso pensamento no
Grande Cérebro Electrónico cuja função é prestar ordem sintáctica e lógica
aos imperfeitos raciocínios humanos, aformoseando-os segundo os
preceitos da Grande Ordenação.
A escrita em papel tornou-se, desde então, desnecessária, foi, aliás,
considerada um acto de barbaridade, devastador de florestas.
Vingou a escrita mental.
Ninguém sabe hoje escrever segundo este antigo modo senão os
hermeneutas museológicos como eu, que interpretam e esclarecem o
espólio dos museus relativos aos tempos grosseiros do passado.
Ninguém sabe escrever porque ninguém precisa de escrever.
Toda a nossa escrita é mental.
Escrever para nós significa o acto de transferência mental dos nossos
pensamentos individuais para um computador, que os regista e grava e, caso
necessário, no-los oferece num ecrã de computador em linguagem
Universalis.
As modelizações informáticas do ADN, criadoras do hipercórtex, foram
preparadas para registar os nossos pensamentos e os enviar mentalmente
para os nossos companheiros por via do Grande Cérebro Electrónico, que
nos aconselha.
Basta indicar-lhe as condições sociais e existenciais em que nos
encontramos e os resultados que desejamos, ou, na sua terminologia, a
«situação» e a «finalidade», e ele conversa connosco, responde-nos
mentalmente se sim, se é possível, como, quando e o que devemos fazer
para que os nossos desejos se realizem tendo em conta as necessidades de
toda a sociedade.
É considerada um acto caprichoso, fútil e herético uma decisão individual
que não tenha em conta os ditames do Grande Cérebro Electrónico, ou seja,
os seus «aconselhamentos», que, por serem lógicos e se submeterem às
necessidades sociais, são encarados como verdadeiramente sábios.
A actual filosofia da Europa é profundamente humanista.
Somos livres de pensar, de propor, de criar alternativas de vida, de querer
e desejar, mas devemos atender aos conselhos lúcidos do Grande Cérebro
Electrónico, que reúne a experiência de cerca de 150 anos de sabedoria
social, não permitindo que, pelos desejos individualistas e narcisistas de
cada Cidadão Dourado, a organização científica dos Conglomerados se
estiole, enfraquecendo-se, regressando-se aos velhos tempos da
desigualdade e da injustiça sociais, do aterrador domínio do trabalho
obrigatório sobre o prazer próprio e da perversão das leis harmónicas da
natureza.

A INVASÃO ORIENTAL

Os Mandarins orientais cortaram a rede neo-europeia de abastecimento de


energia a partir das oito centrais geotérmicas, instaladas nos limites sólidos
do centro da Terra, e sabotaram, com demolidores raios fotónicos, o circuito
difusor e abastecedor de tubos secundários.
Hoje, paradoxalmente, últimos dias da civilização humanista que os
nossos Pais Fundadores criaram, designada por Nova Europa,
aparentemente vencedora da Velha Europa bárbara e cruel que a antecedeu,
vejo-me obrigado, titubeantemente, sem grande convicção, a regressar ao
antigo papel de pasta de madeira e às velhíssimas canetas de tinta sintética
do museu do Conglomerado para registar por escrito as minhas impressões
sobre os tempos próximos do Absolutismo Oriental.
Fui escolhido pelo Conselho dos Pantocratas para esta missão mecânica e
artesanal de assentamento dos últimos dias da nossa civilização, a fim de
que os europeus do futuro, sobretudo os europeus humanistas, se um dia
(queiram os desígnios volúveis da História que sim) voltarem a governar
este pequeno território do mundo, saibam que entre a antiga Europa bárbara
e a doravante Europa dominada pelo Absolutismo Oriental, nascida este ano
de 2284, existiu uma Europa Humanista, racional, bela, justa, próspera,
abastada, igualitária, comunitária, onde todos os cidadãos eram felizes e a
liberdade absoluta, já que, mesmo quando os conselhos do Grande Cérebro
Electrónico desaprovavam uma acção individual, nunca a proibiam e
encontravam sempre meios e instrumentos de os requerentes viverem
mental e intensamente os seus desejos, como se em concreto os tivessem
vivido, assim registando na memória a sua aparente experiência
existencial.
No seu passado individual, os Cidadãos Dourados poderiam ser sempre
tudo o que tivessem querido ser, cancelando na sua memória pessoal, que o
Grande Cérebro Electrónico gravava indelevelmente, os registos da sua
verdadeira vida, passando a recordar a partir de então outra existência, a
que quisessem e os satisfizesse ou realizasse, ou a integrar no seu passado
memórias biográficas de experiências vividas, verdadeiramente sentidas
mas nunca realmente acontecidas.
Sem energia, o nosso Grande Cérebro Electrónico e a rede neuronal que
mantinha governados ao pormenor os Conglomerados finaram-se,
desligados das oito centrais geotérmicas.
Com efeito, a inesgotável fonte de energia geotérmica que alimentava a
nossa civilização foi cortada – uma situação por nós considerada totalmente
absurda e nunca verdadeiramente imaginada, nem mesmo deduzida pelos
velocíssimos e infinitesimais raciocínios sinápticos do Grande Cérebro
Electrónico.
Lá fora, nas ruas rolantes dos Conglomerados, nas instituições reitorais e
sincretistas, reina o pânico.
Um pânico controlado, mas epidémico e crescente.
Informados, todos os neo-europeus esperam o pior, o Fim, nunca previsto
ou sequer imaginado.
Pensávamo-nos eternos, alimentados gratuitamente pela potência infinita
da força calórica do centro da Terra.
A última mensagem do Grande Cérebro Electrónico, dirigida à mente da
totalidade dos Cidadãos Dourados, destinou-se a alertá-los: a partir daquele
exacto momento, deveriam manter-se unidos, aplicar os princípios da
filosofia humanista que nos tinham governado e não oferecer resistência,
nem à Grande Ásia, nem aos Bárbaros nossos vizinhos.
Estes últimos, resíduos prolongados da Velha Europa, habitantes dos
Baldios, zonas não governadas pelo Grande Cérebro Electrónico, separadas
dos Conglomerados pelo Cordão Verde de Segurança, fundados em antigas
filosofias individualistas, esperam igualmente o Fim.
Porém, sem hábitos de disciplina e objectividade, o pânico foi neles
patente desde a primeira hora e, buscando auxílio e protecção,
ultrapassaram a fronteira electrónica, agora desligada, e invadiram os
nossos Conglomerados.
Desequilibrados, como é de seu natural, inclinados à obediência do seu
cérebro reptiliano e mamífero, desorientaram-se, aterrorizaram-se,
extravasando-se emotivamente.
Pilhagens e assassínios, invasões de Conglomerados e massacres
colectivos, desconhecidos da nossa civilização, já foram cometidos.
Os nossos cidadãos, pacifistas, não resistem, limitam-se a apelar por
gestos ao primitivo cérebro racional dos Bárbaros, que os não
compreendem.
Eles, que nada têm de seguro, apoderam-se dos nossos bens, incapazes de
entender ser o inimigo comum a todos, nada podermos fazer, nem nós nem
eles, apenas esperar serenamente que o Absolutismo Oriental dê o último
passo e nos invada.
Desconhecemos o nosso futuro, mas permanecemos exteriormente
serenos, embora interiormente em estado de alerta emotivo.
As últimas informações chegadas ao edifício da Reitoria do
Conglomerado Principal detectaram o grau sete de alerta vermelho.
Estou seguro de que atingiremos o oitavo.
Controlamo-nos, pelo que nunca atingiremos o nono, muito menos o
décimo grau, costumeiro dos nossos vizinhos Bárbaros.
Cada Conglomerado sabe o que fazer e o Conselho dos Pantocratas
activará os procedimentos da Grande Ordenação.
A EUROPA COMO «ÁSIA OCIDENTAL»

Os Mandarins da Grande Ásia transferirão do seu território 500 milhões


de habitantes para o continente europeu, exterminando-nos ou
escravizando-nos, a nós, designados por Nativos, neo e vetero-europeus.
As suas estações aéreas e as suas naves rodeiam a Europa, imobilizadas
no céu.
Penso que não passará outro mês até que a invasão seja metodicamente
processada, activada com meticulosidade, como é seu hábito e o praticaram
em África, apoderando-se das grandes jazidas de matérias-primas.
A Europa, toda ela, não possui qualquer filão extraordinário de matéria-
prima e os novos Mandarins não estarão interessados em matéria humana,
que teriam de alimentar.
Os Bárbaros pré-históricos, habitantes dos Baldios, revelar-se-iam
resistentes e indomáveis.
Os mais inteligentes e abastados, como nós, revelar-se-iam inúteis para o
trabalho e desnecessários como criados ou lacaios.
Os andróides, comprados a peso de ouro ao Império Americano pelos
asiáticos, substituem-nos.
O antigo Império Chinês, hoje verdadeiro senhor da totalidade da Ásia e
da África, designado pomposamente por Grande Ásia, dominado pelo
Absolutismo Oriental, firmado na antiga filosofia burocrática e
disciplinadora de Confúcio, contraposta à filosofia livre, racional e
humanista da Nova Europa e do Império Americano, necessita de territórios
para transferir os seus excedentes demográficos, que, com o domínio do
subcontinente Indostânico, ultrapassaram todos os limites de controlo
despótico.
A Grande Ásia criou nos últimos anos os instrumentos de acesso às
nossas oito fontes de energia, sabotando-as e desligando-as.
Sentimo-nos impotentes, nós, os últimos verdadeiros europeus
humanistas.
A Bolha Hiperatómica de Protecção e Segurança, penhor científico da
nossa saudável e tranquila existência, foi desligada, e as nossas naves,
superiores às orientais, foram desconectadas por iniciativa dos Pantocratas,
que recusaram gerar uma carnificina através da resistência activa nos céus
da Europa.
Os propulsores hiperatómicos venceriam a primeira legião de naves
orientais, porventura a segunda, nunca a terceira e as restantes.
O território da Europa ficaria biofisicamente devastado, infestado e
contaminado durante três mil anos, de nada servindo para o vencedor, e nós,
os vencidos, desapareceríamos definitivamente da História.
A Grande Ásia teria de procurar novos territórios, avançando para a
América do Sul.
O Grande Cérebro Electrónico, calculando as perdas e os ganhos, foi
impositivo – se a Nova Europa se render, é possível que no futuro, um
futuro longínquo, venha a ressurgir através da passagem dos valores da
nossa tecnologia para a Grande Ásia, possivelmente com populações
mulatas, euro-asiáticas.
Porventura, a Europa irá dormir o grande sono de mil ou dois mil anos
para que, posteriormente, uma nova civilização a estude através dos registos
informáticos ocultos do Grande Cérebro Electrónico e ressuscite os nossos
valores humanistas, fazendo-os reviver em novas instituições, tomando-os
como modelo – pensar o tempo em séculos e milénios, e não em meses e
anos: eis o lúcido conselho do Grande Cérebro Electrónico.
O meu livro insere-se igualmente nesta estratégia do Conselho dos
Pantocratas: legar ao futuro a memória dos vencidos de hoje.
Em África, o Despotismo Oriental buscava matérias-primas e mão-de-
obra para as suas gigantescas instalações fabris; na Europa, busca apenas
espaço onde descarregar o seu excedente populacional, sobretudo crianças e
velhos não abrangidos pela lei geral da eutanásia.
Em 2200, no dealbar de um novo século, os dirigentes asiáticos, que
tinham retomado a designação de Mandarins, antigo título superior da
nobreza chinesa, ordenaram a celebração da Grande Festa da Família, cujo
acto central consistia na matança colectiva de todos os cidadãos com mais
de noventa anos, executados em antigos estádios desportivos, para aí
transportados por filhos e parentes.
Dançava-se, comia-se, bebia-se em cada estádio e no final os
nonagenários separavam-se dos seus parentes em grandes abraços saudosos,
as famílias instalavam-se nas bancadas, os velhos nos campos centrais
relvados, naves militares enlaçavam o conjunto dos corpos destes com raios
fotónicos, e estes, decompostos instantaneamente, desapareciam no ar,
sugados por aspiradores químicos celestes, que os projectavam para o
espaço planetário, onde seriam varridos e queimados pelos ventos solares.

Há 24 anos, em 2260, registou-se a primeira ameaça.


A Grande Ásia pediu autorização à Nova Europa para o extermínio
selectivo de todos os Bárbaros existentes no território europeu.
O conselho de Pantocratas, composto por todos os neo-europeus com
mais de 130 anos – cerca de uma centena –, induzido pelo Grande Cérebro
Electrónico, recusou liminarmente a proposta em nome dos valores éticos
formadores da Nova Europa, que negam a utilização da violência excepto
em defesa legítima.
Segundo a Grande Ordenação, não existem guerras justas, todas as
guerras são consideradas injustas, ilegítimas e imorais, característica
duradoura e essencial do estado de barbaridade do Homem até ao
nascimento da Nova Europa, que, assim, do passado se diferencia e afasta.
O Conselho de Pantocratas, ainda que considerando desprezíveis as
populações bárbaras dos Baldios, não podia consentir na sua exterminação
sem grave ofensa de princípios éticos.
Recusou.
Uma década mais tarde, o Império Oriental, em nome da totalidade da
África e da Ásia, exigiu de novo a posse do território dos Baldios e a
consequente exterminação da população bárbara.
Alegou não ser esta já uma população europeia, descendente, na sua
grande maioria, de africanos, árabes, latino-americanos e orientais fugidos
para a Europa nos séculos XX e XXI, filhos de filhos de párias
intercontinentais, híbridos genéticos.
Os Pantocratas alegaram não fazer distinção genética entre os homens da
Terra, apenas distinção ética e civilizacional.
Geneticamente, todos eram homens, irmãos em Humanidade.
Se o fizessem, deveriam igualmente considerar os asiáticos e os africanos
uma subespécie inferior, como estes o estavam fazendo relativamente aos
povos bárbaros da Velha Europa.
Os Mandarins de Tóquio, Pequim, Xangai, Nova Deli, retorquiram
caluniando os membros do conselho, chamando-lhes aristocratas, elitistas e
humanistas.
Os Pantocratas reafirmaram a honra de pertencerem a uma estirpe
humanista, mas negaram pretensões, sequer imagináveis, de aristocracia e
elitismo.
A existência tranquila, cómoda e farta dos Cidadãos Dourados constituía
prova provada.
Nenhum habitante da Grande Ásia, nem mesmo o puro descendente de
chineses, gozava de semelhante privilégio de abastança alimentar, de vida
feliz e de total liberdade, mesmo mental.
Na Nova Europa todos os homens eram absolutamente iguais e livres,
milimetricamente iguais, do nascimento à morte.
Em 2260, aquando da primeira ameaça, os dirigentes superiores da
Grande Ásia informaram o Conselho de que a situação no seu continente se
tornara insustentável em termos demográficos, tinham demagogicamente
subido para 100 anos o tempo máximo de vida.
Esta medida profiláctica deveria acrescer num aumento populacional, em
dez anos, de um bilião e meio a dois biliões de habitantes em África e na
Ásia.
Dez anos depois, uma nova geração de dirigentes chegada à cúpula do
Grande Império Asiático baixou para 90 anos o limite de vida, única
medida que não geraria a curto prazo uma quebra no rendimento económico
e no bem-estar dos asiáticos, especialmente dos chineses, grupo étnico e
social dominante.
Como medida extrema, assoberbados por uma inesperada vaga de
aumento populacional na África Central, decidiram baixar para 80 anos o
limite de tempo de vida dos africanos, exterminando em dois anos cerca de
500 milhões de negros, poupando em habitação, alimentação, tratamentos
médicos e vestuário.
Com o extermínio e o decreto dos 80 anos, deu-se pela primeira vez uma
falta de mão-de-obra mineira em África.
Ainda assim, o excedente de asiáticos permanecia.
O Conselho Superior de Mandarins, reunido, analisando fria e
cuidadosamente o mapa do mundo, decidiu reivindicar o território europeu
como continuidade geográfica da Ásia e descarregar neste espaço entre 500
milhões a 1 bilião de chineses, redimensionando-o, passando a designar a
Europa por «Ásia Ocidental».
O Conselho de Pantocratas receava que esta nova cúpula de Mandarins
aniquilasse todos os europeus, decompusesse os seus corpos e que as suas
células constituintes fossem fumigadas colectivamente para o espaço
interplanetário.
Num curto período de negociações, em que participei, os responsáveis
absolutistas nunca deram a entender qual o destino a dar aos neo-europeus.
Os Bárbaros, esses, não havia dúvida, seriam condenados ao
aniquilamento.
Num último esforço negocial, instaram que os neo-europeus se
deslocassem para a América do Sul no prazo de meia década.
Evidenciavam, assim, os Mandarins, o respeito que lhes merecia o
continente que dirigira o mundo durante cerca de três mil anos e os 100
milhões de habitantes descendentes dos antigos europeus humanistas, hoje
habitando nos Conglomerados.
O Conselho de Pantocratas declinou a oferta e, dignamente, recusou
abandonar a terra dos seus antepassados, consciente de que apenas pela
guerra e pela opressão e domínio das populações nativas se conseguiriam
instalar 100 milhões de neo-europeus entre as pampas da América Sul e as
florestas centrais da Amazónia.
O Conselho chamou delicadamente a atenção dos Mandarins para a
impossibilidade de as suas armas penetrarem a nossa Bolha Hiperatómica
de Protecção e Segurança.
Estes nada retorquiram até há cerca de um mês, quando as suas estações e
naves estacionaram no nosso céu e os nossos geradores foram
instantaneamente desligados.

OS CIDADÃOS DOURADOS

Nesse dia aterrador, quando o céu dos Conglomerados se escureceu de


um brilho sombrio metalizado, constituído por centenas de estações de
transplantação de mais de 500 milhões de chineses, crianças e velhos,
olhámos para os nossos pés e as nossas ruas não rolavam e o plastifex dos
nossos edifícios, desconectado do Grande Cérebro Electrónico, não se
adequava aos nossos desejos ou às nossas necessidades, e cada Cidadão
Dourado viu-se na mais inconsútil solidão, sem saber o que fazer, o que
querer, o que pensar e como interpretar os novos sinais do céu.
Gaguejando, reaprendeu a falar, activando a língua e o ar fonador,
buscando palavras adequadas no fundo inconsciente da mente.
Não bastava já pensar para comunicar, era preciso falar, falar de novo,
articular os lábios com a língua, esta com os dentes e todos estes órgãos
com o sopro do ar da respiração.
Nos primeiros dias, a maioria dos nossos cidadãos engasgava-se, tossindo
abruptamente, abrindo desmesuradamente a boca, ansiando por um ar forte
que lhes limpasse a garganta.
Buscavam goradamente nos ventiladores das casas o pó alimentício, que,
inspirado, lhes saciaria a fome, ou o pó de lavagem que os desinfectaria das
toxinas suadas, efeito do calor semitropical que definitivamente envolvia o
continente europeu desde há cerca de 150 anos.
Porém, os ecrãs pretos e mudos das paredes assinalavam que o Grande
Cérebro Electrónico se encontrava desligado e não havia já lugar para
ordens, conselhos, recomendações, directivas, nem alternativa à
alimentação que escasseava e à água que desaparecera.
Os Depósitos Alimentícios foram invadidos por Cidadãos Dourados
quando se constatou estar desligado o Cordão Verde de Segurança.
Cidadãos Dourados, até então polidos e disciplinados, traziam para a rua
frutos verdadeiros destinados à pulverização, desconhecendo como comê-
los, se o invólucro, a casca, se o interior, o caroço, tentando pelo cheiro
identificar o antigo sabor do pó alimentício.
O corpo, desabituado de alimentação sólida desde o nascimento,
descarregava os alimentos pelo frágil ânus em diarreias sucessivas, que
empestavam as ruas rolantes ora imóveis.
Os mecanismos informáticos inteligentes, que supervisionavam os bairros
e os Conglomerados, dotados de implantes receptores de pensamento
electrónico, desentendiam os sinais humanos, tornando-se, não ajudantes ou
auxiliadores, mas verdadeiros obstáculos, insistindo em repetir até ao
esgotamento de energia as tarefas para que tinham sido programados,
levando os Conglomerados à total desorganização.
Nunca pensei assistir a cenas de tão profunda confusão e descoordenação,
próprias dos povos bárbaros ou de situações catastróficas que havia lido nos
antigos livros dos museus que dirigia, como nos terramotos e maremotos,
causas de descontrolo caótico.
Obedientes aos ditames da Grande Ordenação, gravados no seu
hipercórtex, os meus concidadãos neo-europeus encontravam-se no mais
absoluto isolamento e na mais humana das angústias, ainda que
racionalmente controlada, apenas explodida em momentos de sensação
activa de fome ou sede, incapazes de proverem ao que necessitavam e que
até então lhes chegara gratuita e celeremente.
O seu hipercórtex, efeito de transformações biogenéticas induzidas, que
os conectava desde o nascimento ao Grande Cérebro Electrónico, hesitava
animalescamente entre seguir passivamente as grandes multidões
amontoadas nas praças centrais dos Conglomerados ou buscar soluções por
si próprio.
Do terraço do edifício da Reitoria, eu assistia, impotente, ao
esboroamento da mais perfeita civilização que tão humanamente tinha sido
construída.
Pagávamos nefastamente os erros cometidos na Ásia por uma camarilha
de dirigentes que não sabia utilizar a razão como meio privilegiado de
controlo da população, antecipando e prevenindo os problemas
demográficos e urbanos.
Tínhamos feito nosso o lema de um antigo filósofo ético europeu que
declarara não ser a política a arte de fazer o bem, mas a de evitar o mal.
Tínhamos criado a Nova Europa, uma sociedade perfeita, em que não
havia lugar para a fome, a miséria, a doença artificial (apenas a doença
final, quando os órgãos, velhos e regenerados, se abandonavam ao colapso
final, que não evitávamos; detectávamo-lo e deixávamos o processo activar-
se), não havia lugar para a desigualdade, a injustiça, a guerra, a simples
violência individual, uma organização social em que predominava, como
rainha ética, a harmonia entre a tolerância e a liberdade, mesmo que só
mental, a sociedade mais perfeita até hoje criada.

Nos últimos dez anos, os novos Mandarins tinham encontrado uma forma
científica de subverter as oito centrais geotérmicas instaladas na periferia do
centro da Terra que alimentavam a totalidade da Nova Europa de energia
abundante e permitiam a existência de uma atmosfera comum eléctrica pela
qual cada mente individual humana comunicava telepaticamente com as
restantes e com todos os electro-humanos, robots e andróides, trocando
sugestões e opiniões e recebendo espontaneamente conselhos do Grande
Cérebro Electrónico.

A todo o momento se aguarda a chacina aérea dos Bárbaros dos Baldios,


decompostos celular e molecularmente e sugados para o espaço
interplanetário, e a aterragem das naves asiáticas nos territórios da Nova
Europa.
Desconhecemos as reais intenções dos Mandarins sobre os 100 milhões
de habitantes da Nova Europa.
Os nossos concidadãos são passivos e amáveis, fruto de uma educação
electrónica fundada na tolerância e na liberdade, não se revoltarão senão
acicatados pela fome e pela sede.
Mesmo assim, serão, por natureza própria, mais propícios à resignação do
que à revolta.
Anseiam por ordens do Conselho de Pantocratas e do Grande Cérebro
Electrónico.
Não as terão por ausência de meios de transmissão.
Todos os microcircuitos neuronais se encontram desligados, alimentados
por energia comum, ora interrompida.
Multidões inquietas aguardam expectantes, alguns seguirão o primeiro
que lhes ordenar o que fazer.
Se for um seu concidadão hesitante, porventura melancólico, desejando
ganhar para si uma autonomia animal, segui-lo-ão.
Se for um dirigente asiático, segui-lo-ão também, buscando a antiga
segurança.
Eu próprio, como Reitor, experimentado e treinado no uso exclusivo da
razão, sinto as minhas defesas psicológicas vacilarem.
Apelando à confiança absoluta nos princípios éticos da nossa civilização,
tento controlar, no meu fundo, a insegurança e o medo do futuro sentidos
por todos, debruço-me sobre o livro, escrevendo realisticamente aquilo a
que vou assistindo do terraço do edifício da Reitoria, trabalhando dois
terços do dia.
O sentido histórico de missão a que me voto na escrita do livro supera a
inquietação que os meus concidadãos sentem.
Resigno-me a morrer se for este o destino dos neo-europeus, mas sei que
morrerei realizado, legando para uma longínqua posteridade o anúncio da
existência da mais perfeita civilização criada pela humanidade.
A dependência dos nossos concidadãos do Grande Cérebro Electrónico é
total.
Face ao questionamento sobre a correcção de uma acção, accionavam a
ligação ao Grande Cérebro Electrónico, que, à luz dos ditames da Grande
Ordenação, instantaneamente lhes respondia e, face à «situação» e à
«finalidade», os aconselhava.
Raramente havia desobediências.
Não, não eram desobediências, apenas deslizes éticos motivados pelas
pulsões do desejo, resolvidas através de Multas Comportamentais.
A filosofia educativa das crianças e a enformação cultural de todo o
cidadão, recebida electronicamente, inibiam comportamentos de revolta,
catalogados como irracionais, semelhantes aos dos povos bárbaros dos
Baldios.
Sonolento, sonâmbulo, é como o Cidadão Dourado se encontra hoje,
acolitado em magotes silenciosos nas praças centrais e nos parques,
esperando que algo aconteça, desejando um futuro igual ao passado.
Porém, o futuro apresenta-se-lhes pela primeira vez, como a mim,
totalmente imprevisível.
Apenas o corpo os move, as pulsões instintuais.
Socorrem-se dos Depósitos Alimentícios quando têm fome, apoderam-se
de frutos de longa duração que desconhecem como comer, raspam a língua
no pó expirado pelos ventiladores gerais, assim se vão alimentando há
quase um mês.
Sem o auxílio do Sonador, que hipnoticamente os adormecia e despertava
à hora indicada, atravessam a noite como espectros, de olhos pronunciados
e leve película de suor na testa.
A escuridão absoluta faz-lhes renascer medos ancestrais, animalescos,
recostam-se uns nos outros, apoiam-se mutuamente, sentindo a respiração
do conjunto, presumindo assim tornarem-se mais fortes.
Hipnóticos, parecem regredir aos momentos primitivos da humanidade.
Na solidão involuntária a que me condena o meu gabinete do Museu da
Reitoria, uso as ancestrais luminárias e as ânforas de azeite dos Romanos
para trabalhar à noite, iluminando escassamente o papel.
As sombras esconsas, o lento movimento flutuante do fumo das lucernas,
o som da raspagem do bico da caneta no papel, despertam-me remotos
terrores que se confundem com o crepitar da fogueira na floresta, o avanço
silencioso dos predadores nocturnos e o sibilar rastejante das serpentes,
infundindo no meu inconsciente – toda a vida recalcado, verdadeiramente
apagado, desaparecido por via do domínio dos mecanismos do hipercórtex
sobre o cérebro natural – inquietações e temores que sinto dificuldade em
controlar, mas, num esforço de pura racionalidade, vou tentando dominar.
Os espectrógrafos de imagem e som revelavam hora a hora a situação
social entre os povos bárbaros.
O Cordão Verde de Segurança isolava-nos dos territórios dos Baldios,
qualquer tentativa de passagem da Velha para a Nova Europa era
instantaneamente castigada com a mutilação do corpo por raios fotónicos,
ora um braço, ora uma perna, nunca um ferimento mortal.
A violência era usada em legítima defesa, e sem obrigação de morte.
Sentíamo-nos seguros e tranquilos.
O Cordão Verde foi apagado e os espectrógrafos inutilizados por falta de
abastecimento energético dos Acumuladores espalhados pelos
Conglomerados.
Há menos de um século, o Conselho de Pantocratas tinha considerado a
Nova Europa absolutamente invencível por mar, terra e ar.
A Bolha Hiperatómica de Protecção e Segurança constituía o nosso
escudo de salvaguarda.
Nenhum poder de fogo, mesmo o molecular, mesmo o radioactivo,
mesmo o fotónico e o positrónico, a conseguiria vencer.
Hoje, vemo-nos indefesos, os actuais Mandarins, mais manhosos do que
o manhoso Ulisses da antiquíssima Odisseia, detectaram com perscrutação
e acutilância o nosso calcanhar de Aquiles – as fontes geotérmicas da nossa
abundante energia.
Desconheço como sabotaram e destruíram as oito megacentrais instaladas
na periferia do centro geotérmico da Terra.
A difusão de energia por toda a Nova Europa, operada por cabo acótido,
forrado a ferro e chumbo, revestido exteriormente de uma camada de
plastónio, o material sintético mais duro do mundo, encontrava-se garantida
pela cartografia de Acumuladores, de igual modo instalados em bunkers de
ferro, chumbo e plastónio.
Nenhuma arma atómica ou hiperatómica conseguiria penetrar no interior
dos Acumuladores.
Nunca o Conselho de Pantocratas e o Grande Cérebro Electrónico
conceberam a inutilização dos Acumuladores por secagem de energia
provinda das megacentrais geotérmicas do centro da Terra.
Os asiáticos, desconfio sobretudo dos chineses, foram aonde tinham de ir
– não aos Acumuladores, sim à fonte – e conseguiram.
Como?
Todos desconhecemos – constituirá doravante o maior segredo desta
invasão.

Os registos históricos da Europa encontram-se arquivados em Centrais de


Comunicação espalhadas por todo o território, anexas ao Museu de que sou
Reitor Principal.
Cada sinapse em cada microssegundo, acontecida no cérebro de cada um
dos nossos concidadãos desde a instauração de Nova Europa em 2184,
encontra-se registada e arquivada nos nossos processadores para que no
futuro se possa registar de um modo rigoroso e objectivo a história da nossa
civilização.
Tememos, porém, que a Grande Ásia inutilize os processadores do
Grande Cérebro Electrónico e apague a história recente da Europa, se não
mesmo a história passada, mandando destruir os Museus e os Arquivos.
Odeiam-nos por considerarmos o trabalho um valor arqueológico, próprio
de uma civilização desumana e bárbara.
Eles consideram o trabalho a actividade mais nobre do homem, mesmo o
acto mecânico de enroscar porcas em torno de um parafuso.
Nós, não.
Privilegiamos o ócio, o prazer de acordar e estar disponível, nada ter que
fazer senão o que se decidir fazer, a sensação deleitosa da existência de um
tempo permanentemente vazio, preenchido de um modo singular em cada
dia, produto de uma escolha selecta e reflectida das nossas acções, que
correspondem intrinsecamente aos nossos desejos, mesmo que realizados
mentalmente.
Não trabalhar, mas estar sempre ocupado – o lema de um outro filósofo,
de origem portuguesa, quando as nações e as línguas eram consideradas
realidades primeiras na educação de um cidadão –, tornou-se um dos lemas
essenciais do nosso viver colectivo.
Privilegiar o prazer em detrimento do trabalho, eis uma das nossas
divisas, que os Mandarins confucionistas desprezam tanto por
desconhecerem a sua excelsa virtude como por incapacidade tecnológica,
por atraso científico face à Nova Europa.
O trabalho não realiza o homem, sim a sua acção dirigida pelo e para o
prazer, um prazer racional, não animal nem libidinal.
A sociedade, no seu todo, através das suas instituições reitoras, tem o
dever da utilidade, de promover a acção útil.
O cidadão, o dever de dirigir a sua acção para o prazer.
Os Orientais realizam-se pela família e pelo trabalho, levantam dinastias
familiares, idolatram os seus mortos e consomem-se no trabalho, crendo ser
este o sentido da vida, acrescentar um novo bem, não raro uma mercadoria,
ao bem antigo.
Nós, os neo-europeus, realizamo-nos pelo prazer lúdico, livre, sem
horário nem outra finalidade senão o deleite e o gosto usufruídos pela
própria acção, como fazer colecções, como é o meu caso enquanto alto
organizador e dirigente de museus.
Em nome do trabalho e para a ocupação completa da população, os
Mandarins regionais ou Aitões constroem novas pirâmides, gigantescos
obeliscos, com cubos de pedra artificial, plastificada, que, à semelhança do
primitivo século XX, acartam em carrinhos de mão; furam montanhas
abrindo casamatas militares ou túneis dirigidos a lugar nenhum; criam
barragens oceânicas do tamanho de cidades, prevenindo presumíveis
maremotos que nunca acontecem e a ciência garante que não acontecerão.
Logo construídos, todos os monumentos são inspeccionados por
Mandarins nacionais que, para humilhação do inferior, alegam engano por
parte dos Aitões, não era ali, era a trezentos quilómetros do lado nordeste,
as pirâmides, os obeliscos, as construções devem ser deslocadas para lá e os
túneis de novo tapados.
Sem nenhuma utilidade, furam galerias em montanhas a pá e picareta –
instrumentos primitivos de construção, caídos praticamente em desuso –
apenas para três ou quatro anos depois as encherem de terra sintética,
alegando possível desmoronamento.
Constroem colossais pontes, viadutos e estradas aéreas, aquedutos e
barragens, escavam vales onde existiam montanhas e atulham-nos até se
tornarem montanhas, que, finalizadas, logo são destruídas por inúteis;
erguem monumentais estátuas de Mandarins mortos que, caídos em
desgraça, são de imediato estilhaçadas, substituídas por estátuas de novos
Mandarins.
Erigem fábricas com 300 quilómetros de diâmetro, incorporando cidades
no seu interior, cada cidade habitada por trabalhadores de um ramo
industrial, que, como espectros vivos, labutam orgulhosamente na sua
exclusiva especialidade, alimentando-se em gigantescos refeitórios de uma
comida sempre a mesma, arroz, arroz e arroz, contactando com os filhos,
que vivem em colégios de outras cidades, um dia por mês, o Grande Dia da
Família.
Alegaram que a antiquíssima Muralha da China corria o risco de
desmoronamento, prestes desabaria, desmontaram-na pedra a pedra e
remontaram-na com nova argamassa, considerada eterna.
As descobertas científicas dos séculos XXI e XXII, que lançaram os
fundamentos da Nova Europa, são desconhecidas da Grande Ásia, que há
menos de cinquenta anos iniciou um processo de cientifização da sociedade,
copiando as nossas invenções e descobertas.
O meio de transporte privilegiado continua a ser o automóvel, agora
eléctrico por depauperamento das reservas de petróleo, e as vias de
comunicação, as estradas.
Nós, há mais de um século que eliminámos o automóvel e, usando os
electro-homens ou robots como trabalhadores, abrimos por toda a Nova
Europa ruas rolantes onde se «anda» confortavelmente sentado em
esplanadas e jardins, recebendo no cérebro a informação do dia,
comunicando telepaticamente com amigos ou com o Grande Cérebro
Electrónico.
À medida que a nossa população não ultrapassava o valor sagrado de 100
milhões, a população da Grande Ásia e da África aumentava
exponencialmente, atingindo o volumoso montante de 20 biliões de
habitantes.
II

UMA NOVA CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA

O Conselho dos Pantocratas, atormentado pela possibilidade de extinção


da Nova Europa, crente de que a Grande Ásia inspeccionaria a
documentação electrónica, revolvendo-a e esmiuçando-a, incumbiu-me de
escrever um livro, artesanalmente, ao modo como estes eram escritos até ao
século XXI – Crónica da Criação e Extinção da Nova Europa.
Tenho ajeitado a mão à caneta e a ponta desta ao papel, um papel grosso
conservado nos arquivos do Museu, designado por almaço.
Devo descrever os aspectos principais da Nova Europa, a sociedade mais
perfeita criada pelo Homem, superando os regimes políticos infantis,
bárbaros e cruéis que vigoraram ao longo da pré-história da humanidade,
até há 150 anos.
O que por todos os pensadores fora considerado utópico foi por nós
realizado na perfeição com o prestimoso auxílio da Ciência.
A felicidade individual e a abundância geral deram pela primeira vez as
mãos com a criação genética de uma nova organização cerebral, o
hipercórtex, e com a inserção de placas bio-electrónicas neuronais
implantadas no cérebro e mudadas de dez em dez anos.
Criámos um homem estritamente racional, autónomo, livre,
independente, conectado a todos os restantes por via do Grande Cérebro
Electrónico, que disponibilizava, instantaneamente, toda a informação para
a mente de cada um, e aconselhando, não ordenava.

Antes de descrever as estruturas sociais, económicas, políticas e


existenciais da Nova Europa, sinto o dever, porém, de narrar o que do
terraço da Reitoria tenho presenciado nestes dias anteriores à previsível
invasão da Europa pela Grande Ásia e ao definitivo triunfo do Despotismo
Oriental.
Rompido o Cordão Verde de Segurança, que nos separava dos povos dos
Baldios, estes, atemorizados pelas naves orientais imobilizadas no céu,
atravessaram a fronteira e invadiram desordenadamente os territórios da
Nova Europa, dirigindo-se para os Conglomerados principais.
A seguir à população rude, advieram os clãs guerreiros, as dinastias
militares comandadas por antigas famílias europeias, com o fito, menos da
segurança e mais do saque e da rapina, de cobiçar as nossas presumíveis
riquezas e os nossos avançadíssimos conhecimentos científicos.
Os Bárbaros da Velha Europa, como designamos os povos dos Baldios,
devido à prevalência dos impulsos do cérebro reptiliano e mamífero nos
seus comportamentos, organizam-se em bandos ou hordas em torno de uma
família dinástica de grande poder militar, designada por clã.
Os chefes destes, odiando-se, rivalizando mutuamente, guerreiam entre si
de um modo continuado, conquistando novos territórios, logo recuperados
pelo clã rival, ou por aliados deste.
Treinam-se em antigas fortalezas ou nos campos de velhos palácios e
conventos, onde habitam os chefes máximos do clã.
Os seus membros, rudes e ignorantes, odeiam visceralmente os chefes de
outros clãs, que execram, desconhecendo outra razão para isso senão que
foram educados desde o nascimento a odiá-los.
Agregam a si cientistas, instalando-os em universidades e laboratórios
próprios, esperando destes a descoberta de novas armas letais, tentando,
infrutiferamente, atingir o poder bélico da Nova Europa, para nós
unicamente defensivo, nas suas mãos transformado em arma mortal de
aniquilamento.
A Velha Europa é constituída por um corredor continental formado pela
maioria das antigas capitais e grandes cidades da Europa medieval,
iluminista e industrial, ao qual, atravessando o túnel sob o Mar da Mancha,
se junta o sul das antigas Ilhas Britânicas, incluindo a cidade de Londres,
hoje dominada pelo clã Ferguson, o Clã de Aço, como a si próprio se
nomeia.

Há 200 anos – em 2084 –, após a Grande Fome motivada pelo


açambarcamento de bens e pela especulação de preços, derivados do
esgotamento dos combustíveis fósseis, um conjunto de sábios, assim
mesmo denominado, o Clube dos Sábios – filósofos, cientistas, ecologistas,
engenheiros biológicos, arquitectos ambientalistas –, lançou um apelo aos
Homens Bons de toda a Europa para que abandonassem as velhas cidades,
lugares de fome e violência, e reconstruíssem outras no interior dos países,
cidades sem nome, designadas por Conglomerados, onde a ciência e a
tecnologia, a economia e a política, a educação e a cultura, fossem postas ao
serviço de valores éticos de concórdia e harmonia, liderados pela Justiça.
O primeiro impulso de abandono das velhas cidades, algumas com cerca
de 20 milhões de habitantes, muitas divididas em bairros sem abastecimento
de electricidade e água canalizada, decadentes, desorganizadas, com
reduzidos serviços educativos e hospitalares, cobrados por empresas
monopolistas pertencentes aos clãs, a maioria dos mortos atirados para
monturos, sem enterro, simplesmente corpos queimados levantados em pira
no seio do lixo, deu-se na antiga Lisboa, uma das mais pobres cidades do
continente, num dos inúmeros Congressos de Sábios realizados por estes
anos finais da Europa, em 2084.
Foi nesse ano fundada a rede «A Nova Europa», constituída por um
pequeno comité de dirigentes de todos os antigos países da então União
Europeia, cujos nomes se mantiveram secretos, que se dispôs a preparar e
organizar o primeiro Conglomerado numa região inóspita e semidesértica
de Portugal chamada Baixo Alentejo.
Entre 2084 e 2100, iniciaram-se os preparativos da primeira vaga de
abandono das cidades, período hoje designado, na nossa história, por
«Êxodo», e na noite da passagem do século XXI para o XXII iniciou-se
gradual e ordenadamente o grande êxodo que, 84 anos depois, em 2184,
alimentado por novas descobertas científicas, se espalhava pelos campos
interiores de toda a Europa, até à fronteira da velha Rússia, nunca a menos
de 200 quilómetros das antigas cidades, então em estado absolutamente
decrépito.
Assim nasceram os primeiros Conglomerados, cuja construção e
organização racional, assente na Grande Ordenação e num primitivo
computador vigilante e ordenador de comportamentos individuais,
contribuiu para um rapidíssimo sucesso entre as antigas populações, que a
estes acorreram maciçamente.
O Clube de Sábios, porém, registando-o na Grande Ordenação, lei
sacratíssima, determinou que, tendo em conta a extensão e a qualidade dos
novos territórios, a Nova Europa não devia ultrapassar os 100 milhões de
habitantes, limite nunca deveras transposto.
Milhões de moradores das antigas cidades aderiram à nova filosofia de
vida, assinando electronicamente, como em juramento de sangue, o texto da
Grande Ordenação.
São os Pioneiros, ou Pais Fundadores, de que não restam nomes nem
imagens senão num ficheiro secreto do Grande Cérebro Electrónico.
Face à Velha Europa, dominada por nações, famílias e personalidades
delirantemente narcisíacas, fundada num inconcebível e atroz
individualismo egotista, decidiram os nossos Pais Fundadores que da
história feita e a fazer nunca constassem o nome e a imagem de
personalidades individuais.
Somos uma espécie animal que em comunidade avança, sendo dever de
cada membro contribuir, não para o enaltecimento de si próprio, como
elemento desgarrado do todo, mas para o sucesso conjunto da espécie.
Todo o cidadão da Nova Europa é instigado a criar, a inventar, a descobrir
novos bens, novos produtos, novas realizações, contributos essenciais para
o aperfeiçoamento e a inovação do todo social.
Porém, todos sabem que, por superior que seja o contributo, o nome de
um descobridor ou inventor não será difundido entre os seus concidadãos,
ainda que fique registado nos arquivos secretos do Grande Cérebro
Electrónico.
Filosofia contrária à dos Bárbaros, prolongamento actual da Velha
Europa, que tudo perseguem, mesmo o crime, para que o nome individual
seja louvado, engrandecido e divulgado – o que designam por Fama ou
Glória.
Da nossa parte, não se trata de uma política de anonimato porque não
existe nenhuma política de difusão de nomes individuais.
Trata-se de uma nova concepção de História, uma história humana
fundada na realização de uma sociedade totalmente comunitária, isto é,
igualitária e justa, na qual cada membro contribui para o conjunto com o
máximo das suas potencialidades, recebendo em troca a satisfação integral
das suas necessidades.
Por isso, não existem partidos, facções, interesses organizados de grupos
nem eleições políticas na Nova Europa, como não existiam até ao século
XVIII na Velha Europa.
Mas não devo antecipar a descrição das nossas belas instituições e do seu
funcionamento harmonioso, realizador das virtualidades de cada cidadão.
Limitei-me a distinguir com nitidez suficiente a Velha da Nova Europa e
a assinalar o momento histórico daquela separação no ano de 2084, em
plena época de fome, seguida de uma epidemia de desconhecidas doenças
virais transmitidas pelos cadáveres em decomposição abandonados em
monturos.
Na Velha Europa de hoje, coabitando a nosso lado, nos Baldios,
alimentada por hordas de Bárbaros, reside a continuação da antiga Europa
individualista, sectária e grupal, separada por nações e línguas.
Após um século de esforço titânico de união, entre 1950 e 2050, esta
Europa, por si fortemente conflituosa, desintegrou-se, acicatada pela
ausência de recursos naturais, o que originou uma retracção económica
seguida de uma altíssima especulação de preços: a Grande Fome.
Entre 2050 e 2084, desenvolveu-se na Europa a mais hedionda das
indústrias clandestinas: mulheres, para sobreviverem, alugavam as barrigas
para procriação de fetos, que, nascidos, eram entregues à indústria de
alimentação para abastecimento de bifes gourmet nas cozinhas de grandes
empresários e dirigentes políticos, que, sabendo em perfeição da origem da
carne, presumiam hipocritamente comer carne de cordeiro.
A ORIGEM DA NOVA EUROPA

A especulação bancária, a substituição do valor económico dos bens pelo


seu valor financeiro, o desregramento luxuoso de produtos de conforto e
vaidade, que nada acrescentavam à qualidade de vida dos cidadãos, o
desregulamento caótico das mercadorias, distribuídas com excesso de oferta
para escassez máxima da procura, ambições pessoais desmedidas para
competências individuais vulgares, o esgotamento de inúmeros recursos
naturais, a falta de liquidez dos Estados, o ressurgimento de antigas
rivalidades nacionalistas, a mediocridade das elites, mais apostadas em
salvar a pele, garantindo um forte aforro, do que em governar a
comunidade, fizeram a Europa implodir após 40 anos de arrastamento
decadente.
Em 2050, foi autorizada a criação livre de empresas de mercenários –
empresas especializadas em «Defesa Pessoal» – que protegiam
militarmente empresários e instituições de pilhagens, raptos e roubos,
embrião dos grupos armados que ocuparam as antigas capitais europeias,
espalhando a violência e o terror, origem dos clãs.
A necessidade de abastecimento de produtos comestíveis para milhões de
pessoas criou uma nova escravatura.
Populações inteiras indefesas ofereceram-se para trabalhar em troca de
alimentação, só alimentação.
Mesmo assim, contingentes de escravos africanos foram importados para
a Europa, trabalhando dez a doze horas por dia em gigantescas fábricas e
em vastas quintas dirigidas por elementos da guarda pretoriana dos chefes
dos clãs.
A Velha Europa constitui, hoje, o prolongamento da antiga Europa
nacionalista, dividida em bandos fortemente armados, comandados por
dinastias familiares.

Nos anos iniciais do Êxodo, os Pais Fundadores viram-se forçados a


limitar a entrada nos Conglomerados de cidadãos provindos dos antigos
territórios europeus, seleccionando os mais inteligentes, os mais pacíficos e
os mais amáveis, obrigando-os a jurar o cumprimento dos mandamentos
inscritos na Grande Ordenação, inclusive a total obediência às Regras
Individuais, sob pena de definitiva expulsão ou de gravíssimas Multas
Comportamentais.
Em 2150, 35 por cento da população dos Conglomerados trabalhavam na
investigação científica.
Procedeu-se então à descodificação e à matematização dos elementos
genéticos do cérebro humano, bem como à invenção de tecnologia que
permitiria aceder à infinita fonte de energia geotérmica no centro da Terra.
Foi o primeiro grande triunfo da Nova Europa, a que se seguiu, dez anos
mais tarde, a recombinação bio-informática do cérebro, criadora do
primeiro cérebro humano verdadeiramente racional, controlador de
sentimentos e emoções.
Novo decénio passado e o Grande Cérebro Electrónico foi construído,
isolado no primeiro edifício de plastifex, o primeiro edifício manipulável,
diariamente adaptável às necessidades, com imediato acrescento ou
supressão de salas ou andares.
Em 2170, foram criadas as redes neuronais e electrónicas de ligação do
Grande Cérebro, solidamente aperfeiçoado, a todos os edifícios, ruas, lojas,
casas e mentes individuais.
Neste último caso, através do desenvolvimento do hipercórtex a partir do
neo-córtex frontal e de umas lentes especiais apostas no globo ocular de dez
em dez anos, a comunicação entre o Grande Cérebro e a mente das pessoas
tornou-se instantânea.
Finalmente, em 2184, nasceu o primeiro bebé da Nova Europa dotado de
hipercórtex, um acrescento bio-informático às redes neuronais naturais que
veio permitir a comunicação mental sem a remoção e substituição de
implantes cerebrais, provocando o grau de absorção pelo cérebro das
alterações genéticas introduzidas no genoma pessoal.
Ao mesmo tempo, os nossos laboratórios criaram os aparelhos
electrónicos de segurança e defesa em torno das fronteiras – o Cordão
Verde de Segurança –, permitindo assim a eliminação do primeiro e único
exército de defesa da Nova Europa. Em 2120 foi construída a Bolha de
Segurança Hiperatómica, que definitivamente nos protegeu de qualquer
ameaça exterior.
O que presumíamos definitivo revelou-se, afinal, provisório, e a Nova
Europa, exemplo humano de perfeição, morre hoje às mãos da malícia
oriental e da brutalidade ocidental.
O que críamos ser uma civilização para milénios, tão completa e
exemplar que nenhum poder seria capaz de a aniquilar, revelou-se afinal das
mais breves e provisórias, mesmo frágil, quase efémera, totalmente
dependente da energia geotérmica, limpa, pura, abundante, infinita, mas
cuja exclusividade a aniquilou.
Se datarmos a civilização da Nova Europa em toda a sua extensão
temporal, esta não terá atingido 300 anos, e se a restringirmos ao momento
da sua absoluta perfeição, em termos de felicidade individual e harmonia
social, terá atingido menos de um século de existência.
É lamentável que a manha humana, a malícia, o instinto animal de
sobrevivência, possam destruir o que tão perfeitamente foi criado a um
nível racional.
É ao que estou assistindo do terraço da Reitoria.

A INVASÃO DA NOVA PELA VELHA EUROPA

Hordas bárbaras armadas e aparatosas da Velha Europa, acicatadas por


tambores primitivos, bandeiras hasteadas e brados de chefes façanhudos,
cercam os nossos cidadãos agrupados ordeiramente nas praças e invadem os
nossos Depósitos Alimentícios, buscando comida, tentando dissolver o pó
alimentício em água, fazendo explodir as caixas herméticas pressurizadas
onde conservamos os legumes, vegetais e frutos naturais intactos.
Os mais ignorantes buscam afanosamente carne e peixe, desconhecendo
que nunca a Nova Europa se alimentou de animais.
Outros, luxuriosos, viciados, anseiam por vinho, aguardente, bebidas
alcoólicas, produtos aditivos, que não ingerimos senão em dias especiais
comemorativos, e não em bruto, mas dissolvidos em pó.
Com gestos improvisados, os nossos cidadãos dirigem-se aos Bárbaros
dos Baldios, apelando à sua razão, fazendo-lhes ver estarmos ambos sob
idêntica ameaça oriental, mas estes, de olhos sanguíneos, pulados como os
dos chacais, enterram-lhes facas e punhais de aço no peito, ansiando por se
verem livres deles, por ocuparem as suas casas e gozarem do seu conforto.
Deparam-se-lhes edifícios escurecidos e frios, sem energia, os
instrumentos domésticos desligados, encolerizam-se, presumem-se
enganados, retornam às ruas ora imóveis, buscam neo-europeus e,
embriagados de ira e furor, esmurram-nos até o seu rosto se assemelhar a
uma pasta de carne e sangue, arrastando-lhes o corpo pelo chão.
Outros, desiludidos com o inútil resultado dos seus saques, penduram os
neo-europeus de cabeça para baixo das janelas e dos terraços até estes
confessarem onde guardam as suas riquezas pessoais ou familiares, que não
existem, já que nenhum neo-europeu possui propriedade particular para
além da de uso individual.
Frustrado o seu intento, rindo e galhofando nervosamente, deixam tombar
os nossos concidadãos no vazio negro das ruas imóveis e sem iluminação.
Sob ordem dos dirigentes, torturam os homens um a um, buscando
segredos científicos e militares, violentam as mulheres, desconhecendo que
toda a nossa sabedoria científica e tecnológica não se encontra registada na
memória dos cérebros pessoais, mas na do Grande Cérebro Electrónico,
que, se forçado, implodirá, apagando os arquivos, projectando-os para a
memória oculta de um satélite orbital, que, se igualmente forçado,
explodirá, apagando definitivamente da face da Terra a existência da Nova
Europa.
Sem a conexão ao Grande Cérebro Electrónico, registamos apenas uma
memória existencial, a recordação das acções, comportamentos e
raciocínios que constituem a unidade da nossa identidade pessoal, a nossa
biografia, não raro ficcionada a partir da realização virtual dos nossos
desejos.
Sem aquela conexão, cada cidadão nada sabe.
Literalmente, nada sabe, nem mesmo pensar com correcção.
Algumas das nossas crianças, filhas da comunidade, habitando em
Colégios, estão a ser carregadas em camionetas arqueológicas e levadas
como escravas para a Velha Europa, como se houvesse futuro e o mercado
de escravos deste território necessitasse de novos abastecimentos após a
invasão oriental.
Não percebem que só a morte os espreita, a Grande Ásia aniquilará sem
piedade todos os Bárbaros da Velha Europa e, consequentemente, as nossas
crianças, entre eles confundidas.
De nós, neo-europeus, desconhecemos o que esperam.
Porventura, tentarão trocar as nossas descobertas científicas pela
sobrevivência do nosso povo, transferindo-nos para regiões despovoadas do
continente americano, como a América Central ou do Sul.
Nas nossas ruas, ora imóveis, apodrecem cadáveres de neo-europeus,
amontoados anarquicamente.
Receosos da peste, que de dez em dez anos atravessa a Velha Europa,
exterminando um terço da população, chefes militares bárbaros ordenam
que se juntem os cadáveres em pirâmides, espécie de piras improvisadas,
lançando-lhes fogo.
O fogo do mal, da discórdia, da violência, do ódio, o fogo dos antigos
regimes pré-históricos fundados no terror de deus e dos homens.
Desligada do Grande Cérebro Electrónico, a minha razão fraqueja, um
sentimento novo aflora-se-me, pudor talvez, quiçá comoção, o sangue
ruboriza-me as faces e levo a mão direita à boca como um antigo gesto de
execração e piedade.
Sinto-me triste e impotente.
III

A PRÉ-HISTÓRIA E O «HOMO HUMANUS»

Presumo não encontrar modo mais correcto de narrar a vida das


instituições da Nova Europa do que descrever a minha própria vida.
Tudo o que experimentei nos meus 90 anos de existência em nada se
singulariza e nenhuma etapa da minha vida se mostrou mais especial ou
singular do que a dos meus restantes concidadãos.
Como os meus concidadãos, possuo uma saúde forte, permanentemente
controlada pelo Grande Cérebro Electrónico através de roupas fisiológicas,
que interpretam os sinais emitidos pelo meu corpo e me auguravam poder
comemorar os 130 anos e assim, por mérito e direito biológico, ser admitido
no restrito Conselho dos Pantocratas.
Sou, como todos os neo-europeus, absolutamente normal, nascido,
integrado e crescido nas instituições reitoras da Nova Europa, sem nunca ter
sofrido uma Multa Comportamental, condição absolutamente necessária
para se ser elevado ao cargo de Sincretista e, depois, de Reitor, duas
superiores categorias técnicas antes da de Pantocrata, esta unicamente
acessível por idade.
Tolerantemente, os Pais Fundadores, autores da Grande Ordenação,
concluíram que o tempo tudo ilumina de sensatez e que as resistências da
juventude, até cerca dos 35 anos, desde que equilibradas com o
cumprimento das Multas Comportamentais, podem, posteriormente, na
hipervelhice, ser esquecidas, e os seus autores, outrora fautores de desvios,
compensados com a integração no Conselho dos Pantocratas, para que
ideias singulares possam nele florescer.
Ao contrário dos habitantes dos Baldios, não tenho nem pai nem mãe…
PENSAR MAS NÃO FALAR

… Senti-me na necessidade de interromper o meu relato e de subir ao


terraço.
O clamor dos meus concidadãos assim me forçava a consciência.
Guinchos e berros estridentes assaltavam-me os ouvidos externos,
despreparados para a audição de ruídos exteriores.
«Socorro», a palavra que me atordoava a consciência, palavra mais
hesitantemente gaguejada do que gritada, recuperada do fundo inconsciente
da memória, já que a comunicação com o Grande Cérebro Electrónico e a
intercomunicação mental telepática entre os nossos cidadãos era operada
através da linguagem informática Universalis, uma nova língua criada pelos
cientistas adjuntos dos nossos Pais Fundadores, baseada nos estudos de
Descartes, Pascal, Newton e Leibniz sobre a «Mathesis Universalis»,
conjugando simultaneamente as antigas letras do alfabeto fonético romano e
os dez algarismos naturais.
Há cerca de 50 anos que os cidadãos da Nova Europa não falam, se por
falar se entender a activação fisiológica do aparelho fonador.
Porém, nunca como desde então o homem tanto «falou», ou, melhor,
comunicou, se por «falar» se entender a comunicação recíproca entre o
membro individual de uma comunidade e os restantes elementos dessa
comunidade, seja dirigindo-se em particular à mente de um interlocutor,
seja dirigindo-se ao Grande Cérebro Electrónico.
Se necessário, um implante neuronal específico, designado por Lector–13
– o décimo terceiro aperfeiçoamento – traduz a linguagem matemática para
a linguagem escrita românica da língua de origem do neo-europeu,
projectando-a, como programa acessório, nas lentes oculares ou no ecrã de
parede mais próximo.
Caso não precise de tradução, a linguagem Universalis é por todos
entendida e constitui o meio universal de comunicação entre os cérebros
dos neo-europeus.
Noventa por cento dos neo-europeus só comunicam por linguagem
Universalis.
Existe, porém, um pequeno número de habitantes que gosta de privilegiar
a língua de seus pentavós, ou mesmo línguas há muito desaparecidas, como
o latim e o grego clássicos, o baixo teutónico, o celta escandinavo, o rúnico
ou o aramaico, o crioulo do latim hispânico.
Existem programas informáticos, intitulados «Aprendizagem de
Línguas», disponíveis para gravação no hipercórtex individual, que lhes
permitem «falar» mentalmente com facilidade todas estas línguas.
O objectivo último da nossa sociedade comunitária reside na garantia de
conferir prazer a todas as actividades dos cidadãos, permitindo-lhes o gozo
racional de um deleite natural.
Os Reitores não podiam deixar de satisfazer este desejo linguístico a um
grupo de cidadãos, ainda que fortemente minoritário.
Como medida de recurso, os Agenciadores receberam ordem para, no
implante neuronal introduzido no final do primeiro ano de idade em cada
neo-europeu, ser introduzida uma língua europeia falada até há cerca de 200
anos.
É justamente neste fundo inconsciente da memória individual que os
nossos concidadãos detectaram a palavra que tanto lhes figurava o seu
actual estado de espírito como lhes poderia invocar o necessário auxílio –
«Socorro».
Infelizmente, nada nem ninguém os pode socorrer, sequer organizá-los ou
orientá-los, prestando-lhes a direcção de um esforço comum de defesa.
Estranhamente, ora desligado do Grande Cérebro Electrónico, sinto um
aperto no coração, o meu corpo voltou a prestar informações sentimentais
ao meu cérebro racional e este retorquiu com a emergência da comoção ou
do sentimento de compaixão pelo destino dos meus concidadãos, fazendo-
me experimentar um afrontamento no peito, uma dor na zona do coração,
reflectindo simultaneamente a piedade e a impotência que sinto.
Os Bárbaros atacam barbaramente, como neles é de seu natural, usando
do poder de laser, de fotão e de fogo para exterminar os nossos edifícios, e,
não raro, as mais rudes pedras para atacar os neo-europeus, esmigalhando-
lhes a cabeça.
Não descansam de martelar as cabeças dos Cidadãos Dourados com
pedras até que por todos os orifícios o crânio se desfaça em carne e sangue.
Não existe limite para a crueldade dos povos dos Baldios que, pela
primeira vez em dois séculos, atravessam impunemente as nossas
fronteiras.
Desonra-me nada poder fazer, habitar a Reitoria central de um
Conglomerado e, por falta de energia, não poder activar os mecanismos de
defesa.
Fogo, ódio, assassínio, sangue e medo constituem a paisagem que se me
afigura do terraço.
Nada receio, os portões de acesso aos andares do Museu e as janelas da
Reitoria encontram-se blindados, construídos em plastónio, material
sintético que nenhuma arma bárbara consegue violentar ou destruir.
Se não em imagens, nunca tinha visto bandos de animais, seres bestiais,
sub-humanos, avançando, tudo destruindo.
Carros de combate de ferro, inexistentes na Nova Europa há mais de
duzentos anos, contornam a Reitoria, disparando infrutiferamente sobre as
janelas térreas.
A nossa população, amedrontada, desprovida de ordens do Grande
Cérebro Electrónico, não detectando soluções no seu hipercérebro racional,
reage também animalescamente, escondendo-se, correndo apavorada,
fugindo caoticamente sem direcção, esmagada e morta por uma cortina de
fogo e por um turbilhão de bombas.
Uma bandeira vermelha com o desenho estilizado de uma águia dourada
repousa no largo da Reitoria.
Em torno da águia, escritos a letra germânica, desenham-se os nomes dos
clãs invasores.
Não consigo ler, desconheço os caracteres em que foram escritos, embora
se assemelhem aos românicos, desenhados porém de outro modo.

A HISTÓRIA E A PRÉ-HISTÓRIA

… explicava que não tinha pai nem mãe…


Antes, devo reafirmar com solidez que a Nova Europa abandonou há um
século – em 2184 – o sistema de comunicação através dos órgãos
fisiológicos com que a natureza benignamente dotara o Homem.
O Grande Cérebro Electrónico, a transformação do genoma em sistema
bio-informático hereditário e a criação do hipercórtex tornaram-nos
verdadeiramente humanos, anulando a carga animal que a humanidade
transportou ao longo de meio milhão de anos.
Os nossos arquivos centrais, os nossos museus e os conteúdos históricos e
culturais transmitidos e registados nas nossas redes neuronais designam por
PRÉ-HISTÓRIA todo o longo período até à libertação do cérebro humano
das pulsões instintuais e da necessidade de comunicação por via da fala, isto
é, até ao século XXII.
Com a criação biológica do hipercérebro individual, elevámos a massa da
caixa craniana humana para 2000 centímetros cúbicos, mais 500
centímetros cúbicos do que a do Homo sapiens sapiens, e designámos o
novo homem – nós próprios – como HOMO HUMANUS.
Para isso, foi necessário separar o acto de nascimento do acto de
gravidez, já que a evolução artificial que provocámos no volume do cérebro
supera a dilatação dos ossos pélvicos na mulher no acto de parir.
Fomos forçados a inventar os Criatórios para recolher e reproduzir as
células sexuais femininas e masculinas e criar placentas químicas,
substitutas das naturais.
Assim, desde aquele ano redentor de 2184, todas as crianças da Nova
Europa nascem em Criatórios, desconhecendo a existência de paternidade.
Consideramos o Homo sapiens e os seus cerca de 100 mil anos de
existência terrena ainda integrados na Pré-História, definindo esta como o
longo período em que os ditames biológicos do corpo dominaram, directa
ou indirectamente, a racionalidade humana.
Para nós, de facto, a História começou em 2184, quando a humanidade se
libertou definitivamente do determinismo do corpo e o Homem se tornou
um puro cérebro racional, um puro ser pensante, sem crenças metafísicas,
religiosas ou científicas, substituídas pela certeza de que um problema
complexo se divide em elementos simples, os quais (ou a maior parte dos
quais), se solucionados, solucionam o problema.
Esta a nossa única crença, verdadeiramente mais uma convicção do que
uma crença.
Para além dos nossos princípios éticos, que nos definem como
civilização, não temos outras convicções e não presumimos outras
verdadeiras em todo o universo.
Até 2184, mais do que de comida, o Homem, como uma criança
caprichosa e irritadiça, alimentava-se de crenças.
A maioria das crenças baseava-se em temores e superstições infantis, tais
como a milagrosa crença na existência de um deus invisível, dotado de
infinitas potencialidades, como a ubiquidade, a omnipotência, a
omnisciência; a crença na existência de fantasmas ou de espíritos de seres
humanos mortos regressados à Terra, cuja «alma», que nome estranho –
uma realidade insubstancial eterna, uma espécie de sombra esfumada ou um
condensado vaporoso –, perduraria para além da morte do corpo; crenças
exóticas e esquisitíssimas, as mais extravagantes possíveis, como, por
exemplo, a defesa e a luta por sociedades igualitaristas, nas quais, sem
directo controlo superior, como o do nosso Grande Cérebro Electrónico,
todos os homens viveriam em estado de pureza quanto à posse, virgens de
bens, satisfeitos de necessidades e abastecidos de produtos de todo o tipo;
ou a crença em sociedades organizadas de um modo totalmente oposto,
cada um por si, sem laço de comunhão com os seus concidadãos para lá da
exploração e da humilhação, como verdadeiros animais.
Eram crenças religiosas e metafísicas, visões do mundo, sistemas de
ideias ou ideologias, isto é, sistemas de palavras vazias, sem referente real,
especularizadas, fantasias infantis que, sempre que vazadas em violência,
constituíam autênticas catapultas de guerra contra outras religiões, outras
metafísicas, outras ideologias ou outros sistemas políticos.
Mais do que as necessidades biológicas, foram as crenças as molas
desencadeadoras de guerras de extermínio, de devastações, de horrorosas
crueldades, como o provam os instrumentos de tortura que se encontram
registados nos nossos museus.
Contra estes sistemas mentais delirantes, esvaziados de realidade,
lutavam os nossos precursores, cientistas e filósofos, desbravando na
floresta imensa de enganos e falsidades a verdade sempre a mesma, apenas
revelada em toda a sua extensão aquando da fundação da Nova Europa: o
homem foi, era – não é mais – um animal tão sanguinário como os restantes
animais.
De facto, a História, a verdadeira História, só se iniciou em 2184, quando
o homem se libertou definitivamente da sua animalidade, da recordação do
cheiro e do sabor do sangue, do gosto da carne, crua ou cozinhada.
Dividimos a Pré-História – a mais longa fase da história da evolução da
humanidade – em dois grandes períodos alimentares, fundamento da vida
social do Homem.
O primeiro, porventura ao longo de cerca de três milhões de anos,
baseado no regime frugívero, momento de ampla harmonia do animal-
homem com a sua mãe-natureza.
O segundo, profundamente negativo, a partir do momento em que o
homem experimentou o gosto do sangue e da carne, crua e, mais tarde,
cozinhada.
A caça, o sangue quente, a confecção da carne e do peixe pelo fogo,
colocaram o homem à mercê das pulsões instintuais do corpo, das forças
fisiológicas dos músculos, desenvolvendo-lhe a razão até à dimensão de um
crânio com cerca 1500 centímetros cúbicos.
Quando o Homem se tornou carnívoro, operou uma profunda regressão
na escala da evolução, retornando ao estado de mamífero carnívoro, como o
leão, o lobo ou a raposa.
Constituiu um autêntico retorno à bestialidade reptiliana e mamífera.
Caso tivesse permanecido frugífero, acrescentando uma dieta de cereais e
vegetais, mesmo passada pelo fogo, a libertação das camadas neuronais do
neo-córtex com a consequente evolução natural para o hipercórtex ter-se-ia
processado naturalmente nos últimos 100 a 50 mil anos.
O sangue e a carne fresca, cozida ou assada, dominaram o cérebro do
homem e enviesaram-lhe a sua natural evolução como rei pacífico de toda a
natureza, com ela harmonizado.

O REGIME ALIMENTAR GUSTATIVO

Hoje, com a Nova Europa – felizmente que me foi dado viver tempos
recentes –, ultrapassou-se a fase carnívora da humanidade.
E mesmo a fase vegetariana da humanidade.
Regressámos, com novas qualidades, à mais genuína e primitiva fase
humana.
Não, não nos tornámos frugíveros sem mais.
Alimentamo-nos do que de melhor existe entre os frutos, os cereais, os
legumes e os vegetais, mas atomizados, condimentados com elementos
químicos regeneradores do corpo e aspergidos directamente para a boca
através de pequeníssimos pulverizadores portáteis.
Estes são enchidos por via de uns tubos verticais elásticos existentes em
todas as paredes dos edifícios dos Conglomerados.
Designamos o nosso regime alimentar por Sensitivo ou Gustativo, já que
anulámos o fenómeno da mastigação.
Limitamo-nos a inalar o pó do pulverizador em conjunto com a inspiração
de oxigénio. Distinguimos os sabores através do olfacto e do paladar.
A um homem racional cumpre uma alimentação racional, isto é, uma
alimentação adequada a cada actividade e a cada estádio físico e biológico
do corpo.
Nenhum elemento tóxico ou venenoso é ingerido pelo neo-europeu,
nenhuma molécula nociva à natureza saudável do seu corpo, e todos os pós
sorvidos possuem componentes bioquímicos que potenciam os diversos
sistemas biológicos do corpo.

Na Pré-História o Homem alimentava-se de crenças fantasiosas e de


carne animal, intoxicando a mente com as primeiras e o corpo com a
segunda.
Na Nova Europa nasceu um novo homem, naturista e naturalista,
dispensando os nutrientes agressivos, seleccionando a quantidade em
função da massa muscular, da estrutura esquelética e do peso e tamanho do
corpo, anulando a trituração e a ruminação dos alimentos, restringindo
saudavelmente a necessidade de alimentação ao seu gosto e sabor,
espiritualizando-os.
Assim, o sumo dos bagos de uvas reduz-se ao seu sabor adocicado, os
frutos diversos aos seus néctares gustativos, não raro acompanhados de um
odor natural apropriado, incendiando de volúpia os sentidos.
Os pulverizadores oferecem os sabores e perfumes mais diversos.
Por exemplo, um leque diversíssimo de modalidade de castanhas naturais,
desde a europeia à castanha oleosa do Pará, na América do Sul, e à castanha
japonesa adocicada.
Com uma alimentação frugal, que evita a formação de tecidos adiposos,
como os resultantes da compressão dos alimentos por fogo, tanto o corpo
explende na sua máxima forma, dotado de recortes sadios e robustos, como
se extrai dos nutrientes a sua máxima vitalidade.
Elevámos à suprema potência os sentidos do olfacto e do paladar, os
quais, conjugados no nosso cérebro, deliciam os sentidos tanto quanto os
povos pré-históricos se deliciavam com fervorosos nacos de carne e peixe
assados.
Por inutilidade, na transformação bio-informática do genoma humano,
desactivámos as funções do intestino grosso e do ânus.
Sem elementos inúteis ou tóxicos, o sistema secretório das fezes foi
anulado do corpo do neo-europeu, podendo ser reactivado a qualquer
momento, bastando para tal forçar o corpo a assimilar de novo alimentos
sólidos.
Vivemos do exclusivo sabor e do gosto de frutos, de cereais e de vegetais,
simples ou cruzados, puros ou condimentados, numa dieta quase infinita,
que em tudo apura e requinta os sentidos, espiritualizando-os, tornando-nos
verdadeiros humanos.
Os pulverizadores portáteis, do tamanho da palma de uma mão, são hoje
as antigas cozinhas, os antigos refeitórios ou restaurantes, cujas imagens
figuradas nos livros dos museus me espantam e admiro.
Em cada pulverizador, existe comida suficiente para alimentar um neo-
europeu durante uma semana.
Assim nos temos alimentado desde que os povos bárbaros dos Baldios
invadiram a Nova Europa.
A mim, escasseia-me a água, mas, comedido como sou, presumo
prolongar o depósito da Reitoria até ao final da escrita deste livro, que
esconderei num receptáculo de plastónio, impossível de violar com a
tecnologia dos Bárbaros da Velha Europa.
Tenho esperança de que seja aberto mais tarde, muito mais tarde, por
cidadãos impolutos de uma futura nova Nova Europa.
Poderão então constatar e registar nas suas memórias históricas ter
existido uma verdadeira civilização racional, uma humanidade
verdadeiramente humana, que sucumbiu à malícia animal e aos instintos
bestíferos.
Auguro que não se repita o grande erro da Nova Europa, concentrando a
totalidade da sociedade na dependência de uma única forma de energia.
Os nossos descendentes, quando e se os houver, deverão diversificar as
fontes energéticas – é a grande lição do aniquilamento da Nova Europa.
Somos – talvez – a primeira civilização que sucumbe e desaparece sem
ter experimentado um longo período de decadência.
Encontrávamo-nos no auge das potencialidades, preparávamo-nos, como
diziam os patriarcas do Conselho dos Pantocratas, para assaltar os céus e
retomar o antigo plano do Império Americano de habitar pacificamente
novos mundos no espaço, possivelmente Marte.
Nunca concebemos, julgávamos mesmo ser impossível, que os Mandarins
asiáticos pudessem bloquear as oito megacentrais de energia instaladas no
centro da Terra.

O SINAL

Ontem, de madrugada, de repente, inquietando-me, mesmo assustando-


me, uma das paredes do meu gabinete na Reitoria abrilhantou-se, iluminou-
se, revelando a sua virtualidade de ecrã de comunicações.
Formou uma pantalha cinzento-escura constituída pela forma primitiva de
electricidade estática.
Hesitei.
Presumi serem blocos fotónicos remanescentes, soltos, derivados dos
Acumuladores, circulando avulsos na rede de comunicações.
Quando me sentei a confeccionar a tinta sintética para abastecer a minha
caneta museológica, a parede acendeu-se e apagou-se de novo,
intermitentemente, o que arraigou em mim a suspeita de serem blocos
fotónicos livres circulando na rede.
Quando já tinha composto duas páginas de rascunho, para, após uma
prévia conferência, as passar a limpo em folhas de almaço, que constituirão
o todo do livro, a parede tornou-se de novo ecrã, cintilou uma luz branca
acompanhada de um estranhíssimo ruído de fundo, um som metálico e
homogéneo, próprio das ligações electrónicas avariadas.
Inquieto com a ligeiríssima suspeita de que a tremeluzência do ecrã e os
sonidos contínuos podiam esconder a tentativa de ligação humana,
aproveitando a energia depositada nos Acumuladores dos Conglomerados,
já não consegui retomar a escrita.
Se fosse verdade, significava que na Nova Europa se organizava, não um
movimento de resistência ao invasor, não me atreveria a pensar semelhante
barbaridade, sabendo como somos e fomos educados num genuíno
pacifismo, mas, antes, um movimento de sobrevivência.
Mesmo desligados do Grande Cérebro Electrónico, devemos obedecer
aos princípios da Grande Ordenação e não permitir que a insegurança e o
desespero nos abandonem ao nível animal da raiva e da revolta.
Alguém, algures, estaria congeminando um plano de sobrevivência.
Sabendo que eu me encontrava isolado no edifício da Reitoria, tentava
comunicar comigo.
Senti-me desassossegado, de novo dominado pelas minhas emoções,
cruzavam-se dentro de mim sentimentos de medo e esperança, mágoa e
júbilo, arrastava o corpo de sala para sala, de cadeira para cadeira, sempre
de olhos na parede salvadora, ansiando que rebrilhasse.
Sim, reluziu de novo, a espaços, ora muda, ora ruidosa, mas sem
comunicação humana.

A FAMÍLIA DE AFINIDADE

Porventura, o elemento mais forte, mais dinâmico e mais institucional da


Nova Europa reside – residiu? – na estrutura organizativa da família.
Os nossos Pais Fundadores inspiraram-se numa frase da Utopia, do
reverendo e chanceler Thomas More:

«Assim, a república utopiana forma como que uma única e mesma


família.»

Lentamente, desde 2184, a família tradicional, assente exclusivamente no


sexo e na reprodução, unida pela educação dos filhos, foi desaparecendo.
Nesta data, já se encontrava consolidada a nova organização familiar e,
desde então – existe sempre uma ou outra excepção, perfeitamente
consentida –, a família tem-se organizado segundo os ditames da Grande
Ordenação, que evidencia ser mais duradoura e mais sólida, acompanhada
de abundante prazer, uma família por afinidade de interesses e de objectivos
do que uma família assente na sexualidade reprodutora.
É o que designamos, em geral, por «Família de Afinidade», comum à
maioria dos neo-europeus, excepto em alguns Conglomerados dos antigos
Norte da Suíça e Sul da Alemanha, que optaram pela antiga família, um
homem, uma mulher e um ou vários filhos.
Menos de 10 por cento da população da Nova Europa segue esta antiga
forma de acasalamento, na qual os filhos reconhecem em perfeição os pais
biológicos, que são igualmente os pais sociais.
Mais de 90 por cento dos neo-europeus seguem a forma aconselhada
pelos Pais Fundadores: a Família de Afinidade.
Segundo os nossos Pais Fundadores, a família é uma construção
diferenciada e multipolar que não deve vincular-se nem submeter-se à
existência de sexo e reprodução.
Família, actividade sexual e reprodução genética constituem três
realidades distintas, satisfeitas de três distintas maneiras.
Família é, na Nova Europa, todo o grupo humano que deseja viver em
conjunto e assim o manifesta, registando-se no Grande Cérebro Electrónico
sob um nome consensualmente escolhido por todos os seus elementos.
Não raro, adoptam nomes de árvores ou de animais, como «Carvalho»,
«Raposa», «Carneiro», «Castanheiro», ou de fenómenos naturais e astros,
como «Água», «Andrómeda» «Oríon» ou «Trovão» e «Raio».
É fortemente arbitrária a escolha do nome da família, deixada à
imaginação dos seus membros.
Vivem em conjunto, ocupando um ou vários andares dos edifícios de
plastifex, e, consoante o seu tamanho, são autorizados a retirar ou a
acrescentar andares ao edifício.
Podem ser dois cidadãos, independentemente do seu sexo – e geralmente
assim começam as famílias –, ou 50 hoje e amanhã 40 ou 60, consoante a
vontade individual dos seus membros.
Viver em família significa coabitar em permanência com os membros
desta e optar – uma opção lúcida e livre – por um conjunto de actividades
diárias em que o grupo participa tendencial e privilegiadamente, como o
desporto matutino, o estudo e o debate vespertinos, jogos electrónicos
nocturnos.
Com efeito, são os projectos e as actividades que prestam coesão à
família – praticar uma certa modalidade desportiva, nadar nas piscinas
atlânticas, participar no embelezamento dos Conglomerados, organizar
bailes e festas…
É por isso normal que os técnicos se juntem aos técnicos, os
Agenciadores aos Agenciadores, os artistas aos artistas, os desportistas aos
desportistas, os amantes de viagens aos amantes de viagens, os Reitores aos
Reitores.
Para contrariar a influência unipolar no perfil colectivo da família e
obviar a um leque variado de escolhas, nenhuma família pode ser
constituída por cidadãos que se dediquem exclusivamente a uma
actividade.
Eu, por exemplo, vivia numa família de 20 elementos, dos quais apenas
três eram Reitores, os restantes dividiam-se entre desportistas, técnicos e
artífices de redes bioneurais e lojistas de abastecimento de objectos
domésticos e de jardinagem.
Tínhamos em comum a designação, «Os Históricos», e o prazer – e o
usufruto – do estudo de objectos antigos, provindos de museus da Pré-
História Humana, isto é, até 2184.
Autorizada a sua integração pelo Grande Cérebro Electrónico, o novo
membro recebe um implante electrónico no neo-córtex frontal e
aperfeiçoamentos especializados no hipercórtex que lhe permitem visualizar
e aceder ao mesmo tempo a um conjunto de circuitos de informação sobre a
Pré-História da Nova Europa.
Combinávamos, por exemplo, debater durante um dia a Civilização Grega
ou a Revolução Industrial, os instrumentos de lavoura no Renascimento ou
no Neolítico, a dentição prognata do Homem de Neandertal ou os penteados
dos homens e das mulheres ao longo do Século das Luzes.
Tentávamos lobrigar, todos os meses, um fio lógico condutor para a
civilização humana.
Na parte inferior do edifício que habitava, residiam mais duas famílias,
uma de vinte, outra de trinta e cinco membros.
A primeira dedicava-se ao alpinismo.
A segunda, constituída em dois terços por diligentes elementos do sector
das tintas e dos vernizes, técnicos dos Criatórios, jardineiros e floristas e
técnicos de manutenção dos antigos castelos, dedicava-se, na cave do
edifício, ao aperfeiçoamento do ADN de plantas naturais, transformando
cada uma em pequenos laboratórios de medicamentos.
Para além de uma actividade em comum, que une e anima os membros da
família, partilham de gostos, não direi comuns, mas pelo menos
semelhantes na decoração das salas, na preferência dos sabores do pó
alimentício e nos locais de convívio colectivos.
Frequentam as mesmas lojas de abastecimento, as mesmas ruas rolantes e
visitam outras famílias que praticam actividades semelhantes.
Como se constata, a autorização do Grande Cérebro Electrónico para a
constituição de uma família não se prende com objectivos moralistas de
policiamento dos cidadãos.
Não.
A autorização é automática e reside apenas num registo que visa saber o
número de famílias e o volume médio dos membros de cada uma, de modo
que, sendo a pluralidade a fonte da mobilidade social e da felicidade
individual, a sociedade não se afunile quantitativamente em uma, duas ou
três actividades dominantes.
Não é crível que dois terços dos Cidadãos Dourados se dediquem a
actividades marinhas, é mesmo muito provável que tal não aconteça, de
qualquer modo o Grande Cérebro Electrónico garante que tal nunca venha a
acontecer, incentivando assim a pluralidade e a multiplicidade de
actividades, inibindo a acumulação monopolista destas.

Desconheço que futuro prosseguirá a instituição familiar. A Grande Ásia


defende acerrimamente a família poligâmica, sobretudo entre os seus altos
dirigentes, e cada Mandarim não tem menos de três mulheres que o servem
doméstica e sexualmente como verdadeiras escravas, totalmente obedientes
à vontade do seu senhor.
Frequentemente, os novos Mandarins possuem pequenos haréns,
substituindo por jovens as concubinas mais velhas, as mais usadas ou as de
mais fácil prenhez.
Os Bárbaros da Velha Europa retiveram a família tradicional,
monogâmica, mas, verdadeiramente, o homem superior do clã goza do
privilégio aberto e confessado de possuir amantes fora do casamento.
Os dirigentes dos Clãs possuem mulheres de vária espécie – loiras,
morenas, negras, mulatas, esqueléticas, gordas –, cada uma especializada
numa vertente da arte erótica.
O Império Americano, hipocritamente puritano, só reconhece a família
monogâmica, que defende religiosa e ideologicamente como um dogma
fixo e eterno, ilegalizando a existência de bordéis e a actividade de
prostituição pública.
A Nova Europa, distinguindo com clareza família de sexo e reprodução,
superou o antigo conceito de família, criando um novo, identificando-o, em
grande parte, com a vivência em comum de objectivos e actividades.
Eis a nossa família.
Os nossos Pais Fundadores consideraram a família monogâmica a
instituição mais pervertida da civilização europeia, fonte de todos os males
educativos, formativos e existenciais.
A prisão vitalícia de um homem a uma mulher e de uma mulher a um
homem (que de autêntica prisão legal se tratava) afunila os sentimentos de
solidariedade a um pequeníssimo agregado familiar, quebrando e
recalcando a amplidão universal do mesmo sentimento, que, para ser
genuinamente humano, devia ser alargado à totalidade da sociedade.
Devido à invenção artificial das famílias tradicionais e do testamento
legado aos filhos, erigiu-se, como um absoluto institucional, a propriedade
privada e desenvolveram-se os sentimentos de cupidez e avareza, de posse e
domínio.
Sem a família a quem legar o cúmulo de capital e bens, todos os conflitos
sociais se solucionariam, e o egoísmo, a avidez, a cobiça, a ganância, a
ambição interesseira, o desejo de posse e domínio, não encontrariam húmus
para se desenvolver.
Assim, foi determinado na Grande Ordenação fundadora ser o sexo
absolutamente livre.
Cem anos após a existência da Nova Europa, com as novas descobertas
genéticas, atingiu-se o grau de perfeição de desvinculação entre a mãe e o
filho, desvinculação genética mas também sentimental.
No princípio, devido à multiplicação de parceiros, desconhecia-se
voluntariamente a autoria da paternidade.
Poder-se-ia sabê-lo laboratorialmente, mas não o quisemos saber.
Foi o primeiro passo, os nossos filhos tinham mãe, mas não tinham pai.
Vinte anos depois, continuavam a ter mãe, a saber exactamente quem era
a sua mãe, mas, aos sete anos, davam entrada em Colégios de
Conglomerados distantes dos da sua naturalidade.
Até aos 15 anos podiam rever a sua mãe, se ambos o desejassem, mas
estas, comprometidas com outros homens, habitando novas famílias de
afinidade, sabendo que os seus filhos se encontravam bem, deixavam de
pensar nestes ao fim de quatro ou cinco anos.
Em menos de meio século, a Nova Europa provou ter sido um mito sem
fundamento a existência de instinto maternal permanente, justificador da
família tradicional.
Tal como as restantes espécies de mamíferos, a vinculação natural entre
mãe e filho existe apenas durante os primeiros anos, garantia da
sobrevivência do nascituro.
No caso humano, mal se dê a irrupção da sexualidade, por volta dos 11
anos, a vinculação é de imediato perdida.
A Nova Europa deu o passo seguinte: se da vinculação materna dependia
a sobrevivência do nascituro, caso a sociedade garantisse em perfeição esta
sobrevivência, a maternidade tornava-se um empecilho doloroso para a
mulher – nove meses de gestação e quatro, cinco anos de dependência filial
– e uma fragilidade sentimental para o filho.
Com a manipulação informática do genoma humano, foi bloqueada a
capacidade reprodutiva ao cidadão individual e a maioria das células
reprodutoras foi extraída do fenoma desde os momentos iniciais da
ovulação e transferida para Criatórios ou laboratórios e hospitais de
reprodução humana artificial.
Por prudência, não se extinguiu a capacidade reprodutiva humana.
Apenas foi bloqueada e a todo o momento poderia ser de novo activada.
Libertámos, assim, a sexualidade, e o prazer sensual a esta associada, da
sua consequência reprodutiva.
Neste sentido, todos os cidadãos da Nova Europa contribuem com as suas
células sexuais para a continuação da nossa sociedade, desconhecendo
porém se possuem filhos, quais e quantos, já que a reprodução é comandada
e activada por computadores que seleccionam as células segundo um único
critério – o da sua «saudabilidade», como dizemos, ou, dito de outro modo,
a sua sanidade e salubridade médicas.
Só células saudáveis masculinas se podem unir a células saudáveis
femininas.
As últimas gerações, habituadas ao Criatórios, não desconhecem, porém,
já ter estado a actividade reprodutiva no passado ligada à actividade sexual.

A SEXUALIDADE

Sempre que um homem deseja uma mulher ou uma mulher deseja um


homem, e ambos nisso concordam, o sexo existe na Nova Europa.
Sempre que um homem deseja um homem ou uma mulher, uma mulher, e
ambos nisso concordam, o sexo existe na Nova Europa.
Basta que os primeiros se dirijam aos segundos.
Este pode sugerir um tempo de espera, pode exigir conhecer o
desempenho do interpelante.
Neste caso, o primeiro transmite mentalmente ao interpelado imagens da
sua memória de outras sessões sexuais, porventura do último ou últimos
anos.
O convidado aprecia e responde.
Se estão de acordo, combinam um encontro em edifícios apropriados
existentes em todos os bairros dos Conglomerados, denominados «Casas de
Deleite», reservando de imediato um quarto através do Grande Cérebro
Electrónico.
Cada Casa de Deleite não tem menos de 10 mil quartos e pode receber
por dia, e recebe muitas vezes, cerca de 100 mil utentes.
Não existem fórmulas fixas nem modalidades exclusivas para a
actividade sexual.
Cada neo-europeu é absolutamente livre de escolher o seu parceiro ou
parceira sem outro limite que o do seu desejo e o acordo deste ou desta,
bem como as formas com que activa a sua sexualidade.
Por questões fisiológicas e anatómicas, não por questões morais, a
Grande Ordenação estabelece duas limitações para a actividade sexual.
O neo-europeu só pode iniciar-se na actividade sexual se o seu corpo já
estiver totalmente preparado para isso, portanto mais ou menos a partir dos
doze anos, e não pode ser usada violência sanguínea ou mutilação durante a
sessão.
Caso o interpelado não aceite o convite, agradece educadamente a
preferência e alega que talvez uma próxima vez.
A atracção entre ambos efectiva-se por motivos biológicos mas também
estéticos.
Biológicos porque não foi ainda possível – e nisso trabalhavam
afanosamente os nossos cientistas – anular o instinto animal de
acasalamento.
Embora sem células reprodutoras, continuam a sentir o desejo sexual
animal, mas, paradoxalmente, não vinculam a atracção física a uma
atracção amorosa permanente.
Sentem desejo, mas não sofrem do antigo sentimento do amor.
Ou, se se quiser, sentem amor apenas enquanto dura a atracção física.
Findada esta, o sentimento desaparece, logo reavivado se canalizado para
outro corpo.
O encontro sexual entre dois neo-europeus pode ser momentâneo, até
instantâneo, ali desejado, ali consumado e ali esgotado, ou prolongado.
Neste último caso, encontram-se amiúde na Casa do Deleite até que nova
atracção por outro corpo ocorra com maior intensidade.
Na Nova Europa nenhum homem é impotente e nenhuma mulher frígida.
Aconselhados por Agenciadores que conhecem os mais hábeis
movimentos sexuais, executando-os ao vivo como exemplo, na Casa do
Deleite existem os mais diversos instrumentos físicos e químicos que
exaltam as sensações gozosas, maximizando-as.
A sexualidade é considerada uma virtude do corpo doada pela natureza
para usufruto do prazer, seja pelo próprio, seja acompanhado.
Não se devem recusar os seus dons.
É assim considerado um crime contra a natureza desprezar o que a
natureza tão benignamente doou.
Sem necessidade de actividade sexual para a reprodução, ficou assim o
neo-europeu liberto para gozar inteiramente das potencialidades deleitosas
do seu corpo sem outra preocupação além do prazer pelo prazer, que é o
único prazer verdadeiro.

A EDUCAÇÃO

Não tive mãe nem pai, já o disse, e deles nunca senti falta.
Nasci num Criatório, no seio de uma placenta química, alimentado por
um líquido amniótico sintético e por artefactos apropriados.
A gestação artificial do feto durou seis meses, donde fui transferido para
uma incubadora.
Aqui, já dotado de funções sensório-motoras, realizou-se a maturação
física do corpo.
Vaporizadores mecânicos substituíram a alimentação do sangue pelo
cordão umbilical.
Um mês antes do nascimento oficial, aos oito meses, foi-me acoplado,
ligado e activado o hipercórtex, bem como os implantes neuronais no neo-
córtex natural.
Fui dos últimos neo-europeus a receber um hipercórtex artificial.
Hoje, o hipercórtex nasce espontaneamente do neo-córtex por via da
manipulação genética.
Desde o primeiro segundo, nascemos preparados para uma aprendizagem
electrónica e informática, dispensando-nos as antigas fases de evolução e
maturação cerebrais, como aprender a falar.
Andróides especializados propiciaram-me todos os estímulos necessários,
desde a alimentação por vaporização à articulação correcta dos membros.
Ao fim do primeiro ano de existência, recebi novos implantes cerebrais,
dotando-me de rudimentos da linguagem Universalis e exercitando-me na
comunicação mental.
Aos dois anos, saí do Criatório e fui destinado ao Colégio do
Conglomerado.
Aqui vivi até aos 15 anos, exercitando ao máximo a inteligência e os
processos racionais bio-neuronais e informáticos, aprendendo a comunicar
com máquinas-robots, inclusivamente andróides.
Fui entregue ao cuidado de dois Agenciadores.
Os Agenciadores são cidadãos especializados que optimizam uma
actividade física, social ou mental.
No meu caso, a actividade educacional.
Não se trata de ensinar, como o fazia o professor na Pré-História, mas de,
através de programas informáticos recebidos no hipercórtex ou de implantes
neuronais instalados no neo-córtex, conduzir a criança a exercer
procedimentos práticos sociais que a habilitem a extrair destes o máximo
rendimento e proveito, o conhecimento de línguas, de matemática e física,
de história.
Existem programas informáticos que agilizam a aprendizagem.
Os Agenciadores são técnicos que harmonizam estes programas com as
actividades sociais que a criança ou o adolescente deverá aprender para
retribuir à sociedade tanto quanto dela recebe em alimentação, conforto,
prazer e segurança.
Os programas do neo-córtex ou do hipercórtex necessitam de ser
neurologicamente activados para que o utilizador atinja uma competência
mediana na sua utilização.
Muitas vezes, no exercício destas actividades, as crianças são estimuladas
por andróides específicos.
Simultaneamente, as crianças recebem a visita de Acratas, cidadãos
habilitados para o aconselhamento cívico.
Os Acratas simulam no espaço do Colégio todas as actividades
profissionais e sociais que as crianças encontrarão no bulício diário dos
Conglomerados.
O Acrata é, por assim dizer, o prestimoso auxiliar prático do Grande
Cérebro Electrónico e tem como função fazer entender, por linguagem clara
Universalis e exemplos acessíveis, o que a Nova Europa espera do jovem
cidadão.
Um dos Acratas insiste semanalmente no papel revigorante da Liberdade
e convida o colegial a usar das suas potencialidades cerebrais para criar ou
inventar mecanismos que, no sentido de a aperfeiçoar, tornem a sociedade
mais poderosa e mais sólida, mesmo subvertendo ou recriando as regras
sociais estabelecidas, conferindo um suplemento de prazer ao corpo e ao
espírito dos neo-europeus.
O Colégio possui apenas uma finalidade: facultar ao futuro cidadão a
fruição de todas as experiências possíveis e das consequentes reacções do
Grande Cérebro Electrónico segundo os ditames da Grande Ordenação,
evidenciando o que é e não é possível fazer em sociedade.
Por isso, as crianças e os jovens são convidados pelos Agenciadores e
pelos Acratas a retirar o máximo rendimento e a activar com o máximo
desempenho as informações aleatórias presentes no seu hipercérebro e a
não se conformarem com os conselhos e os ditames classicamente
estabelecidos.
De certo modo, os Colégios encontram-se em rebelião permanente, e a
sua energia física é repetidamente esgotada em actos de contestação.
De facto, nenhum cidadão se torna mais dócil e participativo em adulto
do que aquele que na juventude pôde rebelar-se livremente contra as
instituições dominantes.
Não existe repressão na Nova Europa porque o cidadão é convidado à
desobediência ao longo da infância e juventude, experimentando os limites
possíveis da comunidade.
Caldeando-se na sublevação, entende posteriormente a necessidade das
instituições e torna-se seu defensor querido.
E, sempre que o desacordo o leva a desobedecer, solicita ao Grande
Cérebro Electrónico a experiência mental da vivência do que gostaria de ser
ou ver realizado.
Este regista na sua memória os mecanismos dessa experiência, como se o
cidadão a tivesse vivido.
A este cidadão, designamo-lo por Cidadão Dourado, cidadão de ouro, que
pode o que quer, que satisfaz todos os seus desejos e cujo elemento
permanente de vida é o prazer.
Os Acratas concedem autorização para os colegiais levarem a cabo a
experiência que quiserem dentro dos muros de plastifex da instituição.
Experimentarem novas formas de organização social, novas modalidades
de comportamento e de companheirismo.
Com a sua sensata sabedoria, continuamente aconselhados pelo Grande
Cérebro Electrónico, os Acratas sabem ser goradas todas essas novas
experiências, mas incentivam os jovens a realizá-las, estimulando-lhes o
prazer da descoberta e da novidade, mais tarde projectado em realizações
úteis e positivas.
Na verdade, o Grande Cérebro Electrónico contabiliza em mais de um
milhão por ano as propostas resultantes de novas experiências juvenis, mas
apenas dez são contempladas com a aprovação do Conselho dos Pantocratas
e têm direito a figurarem no Livro de Aditamentos à Grande Ordenação,
tornando-se doravante exemplo imitável e aconselhado.
Assim, o imensíssimo volume de actos de contestação morre frustrado,
sem consequências sociais práticas, não atravessando os muros dos
Colégios.

O DISTINTIVO

Desde o nosso nascimento, é-nos concedido um Distintivo.


É assim que denominamos o que na antiga Europa se designava por
«Nome» do cidadão.
Como um sinal informático em linguagem Universalis, o Distintivo é
inscrito nos genes desde o momento de formação da nossa primeira célula.
E, desde então até ao estado de post-mortem, constitui a nossa
identificação pessoal, pela qual temos acesso à comunicação mental com os
outros cidadãos e nos são abertos os ficheiros do Grande Cérebro
Electrónico.
«Distintivo» é um código mental constituído por 10 caracteres em
linguagem Universalis, formando um desenho único de formato labiríntico.
A inexistência de nome foi decidida pelos Pais Fundadores, que assim
desejavam quebrar a permanente tendência humana para a sobrevalorização
narcisista do eu e a consequente exaltação da personalidade individual.
Consideraram que uma das mais profundas causas da decadência da
Europa tinha sido a generalização entre os seus habitantes dos sentimentos
de ostentação individual, de vanglória, de jactância pessoal, da necessidade
de sobrevalorização das características e dos resultados pessoais, a ufania, o
orgulho desmedido, a soberba, a vaidade.
Assim, o grande sentido formativo da educação nos Colégios destina-se a
anular o sentimento individual do eu e a submeter todas as provas
individuais ao crivo das necessidades comunitárias.
A anulação da antiga família e a anulação do nome individual enraízam o
Cidadão Dourado de um modo mais profundo no seio da sociedade,
quebrando-lhe a herança genética individualista provinda dos primatas
superiores.
O único vínculo mental e sentimental que os nossos Colégios ensinam
reside no respeito ao todo social e no acordo entre as necessidades deste e o
prazer do cidadão.
O Colégio adestra competências bio-neuronais e informáticas
transmitidas ao hipercórtex pelo Grande Cérebro Electrónico.
O hipercórtex é continuamente aperfeiçoado com novos programas
adequados e novas aplicações, satisfazendo assim todas as necessidades
imaginativas dos jovens colegiais, como viajar na Lua em tempo real,
mergulhar no fundo do Mar Americano, assistir a antigos espectáculos de
circo, aprender a dançar o tango argentino, participar em concertos, mas
também aprender os mais complexos temas filosóficos, históricos,
astronómicos, físicos e matemáticos.
Nada se oculta, não se mente, não se engana nos Colégios, menos se
ilude.
O Grande Cérebro Electrónico responde a todas as questões com a
verdade pragmática da Nova Europa, que reside exclusivamente nos factos,
sem interpretações individuais.
Por via do ficheiro aberto com o seu Distintivo, todo o Cidadão Dourado
conhece a sua proveniência celular no interior do Criatório sem vincular as
células aos seus portadores.
É como se células gerassem células, e não homens gerassem homens.
E todos sabem que o seu Distintivo foi efectuado por sorteio informático,
que tanto podia ser este como aquele, e que a selecção das células que o
originou foi efectuada por computador através de uma combinação
algébrica harmónica entre as propriedades genéticas das células.
IV

O CONTACTO

Escrevo continuamente e não passei de um terço das informações que


intento deixar registadas.
O ecrã de parede tornou-se-me uma obsessão, não tiro os olhos dele.
Presumi ouvir sons momentâneos ininteligíveis.
Será que as antigas ânsias, ora retornadas à mente, desligada do Grande
Cérebro Electrónico, me levaram a escutar e a ver o que parecia
impossível?
Tenho a sensação de que vi, fugazmente, a imagem incerta e evanescente
de um dos mais respeitados Pantocratas, o mais velho, com 146 anos,
designado por Patriarca.
Fui de imediato ao terraço da Reitoria e confirmei o abandono total dos
espaços públicos pelos neo-europeus.
Pressinto, usando a velha intuição, há muito recalcada pela racionalidade
lógica do meu hipercórtex, que algo de muito importante sucederá em
breve, muito em breve, possivelmente destinado a superar este tormentoso
impasse, a expectativa de saber o que definitivamente sucederá à mais
perfeita civilização humana criada à face da Terra.
Escrevo com um olho na parede.
Todas as paredes, todos os muros, todas as superfícies lisas verticais são
constituídas, na área exterior, por película fotónica, funcionando como ecrãs
receptores de imagens.
Alguns, os principais, funcionam igualmente como emissores suplentes,
em linguagem Universalis, substitutos das emissões enviadas mentalmente
pelo hipercórtex de cada cidadão.
Porém, a pantalha intermitente, a preto e branco, continuamente ruidosa,
só aparece na parede frontal da secretária da minha sala de trabalho na
Reitoria, pelo que intuo haver tentativa deliberada de comunicação.
Trouxe todo o material de trabalho para esta sala e deixei-me ficar atento
ao mínimo ruído eléctrico.
O brilho intermitente tem vindo a desaparecer, substituído por um ruído
estático e homogéneo e um ecrã preenchido na totalidade por uma cor
cinzenta, o que confirma a forte suspeita de que o Conselho dos Pantocratas
tenta contactar-me.
Sabe que ou estou morto ou alojado na Reitoria, de portões de plastónio
cerrados, impedindo o acesso aos andares, inexpugnáveis pelas bombas dos
Bárbaros.
Projecto a minha energia no livro e continuo a escrever dia e noite, quase
não durmo, se dormir se pode chamar a uma sonolência inquieta com a
cabeça tombada sobre o tampo da secretária.
Na madrugada de hoje, despertei num ímpeto quando a parede luminosa
se encheu de imagens evanescentes, sem recorte definido.
Percebi que não eram blocos fotónicos avulsos desligados de uma central
ou de um Acumulador de energia, houvera explícita tentativa de
comunicação.
Com efeito, para minha substancial alegria, no final, num milésimo de
segundo, a imagem do Patriarca invadiu o ecrã.
Mais do que uma imagem, foi um clarão repentino no qual os meus olhos
presumiram descobrir o recorte da sua figura, mas, favorecido pelo meu
intenso desejo, não posso garantir em absoluto que tenha visto o respeitável
Patriarca dos Pantocratas.
Enquanto aguardo novo contacto, caso tenha chegado a haver uma
tentativa, continuarei o livro.

O ecrã de parede voltou a iluminar-se.


Uma pantalha cinzenta e preta cobre-o na totalidade.
Não retirei os olhos dela, imaginando a inscrição de uma mensagem a
qualquer momento.
Os gritos dos meus concidadãos tinham-me interrompido a escrita.
Fui ao terraço de novo.
Um espectáculo horroroso.
Os Bárbaros saqueiam lojas, carregam camiões primitivos com o saque.
Desprovidos de bens mínimos nas terras dos Baldios, regressam às suas
casas miseráveis com apetrechos suficientes para as mobilar.
Os bens mais preciosos, informáticos e electrónicos, não os sabem
utilizar, a maioria da população da Velha Europa não tem electricidade em
casa.
Vendê-los-ão no mercado negro comum a todas as cidades, melhor dito,
trocá-los-ão, já que o dinheiro é praticamente inexistente.
Só os dirigentes do Clãs têm dinheiro, o antigo, o euro, a última moeda a
ser criada na Europa, com que se abastecem de produtos americanos e se
socorrem de cuidados de saúde orientais, vivendo luxuosamente.
A Velha Europa nada tem, nada produz.
Tudo consome do exterior.
As populações vivem de hortas minúsculas, que as sustentam de sopas e
cozidos, e de animais domésticos, alojados em caves, escondidos da miséria
geral.
Os pombos, os cães e os gatos tornaram-se o alimento preferido dos
moradores das cidades, que os conservam e reproduzem em armazéns
secretos, aparentemente antigos casarões militares, e os trocam, vivos ou
mortos, por cereais, legumes e frutos.
As dez lojas do rés-do-chão do edifício da Reitoria foram assaltadas,
vandalizadas e queimadas.
O plastifex possui uma substância anti-inflamável, que controla o fogo,
limitando-o e apagando-o lentamente.
Rolos negros de fumo são exalados pelas portas da Reitoria.
Bandos rapaces acometem alguns neo-europeus cuja curiosidade os
desgraça, prendem-nos, atiçam-lhes fogo, vendo-os morrer de corpo
retorcido em chamas enquanto riem e galhofam.
Ardem como tochas móveis, esbracejando e esperneando.
Afasto o olhar, dirijo-o para o céu, ora mais azulíneo, sem a camada
protectora transparente da Grande Bolha Hiperatómica.
Nunca assim vi o céu, tão azul, brilhante, luzidio e belo, sem o tom
esbranquiçado de leite que o sistema de segurança lhe conferia.
Percebo que, como eu, os meus concidadãos se escondam nos andares
superiores dos edifícios, vejo-os a correr em debandada desordenada,
dominados por uma espécie de pânico controlado.
Puxam-se uns aos outros, empurram-se, apontam para as portas dos
edifícios mais altos do Conglomerado, ansiando por que o sistema manual
de bloqueio de portas se encontre a funcionar.
Estou seguro, as portas de acesso aos andares são de plastónio.
A escrita deste livro é vital e a sua futura sobrevivência mais vital ainda.
Constato, do terraço, que os meus concidadãos abandonaram as ruas e os
largos.
Ficaram apenas os Bárbaros e a sua barbaridade.
Bandos de bárbaros atiçam fogueiras com madeira partida dos móveis.
Protestam em altas vozes roucas, não encontram comida, só pó
alimentício, que gorgulha e não se dissolve em água.
Prevejo maior concentrado de violência nas próximas horas, não contra
nós, mas entre os bandos esfaimados.
Autocomprazem-se com o resultado das pilhagens, conferindo-o,
comparando-as entre si, trocando indicações mútuas no seu primitivo
linguajar inglês – uma língua hoje reduzida a 500 vocábulos – sobre como
as transportar e onde existirão mais mercadorias ou bens para roubar.
Corpos enlaçam-se no jardim da praça, fornicando de trás, como vemos
nos registos gravados dos primatas.
Entre os Bárbaros, os machos dominam as fêmeas.
Observo que algumas fêmeas protestam, não sei se pelo acto, se pela
posição.
Se não forem aniquiladas, dentro de nove meses as mulheres abundarão
de filhos, contribuindo para a volumosa taxa de natalidade da Velha
Europa.
Na Nova Europa, ao contrário, o número de nascimentos é limitado pela
equação entre os recursos naturais, o espaço disponível e as necessidades
futuras da população.
Cada Cidadão Dourado deve ter direito a um espaço vital de 50 metros
quadrados, tamanho mínimo das casas de habitação, neste caso destinadas a
um único cidadão.
Porém, mais do que espaços privados, os espaços públicos contam
igualmente para o número de crianças fabricadas por ano, de modo que
nenhuma praça, rua ou edifício fique atulhado de cidadãos.
Nada pior para a saúde mental dos Cidadãos Dourados do que as
contínuas filas de espera ou as salas a abarrotar.
Esperar para fazer aquilo que se tem ou deve fazer, cumprindo assim as
obrigações para o todo da sociedade, constituiria um tormento para o
Cidadão Dourado, estimulando-lhe genes de perturbação mental.
Desejar sorver pó alimentício e este encontrar-se esgotado nos
ventiladores de parede devido ao excesso utilização de um sabor não
previsto pelos Agenciadores constituiria uma perturbação na normalidade
quotidiana.
Desejar visitar certo Conglomerado e ser surpreendido com as ruas
rolantes cheias não é agradável e pode dar origem a uma certa irritação.
A causa orgânica de todas estas perturbações assenta, frequentemente, no
excesso de população.
Deste modo, aos Reitores é dado o alto privilégio de, abalizados pelos
estudos demográficos especializados dos Sincretistas e tendo em conta a
inultrapassável meta de 100 milhões de habitantes definida pelos Pais
Fundadores, anunciarem todos os anos o número de crianças que os
Criatórios produzirão.

Pelos movimentos avulsos na praça, percebo que todos os neo-europeus


continuam fugindo numa mesma direcção, as bocas dos prédios.
Se algum se distrai, logo outro o arrasta ou o empurra, forçando-o a
seguir para o interior dos edifícios.
Entendo agora.
Movimento tão ordenado só pode ter origem numa ordem.
Receberam uma mensagem, certamente boca a boca.
Certamente do Conselho dos Pantocratas.
Não pode ter outra origem.
Percebi.
As naves orientais vão pulverizar os Bárbaros, sugar-lhes as células e as
moléculas e projectá-las no espaço interplanetário.
Os Bárbaros, desprevenidos, sabendo-se senhores das ruas, ora imóveis,
presumindo que a fuga dos neo-europeus se deve ao medo, desaparecerão
num milionésimo de segundo, pulverizados pelos canhões fotónicos e
sugados pelos mega-aspiradores das naves asiáticas.
Não quero ver esta mortandade, só diferente das antigas chacinas das
guerras europeias por ausência de sangue e corpos estraçalhados.
Ora os Bárbaros ocupam as ruas, ora desaparecerão, como se nunca lá
tivessem estado.
Desaparecerão pura e simplesmente.
Os seus corpos, vaporizados.
Os bens roubados, os tanques militares, os camiões a gasolina, lá ficarão,
como despojos de um tempo que foi.
Uma guerra higiénica.
E despreocupada.
Não serão necessárias preocupações com alojamentos de feridos ou
provisões para os prisioneiros.
Cemitérios novos serão igualmente escusados.
Estavam, deixaram de estar.
Existiam, deixaram de existir.

CONSUMO – PALAVRA MALDITA I

Uma das palavras semanticamente mais negativas da Nova Europa é a


palavra «consumo», e, evidentemente, os seus derivados, como, por
exemplo, «consumismo», esta última inserida no texto da Grande
Ordenação com um sentido altamente pejorativo, um sentido maldito.
Narra a história da fundação da nossa civilização que a Europa da Pré-
História entrou em decadência, nos finais do século XX, quando os seus
cidadãos, orientados por políticos eticamente medíocres, se abandonaram a
um consumismo feroz e desenfreado, abusando dos recursos da Terra,
rompendo o ciclo natural harmonioso criado por esta desde tempos
imemoriais.
Cada europeu vivia majestaticamente, como dono e senhor da natureza,
consumindo 20 vezes mais do que qualquer outro habitante do planeta, com
a excepção dos cidadãos do território do actual Império Americano.
À sua mesa, tudo era possível, vinho da África do Sul, passas da
Palestina, carne da América do Sul, frutos secos do Canadá, pimenta da
Índia, líchias da China, tâmaras da Líbia, carne de canguru da Austrália e de
crocodilo da Amazónia.
O europeu fartara-se dos seus próprios produtos e dos limites com que a
natureza os gerava.
Ambicionava infantilmente sorver morangos todo o ano, misturá-los com
sumo de manga africana e de papaia americana.
Recusava a bela manteiga se não adicionada com alho chinês ou indiano
e, na roupa, à lã e à fazenda europeias, preferia a caxemira oriental ou a
seda chinesa.
As crianças aprendiam, no seio das famílias e nas antigas escolas,
absurdos apotegmas, como «ter mais é ser mais» e «ser mais é ter mais
poder».
Toda a existência da antiga Europa se resumia, assim, a «ter mais», mais
propriedade, mais dinheiro, mais objectos de uso, e quanto maior fosse o
consumo e a ostentação individual maior a relevância obtida no seio da
comunidade.
Ter mais era ser mais rico e ser mais rico era ser mais poderoso, isto é,
poder consumir mais do que os restantes cidadãos.
Nestes tempos de delírio irracional, não se esgotava o uso de um objecto,
este era deitado para o lixo a meio do seu tempo de vida, trocado por outro
igual, porventura com um novo adereço insignificante.
Viaturas, roupa, mobiliário, electrodomésticos (ainda não existiam
electro-humanos ou robots, muito menos andróides especializados), nada
era explorado até ao seu limite de existência, logo substituído por novo
modelo.
Idolatravam o mercado, conceito metafísico que agrupava tudo o que
podia ser comprado e vendido, sobretudo o dinheiro, que perdera a sua
importância como valor intermediário e se tornara uma mercadoria igual às
outras.
Comprava-se e vendia-se dinheiro para acumular mais dinheiro.
Funcionava, assim, um individualismo hedonista solto, desgovernado,
totalmente irracional, pelo qual cada europeu, presumindo atingir o mais
elevado nível de consumo, estimulava os sentimentos de concorrência, de
competição e de inveja social nos seus concidadãos, forçando-os a regrarem
a sua conduta do mesmo modo, gerando uma guerra surda de todos contra
todos, não através de armas, mas através da posse e ostentação de bens.
As elites políticas, económicas e sociais, em vez de apelarem à
frugalidade, ao comedimento, à solidariedade de todos com todos,
afirmavam-se como intensas consumidoras, desejando tudo para si,
sacrificando as camadas sociais mais humildes.
Para o neo-europeu, o sentido da palavra «consumir» significa, como
referimos, algo de totalmente negativo, designando a utilização de um
objecto ou serviço social de que não se necessita, uma espécie de
comportamento excrescente, a exigir Multa Comportamental por parte do
Grande Cérebro Electrónico, aplicada pelo Agenciador.
A palavra, aliás, foi retirada do vocabulário comum Universalis,
substituída por «abastecimento».
Sempre que um Cidadão Dourado, educado pela formação ministrada nos
Colégios e conservada em registo informático na sua mente, necessita de
um objecto ou produto, envia um pedido mental ao Agenciador.
Aplicando o lema, inscrito na Grande Ordenação, de que ninguém pode
possuir mais do que precisa para cumprir as suas funções sociais e sentir
prazer na sua vida individual, o Agenciador autoriza ou não, consoante o
leque de bens ou produtos possuídos pelo requerente.
Aprovado o pedido, o requerente dirige-se às Lojas de Abastecimento do
seu bairro.
Caso estas o não tenham, o solicitador dirige-se aos Grandes Armazéns
de Abastecimento existentes no seu Conglomerado.
Ali ou aqui, avia-se.
Por exemplo, todos os pedidos que versem as diversas artes são
integralmente atendidos, bem como todos os pedidos que se relacionem
com as actividades de ócio.
Porém, por absurdo, se alguém já possui um certo móvel doméstico e um
conjunto de copos proporcional à dimensão da sua família, verá indeferido
o seu pedido de novo mobiliário ou novos copos.
A carga negativa da palavra «consumo» provém justamente deste
conceito: possuir algo para além das necessidades sociais, intelectuais e
espirituais.
Assim decretado pelos Pais Fundadores, todas as instituições da Nova
Europa têm a absoluta certeza e os Cidadãos Dourados a absoluta garantia
de que nada do que é necessário falta a ninguém, mas também de que
ninguém possui mais do que deve possuir.
Por «necessidade» entende a Grande Ordenação a supressão de todos os
tipos de carências, físicas, sociais, mentais, para a integral realização de um
cidadão.
Devo confessar, com inteira verdade, que, devido a uma educação sóbria
e frugal nos Colégios, nunca chegou a um Sincretista, e muito menos a um
Reitor, uma só reclamação de um Cidadão Dourado, ansiando por obter
algo proibido por um Agenciador.
De facto, o requerente não tem de justificar o seu pedido, pede
simplesmente, designando o nome do que carece.
O Agenciador inscreve o pedido nos ficheiros apropriados do Grande
Cérebro Electrónico, que, em função da vida do requerente e do rol de
objectos, produtos, bens e serviços a ele vinculados, defere ou indefere.
Sempre que uma solicitação é recusada, o cidadão pode repeti-la,
justificando a necessidade que o objecto requisitado supre, alegando, por
exemplo, que se encontra em mudança de actividade principal ou tenciona
intensificar uma outra das actividades secundárias que pratica.
Neste caso, a requisição é imediatamente aceite, já que se encontra
predeterminado que a mudança de actividade primária ou secundária
constitui um bem vital para a saúde mental do Cidadão Dourado.
A prova de que o sistema funciona em perfeição reside na ausência de
reclamações acima do nível de Agenciador.
Este, em combinação com as decisões do Grande Cérebro Electrónico,
soluciona todos os problemas de Abastecimento do Cidadão Dourado.
Aliás, como expliquei, os Agenciadores também não recebem queixas,
apenas, de vez em quando, insistências.
Assim, todos se contentam com o que possuem para uso próprio, não
porque a sociedade os force a possuírem pouco, mas porque a ninguém falta
do que necessita para o desempenho agradável e correcto da sua existência.

TRABALHO – PALAVRA MALDITA II

Por falar em actividades, é importante reafirmar, com força inusitada face


aos antecedentes históricos, sobretudo às épocas europeias recentes, nas
quais o trabalho profissional se elevava acima de todas as restantes
ocupações humanas, que nenhum Cidadão Dourado trabalha.
Não existe trabalho na Nova Europa, como referi.
Provinda etimologicamente de um instrumento de prisão e tortura
aplicado aos escravos fujões ou rebeldes no Império Romano, a palavra
«trabalho» possui hoje uma carga tão negativa quanto a de «consumo».
São palavras, por assim dizer, historicamente malditas, acentuadoras da
desumanidade do homem, exprimindo tempos históricos nefastos ou
decadentes.
Por isso, «trabalho», no antigo sentido europeu da palavra, como
actividade diária exclusiva e obsessiva, absorventemente intensa, pela qual
se extraía um vencimento em géneros ou em dinheiro destinado à
sobrevivência, não existe hoje, como referi, nem se compreende como
possa ter existido como mentalidade dominante entre os séculos XVIII e XXI.
Hoje, o neo-europeu tem múltiplas actividades, múltiplas mesmo, mas
nenhuma é considerada «trabalho».
Não duas ou três, mas inúmeras, as mais diversas, consoante as suas
vocações ou inclinações.
Eu próprio, dando um exemplo existencial, superior sempre a todas as
descrições teóricas, além de Reitor dos museus do Conglomerado onde
habito e Reitor-Geral de todos os museus da Pré-História da Nova Europa,
pertenço a diversíssimos grupos informáticos, como espeleólogo virtual,
pintor de quadros semelhantes aos da escola Pré-Rafaelita inglesa do século
XIX, usando potenciais tintas, pincéis e telas da época, sou investigador da
Democracia Grega clássica, compondo comunicações difundidas
informaticamente sobre as semelhanças e diferenças relativamente à
democracia dos séculos XX e XXI, fundada na comunicação e participação
mental, de natureza electrónica.
No interior e no exterior da minha antiga família, praticava semanalmente
diversos exercícios desportivos, como o bilhar, o bowling e o golfe.
Com a minha idade e o desejo de uma existência recatada, deixei
recentemente de viver em família.
Desde há cinco anos, prefiro viver isoladamente, usando dois andróides
que me facilitam a vida doméstica e social.
Esporadicamente, sem a regularidade das restantes actividades, atravesso
a totalidade geográfica da Nova Europa, informando-me do contraste entre
os novos e os velhos costumes, além de proferir continuamente palestras
para a juventude nos Colégios.
Na cave da Reitoria, auxiliado por um dos andróides, cuido de uma estufa
de plantas do Plistoceno.
Sim, é verdade, é mais ele do que eu, mas, sem a minha supervisão
interessada e estudiosa, o andróide, por limitação dos seus circuitos
bioneurais, não conseguiria criar plantas novas a partir do cruzamento
genético de antigas.
Não possui liberdade para criar ou inventar, nem mesmo para descobrir,
apenas para obedecer, conservar e replicar.
Nunca uma actividade principal dominou o meu tempo diário até ter sido
nomeado Reitor-Geral por mérito e competência, com o acordo de todos os
programas do Grande Cérebro Electrónico e de todos os membros do
Conselho dos Pantocratas.
Antes, fui arqueólogo especializado no Barroco, sobre cujas igrejas
escavadas por mim e pela equipa de que fazia parte redigi três monografias,
ao mesmo tempo que me voluntariei, como serviço comunitário, para a
direcção de uma loja de mobiliário em ferro e madeira, praticando com
alguma relevância a arte do entalhe e da marchetaria.
Fui igualmente jogador de quatro ou cinco modalidades desportivas mais
fisicamente activas, que hoje prolongo jogando bilhar, golfe e bowling.
Uma das mais perigosas actividades desportivas que pratiquei residiu,
justamente, no alpinismo invernal no Monte Branco, onde estanciava três
meses por ano.
Do que mais gostei, como manutenção física e divertimento, talvez tenha
sido ser ciclista de Girário, já que as nossas ruas e estradas são hoje móveis,
como longas passadeiras rolantes, dispensando veículos.
Fui filatelista virtual, orientado para a recomposição dos primeiros selos
de todos os países da antiga Europa, estudante informático de canto e cantor
virtual de ópera, barítono, actuando aquando da reconstituição dos palácios
da antiga Áustria e da encenação de óperas oitocentistas, transmitidas em
directo para a mente de todos os Cidadãos Dourados que o desejassem, e
foram cerca de vinte milhões.
Durante dez anos, fui conselheiro informático dos Colégios do meu
Conglomerado, orientando a escrita em linguagem Universalis dos
conteúdos históricos transpostos para a mente dos jovens.
Com 20 anos, participei nas equipas que aperfeiçoaram o Cordão Verde
de Segurança na zona sensível perto de Paris, onde habita uma horda de
cerca de 30 milhões de Bárbaros.
Aos trinta anos, integrei as equipas de investigação sobre a criação e a
recuperação de órgãos biológicos do Hospital da Regeneração do
Conglomerado onde então vivia, junto à fronteira norte da Espanha, na base
norte dos Pirenéus.
Como se pode constatar, nunca trabalhei mas em muitas actividades me
comprometi, tendo sido feliz em todas porque para todas me voluntariei
com prazer.
Aos meus concidadãos acontece o mesmo, nada fazendo para que não se
tenham voluntariado, desistindo logo que a rotina, o cansaço ou a
consumação integral dos objectivos se estabeleçam como dominantes.
Para a recepção de voluntariado, o Grande Cérebro Electrónico anuncia
continuamente actividades disponíveis, de acesso livre, às centenas, se não
aos milhares, sendo de uma dificuldade extrema que entre todas não se
privilegie uma.
Quando nos integramos numa actividade, recebemos um aperfeiçoamento
do nosso hipercórtex, cujas instruções, de imediato registadas na nossa
memória artificial, nos habilitam para o cumprimento aperfeiçoado dessa
actividade.
Depois, mais do que as instruções, será a prática contínua e interessada a
maximizar o seu exercício, sempre com o auxílio dos Agenciadores.

Com efeito, junto com o desregramento consumista, que parecia ampliar


todas as possibilidades existenciais humanas, o afunilamento das
potencialidades do cidadão num trabalho obsessivo, preenchendo-lhe a
quase totalidade da vida adulta, desorganizou a saúde mental do homem
europeu, arrastando-o para a decadência no século XXI e para a emergência
da Grande Fome, que destruiu a antiga Europa.

O EXTERMÍNIO DOS BÁRBAROS

Adormeci de novo sobre a secretária.


Esborratei a página arrastando o aparo da caneta sobre as letras
manuscritas.
Acordei imerso num silêncio tumular.
Não tinha resistido ao sono.
Sorvera um pó estimulante que me mantivera acordado durante dois dias
inteiros.
Devia ter tomado nova dose.
Receava ter sido contactado durante o sono.
Senti umas picadas no fígado.
Assustei-me, agora que o meu corpo está desligado dos serviços centrais
biomédicos.
Sinto-me indefeso.
Receio que as picadas tenham por causa o uso excessivo do estimulante.
Não repeti a dose e adormeci.
Fui despertado pelo silêncio.
Um silêncio magnífico, soberbo, pleno.
Habituara-me à algazarra dos Bárbaros na rua.
A rede de insonorização fora desligada e a vozearia atingia o meu andar.
Um burburinho constante emergia da praça, mesmo de noite.
Gritos, estampidos de armas mecânicas de fogo, guinchos de casais
fornicadores, gemidos de moribundos, toadas de música bárbara, assente na
percussão, tudo chegava amortecido aos meus ouvidos.
Ao contrário, quando despertei reinava um silêncio íntegro, feito de uma
só peça.
Porventura acordei devido a esse silêncio, os meus ouvidos tinham-no
achado estranho. Fui ao terraço, a correr.
O que vi não me espantou.
Confirmou os meus receios.
E, porque não dizê-lo?, as minhas esperanças.
Lamentavelmente, não temos que nos preocupar mais com os Bárbaros
dos Baldios da Velha Europa.
Foram exterminados, radicalmente exterminados.
Nada podemos fazer.
Sentimo-nos impotentes, totalmente impotentes.
Os Bárbaros desapareceram, o seu corpo pulverizado pelos feixes
fotónicos dos Mandarins, sugado pelos aspiradores das naves e enviado
para o espaço.
Considerámos que bastava a existência de uma sociedade supremamente
pacifista, sem volume de recursos naturais que atraíssem a cobiça alheia,
para que as restantes sociedades a seguissem como exemplo moral e
material.
Nunca pensámos que a cobiça se dirigisse, não às nossas riquezas, mas ao
nosso território.
Acreditamos – acreditávamos – na força da razão, na persuasão do
exemplo ético.
Os nossos Pais Fundadores deixaram bem inscrito no texto da Grande
Ordenação ser preferível a rendição à dizimação alheia.
Uma derrota face à violência desmesurada é moralmente superior a uma
vitória tendo como resultado centenas de milhares de corpos mortos ou
mutilados.

VIOLÊNCIA E PRISÃO

Não existe violência na Nova Europa, nem individual nem colectiva.


O hipercórtex controla o nível emotivo do comportamento de cada
Cidadão Dourado, mas não em absoluto.
Por isso, mal os sensores biométricos assinalam expressões de raiva ou de
ira acima dos limites médios, enviam ordem para a Central Biofísica mais
próxima do possível prevaricador e de imediato este serviço alerta o Grande
Cérebro Electrónico, que controla o hipercórtex do homem enraivecido ou
em vias de enraivecer e, através deste, reduz o nível glandular dos sistemas
cerebrais periféricos.
O futuro prevaricador goza de imediato de uma sensação de relaxamento,
uma sensação suave e aprazível que lhe invade o sistema muscular,
dissolvendo a raiva contida prestes a explodir.
Em 90 anos de vida, não me recordo de ter assistido a uma briga, uma
escaramuça, nem mesmo de ter ouvido alguém vociferar contra outrem.
Regra máxima das relações humanas na Nova Europa: quando alguém
não simpatiza com alguém, afasta-se.
Simplesmente, afasta-se, não o contradiz nem o invectiva.
Esquece a sua existência, e, se o não pode fazer de imediato, prepara as
circunstâncias para o fazer no futuro, mudando de actividade, de família ou
de bairro.
Se necessário, de Conglomerado.
Sentimentos como a desconfiança, a suspeição, o ressentimento, a raiva, o
rancor, o desejo de vingança, mesmo o tão perigoso ódio, são considerados
profundamente negativos na Nova Europa e o seu resultado penalizado por
uma fortíssima Multa Comportamental, que, em caso de tripla repetição,
pode levar à prisão por um mês.
Com esta palavra, não designamos o antigo armazém de homens
encerrados no interior de pequenos cubículos durante o tempo de prescrição
da pena.
Muito pelo contrário, o Reitor-Penal, único autor de penas de prisão,
determina que os desejos manifestados pelo cidadão durante o período
indicado não sejam satisfeitos, quaisquer que sejam.
Dito de outro modo, as necessidades são todas cumpridas até ao
esgotamento, mas os desejos racionais ou emotivos não.
Para um neo-europeu, habituado a uma vida aprazível, não pode haver
maior tormento.
Uma autêntica tortura.
Nunca me aconteceu, não consigo sequer imaginar semelhante atrocidade
psicológica, a de desejar e não obter ou realizar, nem mesmo a sensação do
sabor da comida.
Esta, encarada como uma necessidade do corpo, passa a ser servida sem
sabor, um pó insípido e inodoro, verdadeiramente insosso.
Como tudo o que se deseja não se realiza, tudo se transforma em
obstáculo a uma existência normal.
Tudo passa a correr mal, tudo fica incompleto ou imperfeito.
Viver torna-se, então, um suplício, e não se deseja outra coisa além de
atingir o mais depressa possível o fim da pena de prisão.
É emenda definitiva.
Não é necessário outro tipo de correcção.
Quem uma vez prevaricou ao nível de prisão, não mais prevarica.
Muito mais eficaz o resultado do que isolar um cidadão do convívio
geral.
Este tipo pré-histórico de penalização contribuia apenas para lhe acentuar
a raiva contestatária ou lhe enfatizar antigos recalcamentos psíquicos,
acumulando-lhe energia física que de algum modo explodiria, tornando-o
mais violento.
As antigas cadeias constituíam antros sociais de formação de novos
delinquentes, aqueles que instintivamente, por explosão instantânea, tinham
infringido a lei, e de aperfeiçoamento criminoso de antigos delinquentes,
que, assim, criando novos contactos, munidos de novos projectos,
refinavam os seus crimes.
Desejar e não consumar, eis o grande castigo e a grande pena de prisão na
Nova Europa.
Outro e outra não são precisos.
Por mínimo que seja o desejo, ele não se esgotará completamente, algo
ficará por realizar, obter ou receber, o que, continuado, provoca uma
insatisfação pessoal geral extremamente incomodativa, uma sensação de
absoluto fracasso.
É este o castigo, tão psíquico quanto físico, mais individual do que social,
mais torturante e penoso do que outro que se restrinja ao bloqueio da
liberdade muscular.

Novas vinte e quatro horas envolvidas em silêncio absoluto.


Adiantei o livro, dez páginas cheias, inúmeros pormenores sobre a vida
feliz mas aparentemente paradoxal dos neo-europeus, só aparentemente.
Tudo o que me recordo transponho para o livro.
Hoje de madrugada vi sair quatro ou cinco neo-europeus de um edifício
do outro lado da praça da Reitoria, caminhavam apressadamente, lançando
olhares oblíquos.
Tinham medo.
Sabem que enquanto se encontrarem abrigados nos edifícios os seus
corpos não serão pulverizados pelas naves orientais estacionadas no céu.
Perceberam o que aconteceu aos Bárbaros, de que a Grande Ásia decidiu
desembaraçar-se, pelo menos dos que invadiram a Nova Europa, mas, como
eu, desconhecem o destino reservado aos neo-europeus.
Sabem que os Mandarins não conhecem piedade para com inimigos ou
adversários e que apenas jogos de poder interesseiros e calculistas se alojam
no seu cérebro ambicioso.
Os neo-europeus estão suspensos sob este silêncio aterrador.
Eu também.
A VELHA EUROPA

Toda a noite de hoje meditei sobre o destino da Europa, continente-farol


do mundo civilizado durante três mil anos.
Suspeito de que os Orientais não exterminaram apenas os Bárbaros
presentes no nosso território.
Devem tê-lo feito, igualmente, e por maioria de razão, às populações
presentes na Velha Europa.
Povos decadentes, de quem nada de bom se pode esperar.
A velhice no corpo e a decadência nas civilizações constituem estados
semelhantes – concluíra um antigo pensador.
Pela primeira, o corpo sofre um processo de corrupção e apodrecimento
interno, que o conduz à morte, inevitavelmente.
Pela segunda, as civilizações estagnam, requintando-se sofisticadamente
num primeiro momento para, em seguida, se abastardarem em primores de
crueldade e violência.
Foi o que aconteceu à Europa.
Os nossos Pais Fundadores souberam cortar a tempo com o estado de
arrastamento do processo de decadência que desde a segunda metade do
século XX cobria a totalidade do continente.
Não tinha já cura a Europa, as empresas financeiras monopolizavam a
vida política e social, as administrações destas aliaram-se a mercenários
experimentados, que as protegiam e lhes eliminavam os concorrentes, os
mercenários impuseram-se aos empresários e banqueiros, tomaram conta
das administrações, monopolizando o mercado e dominando as elites
políticas, seus avatares, espalharam vagas de terror entre os cidadãos,
forçados a adquirir o seu produto, a habitar nos seus prédios, a comprar os
seus carros, a usar os seus serviços.
Nas cidades, o preço da água atingiu o preço da gasolina, por sua vez
hiper-inflacionada devido à radical diminuição das reservas de petróleo.
Carros eléctricos, de tão caros, não era possível comprá-los.
As leis e os Estados foram abolidos no final do século XXI, substituídos
por caudilhos de clãs guerreiros, provindos em linha recta das famílias dos
mercenários.
Nas cidades e periferias, verdadeiramente indistintas (desconhecia-se
onde fora o centro das cidades se não fosse pelo estado ruinoso dos seus
edifícios), as populações integravam os clãs para poderem trabalhar,
recebendo em troca víveres para a sua sobrevivência.
Fora dos clãs, não existia comida, roupa e um tecto para morar.
As empresas dos clãs, cada uma especializada num leque de produtos e de
serviços, alastraram para vastas parcelas do território da Europa,
desfraldaram bandeiras, lançaram fronteiras artificiais e inventaram nomes
e siglas com que se identificavam: Os «Leões», os «Chacais», os
«Dragões», os «Vampiros», as «Serpentes» e, respectivamente, a «Terra dos
Leões», a «Terra dos Chacais», a «Terra dos Dragões», a «Terra dos
Vampiros», a «Terra das Serpentes».
De cerca de 30 países, a antiga Europa tornou-se pátria de mais de 200
territórios independentes, daquele modo ou analogamente designados, cada
um deles idolatrando um chefe e uma corte bélica, a maioria confundidos
com uma grande empresa monopolista de um leque de mercadorias ou
serviços, que exportava para os seus vizinhos.
A Europa regressou, assim, ao estado civilizacional que os antigos
compêndios de estudo designavam por «Idade Média».
Onde existiam nobres e sacerdotes existem hoje (ou existiam)
empresários e guerreiros, cada um com o seu feudo, o seu exército, o seu
castelo (a sede-geral da empresa), igualmente com os seus brasões e
galhardetes, designados por «marcas».
Quem vive nestes territórios empresariais, trabalha, vive
– melhor, sobrevive – para a empresa ou clã guerreiro.
É-lhe garantido refúgio para se abrigar e comida para suportar o corpo até
aos cinquenta anos, mais nada.
A maioria da população é analfabeta e carece de assistência médica.
Reproduz-se em quantidades inimagináveis, já que um dos índices de
competência que permite singrar na empresa consiste justamente no volume
de crianças doado à empresa como força de trabalho.
Quando a mão-de-obra não é suficiente, o clã guerreiro invade os
territórios vizinhos, aprisionando grande parte da população, escravizando-
a.
Deste modo, a guerra tornou-se o estado permanente da Velha Europa, o
seu estado natural, por assim dizer.
Nela, nenhuma lei vigora senão a vontade arbitrária dos chefes guerreiros,
cujo objectivo único reside no enriquecimento próprio e no usufruto de uma
vida de luxúria.
V

NASCER E MORRER

Refugio-me na escrita do livro.

Todos os anos, no primeiro dia de Primavera, as praças principais dos


Conglomerados se enchem para a assistência mental ao nascimento de uma
criança.
Convencionou-se olharem todos para o Norte, entre os terraços dos altos
edifícios e a camada transparente da Bolha de Segurança, como se de facto
estivessem a ver as imagens num ecrã suspenso na atmosfera.

AS IMAGENS

Os neo-europeus, como já informei, não distinguem a realidade exterior


da realidade mental.
Ambas integram uma única realidade visível, a que os olhos interiormente
vêem e a mente pensa.
O que se percebe é real, sejam imagens nascidas da linguagem
Universalis, sejam imagens cerebrais provindas de redes neurológicas de
programas informáticos implantados no hipercórtex, sejam imagens
provindas do Grande Cérebro Electrónico, sejam, ainda, imagens provindas
da retina.
Tudo são imagens, isto é, imagens reais.
Não existem diferenças substanciais entre as imagens.
O importante é a sua natureza, não a sua origem, pregaram os nossos Pais
Fundadores. O mundo de um neo-europeu é constituído por quatro tipos de
imagens informativas, nenhum superior aos restantes.
Tudo são imagens, que o neo-córtex e o hipercórtex relacionam entre si.
Por isso, as imagens transmitidas simultaneamente a todos os neo-
europeus no primeiro dia de Primavera constituem uma realidade.
Neste caso, uma realidade pertencente ao passado, aos povos de que a
Nova Europa descende.
Consiste num processo anual catártico, activado para esgotar de emoção e
terror elementos dos sistemas nervosos periféricos que escapam ao controlo
do hipercórtex.
Todos vêem o que significava existir num tempo e num território onde as
emoções eram dominantes e onde o fundo inconsciente do neo-córtex,
herança dos nossos antepassados primatas, constituía critério selectivo de
acção.
Todos experimentam vivencialmente o modo de vida dos antigos
europeus quando estes tinham de comer com os dentes, mastigar com a
língua, defecar pelo canal rectal e parir pelo canal vaginal.
Ao longo de uma penosa tarde, os Cidadãos Dourados, de vida cómoda e
confortável, ritmada pelo prazer individual e pela utilidade social, assistem
ao trabalho de parto de uma bárbara desconhecida que tenha recentemente
dado à luz um filho.
As imagens são horrendas, feiíssimas, terríveis, uma mulher de pernas
abertas numa cama, dorso e cabeça levemente alteados, sustentados pelos
cotovelos, guinchando berros apavorados, transpirando como se tivesse
corrido uma prova de alta velocidade, respirando ofegantemente, os olhos
pulados aterrorizados, com três mulheres em seu redor, arqueando
esbaforidas, ansiosas, dando ordens à parturiente.
Esta, agitada, receosa, olhar amedrontado, convoca a totalidade dos
músculos pélvicos, faz força, força bruta, franqueando desmesuradamente
as duas coxas molhadas, o sexo húmido, gotejando um líquido viscoso
esbranquiçado.
Os neo-europeus, espectadores desta verdadeira cena de terror, escutando
os gritos apavorados da mulher, vêem na sua mente, enojados, o corrimento
pastoso da vagina ensopada de pêlos e gotículas de sangue, presumem ouvir
os estalidos dos ossos da bacia a dilatarem-se, sentem nas suas faces o suor
pegajoso das três mulheres, nas suas mãos e pernas o tremor da bárbara
parturiente, na sua barriga a dilatação monstruosa, animalesca, de um ser
vivo móvel e activo no seu interior.
No final, tão esgotados fisicamente como a parturiente, petrificados
emotivamente, contemplando a imagem do corpo sujo e feio do nascituro
emergido da cloaca sangrenta da vagina, os neo-europeus respiram de
alívio, conscientes do privilégio de se saberem habitantes de uma época
mais feliz.

MORRER NA NOVA EUROPA

Não existe poesia no nascimento natural, só dor, medo físico, pavor


psíquico, ânsias agoniativas, nojo visceral.
Sobretudo dor, algo que os neo-europeus quase desconhecem por
completo, mesmo na hora da morte.
Nesta, o hipercórtex isola a mente do corpo, anestesiando aquela sempre
que os nervos efluentes canalizam volumes insuportáveis de dor para o neo-
córtex.
Como a emoção, os nossos cientistas não conseguiram ainda isolar
totalmente a sensação de dor recebida no cérebro, mas em grande parte ela
já foi abafada por via de anestesias espontâneas dimanadas do hipercórtex.
Porém, quando, por velhice e incapacidade de recuperação ou
substituição dos órgãos nos Hospitais de Regeneração, se dá o colapso geral
do corpo, o hipercórtex, tentando reparar de imediato um ou outro órgão,
acaba por sucumbir ao padecimento geral, entrando em regime de síncope,
desligando-se face ao colapso da quase totalidade dos órgãos do corpo.
De facto, imperfeição nossa, os neo-europeus, falecidos naturalmente,
morrem com dor, e dor excessivamente aguda.
Mas só no acto da morte sentem uma dor insuportável, que anuncia o fim
derradeiro do corpo.
Os restantes neo-europeus morrem sem dor e sobretudo vivem sem dor.
Quando as inspecções aleatórias e contínuas ao estado de saúde dos
Cidadãos Dourados detectam a impossibilidade de regeneração de alguns
dos órgãos vitais, o visado é de imediato alertado e ele próprio, sem
comoção, se oferece para morrer.
Sem drama, muito menos tragédia.
Estar vivo é simplesmente o estado anterior a estar morto, como o Verão é
a simples consequência da Primavera e a flor da folha.
Todos o sabem.
E todos sabem que os Cidadãos Dourados vivem mais e melhor do que
toda a restante humanidade, passada e presente.
Por isso, aceitam morrer com prazer, para que outros nasçam e o número
de 100 milhões de habitantes se mantenha estável.
O neo-europeu dirige-se para o Hospital de Regeneração do
Conglomerado, onde lhe é ministrada a dose de um fármaco entorpecedor.
Durante duas horas, acompanhado por companheiros por si escolhidos,
ou, se preferir, em isolamento, o Cidadão Dourado revê a sua vida
individual, gravada no hipercórtex e no Grande Cérebro Electrónico.
No final, acena que está pronto e uma equipa médico-informática aplica-
lhe novo fármaco, que o adormece e lhe desliga o hipercórtex.
Já não vive.
O corpo vai esmorecendo lentamente.
A equipa médico-informática recolhe o hipercórtex para arquivo e o
corpo é de imediato pulverizado.
O Grande Cérebro Electrónico recebe ordem para gravar num ficheiro
oculto a totalidade dos registos e para apagar a rede semântica de imagens
que compunha o universo do Distintivo do morto.
Este morre não só fisicamente mas também mentalmente para os seus
amigos e familiares, que se esquecem dele de imediato, como se este nunca
tivesse existido.
A sua existência fica registada apenas no Grande Cérebro Electrónico.
As instituições mantêm-se, a sociedade permanece, os indivíduos passam,
desaparecem.
Não há na Nova Europa, como já referi, história individual, pessoal, não
existe passado para a origem de cada Cidadão Dourado, como não existe
futuro.
Nasceu-se, viveu-se com prazer, depois morreu-se.
Todos o sabem desde crianças.

NASCER NA VELHA EUROPA

Aterrados, os neo-europeus assistem ao fenómeno brutal do nascimento


de uma criança segundo os rituais humanos da Pré-História, hoje
prolongados pelos nossos vizinhos Bárbaros da Velha Europa dos Baldios.
Transaccionamos a autorização para a gravação das imagens do parto por
uma volumosa quantidade de cereais, vegetais e legumes frescos, sustento
farto de uma família de dez membros durante um mês.
Não vale a pena acenar com dinheiro, os géneros alimentícios atingem
preços altíssimos no mercado negro da Velha Europa.
Acena-se com comida fresca e logo se voluntariam centenas de raparigas
grávidas.
Ter filhos parece ser o divertimento exclusivo das jovens vetero-
europeias.
Face a uma oferta tão imensa, poderíamos baixar a quantidade de comida,
mas a Nova Europa sobeja de alimentos e deve ostentar uma manifesta
superioridade face aos Bárbaros, evidenciando-lhes a nossa proeminência
em todos os aspectos da vida social.
Não existem hospitais públicos na Velha Europa.
Só hospitais reservados para a parentela superior dos clãs familiares, uma
rede de hospitais e clínicas por cada clã.
A maioria da população, servindo mas não pertencendo à hierarquia de
nenhum clã, não possui assistência médica.
Regressou às antigas mezinhas caseiras, às pomadas tradicionais,
confeccionadas por velhas mulheres, aos chás de ervas medicinais, aos
unguentos feitos com gordura de animal e folhas oleosas.
Os médicos foram substituídos por curandeiros populares, por endireitas,
por bruxos, que receberam das trisavós antigas receitas naturais.
A maioria dos habitantes da Velha Europa morre antes de perfazer 50
anos e os membros superiores da hierarquia dos clãs, mesmo
hospitalizados, não ultrapassam os 70 anos.
Face a tempos anteriores, como os séculos XX e XXI, a medicina sofreu
um imensíssimo retrocesso.
Desde a Grande Fome que os Clãs não promovem a investigação
científica e os antigos avanços médicos do século XXI perderam-se, sendo
hoje replicados, muitos deles, em péssimas salas de operações e os
medicamentos fabricados em rudimentares laboratórios, infestados de ratos
e baratas.
Por isso, face à nossa recusa de os recebermos nos nossos serviços de
saúde, os chefes superiores dos Clãs servem-se dos complexos hospitalares
asiáticos e de médicos chineses, pagando a peso de ouro cada minuto da sua
estadia.
Adoecidos, os Bárbaros, em desespero, elevam os seus clamores e os seus
rogos a um deus inescrutável e desconhecido, por ninguém nunca visto,
mesmo entrevisto, que os deveria auxiliar no transe.
O mesmo acontece com a bárbara parturiente, que suplica uma boa hora a
esse deus incógnito, fazendo coro com as três mulheres agachadas em torno
do monte de carne da sua barriga, espremendo-a, empurrando a criança para
o canal vaginal.
Ainda que anualmente habituados a um espectáculo de horror e tortura, os
meus concidadãos abrem a boca de espanto, incapazes de perceber como a
humanidade sobreviveu até ao momento da descoberta do parto sem dor e,
depois, à invenção maravilhosa dos Criatórios.
Lamentam-se do pavor a que os seus antepassados eram submetidos e
regozijam-se por terem nascido da indolor e higiénica fusão laboratorial de
células.
Nem percebem que sentimento é esse que prende uma mãe ao filho, já
que aquela devia odiar profundamente quem a fazia passar por semelhante
tortura.
Nem mesmo percebem o sentimento que une um homem a uma mulher,
designado por amor, institucionalizado pelo casamento, cujo resultado
evidente consiste no sofrimento físico da mulher.
Finalmente, após uma hora de suplício mental, os meus concidadãos
vêem a cabeça peluda e ensanguentada da criança emergir como uma
avantesma pré-histórica.
Uma das três mulheres ampara-a, puxando-a para fora, outra, com as duas
mãos espalmadas sobre a rotundidade da barriga, empurra o bebé enquanto
a parturiente se revolteia de dores, chiando e latindo, forcejando como um
reles mamífero.
A terceira mulher ajeita uns panos lãzudos onde estenderá o nascituro,
sujo, coberto de escorrências viscosas e enxúndias sanguíneas, que, por
força da atrocidade do nascimento, berra mais do que a mãe, fazendo coro
lamuriento com esta.
As imagens terminam com as bocas hiantes da mãe e do filho gritando
como duas feras.
Sempre um alívio, a chegada do final da gravação.
Por três ou quatro vezes, grupos de Cidadãos Dourados tinham feito
chegar aos Sincretistas e ao Conselho dos Pantocratas a exigência para que
se cessasse definitivamente com aquelas horas de puro horror a que
anualmente os neo-europeus eram submetidos.
O Conselho, animado das melhores intenções, considera que não basta
que os Cidadãos Dourados saibam como se vivia outrora, aprendendo nos
Colégios.
É forçoso que o revivam na sua mente, por vezes até ao mais ínfimo
pormenor, que provem e se sujeitem ao antigo pavor do medo, do pânico,
experimentem o sabor do sofrimento para que, catarticamente aliviados,
prestem íntegro valor à sua existência actual, suave e harmónica.
Todos os anos se arrasta este debate com milhares de mensagens.
Os Sincretistas ordenam-nas por datas e valor racional dos argumentos e
elaboram um relatório, enviado posteriormente a todos os Cidadãos
Dourados.
Porém, com razão, nunca o Conselho dos Pantocratas, animado de
pareceres do Grande Cérebro Electrónico, deu deferimento ao relatório,
forçando a totalidade dos Cidadãos Dourados a experimentar o leque de
sentimentos bestiais e medonhos de que os Pais Fundadores heroicamente
os libertaram, iniciando uma nova civilização racional.
No primeiro dia da Primavera, os Cidadãos Dourados têm oportunidade
de, por interposta pessoa, regressar momentaneamente aos alvores da nossa
civilização e assim apreciar, comparativamente, as maravilhosas benesses
da actualidade.
É um ritual, a única liturgia existente na Nova Europa, e, pelos seus
resultados, merece ser anualmente repetida, alega com sensatez o Conselho
dos Pantocratas.
Paradoxalmente, o que presumíamos ter sido definitivamente erradicado
dos nossos hábitos caiu-nos em cima de um modo avassalador em menos de
um mês com a invasão das naves dos Mandarins orientais e a subsequente
invasão dos Bárbaros da Velha Europa.

O HOMEM É O VÍRUS MALIGNO DA TERRA


Doem-me os dedos de escrever.
Espanto-me por saber terem existido escritores que assim escreveram
duas, três, quatro, cinco mil páginas.
Alguns sem caneta, com estilete de ferro de ponta aguçada, outros com
um caniço ou uma pena de ave, escrevendo mais lentamente do que eu, cuja
caneta de tinta permanente só precisa de ser carregada de vinte em vinte
páginas.
A dor já se entranhou nos ossos dos dedos e acompanha-me, mesmo
dormindo.
Regresso ao terraço enquanto descanso os dedos.
Os meus concidadãos desapareceram das ruas rolantes, ora imóveis.
A nenhum vejo.
Pressuponho terem-se escondido no interior dos edifícios.
Recordo restos de corpos dilacerados espalhados pelo chão, esquartejados
ou esventrados.
Outros, enforcados, pendentes de postes.
Braços decepados alastrados pelas ruas, ou cabeças isoladas, decapitadas.
A praça e as ruas desertificaram-se, onde havia vida e prazer passou a
haver morte e destruição, provando que o homem é, mais do que um ser
racional, um ser instintualmente destruidor, talhado para o sangue e a
violência, incapaz de se harmonizar duradouramente com o outro.
O homem é o vírus maligno da Terra.
Como escrevi, para o Conselho dos Pantocratas, lucidamente, não basta
que os Cidadãos Dourados estudem o coração obscuro e cruel do antigo
homem, é forçoso que o experimentem no seu próprio cérebro no primeiro
dia de Primavera.
Afinal, nos últimos tempos, todos o experimentámos na nossa própria
pessoa, soubemos ao vivo do que era e é capaz o antigo homem.
VI

A MISSÃO

Hoje, pelo fim da manhã, o silêncio foi quebrado.


Sobressaltei-me, corri para a parede-ecrã, aguardando longo tempo.
Sobre o ruído homogéneo da electricidade estática, escutaram-se uns
estalidos secos, metalizados, que identifiquei com tentativas de contacto.
Não consegui escrever durante horas, os ruídos permaneceram, bem como
o brilho do ecrã, ora intenso, ora evanescente.
Por vezes, os ruídos, compassados, aumentavam de volume.
Outras, amorteciam-se, desordenados, aparentemente longínquos, como
ecos de ecos.
Inesperadamente, o ecrã animou-se de cores, riscas verticais, compondo
uma espécie de arco-íris empalidecido.
Não havia dúvida, fora lançada uma rede clandestina de sobrevivência
dos neo-europeus, não certamente uma rede de combate, uma rede de
guerra de guerrilha, não o fazemos, como já expliquei, nunca o faríamos,
mas de sobrevivência.
Sentei-me numa cadeira frente à parede-ecrã, depositei a cabeça entre as
mãos e, de olhos fixos, esperei.
Deviam ter sido seleccionados neo-europeus para se juntarem à rede
clandestina.
Eu fora um dos escolhidos, era a minha esperança.
A minha idade, 90 anos, ainda não suficientemente provecta, a minha
sabedoria histórica e cultural, própria do meu neo-córtex, sem auxílio,
portanto do hipercórtex artificial, devem ter favorecido o meu Distintivo
perante o Conselho dos Pantocratas.
Ali fiquei, sentado, aguardando.
Não podia falhar a chamada, não deveria haver mais do que uma ou duas
comunicações.
Se não respondesse, dar-me-iam como morto ou desaparecido.
Tentariam comunicar com outro Reitor.
Novas doze horas passaram que não escrevi, não me levantei da cadeira
nem retirei o olhar da parede-ecrã.
Finalmente, o meu esforço foi recompensado.
A figura do Patriarca do Conselho dos Pantocratas emergiu no ecrã,
esmaecida primeiro, intermitente depois, em seguida esfumada, nunca
nítida, recortada, mas de voz soberanamente audível.
O Conselho aproveitava os blocos fotónicos dispersos nos Acumuladores
e nos cabos para estabelecer as últimas comunicações, as mais imperiosas,
antes do silêncio total.
Identificou-me pelo Distintivo, havia falhas na bicomunicação, eu via-o,
ele não me via, mas ouvia-me.
Respondi com a voz gaguejante de quem está reaprendendo a falar, disse-
lhe respeitosamente que ali estava, vivo, disponível para obedecer
cegamente às suas ordens.
Congratulou-se, soletrava as palavras, também ele reaprendia a língua dos
nossos Pais Fundadores.
Teríamos de ser breves.
Havia mais de uma semana que tentava infrutiferamente comunicar com a
Reitoria.
A rede de comunicações falhava continuamente.
Falámos durante um tempo que me pareceu demasiado curto, mas, na
verdade, foi o suficiente.
Deu-me conta das negociações com os Mandarins.
Estavam dispostos a permitir a nossa sobrevivência.
Respeitavam-nos como herdeiros da Europa humanista, criadora da
grande Filosofia, da grande Ciência e da grande Arte.
Assim o tinham dito.
Aceitavam transferir-nos, aos 100 milhões de neo-europeus, para a
América do Sul.

AMÉRICA DO SUL
Impossível.
Impossível e inviável.
Os Mandarins negociavam dissimuladamente.
Não queriam arcar com a responsabilidade histórica de exterminação do
mais feliz, mais racional e mais avançado de todos os povos do mundo.
Fingiam, piedosamente, oferecer-nos uma salvação.
Uma salvação que não era senão um beco sem saída.
Mesmo que os Coronéis aceitassem, dar-nos-iam as piores terras,
ferrosas, inférteis, selvagens, ou, usando da atitude chinesa, simulariam dar-
no-las para mais tarde nos exterminarem, a maioria de nós vendida de novo
aos Mandarins para África como escrava.
Os Coronéis sul-americanos, donos do território, não nos aceitariam, nem
em troca de fabulosas quantias em ouro e prata.
O Conselho dos Pantocratas tinha recusado a proposta, liminarmente.
Os cidadãos neo-europeus, educados com valores morais e respeitadores
da liberdade, constituiriam a maior das ameaças aos regimes ditatoriais da
América do Sul, assentes em populações escravas que trabalhavam em
vastíssimas fazendas, algumas do tamanho do território de um clã da Velha
Europa.
Um único neo-europeu constituiria um nefasto exemplo para as
populações daquele subcontinente, sobrevivendo na ignorância e na
superstição religiosa, desconhecedoras de outra forma de existência.
Após a guerra entre o Brasil e a Venezuela, que congregara todos os
estados latino-americanos em dois blocos militares, havia mais de um
século que a América do Sul perdera todos os regimes democráticos.
Tal como na Velha Europa após a Grande Fome, tinham-se levantado
entre a população mutilada e miserável clãs guerreiros, comandados, não
por empresas, mas por «Coronéis» tirânicos cujo poder assentava em
milícias fortemente armadas de jagunços.
Tinham transformado os antigos países em vastíssimas plantações de
cereais, de vegetais, de frutos, que exportavam para a Nova Europa e para o
Império Americano.
Outros países tornaram-se viveiros de escravos, que igualmente
exportavam em grandes naves aéreas como mão-de-obra flutuante,
disponível para trabalhar onde fosse necessário.
Constituíam os regimes mais imorais e corruptos do planeta e nenhum
homem de bom senso se atreveria a viajar para ou através da América do
Sul.
A guerra feroz entre o Brasil e a Venezuela tinha aniquilado cerca de 300
milhões de sul-americanos.
Cidades outrora florescentes e monumentais, como Bogotá, Caracas,
Buenos Aires, La Paz, Quito, São Paulo, eram hoje ruínas radioactivas
habitadas por povos decrépitos, moribundos, carregados de malformações
genéticas.
Gigantescos cemitérios humanos, as cidades tinham sido tragadas por
antigos animais selvagens, ora tornados urbanos, como o jaguar.
Grandes extensões geográficas encontravam-se praticamente
despovoadas.
Seria para estas áreas que os Mandarins intentavam transferir os 100
milhões de neo-europeus, do litoral Este da ponta Sul do Chile até à
Amazónia, criando uma fronteira artificial.
O Patriarca informou-me de um modo conciso de que as negociações
prosseguiam.
Pela sua voz, firme mas emotiva, percebi que seria impossível o Conselho
aceitar semelhante exigência oriental.
Os Coronéis também não se mostravam dispostos a aceitar-nos,
informou-me o Patriarca.
A verdadeira razão da sua recusa residia no medo do futuro.
Quando, dentro de 50 ou 100 anos, a Nova Europa estivesse restaurada na
América do Sul, o nosso regime constituiria uma autêntica ameaça aos seus
poderes cruéis e despóticos.
A razão dos Pantocratas assentava em outros motivos, éticos em primeiro
lugar, como já expliquei, mas também geográficos.
O nosso regime fora criado de um modo organicamente perfeito para uma
população pouco dispersa, estabelecida numa linha recta natural entre o
antigo Portugal e a antiga Polónia, país outrora martirizado por permanentes
invasões dos seus vizinhos Russos e Alemães.
Estendida para quase o dobro numa natureza silvícola profundamente
agreste, a novíssima Nova Europa dificilmente singraria, incapaz de prestar
felicidade aos seus cidadãos, isto é, de realizar os seus desejos.
Somos felizes porque nos separámos da restante humanidade e fomos
gratificados por uma natureza amena e delicada.
Orgulhamo-nos desta separação e não intentamos alargar a nossa forma
de existência a outros povos que, sem hipercórtex individual e sem o
Grande Cérebro Electrónico colectivo, não poderia deixar de falhar.
Na pequenez geográfica, na escassez demográfica – 100 milhões – e no
clima suave de natureza semitropical, encontra-se a chave da nossa
perfeição.
Os Mandarins orientais sabem que ambicionamos não nos expandir, mas
os Coronéis sul-americanos, brutos, rudes, ignorantes, não o sabem, ou os
que o sabem desconfiam das nossas pérfidas e secretas intenções,
presumindo que nos assemelhamos a eles, ávidos de poder e riqueza.
Os Mandarins respeitam-nos como povo, consideram a Nova Europa a
parte mais desenvolvida e perfeita da humanidade e não desejam destruir
nada do que construímos.
Pelo contrário, desejam aprender com as nossas «máquinas», como
dizem.
O seu orgulho aristocrático não lhes permite exprimir directamente os
seus desejos.
Mas percebe-se que vivem da imitação dos nossos sucessos tecnológicos
e científicos. Mal saíssemos da Europa, melhor, mal fôssemos expulsos,
esquadrinhariam cada peça do Grande Cérebro Electrónico e cada
membrana das circunvoluções do hipercórtex.
Se não sairmos, se tiverem de nos exterminar, têm a certeza de que
implodiremos todos os edifícios que alojam as nossas mais importantes
descobertas e invenções, nada lhes legando.
Possivelmente por este motivo, mais do que por respeito humanístico,
negoceiam o que designam por uma «saída honrosa».
O Conselho dos Pantocratas – tenho a certeza absoluta – saberá responder
no exacto sentido contrário às ambições dos Mandarins, mantendo a
dignidade de uma civilização que deve afirmar-se, na vida e na morte, como
um exemplo eterno para a humanidade.
Os orientais não anseiam por dominar os nossos triunfos tecnocientíficos
para conceder felicidade aos seus cidadãos, mas para os orientar e controlar
como verdadeiros súbditos.
Disporiam de instrumentos electrónicos e informáticos para dominar as
populações, não com a feroz mão-de-ferro de hoje, mas com a amenidade
permitida pela ciência, não estando sujeitos a contínuas rebeliões, sempre
afogadas em sangue, pondo em causa a estabilidade do regime e o poder
vitalício e omnipotente dos Mandarins.
O Patriarca informou-me de que a proposta anterior da Grande Ásia,
liminarmente rejeitada pelo Conselho dos Pantocratas, pressupunha o
aprisionamento e o exílio para África de todos os neo-europeus com
funções iguais ou superiores às de Reitor.
Isto é, quebravam a espinha da Nova Europa, separando a sua elite
organizativa e moral da restante população.
Os restantes habitantes, Agenciadores, Acratas, Cidadãos Dourados,
Sincretistas, mais ou menos 90 por cento da população, trabalharia para a
nova população oriental.
Aos 500 milhões de chineses descarregados na Europa, em toda a Europa,
Velha e Nova, juntar-se-iam os 90 milhões de neo-europeus, que
assegurariam as funções principais da nova sociedade.
O nosso Patriarca respondeu que nenhum neo-europeu trabalha para um
estrangeiro.
Verdadeiramente, o neo-europeu desconhece o que significa a
obrigatoriedade do trabalho com horários, funções, competências e
objectivos rígidos.
Tornar-se-ia o trabalhador mais indisciplinado ao cimo da terra.
A proposta asiática foi recusada.
Sem o Grande Cérebro Electrónico e de hipercórtex desligado, o Cidadão
Dourado não possuiria nenhuma inteligência superior e nenhuma habilidade
técnica.
Se não aceitássemos a partida para a América do Sul, seríamos
exterminados.
Foi a última proposta, absolutamente atroz, tirânica e medonha, própria
do sentimento de ausência de piedade que sempre caracterizou os impérios
orientais.
Todos os neo-europeus seriam exterminados em conjunto com a
população remanescente da Velha Europa.
A Nova Europa desapareceria para sempre, e, por mais que fizessem
explodir os mecanismos científicos em que esta assenta, algo restaria, a
partir do qual os cientistas chineses os reconstruiriam.
A Europa, agora, sim, tornar-se-ia o que a Grande Ásia ambicionava: o
cabo sudoeste da Ásia ou, como o designavam, a «Ásia Ocidental».
Apenas os orientais aqui poderiam habitar, e certamente muita mão-de-
obra escrava africana e sul-americana.
As naves avançariam da Grécia para as antigas ilhas britânicas,
pulverizando todos os corpos vivos detectados pelos radares.
Quem se escondesse seria posteriormente chacinado.
Cem milhões de neo-europeus e os restantes trezentos milhões de
habitantes da Velha Europa desapareceriam da face da terra num único dia.
O Conselho dos Pantocratas – informou-me o Patriarca – tinha detectado
divisões entre os Mandarins.
Alguns destes tinham percebido que a nossa recusa em integrar os
Sincretistas no corpo de cientistas orientais constituía um verdadeiro
desperdício de conhecimento.
Deveriam ter recebido ordem do Conselho Imperial de Tóquio, Nova
Deli, Xangai e Pequim para tudo prometerem para que se conservasse a
sabedoria científica e tecnológica acumulada na Nova Europa.
Porém, a recusa total e absoluta do Conselho dos Pantocratas não lhes
deixava outra saída além da exterminação completa.
Dois Mandarins deram a entender ser um desperdício a exterminação dos
nossos Sincretistas e Reitores.
Estavam dispostos a ceder em troca da sua permanência na nova Ásia
Ocidental.
Deviam ser concentrados numa zona geográfica específica.
Em cumprimento dos princípios filosóficos e morais da Europa, o
Conselho recusou liminarmente.
A insistência dos dois Mandarins recordou ao Conselho dos Pantocratas a
necessidade de garantir a sobrevivência da Nova Europa.
Seria inestimável guardar a sua memória viva.
O Patriarca propôs ao Conselho que se seleccionasse um restrito número
de neo-europeus, de idade não superior a 90 anos, que, na sua diversidade
de actividades e estudos, pudesse revitalizar a Nova Europa fora da
Europa.
Corromper-se-ia um Aitão – um Mandarim inferior – com fabulosas
quantidades de prata armazenada (retirada do fundo do Mar Americano dos
galeões espanhóis de transporte da prata entre a América do Sul e a Europa
nos séculos XVI e XVII) para este dispor uma pequena nave que transportasse
os neo-europeus escolhidos para território não-Europeu.
Pela primeira vez – e única em cerca de dois séculos de História –, os
membros do Conselho dos Pantocratas dividiram-se.
Os elementos moralmente mais rígidos, invocando o texto da Grande
Ordenação, recusaram.
Para eles, os princípios éticos da Nova Europa eram eternos, invioláveis e
inegociáveis.
Exprimiam a essência da totalidade dos desejos da humanidade, ora
realizada.
A morrer, deveríamos morrer todos, dando por extinta a Nova Europa,
cuja fama e brilho de perfeição incendiaria os tempos futuros da
humanidade.
No porvir, novas civilizações seguiriam o nosso exemplo.
Fôramos um excelso ser, seríamos agora um puro nada.
Outros invocaram as palavras pragmáticas do Mandarim chinês,
considerando um total desperdício histórico o desaparecimento radical da
nossa civilização.
Constituía um dever ético a tentativa de sobrevivência da mais
aperfeiçoada das sociedades humanas.
Não bastaria um livro, feito de matéria efémera, ameaçado de
desaparecimento, ou os ficheiros secretos no coração do Grande Cérebro
Electrónico e de um satélite pairando em órbita desconhecida, porventura
nunca descodificados pela mente dos homens do futuro.
A ser assim, o futuro, sobretudo o longínquo, desconheceria totalmente a
existência da Nova Europa, e dela se levantariam as mais nubladas
mitologias, como hoje se têm levantado sobre Atlântida, pressupor-se-ia
fruto das elucubrações da mente humana, inclinada para a utopia.
A Nova Europa fora uma realidade, não uma utopia.
Procedeu-se a uma votação pela primeira vez no interior do Conselho.
Venceu por clara maioria a tese da fuga e sobrevivência.
Eu fora um dos seleccionados para esta fuga e presumível sobrevivência.

O CLÃ DOS «LINCES»


O Aitão fora denunciado, preso de imediato e decapitado.
Os dois Mandarins recalcitrantes foram demitidos, presos e enviados, um
para Pequim, outro para Nova Deli.
O Conselho dos Pantocratas estabeleceu contactos com o clã guerreiro
«Os Linces», da Velha Europa, que resistia à invasão oriental sediado das
ruínas do antigo parlamento europeu em Estrasburgo, cidade constituída,
desde há um século, por um autêntico amontoado de pedras, blocos de
cimento e ferros retorcidos, albergando cerca de dois milhões de habitantes
sem água canalizada nem energia eléctrica.
Toda a madeira já fora consumida em aquecimento e confecção de
alimentos.
Sobreviviam pela acumulação de água da chuva.
O chefe do clã usava um manto de veludo carmim forrado com as peles
dos três últimos linces da Europa capturados no antigo território de
Portugal, na Serra da Malcata.
Um troféu nas suas costas.
Duas caveiras humanas, de crianças, superficialmente descarnadas,
enfeitavam-lhe os ombros.
Uma terceira pendia-lhe da cabeça, inclinada sobre a testa, evidenciando
o buraco dos olhos.
Foi necessário um soberano esforço moral para que o Patriarca
negociasse com «O Lince», como queria que lhe chamassem, um autêntico
animal que envergonhava a espécie humana, os pés ostentando umas
botarras pretas cardadas decoradas com espigões de aço, uma corrente de
aros de ferro ao pescoço, manilhas metalizadas nos punhos e um fémur de
homem pendente do peito.
Foi-lhe comunicado onde se armazenava metade da prata, a restante só
seria entregue quando a comitiva de sobreviventes se encontrasse a salvo.
Foi-lhe perguntado porque ambicionava ele tão sólido depósito de prata
se dificilmente escaparia aos radares e às naves de vigilância orientais.
Iria morrer, portanto.
Riu-se, um riso escarninho e bestífero, próprio das hienas.
Na prata estará a minha salvação, como está a vossa.
Percebeu-se que intentava corromper um Mandarim ou um Aitão e fugir,
pondo-se ao serviço de um Coronel da América do Sul.
MISSÃO DE SOBREVIVÊNCIA

A partir daquele momento, cada um dos escolhidos deveria viver à porta


do edifício onde habitava.
Sem aviso, uma ancestral nave de motor a jacto, alimentada a gasolina,
iria buscá-lo em momento incerto.
Reunir-se-iam todos em Dunquerque e seguiriam para destino
desconhecido, só sabido pelos Pantocratas, que, por sua vez, ficariam ao
lado do seu povo, acompanhando o seu destino, porventura a morte, se não
se suicidassem antes.
O Patriarca daria o exemplo.
Quando o Conselho soubesse que os sobreviventes se encontravam no
destino, decidiria da solução final a tomar.
A maioria dos Pantocratas inclinava-se para o suicídio colectivo, todos do
mesmo modo, à mesma hora, um suicídio indolor.
Era o exemplo.
Os cidadãos da Nova Europa deveriam fazer o mesmo.
Seria uma forma digna de resistir à barbárie asiática, recusando morrer às
mãos do inimigo.
Antes, dar-se-ia ordem para a implosão do Grande Cérebro Electrónico,
anulando a possibilidade de os Mandarins se apropriarem de algumas das
nossas realizações científicas e tecnológicas.

Desloquei-me de imediato para a guarita do portão onde se alojavam os


comandos electrónicos da Reitoria.
Cada edifício dos Conglomerados funcionava a partir de um computador
central, que tudo controlava, por sua vez conectado com o computador geral
dos edifícios do bairro, ora todos desligados, sem energia alimentadora.
Abri a porta manualmente.
Tinha-me munido de três vaporizadores portáteis, o suficiente para me
alimentarem o corpo durante um mês, mais um recipiente de água potável
da altura do meu braço.
As ordens tinham sido claras.
Levar apenas a roupa que tinha vestida, nenhum objecto pessoal devia ser
transportado.
No meu caso, abria-se a excepção para uma pequena caixa de plastónio,
impermeável, com tinta, canetas e papel.
Durante três dias vigiei da portaria a praça e os edifícios da Reitoria,
aparentemente vazios.
De quando em vez, um meu concidadão mais temerário atravessava a
praça e entrava noutro edifício.
O mais velozmente possível, receando ser pulverizado, à semelhança dos
Bárbaros.
Ao terceiro dia, filas alinhadas de naves orientais atravessaram os céus
em direcção ao sul.
Os meus concidadãos abrigavam-se em casas e lojas, suspeitando ser-lhes
reservado o mesmo destino dos Bárbaros.
Porém, os raios, chocando com o plastifex dos edifícios, provocariam
explosões mecânicas, destruindo as paredes e os andares dos edifícios.
Seria preferível morrer de corpo moleculizado e aspirado do que
estilhaçado por sucessivas explosões.
Na primeira modalidade, a morte seria indolor, sem sofrimento, na
segunda, arriscariam mutilações, prolongadas agonias e mortes penosas.
Os que sobrevivessem não deixariam de ser mortos mais tarde, ou
transformados em escravos e enviados para África, para o trabalho do sal e
das minas, duplo destino mais gravoso do que ser imediatamente
pulverizado.
Lamentavelmente, o Conselho não tinha meios de comunicar a todos os
neo-europeus que deveriam afrontar o invasor suicidando-se colectivamente
num certo dia a uma certa hora, seria o mais volumoso suicídio colectivo da
história da humanidade.
Ainda que muitos desobedecessem, milhões e milhões suicidar-se-iam.
Não poderia deixar de provocar um fabuloso impacto moral na história
futura da humanidade.
Impossível esconder-se do futuro que milhões e milhões de neo-europeus
se tinham suicidado, protestando deste modo contra a invasão da Europa
pelos Asiáticos.
Ressoaria pelos tempos vindouros como exemplo de dignidade moral de
um povo.
Alojado na guarita, apetecia-me sair e avisar boca a boca os meus
concidadãos da necessidade de estarem atentos a ordens do Conselho dos
Pantocratas, porventura de se suicidarem, caso o Conselho assim decidisse.
Porém, a responsabilidade de que fora incumbido de escrever o livro da
crónica da nossa civilização impedia-me de dar esse passo afoito.
Dividido, preso pela emoção, torturava-me.
Porém, a ordem do Patriarca soou sempre mais alto na minha consciência
e sempre que depunha um pé fora da guarita o outro recusava segui-lo.
O dever moral forçava-me a obedecer à ordem do Conselho, a compaixão
pelos meus concidadãos incentivava-me a avisá-los de que quanto mais se
escondessem mais sofreriam.
Debati-me com este dilema, experimentando porventura pela primeira vez
a verdadeira angústia humana devido à ausência do meu hipercórtex, que
teria por mim escolhido o que fazer.
Quando, finalmente, me decidi a obedecer à ordem que recebera, não me
ausentando por um momento que fosse da entrada do edifício, ouvi o típico
ronronar de um motor a gasolina, uma naveta estacionava no ar frente à
guarita, cheirava a petróleo queimado e piscava três faróis vermelhos,
rasgando de luz amarela a noite escuríssima.
Carreguei a água, a caixa de trabalho e os três vaporizadores e avancei
para a nave.
Esta lançara um escadim articulado.
Subi por ele e entrei, respirando de alívio.
Sentei-me ao lado de um andróide, que, acelerando, arrancou de imediato
a uma velocidade estonteante.
A viagem demorou menos de uma hora, entre o meu Conglomerado, na
antiga Suíça, e Dunquerque.
A escuridão da noite tudo cobria.
Luzes vermelhas intermitentes nos comandos alertavam-nos para a
possibilidade, quase certa, de a nossa rota estar a ser seguida pelas estações
aéreas orientais.
Tentava lobrigar os grandes Conglomerados da Europa Central, mas a
escuridão era absoluta, e o silêncio também, apenas entrecortado pelo ruído
arqueológico do motor da nave.
VII

OS SESSENTA

Era esperado em Dunquerque.


Fui o último a chegar.
Juntei-me a 59 dos meus concidadãos, todos para mim desconhecidos.
Não havia ordem senão a de fugir o mais rapidamente possível.
Mal desembarquei, notei ter sido olhado com cerimónia e respeito pelos
Pantocratas, o que não entendia.
Para meu espanto, fui de imediato informado ter sido nomeado chefe da
«Expedição de Sobrevivência», um novo e infeliz «Êxodo».
De todos, eu era o mais velho, também o mais experiente em leituras e
estudos sobre a história antiga da humanidade.
A velhice concedia-me sensatez.
A sabedoria, lucidez.
Assim me foram transmitidos pelo Patriarca os critérios da minha
nomeação.
Os Pantocratas que me esperavam, as faces imensamente enrugadas, o
corpo enfraquecido devido à falta de tratamento de regeneração no último
mês, depunham nos meus ombros a sobrevivência da Nova Europa.
Informaram-me do destino dos «Sessenta».
Assim tínhamos sido designados pelo Conselho.
Alguns falavam em «Novo Êxodo», recordando o primitivo Êxodo dos
nossos Pais Fundadores.
O nosso destino: uns ilhéus abandonados no meio do Mar Americano
designados por «Açores».
Já tinha sido escolhido o ilhéu onde a nave de «O Lince» nos
desembarcaria.
A ilha do Pico, assim designada devido à existência de uma altíssima
montanha no centro da ilha.
Verdadeiramente, a ilha era constituída na totalidade pela montanha de
origem vulcânica.
Deveríamos habitá-la e prepararmo-nos para, em menos de 200 anos,
abandonar a ilha. Previa-se que a montanha vulcânica entrasse de novo em
erupção entre 2400 e 2500.
O arquipélago dos Açores evidenciara-se aos olhos dos Pantocratas como
um dos mais isolados refúgios do mundo, terras perdidas no meio do mar, a
que nem o Império Americano nem o Império Asiático concediam a
mínima importância.
Inquiri os Conselheiros sobre as minhas funções, não me passou pela
mente recusá-las.
A dignidade do cargo era excessiva mas o dever e a urgência forçavam-
me a aceitá-lo.
Percebi ser a nomeação a recompensa e o coroamento de uma vida
entregue à Nova Europa, à sua meticulosa e humana organização e
funcionamento.
Percebi que o Conselho meditara sobre a minha designação e me
escolhera por me saber, além de sensato e lúcido, suficientemente
competente do ponto de vista organizacional.
Mas, no meu pensamento, logo me destinei como provisório.
A primeira e iminente função, mal aterrássemos nos Açores, seria
preparar a nova chefia que, à semelhança das que vigoravam na Nova
Europa, deveria ser comunitária.
O homem sempre fora um animal de rebanho, precisava de um dedo que
lhe apontasse o sentido do caminho.
Assim devia continuar a sê-lo.
Não quis incomodar os Conselheiros com as minhas reflexões.
Pedi novas ordens.
Apenas havia uma: imensa.
Aplicar a Grande Ordenação à nova sociedade, tanto quanto fosse
possível.
Aos nascituros deveria ser ensinada a história da Nova Europa como o
conhecimento mais sagrado entre todos.
A Nova Europa deveria ser continuamente exaltada como a mais perfeita
das sociedades.
Fui informado de que o processo de selecção dos «Sessenta» obedecera a
um escrupulosíssimo rigor, assente tanto na excelência do comportamento
moral quanto na especificidade das funções e actividades de cada um.
Nenhum dos participantes do «Novo Êxodo» alguma vez fora objecto de
uma Multa Comportamental, cada um especializado numa função social
particular, de modo que todas se completassem harmonicamente.
A todos, menos eu, fora de novo activada a função reprodutora.
Na reprodução consistiria a tarefa principal dos primeiros anos de
sobrevivência.
Fui avisado de seguirem na nave pó alimentício para um ano e dois
caixotes de barras de ouro, cada um da altura de um homem.
Fui advertido de que a maior dificuldade residiria no novo tipo de
alimentação, mastigativa, com utilização de dentes e língua.
Seria preciso cultivar cereais e legumes de imediato.
No bojo da nave seguiam as sementes.
Foi-me transmitido um código secreto para enviar mensagens mal
tivéssemos instalado os carregadores de energia.
Por este código, poderíamos saber informações sobre o destino da Nova
Europa.
Caso não houvesse resposta, o destino teria sido irremediavelmente
nefasto.
Falávamos numa torre quadrangular junto a uma antiga pista de aviação
civil desactivada.
Todos os meus companheiros já se encontravam na nave.
Olhei em redor, contemplando o horizonte terrestre, vazio, desordenado,
acumulado de lixo e poeiras marítimas.
Adivinhava-se ao longe um Conglomerado, os altos e largos edifícios em
plastifex, as torres aéreas, os vastíssimos relvados e jardins, as largas
praças.
Não consegui imaginar o Conglomerado habitado por populações
asiáticas, incapazes de produzir plastifex e, portanto, impossibilitadas de
operar a conservação dos edifícios.
Imaginei os Conglomerados da Nova Europa em estado de decadência, os
edifícios atravessados por fissuras.
Dentro de 70 anos, a substância química do plastifex esboroar-se-ia como
areia, os Conglomerados desabariam uns atrás dos outros, os edifícios
ruiriam, inabitáveis.
Dentro de 100 anos a Europa, Velha e Nova, seria uma vasta planície
coberta de pedras, ferro, cimento e plastifex, invadida por plantas selvagens
trepadoras.
A esperança dos orientais residiria, porventura, na Velha Europa, cujos
prédios clássicos poderiam ser demolidos e substituídos por outros.
Os da Nova Europa, levantados em plastifex, revelar-se-iam eternos,
ainda que desconjuntados, desfeitos, amontoados pelo solo.
Os chineses não possuíam as fórmulas químicas dos ácidos que
dissolviam o plastifex, reduzindo-o a pó.
Verdadeiramente, foi este o meu último pensamento, a nossa civilização,
a mais perfeita, não mo canso de repetir, morreria para que hordas asiáticas
habitassem o seu território ao longo de um século.
Depois – um absurdo –, este tornar-se-ia inabitável devido à durabilidade
do material de construção empregue, esboroado em formas aglutinadas de
areia, como dunas sólidas.
Os Mandarins desconheciam o tempo de vida útil do plastifex caso este
não fosse regenerado.
Uma substância duríssima e simultaneamente super-elástica, sólida e
flexível que, regenerada, permanecia activa durante séculos.
A caminho da nave, atravessando a pista, liberto dos constrangimentos do
hipercórtex, fui tomado por uma violenta comoção e chorei pela primeira
vez.
O meu sistema nervoso original, herança ancestral dos mamíferos nossos
progenitores, ia gradualmente tomando conta de mim.
Chorei copiosamente, sozinho, encoberto pelo cadáver enferrujado de um
antigo camião militar.
Chorei pela responsabilidade futura, um futuro que se iniciava no
momento em que subisse para a nave, mas também por tudo o que vivera no
passado e não mais se repetiria, para mim, para os melhores dos europeus.
Converti a felicidade que vivera em dor, dor lancinante, aguda, deixei que
a animalidade do meu cérebro emergisse e chorei como um menino
assustado.
A FUGA

Entrei directamente na cabine de comando.


O piloto, demasiado lavado e limpo para um Bárbaro, cumprimentou-me
delicadamente.
Percebi que «O Lince» o devia ter escolhido para as suas contínuas
transacções com o Império Americano ou os Coronéis sul-americanos.
Não quis ir falar aos meus companheiros.
Devia tê-lo feito, mas achei mais importante colher informações relativas
ao voo e aos Açores.
Aterraríamos no Pico dentro de duas horas, a nave era antiquada,
desculpou-se o piloto, de nome Jacques.
Não pude declinar o meu nome por o não ter.
A ele, nada explicaria da diferença entre um Distintivo em código
Universalis e um nome pessoal.
Apercebi-me, então, de que cada companheiro meu deveria escolher um
nome, um nome individual.
Muito pouco sabia sobre os Açores, e menos ainda sobre a ilha do Pico.
Não queria juntar-me aos meus companheiros desprovido de
informações.
Se eu pouco sabia, eles menos saberiam.
Jacques pareceu adivinhar-me os pensamentos.
Olhava-me para a testa encarquilhada, prenunciou o meu estado de
ignorância.
Pressionou dois botões no tablier de comando, um roxo, outro verde.
Um ecrã minúsculo acendeu-se.
Perguntou se eu sabia ler em caracteres românicos, os dominantes na
antiga Europa.
Eu sabia.
Também sabia ler, informei-o, caracteres cirílicos, gregos e russos.
Ordenou-me que escrevesse num teclado minúsculo primitivo a palavra
«Açores».
De imediato, o ecrã foi preenchido com informações geográficas das
diversas ilhas.
Era um arquipélago.
O Pico ficava na zona central.
Jacques informou-me de que nunca lá aterrara, mas já o atravessara
inúmeras vezes a caminho da América do Sul, para onde levava o «Lince»,
que mantinha contactos com os Coronéis.
Da América, trazia bandos de mulatas e crioulas para saciarem os
estranhos apetites sexuais da corte guerreira do «Lince».
Levou a mão ao pescoço, simulando cortá-lo com o dedo indicador.
Depois de usadas e gastas, são mortas – contou Jacques –, as mais
novinhas vendidas como escravas para as estepes russas.
Elas presumem iniciar uma nova vida na Europa.
Fechei os olhos.
Era este o mundo novo onde iria doravante habitar.
Todos os meus actos deveriam envolver-se da malícia da serpente.
Mas Jacques desarmava-me, a sua figura parecia a de um inocente
enredado nas malhas da astúcia e da avidez.
Cumpria a sua função, piloto de naves intercontinentais, resignado a viver
num mundo ardiloso e traiçoeiro.
Assim deveríamos nós ser?
Jacques distraiu-me da leitura.
Tentara memorizar os dados geográficos, tentava agora memorizar os
dados históricos.

OS AÇORES

Há 200 anos, os Açores sofreram profundas convulsões geológicas, de


origem vulcânica.
As ilhas praticamente desapareceram.
Cinco foram afundadas.
Não me recordo dos seus nomes, disse Jacques.
Está aí escrito, continuou, apontando com o dedo demonstrador para o
mini-ecrã.
A maioria da população afogou-se, foi engolida pelo mar.
Restou um mínimo de sobreviventes.
Cinquenta anos depois, quando Portugal, o país europeu a que o
arquipélago pertencia, foi integrado no território do clã andaluz de Pablo
Hernández, conhecido por «El Matador», a restante população açoriana
emigrou em botes para o Império Americano.
Fugiram usando lanchas baleeiras primitivas, entregaram-se às
autoridades americanas, levadas de imediato para as grandes siderurgias de
aço do Illinois.
Tinham ouvido falar que «El Matador» os aprisionaria e venderia como
escravos aos Mandarins orientais que governavam a extracção de minério
no Sul da África.
Afinal, «El Matador» nem sabia da existência dos Açores e, quando o
soube, nem com o arquipélago se importou, temendo que mal pusesse nele
o pé a terra se convulsionasse de novo.
No actual mapa da Europa, os Açores são muitas vezes designados por
«Terras Trementes», onde não é saudável habitar.
Decidi não informar Jacques de que nos próximos 200 anos não
sucederiam tremores de terra e erupções vulcânicas.
Tínhamos 200 anos para construir uma nova sociedade.
Os Açores deveriam ser considerados uma plataforma intermediária da
nossa história futura.
O ouro que transportávamos poderia revelar-se, no futuro, o valiosíssimo
instrumento de compra de um novo território e de uma nova liberdade.
SEGUNDA PARTE
I

OS PRINCÍPIOS MORAIS

A ilha do Pico, habitada por 15 mil moradores no final do século XXI,


tornara-se um território tropical, inóspito e deserto.
Mas não totalmente.
Da solidão agreste e ventosa, varrida pelas tempestades de areia
provindas de África, restava uma família, verdadeiramente um único
habitante masculino, já que a mulher e o filho habitavam na maior parte do
tempo na ilha maior, denominada São Miguel.
Este facto repetia os primórdios da colonização da ilha pelos Portugueses
quando, no século XV, estes, partindo da Europa, encetaram a descoberta e
exploração da totalidade do planeta, donde nasceu a primeira representação
global da Terra e a sua actual divisão em cinco continentes.
Os Açores, localizados no centro do Mar Americano, outrora designado
por Oceano Atlântico, tinham sido dos primeiros arquipélagos descobertos
e colonizados.
Contavam as antigas crónicas, fundadas mais em lendas do que em factos,
que, durante um ano completo, o Pico fora habitado por um único homem,
Fernão Álvares Evangelho.
Desconhece-se a sua profissão de origem e o seu estatuto social.
Porventura seria um «lançado», um daqueles ladrões ou assassinos
condenados à morte em Lisboa, que a graça real perdoava enviando-o como
degredado na primeira nau saída do Tejo, o rio de Lisboa, capital de
Portugal.
Destinavam-se os «lançados» a experimentarem o estado de espírito das
populações descobertas antes do contacto formal do capitão e da tripulação
com os «nativos».
Se estes se mostrassem rebeldes, refractários a receberem os portugueses,
e matassem o «lançado», nada se perdia, já que, para todos os efeitos, se a
lei tivesse sido cumprida, este já estaria morto.
Só assim se explica ter Fernão Álvares Evangelho avançado sozinho num
batel em direcção à linha de costa da ilha, levando consigo um cão rafeiro.
No seu caso, não se trataria de experimentar as intenções da população
nativa, mas de conferir as condições de habitabilidade do ilhéu e de,
porventura, atestar da quantidade e do estado de saúde dos animais de
criação mandados lançar no Pico pelo Infante D. Henrique.
As ilhas dos Açores eram então desertas e os portugueses já as
conheciam, tendo aqui abandonado gado de criação para reprodução e
alimento dos primeiros colonos.
Quando o barcote de Fernão Álvares Evangelho atracou na praia,
levantou-se uma tempestade costeira que afastou a caravela da ilha.
Sob pena de ser arrastada para os baixios e se despedaçar, afundando-se,
o capitão mandou içar a âncora e a caravela partiu.
Fernão Álvares Evangelho ficou sozinho na ilha com o cão durante um
ano.
Não se sabe se foi recolhido por outro navio, se recebeu os primeiros
povoadores da ilha, flamengos, integrando-se na vida comunitária.

Jacques estacionou a velha nave a 15 metros de altura, accionando os


escadins centrais.
A traseira da nave abriu-se, lançando uma prancha metálica azulada, por
onde dois andróides faziam sair até ao solo caixas fechadas de metal
sintético.
Despedi-me de Jacques, saindo directamente da cadeira de co-piloto para
o terreiro improvisado em forma de pista.
Os meus companheiros perfilaram-se para me receber, aguardando
ordens.
Olhei-os pela segunda vez.
A nenhum conhecia, conferi.
Homens e mulheres normais, pelas roupas uns eram Cidadãos Dourados,
a maioria Sincretistas, certamente homens especializados nas funções
necessárias à sobrevivência, nenhum Agenciador, nenhum outro Reitor.
Nenhum Pantocrata, como já esperava.
Durante a viagem tinha reunido a máxima informação possível sobre os
Açores e o Pico.
Hesitava, não sabia se seria o momento oportuno para transmitir um
volume neutral de informação.
Pensei rapidamente em fazer um pequeno discurso, que selaria doravante
o nosso modo singular de ocupação da ilha.
Caso sobrevivêssemos, as minhas primeiras palavras corriam o risco de
se tornarem históricas.
Olhei nos olhos de todos e de cada um enquanto Jacques se elevava no
céu, desaparecendo, tragado entre a linha de horizonte do Mar Americano e
o céu sem dono.
Reafirmei os princípios da Grande Ordenação, que nos guiara ao longo de
quase 200 anos, louvei a acção ousada dos Pais Fundadores, que tinham
sabido criar futuro onde o presente declinava, apresentando-se vazio,
partindo de uma situação tão negra e calamitosa quanto a nossa.
Tinham tido o que nós não teríamos, ali isolados no meio do mar, o
precioso auxílio da ciência.
Porém, a nossa vontade de viver e de prosseguir a mais perfeita
civilização do mundo não seriam inferiores à deles.
Em circunstâncias trágicas, totalmente trágicas, deveríamos hastear o
sorriso da esperança.
Éramos provavelmente os últimos, os últimos dos últimos, os
derradeiros.
O que significava que também éramos os primeiros – os primeiros dos
primeiros – de um futuro por construir.
Não havia maior responsabilidade.
Cada um de nós não era ele próprio, só.
Tinha-se tornado o definitivo resultado da civilização mais perfeita e mais
feliz existente ao cimo da terra, infelizmente vencida pela brutalidade da
força e pela malícia animalesca.
Tempos bárbaros tinham regressado à Europa.
A força ganhara à inteligência, a vontade de domínio à vontade de
partilha, a emoção bestífera à razão sapiente, a ignorância à ciência e ao
saber.
Cabia-nos ressuscitar a Europa humanista nos Açores.
Devíamos contar em todas as horas do nosso dia com a possibilidade de
regresso à barbárie.
Com o hipercórtex desconectado, sentir-nos-íamos sós e abandonados,
mirando a vastidão infinita do céu e do mar.
Percebi um sentimento geral de desconsolo, de desalento, de profunda
amargura.
Alterei o sentido do discurso, tentando animar os meus companheiros
com palavras vigorosas, excessivamente entusiasmadas para o meu
carácter.
Recordei-lhes três princípios morais que preparara sentado ao lado de
Jacques:

UM – A todo o momento, o que cada um fizer deverá constituir modelo


de acção para todos;

DOIS – O fim último de cada acção deverá residir, para todos e para cada
um, numa síntese entre utilidade e prazer. Numa primeira fase, seria
possível que a utilidade suplantasse o prazer, mas o prazer, o prazer de
viver, atendendo às circunstâncias, deveria ser o derradeiro móbil de cada
acção;

TRÊS – O estado de espírito permanente de cada um deveria assentar no


princípio moral de ser feliz. Feliz sempre, mesmo em circunstâncias
infelizes, como era o caso.

Reafirmei a certeza de que, se seguíssemos estes três princípios, resumo


soberanamente abreviado das cláusulas da Grande Ordenação, a harmonia
social seria plena, a vontade comum solidificada, impulsionada todos os
dias, e a realização individual conseguida.
Para isso, cada um deveria esquecer o seu anterior modo de vida, não
fazer comparações, não se lamentar de não ter o objecto X ou o instrumento
Y.
Partir do zero todas as manhãs e, na medida das possibilidades, criar ou
construir o que no dia anterior se concluíra faltar.
Cinquenta e nove pares de olhos fixavam-me indecisos e cépticos, mas
animosos.
Percebi que o vigor de alguns se reanimava.
Outros, mais pessimistas, deixavam cair os braços, desconhecendo o que
pensar, o que fazer.
Recordei a todos como raramente a humanidade se encontrara na situação
em que nos encontrávamos: criar o mundo a partir do nada.
Tínhamos o nosso saber, tínhamos o que o Conselho dos Pantocratas nos
enviara na nave, tínhamos a nossa vontade e as nossas necessidades.
Começaríamos já a satisfazer as primeiras das necessidades.
Dei ordens.
Inventariar tudo o que o Conselho nos enviara.
Formação de grupos espontâneos, uns providenciariam dormida, outros
preparariam a passagem da aspiração do pó para comida sólida, mastigada;
outros conservariam a água trazida, inspeccionariam os arredores em busca
de água; outros explorariam a ilha; um grupo de Sincretistas ligados à
alimentação detectariam o terreno fértil para a plantação de legumes; outros
instalariam em segurança os geradores, as baterias eléctricas e os
computadores; dois procurariam o único residente da ilha – não fora
preciso, vimo-lo no cimo de uma curta colina, mirando-nos, espantado,
porventura assustado.
Acenei-lhe com os dois braços, sorrindo.
Não quis pensar o que lhe diria, como reagiria à sua recepção.
Pensar, ali, só atrapalharia.
Presumo que por isso fui escolhido pelo Conselho, não só pela lucidez da
sabedoria, mas sobretudo pela lucidez da experiência sensata.
Continuei a acenar, mirei o sol faiscante, tropical, fonte intensíssima da
nossa transpiração, que nos embaraçava os movimentos do corpo, mirei o
céu, cristalino e iridescente como nunca o víramos, o espelho prateado da
água imóvel, azulíneo e belo.
Nas nossas costas, exibia-se a majestade imponente da Montanha, dura
mas grácil na sua forma piramidal.
Disse para os meus companheiros, que se organizavam espontaneamente:
o Conselho escolheu o melhor sítio do mundo para a nossa salvação e
sobrevivência.
Devemos ser dignos da sua escolha e replicar aqui, nos Açores, tudo o
que da Nova Europa possa ser reproduzido, sobretudo a nossa forma
harmoniosa de vida.
Pássaros brancos guincharam sobre mim, atravessando os ares, planando
numa corrente de vento.
Li os meus apontamentos, tirados apressadamente na nave, eram cagarras,
as primeiras que via.
Perto da baía, dois rochedos salientavam-se frente à ilha, um horizontal,
outro vertical, e, ao longe, só visto de um ângulo, postava-se outra ilha,
chamava-se Faial, lera no ecrã da nave do Jacques, apenas uma língua
cobreada de terra, comprida.
Outra, muito perto, outrora designada por S. Jorge, desaparecera no
século anterior.

Não interferi na formação dos grupos, percebi que alguns já se


conheciam, a amizade ou, pelo menos, um vago sentimento de
solidariedade podia ser reconfortante naquele momento.
A transpiração intensa recordara-me a senilidade do meu corpo fora das
temperaturas semitropicais da Nova Europa.
Percebi que, contra o meu gosto, não por ser antinatural ou antimoral,
apenas por ser demasiado cedo, alguns elementos masculinos se
salientavam no interior dos grupos.
Comecei a estudá-los com o fito de encontrar dois ou três que me
sucedessem.
Eu deveria – apenas – preencher o lugar de quem funda uma nova ordem
moral e espacial.
Deveria deixar para os meus sucessores o estabelecimento da hierarquia
social, sempre fonte de conflitos.
Percebi que no interior de um grupo se debatia – não se discutia, debatia-
se – acaloradamente, não se atingindo uma conclusão consensual.
Era o grupo que ficara incumbido de estudar um futuro terreno para
plantação de legumes.
Debatiam a necessidade de água.
Deviam procurar uma ribeira, primeiro, defendiam dois.
O outro enfatizava a necessidade da qualidade do terreno, depois poderia
encaminhar-se a água da ribeira.
Intervim com razoabilidade, mansamente.
Relembrei que, para além dos três princípios morais, todos deveriam ter
em conta um QUARTO PRINCÍPIO, não moral, mas organizacional,
adequado aos condicionalismos presentes:

QUATRO – O simples é superior ao complexo.

Devíamos escolher regras simples, organizações simples, formas de


existência simples, hábitos simples, comportamentos simples.
Neste caso, seria importante não duplicar actividades e recursos.
O terreno para a plantação deveria ficar o mais perto possível da ribeira.
Bastaria compor um rego para abastecer de água a plantação.
Escolher sempre a solução mais simples e, entre as complexas, escolher
destas a mais simples – um útil princípio de eficiência.

O habitante da ilha, Jorge Tomás de seu nome – lera no ecrã da nave –,


afastou-se, certamente por receio ou por não saber o que nos dizer, como
nos acolher.
Nós éramos os intrusos, perturbadores do seu silêncio e solidão
voluntariamente escolhidos.
Eu afastei-me.
Todos perceberam que buscava um momento de reflexão.
Precisava, como eles precisavam.
O improviso inicial não podia dar lugar à desorientação, ao desvario.
Subi a curta colina donde antes nos observara Jorge Tomás.
Praticamente, uma duna alta.
O cascalho miúdo negro e a terra solta travavam-me os passos.
Toda a minha vida fora urbana e apenas pisara o plastifex das nossas ruas
rolantes e dos soalhos das nossas casas e as alcatifas sintéticas.
Senti grãos de areia nos sapatos.
Algo que devia ser mudado, por exemplo.
Sapatos europeus sintéticos ali, em clima tropical e solo terroso, não
faziam sentido.
Mas não se tratava de um problema de urgente resolução.
Devia observar o calçado de Jorge Tomás, aprender com ele, que ali vivia
há anos.
Preocupava-me a organização geral da vida dos meus companheiros a
partir daquele momento, isso, sim, preocupava-me bastante.
A primeira hora no Pico ensinara-me que não bastaria o cumprimento dos
princípios morais.
Forçoso seria prestar um cimento organizativo às relações entre todos,
aparentemente espontâneas.
A espontaneidade inicial em breve viraria hierarquia, escala social,
porventura imposta pela divisão de tarefas, umas mais rudes, outras mais
cerebrais, em breve as hormonas sexuais fariam soar a trombeta, agora que,
sem hipercórtex, fora anulado o mecanismo biológico que impedia a
fertilidade das mulheres.
Aliás, precisaríamos com urgência de providenciar filhos, uma abundante
nova geração deveria nascer sem falta, no ano seguinte, a reprodução
deveria ser uma das novas prioridades.

O ESTADO DE NATUREZA

O que fazer?
Três horas apressadas junto do Conselho, duas horas na nave, uma hora
no Pico – pouco tempo para reflectir e tomar decisões para quem se
habituara a pensar em companhia e colaboração do Grande Cérebro
Electrónico, sobretudo se habituara a tomar decisões exclusivamente
lógicas, racionais.
Agora, as emoções fluíam e refluíam, embaraçando-nos, e, confusos, as
indecisões tornavam-se maiores do que as certezas.
Não tinha nenhuma convicção senão de que deveria ser o primeiro
responsável pela salvação dos Sessenta, incluindo eu.
Deveria ser o primeiro responsável pela sobrevivência de uma
civilização.
Tornava-se necessário criar mecanismos organizativos que, se não
redimissem, pelo menos esbatessem os possíveis e previsíveis conflitos, não
violentos, porque toda a nossa formação se baseara na serenidade,
tivéramos e queríamos continuar a ter a paz como um dos mais altos valores
de nossa civilização.
Poderiam nascer conflitos de personalidade, conflitos de interesse,
conflitos na utilização de recursos, tão escassos para quem vivera habituado
a satisfazer completamente as suas necessidades e a realizar em plenitude os
seus desejos.
Não éramos já animais, mas tínhamos deixado de ser totalmente
racionais.
Em pouco menos de um mês regredíramos, tínhamo-nos tornado apenas
humanos.
A minha lucidez, agora, dava-me a entender que ser apenas homem
constituía o mais difícil estatuto do universo, depender tanto do que a mãe
natureza nos facultava quanto do que as nossas faculdades conseguiam
engendrar.
Não tínhamos regressado ao estado natural, o Conselho dos Pantocratas
tinha carregado a nave de Jacques de água, comida em pó e inúmeros
instrumentos que nos seriam utilmente salvadores, inventariados
apressadamente por dois grupos, separando-os numa escala lógica de
prioridades e necessidades.
O verdadeiro estado natural do homem residia num estado social de
associação civil, só este permitiria a expansão e concretização das
potencialidades racionais humanas.
O estado de natureza, como situação de guerra de todos contra todos,
nunca existira, fora uma ficção inventada pelos filósofos dos séculos XVII e
XVIII.
O natural no homem é a cooperação, não que para isso esteja
instintualmente vocacionado, mas porque a sua fragilidade constitutiva o
força a unir-se contra as fontes do mal, a dor física, o sofrimento psíquico, a
carência de meios e a morte.
A união, a cooperação, a ajuda mútua, a solidariedade entre seres do
mesmo grupo ou da mesma espécie, obviam à sobrevivência, não à guerra,
à mortandade colectiva, ao assassínio indiscriminado.
Nunca houvera estado de natureza no homem.
Sempre este vivera em estado civil.
Assim, seria forçoso activar um pacto entre os Sessenta que garantisse a
concórdia mútua, não bastaria a aplicação dos três princípios morais e um
quarto organizacional.
Reflecti.
Escrevi no livro que, para uma nova sociedade fundada por tão reduzido
número de membros, no pacto deveria constar:

UM – O ataque físico ou psicológico a cada um dos Sessenta seria


considerado um ataque à totalidade da comunidade;

DOIS – A nova sociedade deveria ser um regime comunitário, fundado


na confiança mútua, na rotatividade dos cargos e na nomeação dos mais
eficientes para cada tarefa singular; ninguém deveria sentir-se magoado
ou humilhado se fosse excluído de uma actividade por não se mostrar
adequado a esta;

TRÊS – A finalidade última da comunidade residiria na protecção de


todos por todos; todos deveriam, não vigiar, mas proteger os restantes;

QUATRO – A comunidade deveria reunir-se todos os dias ao pôr-do-


sol em Assembleia por mim presidida, mas sem agenda ou ordem de
trabalhos. Esta seria criada à medida das necessidades.

Em cada Assembleia, concretizar-se-ia um pacto de associação entre


todos, não um pacto de submissão de uma minoria face a uma maioria, não
um silêncio humilhante da maioria escutando uns poucos, mas uma
participação viva de todos segundo as necessidades vividas nesse dia.
Na primeira Assembleia, faria aprovar o estatuto de propriedade
comunitária.
A propriedade deveria ser entendida como concretização do trabalho
individual e expressão da participação de cada um para a sobrevivência de
todos – o computador pertenceria ao informático enquanto este o fosse; os
instrumentos de agricultura – que agora éramos obrigados a praticar – ao
agricultor enquanto este o fosse; quando deixassem de cumprir aquelas
tarefas, passá-los-iam a quem as cumprisse.
À semelhança da Nova Europa, não haveria propriedade privada senão de
bens de utilização pessoal, como a roupa e os objectos de uso quotidiano.
II

JORGE TOMÁS

Já inventariámos água e comida.


Temos pó alimentício suficiente para três anos e água para um mês.
Os vaporizadores portáteis necessários.
Precisaremos de reforços alimentares devido ao esforço físico, a que não
estávamos habituados.
Vivemos em pavilhões cinzentos, enviados pelos Pantocratas.
Três tendas de pano metálico, sobre estrutura de alumínio, resistentes à
chuva e ao vento marítimo, uma para dormir, outra para comer e conviver e
outra para trabalhar, agora sim, para trabalhar.

Conhecemos a única família habitante no Pico, ele chama-se Jorge


Tomás, a mulher Joana e o único filho que tem o nome do pai e se destina a
perpetuar a residência da família na ilha.
Os filhos posteriores teriam variados nomes e partiriam para a ilha de São
Miguel ou para o Império Americano.
Joana segui-los-á, caso Jorge Tomás morra primeiro.
Jorge Tomás é o sexto descendente de um antigo Manuel Tomás que aqui
habitou em princípios do século XXI, professor, sábio, poeta, genuíno
açoriano e picaroto, que recusou seguir a debandada geral para territórios
do Império Americano aquando dos grandes tremores de terra causados
pela erupção do vulcão, designado por Montanha.
O início da grande debandada deu-se em 2030, a seguir ao primeiro
tremor de terra, sentido na totalidade do arquipélago, que engoliu a ilha do
Corvo.
O segundo, três anos depois, desfez o Faial, reduzido a um território de
500 metros quadrados.
Trinta anos depois, as restantes ilhas foram tragadas pelo mar ardente,
restando a Terceira, São Miguel, o Pico e a língua de terra do Faial.
As populações sobreviventes, aterrorizadas, foram engrossar a legião de
trabalhadores braçais americanos, com direito garantido a alimentação,
hospital público e tumba – o Império Americano garante,
supersticiosamente, enterro condigno a todo o ser humano residente no seu
território.
As grandes empresas americanas, da dimensão de alguns antigos estados
europeus, perceberam que, sem plano hospitalar, os europeus e os sul-
americanos se recusavam a emigrar para os territórios do Império.
Com a última debandada, o Pico ficou vazio, com excepção de Manuel
Tomás Filho, que se recusou a abandonar a ilha onde a sua família residia
desde o século XVI.
Contribuiu para esta decisão o facto verdadeiro mas assombroso de, no
cemitério da Madalena do Pico, todas as sepulturas terem sido
profundamente revolvidas pelas convulsões geológicas menos as dos avós e
dos pais de Manuel Tomás Filho.
Este interpretou a integridade das terras em torno dos túmulos da família
como desejo dos seus antepassados de o seu nome permanecer na ilha
contra tudo e todos.
Jacques contara-me a história dos Tomás.
Manuel Tomás Filho sobreviveu com um cão, o Picaroto, exactamente
como Fernão Álvares Evangelho quinhentos anos antes.
Alimentavam-se de legumes, vegetais e cereais, e da carne de alguns
animais, sobretudo coelhos.
Uma vez por semana, Manuel Tomás pescava dois peixes, que assava, um
para ele, outro para o Picaroto.
Manuel Tomás Filho, o sobrevivente, e os seus descendentes iam a São
Miguel replicar as células, ilha também escassamente habitada.
Aqui escolhiam mulher, que já sabia viver solitariamente no Pico,
fornicavam-na todos os dias até terem dois varões, para garantir a
continuidade da família na ilha, admitindo a hipótese de um morrer em
criança ou na adolescência.
Todos os primogénitos se chamavam Jorge Tomás.
Depois, garantida a descendência, acalmavam o ímpeto sexual.
Não procurámos Jorge Tomás.
Deixámo-lo observar de longe as nossas actividades, eu tinha o cuidado
de lhe acenar e sorrir.
Percebeu que éramos pacíficos e amigáveis.
Aproximou-se lenta e gradualmente da nossa Base.
Decidimos chamar Base à futura cidade.
Por enquanto, apenas uma base de campanha, um autêntico acampamento
civil, ordenado pela disposição das tendas em triângulo, com uma praça
interior.
Queríamos que a Base se tornasse um dia a futura capital da ilha, uma
verdadeira cidade.
Então, os nossos descendentes deveriam chamar-lhe Conglomerado,
porventura Primeiro Conglomerado, ou então, como homenagem,
Novíssima Europa.
Tinha lido sobre Jorge Tomás na Worldweb americana, nos computadores
que tínhamos trazido ligados a geradores movidos a energia química, que
em breve se esgotaria.
Os modelos informáticos mais avançados encontravam-se ligados ao
Grande Cérebro Electrónico, não funcionariam por si próprios se
desconectados daquele.
Um dia, olhando para Jorge Tomás, que sempre se sentava no cimo da
curta colina, mandei desfraldar quatro panos brancos em quatro caniços e
fiz-lhe sinal para descer até nós.
Ele percebeu e, pela primeira vez, acenou e, pareceu-me, sorriu.
Porém, desconfiado até ao fim, só após uma semana entabulou conversa
connosco, escolheu um de nós que se encontrava a limpar e a alisar
manualmente o terreno.
Jorge Tomás falava uma língua estranhíssima, um crioulo de americano
do século XXII com português do século anterior.
Chamaram-me.
Percebi uma, duas, quatro, cinco palavras, fui-me fazendo entendido,
retorquindo-lhe na mesma algaraviada.
Fui sincero.
Expliquei-lhe quem éramos e donde vínhamos.
Omiti-lhe os recentes momentos de agonia da Nova Europa.
Presumi que ele entenderia sermos nós uma delegação em exploração de
territórios novos, mas Jorge Tomás tinha lido na Worldweb os triunfantes
comunicados dos Mandarins a anunciarem a futura ocupação da Europa.
Nesse instante, fomos interrompidos.
Alguns Sincretistas vieram até nós com as faces coradas e os olhos
pulados de terror.
Pérolas de suor brilhavam nas suas testas luzidias.
Tinham lido novos comunicados dos Mandarins de Xangai.
A Nova Europa acabara de ser oficialmente invadida pela Grande Ásia.
Os nossos infelizes concidadãos acumulavam-se nas ruas e nas praças,
pacíficos, ordeiros, aguardando o derradeiro desfecho da sua existência.
O computador de Jorge Tomás tinha acesso a outras redes virtuais,
sobretudo africanas, e ele já sabia qual o destino dos neo-europeus, fora
anunciado ao mundo nessa noite: todos seriam considerados «filhos da Ásia
Ocidental», forçados a casar-se com elementos orientais do sexo oposto e a
procriar filhos cujos contingentes já tinham sido destinados pelos novos
mandarins da Europa como mão-de-obra trabalhadora para as minas
palúdicas do centro do continente africano, um eufemismo para os não
designar por novos escravos.
Os filhos dos neo-europeus, arraçados de amarelo, tornar-se-iam os
futuros batalhões de escravos da intensa exploração mineira.
Os Mandarins recusavam enviar asiáticos para o trabalho desumano,
pestífero, sujo e cruel das inúmeras jazidas de minério no ventre de África e
os andróides tinham-se tornado excessivamente caros para serem usados
num trabalho que matava os homens em menos de dez anos.
Insuficiente o contingente negro, era forçoso prestar novo ânimo ao
trabalho mineiro em África – os neo-europeus seriam a solução para a
exploração das jazidas de minerais, até ao seu completo esgotamento em
menos de dois séculos.
Com os neo-europeus, os Mandarins iriam criar uma subespécie humana
destinada exclusivamente a esta actividade, obrigada a trabalhar e a
reproduzir-se.
Em menos de um século, criariam um contingente de mais de 200
milhões de trabalhadores, presumiam poder atingir os 300 e em dois séculos
500 milhões – justamente o total de que necessitavam para suprir a carência
de trabalhadores africanos.
Tinham o problema das minas de África resolvido até ao seu esgotamento
final.
As condições ambientais do centro de África não permitiam que os
trabalhadores vivessem mais de 70 ou 80 anos, mortos por doenças
crónicas, que encareciam exponencialmente os serviços de saúde.
Os Mandarins tinham decretado 80 anos como limite de tempo de vida
em África, todos os trabalhadores eram mortos quanto atingiam esta idade.
Jorge Tomás informou-me das últimas notícias numa confusão verbal de
que percebi metade e supus o restante.
Na Assembleia desse dia, dei a conhecer aos meus companheiros o
nefasto destino dos nossos concidadãos, cujos filhos arraçados se tornariam
doravante escravos, com o evidente propósito de que, um dia, mal se
esgotassem os filões mineiros, porventura em menos de dois séculos, todos
os sobreviventes, filhos de filhos de filhos, mais arraçados ainda, seriam
dizimados, o corpo pulverizado em moléculas e projectado para o espaço
interplanetário.

Nesse triste poente, seco e abrasador como até então não conhecêramos o
anoitecer, de fogueiras acesas para não exaurirmos a energia líquida
química dos geradores, Jorge Tomás, a meu lado, a todos previamente
apresentado, informou-nos de que São Miguel nos podia abastecer de um
gel carburante para geradores, e mesmo de novos geradores.
Desde os terramotos que São Miguel ficara sem rede pública eléctrica,
substituída por geradores comunitários.
Céptico, valorizei as informações de Jorge Tomás, que se propunha ir a
Ponta Delgada, a capital de São Miguel, abastecida a partir de empresas
americanas, trocar os nossos computadores de décima sexta geração por uns
mais recentes.
Nessa Assembleia, pausadamente, preparando-os para a desgraça,
informei os meus companheiros de que porventura àquela hora os neo-
europeus, alguns certamente das famílias de afinidade dos presentes, já
tinham sido entregues a famílias asiáticas ou africanas para copularem até à
exaustão com o fito de ser criada uma raça mestiça.
Com o hipercortéx desligado, os mecanismos biológicos que impediam a
gravidez eram automaticamente desbloqueados.
Os Mandarins, com o seu zelo administrativo e burocrático, deveriam ter
calculado um número máximo de fornicações num determinado prazo, a
partir do qual, não resultando, o neo-europeu, homem ou mulher, seria
aniquilado.
Alguém da Assembleia perguntou pelos nossos companheiros não
sexualmente activos, como as crianças e os octo, os nonagenários e os
centenários.
Eu não sabia responder, nem queria acreditar que tivessem sido
impiedosamente dizimados.
Restava-me a esperança de que os Mandarins os destinassem a uma
actividade produtiva, aproveitando sobretudo a longa experiência sapiencial
e científica de muitos deles, quem sabe se as crianças não seriam destinadas
a trabalhos domésticos.
Outro, chorando, libertando as suas emoções, admoestou os chineses por
não usarem as centenas de milhares de óvulos acumulados nos Criatórios.
A esta questão a minha lucidez soube responder.
Os Pantocratas devem ter calado a existência desses bancos de óvulos em
todos os Conglomerados, já que, sem utilidade maior de imediato, os
Mandarins poderiam pura e simplesmente exterminar a maioria da
população e usar os bancos de óvulos.
Alguém se lamentou, carpindo a sorte dos concidadãos sexualmente
activos e mais dos sexualmente inactivos, porventura feitos prisioneiros ou,
talvez, já mortos.
Neste caso, a nossa imaginação concebeu, contra a nossa vontade, a
centena de elementos do Conselho dos Pantocratas mortos, todos eles com
mais de 130 anos.
Não valia a pena fingir que os Mandarins poupariam os membros do mais
alto órgão de poder da Nova Europa.
Seriam os primeiros a morrer, o que equivaleria, para os novos Senhores,
à extinção da civilização que tinham acabado de ocupar.
Lenta e calmamente, com um semblante grave, animado de um profundo
pesar, que o meu rosto enrugado denunciava, clamei para todos:

– Verdadeiramente, agora somos mesmo os últimos europeus, os últimos


dos genuínos neo-europeus.

Vários dos meus companheiros insistiram para que contactássemos o


Conselho dos Pantocratas através do endereço virtual que nos tinham dado.
Já o tínhamos feito abundantemente, informei.
Desde que religáramos os computadores, não tínhamos feito outra coisa,
sempre goradamente.
Do outro lado da rede, nenhum sinal.
Senti um frémito no corpo enquanto falava e com terror observei que
todos amachucavam as caras de idêntico terror.
Fomos sujeitos a uma comoção colectiva à frente de Jorge Tomás,
sentimento de que nunca tínhamos padecido, uma expressa compaixão pelo
aterrorizante destino dos nossos companheiros da Nova Europa.
Ao mesmo tempo, paradoxal e cruelmente, um franco alívio vazou a
nossa mente, consolando-nos – nós estávamos a salvo daquele crudelíssimo
destino.
Todos olhámos para Jorge Tomás, que se comprometeu a não dar razão da
nossa existência na Worldweb, jurando pelo túmulo dos seus avós e dos
seus pais e, mais, pela vida do seu filho.
Não percebemos bem, já que a nossa língua Universalis não continha o
verbo «jurar». Por gestos e por palavras subentendidas, entendi o que Jorge
Tomás queria dizer.
Confiámos nele, não tínhamos alternativa.
Fôramos educados a confiar nos nossos próximos, sempre com reforço
positivo, já que na Nova Europa ninguém enganava ninguém.
Porém, bem depressa o alívio da nossa salvação se transformou num juízo
pesado relativo à imensa responsabilidade que caía sobre os nossos
ombros.
Se éramos os últimos europeus, os últimos verdadeiros europeus,
teríamos de estar à altura desta gigantesca responsabilidade – eu, em
particular, não tinha a certeza de estar à altura.
Ocultei as minhas dúvidas enquanto falava à Assembleia.
Pelo contrário, retirei força das fraquezas e apresentei-me como exemplo
de soberana vontade.
Assim finalizei o meu breve mas incisivo discurso, incentivando todos a
descansarem essa noite e a acordarem de forças redobradas na manhã
seguinte.

Só recentemente tínhamos voltado a falar, pelo que as ordens cerebrais


não se harmonizavam com os diversíssimos músculos bucais.
Olhando-o obliquamente, percebi que Jorge Tomás expelia sorrisos
curtos, provocados, não pelo conteúdo da nossa fala, que não entendia, mas
pelo modo desarticulado e desarmónico como o fazíamos.
Falávamos como se tivéssemos pedras na boca, ou a língua engrolada em
areia.
Jorge Tomás, querendo consolar-nos, ofereceu-nos dois cabritos e um
vitelo para os matarmos e assarmos.
Ofereceu-se para os degolar.
Fomos obrigados a recusar devido à virgindade de carne dos nossos
órgãos biológicos, não preparados para a receber, porventura nem a
saberíamos mastigar, e, por nossa opção, não o faríamos enquanto não fosse
necessário.
Perguntou-nos se queríamos rezar, oferecendo a nave em ruínas da antiga
igreja da Madalena, velha capital da ilha, onde não raro orava com a
família.
Fiz um esforço para me recordar do significado da palavra rezar em
inglês antigo e recordei-me de que significava falar com uma presumida
figura espiritual designada por deus omnipotente, senhor do mundo.
Jorge Tomás, a mulher e o filho pareciam ser pessoas muito religiosas, até
supersticiosas.
Entendi.
Eram animais sobreviventes, isolados do mundo, sujeitos a tremores de
terra, tinham vivido a memória da submersão das ilhas, socorriam-se do
desconhecido para tentar controlar o conhecido.
Nisso consistia a função da antiga religião, domesticar o medo, garantir o
futuro, hipotecado pelo mal.
Virei as costas a Jorge Tomás, disse-lhe que não precisávamos de
subterfúgios, saberíamos lidar face a face com o mal e, se não vencê-lo,
pelo menos reduzir as suas aziagas consequências aplicando o princípio
prático orientador da Nova Europa: decompor um grande problema em
pequenos problemas, solucionar cada um destes, assim solucionando o
grande.
Não precisávamos de ajudas divinas e muito menos de súplicas
transcendentes, que nos humilhavam como homens racionais.
Não adiantei mais conversa.
A religião exprimia os medos mais ancestrais do homem, a execração do
mal, o domínio mágico das forças poderosas do cosmos.
Tratava-se de uma reminiscência mental da antiga Europa, ali, no Pico,
que convinha combater, já que, isolados de tudo e de todos, possuía pasto
para medrar entre os meus companheiros.
Um ou outro, influenciado por Jorge Tomás, podia cair nos braços da
superstição.
Era forçoso desprezar e combater qualquer laivo de religiosidade.
Esta começaria por um leve prurido de inquietação mental e, anos depois,
daria origem a um grupo religioso.

No primeiro mês, cada um ia desempenhando as funções para que


espontaneamente se sentia habilitado ou se lhe manifestava a vontade.
Não lhe pertencendo, Jorge Tomás revelou-se no entanto um dos mais
prestimosos elementos da comunidade, facultando-nos o contacto com
Ponta Delgada, e grande dificuldade teríamos tido na confecção de
alimentos sólidos, complementares do pó alimentício, sem a orientação de
Joana, sua mulher.
Grande, grande tarefa foi a reaprendizagem do acto de mastigação.
O estômago teve de adaptar-se e as dores tornaram-se sucessivas e
excessivas.
Cada vez que experimentávamos comida cozinhada, provinham-nos dores
terríveis, que Joana minimizava com um chá especial de ervas silvestres, o
dentabrum.
Enviávamos contínuas mensagens para o correio virtual que o Conselho
dos Pantocratas nos tinha dado, mas resposta não havia.
Na Worldweb o silêncio era total sobre o destino das populações da Nova
Europa.
Depois do primeiro comunicado dos Mandarins, não houvera outro.
Tínhamos trocado uma barra de ouro por 100 barris de combustível
sintético líquido com um cargueiro de São Miguel e Jorge Tomás fora a
Ponta Delgada comprar-nos computadores mais potentes e os programas
adequados em língua americana.
Ao fim de um mês, deixámos de transpirar efusivamente.
A epiderme adaptara-se à temperatura tropical.
Para poder sair para o exterior das tendas, tive de socorrer-me de antigos
óculos escuros, que Jorge Tomás comprara em abundância em São Miguel.
O sol faiscava todos os dias, mesmo quando chovia.

IDENTIDADE INDIVIDUAL

No final do primeiro mês, os inventários estavam prontos, sabíamos o que


tínhamos e com o que poderíamos contar, inclusivamente com comunicação
electrónica montada, ainda que rudimentar, e a funcionar na perfeição.
Já não estávamos totalmente isolados.
Os primeiros vegetais e legumes tinham sido plantados: feijão verde,
tomate, batata, cebola, cenoura e ervilhas.
Três a cinco meses demorariam a vingar.
Os meus companheiros estavam cépticos, as sementes e as raízes trazidas
poderiam não se aclimatar à nova terra.
Corríamos o risco de dizimar a população de salgueiros, até agora
exclusiva fonte de lenha para as fogueiras nocturnas.
O grupo de trabalhadores mecânicos transformara a madeira de nove
salgueiros em sessenta cadeiras toscas e cinco mesas largas e compridas,
mesas de trabalho e de convívio.
Em breve, começaríamos a levantar casas duradouras, substitutas das
tendas, e precisaríamos de mais madeira.
Precisávamos urgentemente de nos abastecer de geradores alimentados a
gel carburante, caros, muito caros, mas necessários.
Jorge Tomás manifestou-se mais uma vez de grande solidariedade,
prontificando-se a deslocar-se pela segunda vez num mês a Ponta Delgada.
A este ritmo acelerado de consumo, preocupava-nos a exterminação dos
salgueiros.
Já o mar nos parecia menos ameaçador, e a pequena ilha menos isolada.
Na Worldweb o silêncio continuava absoluto sobre a Nova Europa.
Nada podíamos fazer e tentávamos não nos lembrar dos nossos
companheiros, certamente martirizados pelos chineses.
Havia a hipótese de o Conselho dos Pantocratas ter negociado com os
Mandarins – era a minha (a nossa) esperança.
Trocar saber científico e tecnológico pela sobrevivência, forçar os
asiáticos a, pelo menos, darem continuidade aos nossos laboratórios e
centros de informação e, assim, garantir a sobrevivência de Reitores e
Sincretistas, uma elite que, talvez um dia, pela inteligência, se pudesse
libertar do jugo oriental.
Não falávamos do assunto nas Assembleias diárias.
Perdida a linguagem mental Universalis, recuperámos os 500 vocábulos
do neo-americano como língua franca, língua que Jorge Tomás
compreendia.
Por vezes, pedia a este que narrasse uma antiga história no crioulo dos
Açores.
Pouco percebia além de palavras inglesas semelhantes às suas congéneres
americanas, mas deleitava-me com as vetustas palavras de origem
portuguesa, grossas, de som fechado, como se estivessem permanentemente
de luto.

No segundo mês a confusão instalara-se entre os Sessenta.


Os Distintivos informáticos que nos identificavam na Nova Europa,
constituídos por símbolos matemáticos desenhados labirinticamente, não
tinham tradução directa no léxico americano.
No primeiro mês, assoberbados de trabalho pela instalação dos bens e
instrumentos e a acomodação das pessoas, tratávamo-nos por tu olhando
directamente para o rosto do interlocutor, mas era preciso resolver o
problema do tratamento de cada um.
Nenhum de nós tinha nome e na Assembleia, ao fim da tarde, todos
juntos, sentados na terra lado a lado, ou em pé, encostados aos salgueiros,
embaraçava-me mandar falar este ou aquele.
Precisávamos de nomes individuais.
Comíamos em círculo antes da Assembleia Comunitária, misturávamos
na boca pó alimentício vaporizado com cereais ou legumes ou frutos
comprados em Ponta Delgada através dos contactos de Jorge Tomás.
Constatámos que, sem Distintivo nem nome, cada um parecia
desconhecer-se a si próprio, desprovido de identidade.
Um dos Sessenta falara num vazio profundo, como se todos os dias se
procurasse a si próprio.
Outro alegara um labirinto mental quando se pensava a si mesmo, um
dédalo de que desconhecia fim e princípio.
Decidi e propus à Assembleia que cada um dos Sessenta escolhesse um
nome para si ao longo da última semana do segundo mês.
Foi uma semana divertida, todos puderam pesquisar na Worldweb.
Cada um escolheu um nome em linguagem americana e três ou quatro
inventaram nomes a partir da aglutinação de sílabas.
O critério único residia na possibilidade de transcrição em alfabeto
românico.
No final da semana, em sessão solene, que se prolongou pela totalidade
do dia, cada um registou o seu nome no computador oficial da comunidade.
Foi como se tivéssemos nascido de novo.
Como referi, obedecendo aos ditames da Grande Ordenação, não deixo
registados os nomes escolhidos, nem sequer o meu, devido à concepção de
história comunitária que partilhamos, que se escusa de glorificar acções
individuais.
Porque nos consideramos todos iguais, abolimos a distinção entre género
masculino e feminino, que caracterizou durante milénios a nomeação das
pessoas individuais em todas as antigas línguas europeias.
Pelo nome, nunca se saberia se alguém era homem ou mulher.

CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIAS

Éramos 20 homens e 40 mulheres, todos férteis menos eu, cuja idade não
permitia já a reprodução sexual.
Na sua sabedoria, os Pantocratas tinham previsto que cada um – menos
eu, claro – engravidaria duas mulheres por ano, e, segundo as suas contas,
confirmadas pelos cálculos a que procedemos nos novos computadores,
dentro de cerca de 10 anos atingiríamos o ponto de não retorno da
sobrevivência colectiva, mesmo contando com a possibilidade de uma
doença endémica, contagiosa, que vitimasse dois terços de nós.
Ou seja, constituiríamos uma comunidade com não menos de 500
indivíduos.
Caso tudo corresse em perfeição, e admitindo uma única morte – a minha
– ao longo da primeira dezena, dezena e meia de anos, poderíamos florescer
com uma população entre 500 a 800 membros, constituída pela geração
pioneira, uma outra, já nascida na ilha, activa, em processo de adultificação,
e outra, novíssima, em crescimento.
Contra as previsões do Conselho dos Pantocratas, que prognosticara 200
anos de acalmia geológica nos Açores, caso sobreviessem tremores de terra,
maremotos, erupções vulcânicas ou, mesmo, uma febre contagiosa, seria
sempre possível – mesmo provável – que 10 por cento da população
sobrevivesse, o que significava 50 a 80 indivíduos.
Regrediríamos ao ponto zero.
Para que a reprodução se efectivasse o mais rapidamente possível e em
2285 atingíssemos um número populacional estável de cerca de 100
membros, propus à Assembleia que a partir do terceiro mês se iniciasse a
fornicação colectiva entre os 19 homens e as 40 mulheres.

Começou aqui a discórdia.


Sem o controle rígido do hipercórtex, as emoções e os sentimentos
sobrepuseram-se às escolhas racionais.
Estas indicavam serem indiferentes os proprietários de espermatozóides e
as proprietárias dos óvulos, todos saudáveis e em idade de procriação.
Caso vivêssemos na Nova Europa, como referi, não haveria reprodução
natural.
A sexualidade física reduzia-se exclusivamente ao prazer.
Ora, ali, no Pico, mais do que o prazer, a urgência residia na utilidade da
reprodução, pelo que as cópulas se deviam suceder até à certeza da
gravidez.
Três antigos Sincretistas elaboraram um rol de material médico a comprar
em Ponta Delgada para a efectivação de quarenta partos no prazo de nove
meses.
Desde a instalação do hipercórtex no cérebro dos neo-europeus,
desconhecia-se a existência de conflitos no seio da comunidade, já que,
sempre que o Grande Cérebro Electrónico recusava a consumação de um
desejo a um Cidadão Dourado, criava as condições informáticas para a sua
realização mental, registando na memória pessoal do requerente
recordações vívidas do acontecimento, como se ele o tivesse de facto
experienciado.
Hoje, uma mulher, na Assembleia, contra todas as antigas regras, exigiu
um só homem.
Escreveu o nome dele, garantiu que o amava e que só queria ter filhos
dele.
Constituiu a subversão total dos nossos costumes.
As emoções e a paixão amorosa, oriunda dos sistemas periféricos do
cérebro, legado dos primatas superiores, fazia a sua solene entrada na nossa
comunidade, dividindo-nos.
Ninguém percebia bem o que era o amor e todos ficaram a olhar para a
nossa companheira (inclusivamente o homem por ela escolhido) com o
maior dos espantos.
Socorri-me dos meus antigos estudos de Reitor para ilustrar a
comunidade.
Expliquei que o amor era uma forma de obsessão representada pelo
desejo de posse absoluta do outro, o amado, habitualmente, mas não
obrigatoriamente, do sexo oposto.
O seu contrário era o ódio, o desprezo absoluto pelo outro, o desejo da
humilhação deste, até do seu aniquilamento.
O amor consumava-se pelo acto sexual e prolongava-se por uma vida em
comum, garantindo a educação dos filhos, caso os houvesse.
O amor, ainda que provocado por uma paixão animalesca, tornava-se,
assim, um sentimento estável, não raro com a duração de uma vida adulta
completa, ainda que suavizado.
A mulher que declarara o seu amor recusou peremptoriamente ter
relações sexuais com outro homem, mesmo que este a desejasse, e, mais
grave, recusou que o «seu» homem, como disse, tivesse relações com outras
mulheres.
O amor constituía um sentimento criado pela natureza para garantir a
existência de novas gerações.
Caso houvesse garantia da existência destas, como acontecera na Nova
Europa, para nada era preciso o amor.
Nos Açores, libertos da estrita racionalidade, o amor fazia assim a sua
solene entrada, lançando a discórdia entre a comunidade.
As emoções agrupavam-se em torno de sentimentos cegos, que,
obstinados, impediam de ver a realidade, isto é, as coisas ou os problemas
tais como eram, neste caso, a necessidade de máxima reprodução,
independentemente dos gostos pessoais.
Cantado heroicamente pelos antigos poetas e louvado pelos grandes
humanistas, o amor, no entanto, em situações de sobrevivência, só
atrapalhava, provocando o dissídio e, quem sabe, a violência.

Desconhecia o que fazer.


Percebi porque o Conselho dos Pantocratas me nomeara.
Só eu, entre os Sessenta, pelas minhas funções de Reitor dos museus,
possuía suficiente experiência da história da humanidade e só eu, pela
minha vetusta idade, possuía suficiente experiência de vida para superar
dúvidas e hesitações e avançar sensatamente.
E tínhamos de avançar.
Um outro Reitor, mais novo, correria o risco de tomar uma posição
parcial.
Eu estudara um número excessivo de guerras e conflitos políticos para
saber que a discórdia prolongada só poderia levar ao esmagamento de um
dos contendores e ao triunfo dos restantes.
Tinha de intervir.
A declarante mostrava-se agastada e o objecto da contenda, o homem,
evidenciava um constrangimento que se aproximava da vergonha ou,
melhor, do pudor.
Baixara a cabeça e assim se mantivera, em silêncio, recusando a proposta
da declarante.
Percebia-se que se sentia privilegiado por ter sido escolhido, via-se,
também, que tinha consciência da responsabilidade da proposta dela,
furtando-o a poder engravidar outras mulheres e, sobretudo, entendia-se que
não gostara se ter sido objecto de disputa em Assembleia.
Mais do que o facto de lhe não permitir engravidar outras mulheres,
parecia ter-se indignado por ela se recusar a ter relações sexuais com outros
homens, ferindo assim a capacidade reprodutiva da comunidade.
Ele não estava à vontade para aceitar fazer com a declarante um par à
parte, sobretudo porque identificava esse acto com o início de um costume
pernicioso para a comunidade.
Um dos Sincretistas assim o disse, elevando a voz tremida, mas bem
recortada.
Interrompi-o e exigi que baixasse o volume da voz.
Ele entendeu e desculpou-se, mostrando-se revoltado por ter sido
quebrada a unanimidade que sempre presidia às nossas decisões em
Assembleia.
Declarou ser a unanimidade a chave conselheira da conciliação, que a
todos contenta e protege.
Estou revoltado, concluiu o Sincretista, mais, estou enojado.
O amado sentiu-se no dever emotivo de defender a declarante.
Alçou os dois braços, usando de voz tonitruante, o que a todos
desagradou.
Obriguei-me a interrompê-lo mal começou.
Percebi que as suas palavras, fossem quais fossem, forçariam a
Assembleia a tomar partido.
Não estávamos ainda preparados para tomar partido sobre esta matéria.
Eu próprio não tinha opinião conclusiva e certeira.
Para alívio geral, dei precipitadamente a Assembleia por encerrada.
Usando da minha autoridade de origem pantocratal, ordenei silêncio
absoluto sobre o tema até à próxima Assembleia, que cada um reflectisse
seriamente sobre as alternativas e só trouxesse as que considerasse
solidamente fundamentadas.
Senti falta de um pequeno grupo de conselheiros, mas a sua nomeação
introduziria um desnível hierárquico entre os Sessenta para o qual ainda não
estávamos preparados.
Quem fosse nomeado deteria uma posição privilegiada para influenciar
propostas levadas à Assembleia, rompendo a igualdade constitutiva de
todos os Sessenta.
Entre os nomeados conselheiros, um deles poderia aspirar a tornar-se meu
substituto.
Poderia, até, acalentar um grupo de apoio que, em forma de apartes ou de
palmas, louvasse as suas intervenções.
Não podia dar esse passo, embora sentisse a sua falta.

Isolei-me essa noite, afastei-me da minha cama articulada do dormitório


colectivo e retirei-me para o cimo de uma duna fronteira ao Mar
Americano.
Uma noite de estrelas sem brilho.
O Picaroto, eterno cachorro do Pico, deu por mim, ladrou e Jorge Tomás
aproximou-se, sentando-se na areia húmida a meu lado.
Habitualmente silencioso, disparatou, como é próprio do homem, falando
apressadamente o seu crioulo ilhéu.
Ouvia-o pouco, e como que ao longe, enroscado nos meus próprios
pensamentos.
Recordei os princípios morais que enformavam a comunidade, ditados
por mim mal tínhamos desembarcado da nave de Jacques e hoje escritos em
língua neo-americana à entrada do refeitório colectivo.
Busquei neles inspiração para a proposta que almejava levar à
Assembleia no dia seguinte: conciliar a universalidade do princípio – o que
cada um fizesse deveria servir de inspiração para todos – com a utilidade e
o prazer individual.
O fim último da acção deveria residir num estado de espírito de
permanente felicidade.
Ao terceiro mês, a comunidade não poderia abdicar destes princípios.
O que fazer?
Picaroto esgaravatava a areia, brincando.
Jorge Tomás, explicitando o antigo senso comum europeu, falava como se
a decisão lhe coubesse.
De repente, ouvi-o.
Dizia ele que «o amor tudo vence» e outras frases soltas resmungonas,
como «não há força que separe dois amantes».
«Preferirão morrer a separar-se.»
Olhei para ele de olhos pulados.
Tornou-se sério na frágil escuridão da noite, como se tivesse sido
apanhado em falta, e disse, rezingão, «se ele a ama com tanta força quanto
ela o ama a ele, a separação dos dois é impossível».
Não, ele não amava a declarante com força tão descomunal como o
inverso, mas, no final da Assembleia, percebi que se lhe dirigira sorrindo.
O primeiro passo fora por ele dado, o que significava uma aproximação
amorosa.
Sentira-se favorecido por ela e aqui começara o amor dele.
Jorge Tomás foi bruto quando me alertou para a possibilidade de o casal
fugir para outra ponta da ilha caso a Assembleia proibisse a sua união.
Tinha razão.
Formado pela moral da Nova Europa, longe de mim não satisfazer o
pedido da declarante.
Devia favorecer-lhe a realização dos seus desejos.
O meu cuidado residia em encontrar uma fórmula que lhe permitisse essa
satisfação – o prazer – sem quebrar o futuro ritmo da reprodução – a
utilidade.
Um labirinto mental, de que não encontrava saída.
Jorge Tomás rezingou a meu lado, utilizando sem saber o método do
Grande Cérebro Electrónico, a decomposição do problema em parcelas
simples.
Disse ele, puxando a cauda do Picaroto:
«Primeiro, deveria ser aceite a formação de pares simples, comunicados
previamente a si, como único representante nomeado pelas autoridades da
Nova Europa.
Segundo, estes pares deveriam ser permanentes.»
Disse-lhe que sim, Jorge Tomás tinha razão.
Acrescentei, não proponho debate.
Debate pode dar origem a discussão, discussão a conflito, conflito a
formação de partes dissidentes, cada uma arreigada na sua opinião.
Não haveria debate.
Haveria uma proposta minha que a todos contentasse.
Invocaria os três princípios morais e o princípio organizacional da
comunidade e a minha autoridade.
Não queria controvérsias irrefragáveis na Assembleia, fonte de
contendas.
E destas nasceria o dissídio.
Não.
Ressalvaria que tinha conseguido unir o prazer à utilidade.

Na Assembleia do dia seguinte, sabendo do pouco êxito da iniciativa


devido à estranheza do costume, apresentei a proposta de formação de pares
simples.
Quem o desejasse, teria um dia inteiro para o fazer.
Ambos os elementos do casal teriam de declarar publicamente, sem
hesitações, perante a Assembleia, o seu desejo de viver em comum.
Passei de imediato para o segundo momento da Assembleia, não dei azo a
apoios nem a recriminações, nem mesmo a esclarecimento de dúvidas.
Neste segundo momento, no último instante, hesitando, mirando o rosto
sério de alguns elementos, voltei atrás e propus um debate sobre a
metodologia da constituição dos acasalamentos, dando oportunidade a que
todos falassem e não se limitassem a ouvir-me.
Propus que replicássemos no Pico o hábito de acasalamento livre da Nova
Europa: quem desejava outro ou outra avançava e dizia-o – quero ter
relações sexuais contigo.
Com uma alteração: os grupos assim formados manter-se-iam estáveis
durante um certo período de tempo, o qual, por falta de experiência,
manteríamos incerto.
Um ano – a primeira gestação?
Dois anos – duas gestações?
Posteriormente, em data não determinada por agora, admitir-se-iam
alterações no grupo, entrada de novos, saída de outros?
Deixaríamos para o futuro essa decisão, ouvindo a voz da experiência.

No dia seguinte, dois casais apresentaram-se à Assembleia, queriam viver


como Jorge Tomás, a Joana e o filho, foi assim que justificaram a sua
escolha.
Amavam-se e queriam viver como uma família açoriana.
Um dos casais era o do dia anterior.
Foram aceites por todos os restantes elementos da comunidade.
Quase 200 anos depois, foi reintroduzida a família monogâmica na Nova
Europa, ou no que restava da Nova Europa.
Não posso aqui registar os nomes dos dois casais devido à nossa visão da
história, que, como expliquei anteriormente, sobreleva o acontecimento e
diminui a intervenção individual.
Um dos casais levantou o problema da futura existência partilhada no
interior dos dormitórios e, até, porventura, no interior do refeitório e dos
balneários.
Fez-se silêncio unânime.
Todos perceberam que se desenhara ali, ao longo daquele poente, uma
nova forma de existência radicalmente diferente das habituais na Nova
Europa.
Propus que tratássemos do assunto mais tarde.
Defendi-me, eu próprio não sabia o que fazer.
Possivelmente, teriam de ser construídas duas pequenas casas para
albergar os dois casais, nomeadamente quando os filhos nascessem.
Por proposta minha, não premeditada, espontânea, de modo a eliminar o
problema, acordou-se que, no futuro, a formação de pares amorosos seria
livre, realizada a qualquer momento, bastando uma declaração à
Assembleia por parte dos interessados.
Resolvera o primeiro problema.
Estava satisfeito.
A pluralidade vencera e, para o futuro da Base, esta era mais importante
do que uma unidade artificial imposta.
A multiplicidade organizativa deveria ser o fundamento da felicidade
social.
Com efeito, duas semanas depois, com a prestimosa ajuda de Jorge
Tomás e da Joana, levantaram-se as duas primeiras casas individuais,
melhor, duas cabanas feitas de troncos de salgueiro e telhado de colmo e
caniço, com a promessa de que em breve seriam convertidas em pedra
basáltica.
Os dois pares sentiam-se felizes na sua singularidade e nós, habitantes
dos dormitórios colectivos, também.
A pluralidade vencera sem hesitação.
O prazer também, e certamente a utilidade venceria quando os dois casais
ostentassem dois filhos.
Os dois casais continuavam a pertencer aos grupos de origem e cada um
parecia trabalhar com mais força e mais ânimo para o bem geral da
comunidade, evidenciado pelo modo como sorria.

Faltava saber como acasalar 17 homens e 38 mulheres que tinham


preferido copular livremente.
Não se tomou nenhuma decisão dramática.
Deixou-se a liberdade e a pluralidade actuarem.
Homens escolhiam mulheres, mulheres escolhiam homens, dirigiam-se a
uns aposentos situados ao fundo do dormitório, separados deste por um
biombo de madeira e tela sintética, dotado de três largas camas, e
fornicavam à vontade.
Imitavam, na sua simplicidade, as Casas de Deleite da Nova Europa.
Ninguém se queixou, nem homens nem mulheres, e três meses depois
todas as mulheres tinham engravidado.
Decidimos festejar, entoando cânticos da Nova Europa, narrando histórias
à luz dos primeiros candeeiros eléctricos.
Ao gerador que tínhamos trazido, tinham-se juntado mais dois e, agora,
um quarto, só para iluminação nocturna.
Tinham nascido as primeiras hastes de trigo e o centeio já começara a
madurar.
Os tomateiros, as ervilheiras, o feijão verde e o inhame já amadureciam,
prenunciando uma colheita favorável.
O grupo encarregado do cultivo das espécies era dos mais eficientes.
O mesmo se diga do grupo encarregado das comunicações electrónicas,
fazia autênticos milagres com os parcos e atrasados computadores.
Eu estudava a possibilidade de levantar uma longa casa de pedra,
colectiva, para comer e dormir, mais cómoda, que nos abrigasse do pó e do
vento, já que o Pico desconhecia o frio.
Joana, mulher de Jorge Tomás, ensinou-nos a fazer pão de centeio e,
pouco a pouco, fomos graduando as doses de pó alimentício, substituindo-o
por fatias secas de pão e cozidos ou guisados de vegetais e legumes, que já
não provocavam diarreia nem acendiam o estômago de dores.
Eu, à experiência, bebera uma caneca de leite das vacas de Jorge Tomás.
Regurgitei-o e vomitei-o.
Achei-o uma bebida nojenta, porventura própria para bebés sem dentes,
mas totalmente imprópria para adultos.
Jorge Tomás apontava para os ossos proeminentes dos ombros, alegava
terem sido formados pelo cálcio do leite, mas não me convencia.
Na natureza, só as crias dos mamíferos bebiam leite, e apenas durante a
infância.
Não nos faltava água e íamo-nos abastecendo de tudo o que precisávamos
em São Miguel.
Comprámos umas roupas leves e claras, largueironas.
Muitos dos nossos homens tinham deixado crescer a barba e o cabelo,
costume inimaginável na Nova Europa.
Com o basalto vulcânico quebrado à martelada, empedrámos os caminhos
mais percorridos, afastando de nós tanto os pegos lamacentos quanto as
nuvens de pó que se nos entranhavam na pele, nas roupas, na boca,
incomodando-nos.
Igualmente em pedra, construímos levadas de um ribeiro lateral e de um
olho-de-água selvagem que Jorge Tomás nos apontara.
De bebida e alimentação estávamos satisfeitos.
A Joana deu a conhecer às nossas mulheres o leque de plantas medicinais
existentes na ilha e cinco das nossas mulheres partiram com pequenas
tendas e sacos de pele para as aprovisionar, prevenindo futuras doenças.
Regressavam atulhadas de plantas vivas e secas, folhas, sementes e
radículos verdes, e um arbusto mágico, relaxante, adormecente, o
dentabrum.
Foi levantada nova cabana, mais extensa do que a dos dois casais, que
serviria de laboratório de medicamentos e de hospital, este pensado
sobretudo para acudir às parturientes.
Os nossos Sincretistas não tinham experiência de partos e um deles, o
mais insistente, que comparara a evolução do feto em placenta sintética
com os sinais visíveis enviados pelo estado do corpo das parturientes,
rapidamente desistiu do seu estudo, considerando os processos biológicos
radicalmente distintos – um artificial, gradual, químico e laboratorialmente
disciplinado, outro natural e imprevisível.
À medida que os meses passavam, algumas das mulheres eram
atormentadas por sonhos pesarosos, cujas imagens se lhes colavam à mente,
impedindo-as de readormecerem.
Desabafavam entre si, recordando as imagens magoadas a que tinham
assistido uma vez por ano, as bárbaras guinchando e urrando como animais,
expelindo uma criatura feia e engelhada, coberta de sangue.
Algumas, porventura mais sensatas, agradeciam penhoradas ao Conselho
do Pantocratas terem sido obrigadas a visionarem tão bárbaro
acontecimento, sabiam agora o que as esperava.
Todas se aproximavam de Joana ou dos Sincretistas que administravam o
laboratório e a enfermaria, requisitando dentabrum, garantindo a existência
destas folhas quando a hora chegasse.
Desejavam ser mães, e cumprir assim a missão para que tinham sido
escolhidas, mas, conhecedoras de outros métodos de procriação,
ambicionavam sofrer o menos possível.
O VEGETARIANISMO

Todos os dias adquiríamos novos conhecimentos.


Não raro, reaprendíamos pela natureza o que pressupúnhamos saber pela
ciência, por exemplo, a previsão do estado do tempo através da velocidade
e intensidade dos ventos e dos corridos de nuvens que iam e vinham do
mar.
Jorge Tomás ensinou a dois ou três de nós a técnica da pesca à linha,
admiraram-se com a beleza fluorescente da pele escamosa dos peixes,
aprenderam-lhes o nome e o sabor quando assados, hesitando quando pela
primeira vez tiveram de os extirpar, deixando o sangue correr entre os
dedos.
Exemplificando com uma navalha ou com os próprios dedos, que
rasgavam as guelras, prolongando o rasgão pela barriga do peixe, abrindo-o
ao meio, Jorge Tomás ria-se dos gestos indecisos dos nossos Sincretistas.
Numa das Assembleias vespertinas, como habitual, sob o halo de um
poente quente e dourado como não o tínhamos conhecido na Nova Europa,
decidimos colectivamente, sob o escândalo da família de Jorge Tomás, não
comer peixe, considerando nefasto esse antigo hábito humano, ainda que
gostoso, como todos os que o tinham comido podiam comprovar.
Todos tinham declarado ser a carne de peixe matéria tenra e apetitosa,
mas os nossos princípios humanistas não permitiam aniquilar o elemento
sagrado da vida apenas para nosso prazer.
Da carne das vacas e cabras de Jorge Tomás, e dos dois porcos e quatro
leitões, nunca ousámos experimentar, apenas bebíamos, alguns de nós, o
leite dos primeiros animais, alguma manteiga confeccionada pela Joana
semanalmente numa panela de metal alta e estreita.
Saboreávamos os ovos das galinhas e os queijos de Jorge Tomás, que nos
abasteciam de proteínas animais necessárias ao corpo.
Sentíamo-nos fortes, robustos e alegres e todas as madrugadas
despertávamos prazenteiros e sorridentes, tentando escapar à tristeza da
previsível morte ou escravização colectiva dos nossos concidadãos que
teriam restado no continente europeu.
Em duas Assembleias seguidas, decidimos abandonar as antigas
categorias sociais e profissionais que nos ligavam à Nova Europa –
Reitores, Sincretistas, Acratas, Agenciadores, Cidadãos Dourados – e
tratarmo-nos exclusivamente pelo nome.
Todos tínhamos agora nome e cada um ia ganhando a sua individualidade
sobre as ruínas da sua antiga identidade como neo-europeu.
A divisão em dois grupos de carácter familiar não afectara a comunidade
e regozijámo-nos por saber que a pluralidade ganhava força entre nós.
Sentíamo-nos longe da Nova Europa em termos de organização,
activávamos diariamente o código fornecido pelo Conselho dos Pantocratas
nos nossos computadores primitivos, mas nunca obtínhamos resposta.
O silêncio era a resposta.
III

FIM E PRINCÍPIO: EXTINÇÃO E RENASCIMENTO

A algumas das mulheres, quando se souberam grávidas, o medo, melhor,


o terror do acto de dar à luz emergiu na sua consciência, efeito do
visionamento anual obrigatório do parto natural de uma vetero-europeia.
Porém, conscientes de que o futuro da Nova Europa no Pico dependia da
natalidade, o imperativo moral da reprodução sobrepôs-se ao medo físico, e
elas, amparando-se mutuamente, seguindo o exemplo das mais fortes,
aceitavam de bom grado sofrer e até, se necessário, morrer para que a
comunidade pudesse sobreviver.
Ao fim de um produtivo ano, sucedia o nosso primeiro parto, o
nascimento da nossa primeira criança, que prolongaria a Nova Europa fora
da Europa sem os privilégios científicos e tecnológicos oferecidos pela
antiga sociedade.
O estado de excitação era frequente e intenso em todos, possivelmente
mais do que na futura parturiente, que evidenciava algum medo.
A única experiência que possuíamos de parto natural residia na visão
anual, no primeiro dia de Primavera, das imagens de uma bárbara a parir
um filho sob intenso sofrimento, uma operação dolorosíssima que nenhum
de nós gostaria de experimentar, mas a isso eram naturalmente as mulheres
obrigadas.
No dia em que nasceu o primeiro bebé neo-europeu nos Açores – quase à
mesma hora –, recebemos a trágica notícia do muito provável iminente
desaparecimento da Nova Europa como civilização mais perfeita à face da
Terra.
O Conselho estabelecera um contacto.
Uma mensagem fatídica, mais triste que a tristeza.
Mas uma mensagem de grande dignidade ética e histórica.
Tinham-se arrastado durante um ano as negociações entre o Conselho dos
Pantocratas e os Mandarins orientais.
O Conselho dos Pantocratas tinha recusado a extradição da Nova Europa
para a América do Sul, tinha recusado o arraçamento dos neo-europeus com
os asiáticos no sentido de criação de uma subespécie de escravos mineiros.
A Nova Europa não se sujeitaria a tal vexame colectivo, superior à
humilhação da invasão.
Preferiria a morte a tal sorte – assim mesmo foi declarado pelo Patriarca
aos Mandarins.
As negociações tinham decorrido sob permanente ameaça de suicídio
colectivo dos neo-europeus.
Houve nova proposta mandarínica.
Os Mandarins exigiam trocar os valiosos conhecimentos científicos dos
nossos Sincretistas por uma poupança de vidas que poderia atingir os 500
mil neo-europeus, os melhores entre nós, Reitores e Sincretistas, que
passariam a viver no Conglomerado perto de Varsóvia, isolados, rodeados
de um alto muro, sem relações com a população chinesa.
Continuariam a sua investigação, criariam novos saberes, e deles dariam
conta anualmente a um Mandarim especial enviado de Xangai: Grande
Ásia, um Império, dois sistemas.
Uma ilha neo-europeia numa Europa Oriental, ou, melhor, numa «Ásia
Ocidental».
O povo desapareceria, a elite permaneceria – e as elites é que fazem a
história, declinaram os Mandarins.
Nesta ilha, os neo-europeus seriam totalmente livres, criariam as suas leis
e prosseguiriam as suas instituições, governados em exclusivo por um
Conselho de Pantocratas.
O mecanismo bio-informático do Grande Cérebro Electrónico, os
segredos da fabricação dos hipercórtex, a produção e regeneração do
plastifex, a produção industrial do plastónio, o segredo da criação da Bolha
de Segurança Hiperatómica e do Cordão Verde de Segurança, a
informatização total e a manipulação do código genético humano deviam
ser porém transmitidos aos cientistas da Grande Ásia segundo a condição de
que nenhuma questão levantada deveria ficar por esclarecer.
O Conselho dos Pantocratas, temendo uma decisão incerta, decidiu
alargar-se e incluir os Reitores e os Sincretistas mais velhos.
Durante um mês viveram em permanente reunião, debatendo os
argumentos a favor e contra, concluindo serem os negativos muito
superiores aos positivos.
A sobrevivência de 500 mil neo-europeus merecia esta discussão.
A Grande Ásia, parasitando as descobertas e invenções da Nova Europa,
tornar-se-ia proprietária dos maiores avanços tecnológicos existentes na
humanidade, que lhes daria um poder muito superior aos dos restantes
Impérios, sobretudo o Americano.
Com as nossas descobertas em seu poder, não seria impossível que a
Grande Ásia se tornasse senhora do mundo em menos de meio século.
Os Mandarins, utilizando o Grande Cérebro Electrónico e o poder de
fabricação do hipercórtex, preparar-se-iam para a guerra contra o Império
Americano.
Com o segredo de captação de energia no centro da Terra, converter-se-
iam em donos de uma energia ilimitada e nada poderia deter a sua ambição,
tornando-se infinito o seu poder.
O Conselho dos Pantocratas antevia uma longa época de trevas caída
sobre os ombros da humanidade, uma época de ignorância, de superstição e
de terror, transformando a humanidade numa autêntica colónia gigante de
formigas assassinas, uma época que vingaria durante não menos de meio
milénio, já que o poder conferido pelo Grande Cérebro Electrónico e pela
fabricação do hipercórtex revelar-se-iam, se caídos em mãos negras,
instrumentos de controlo absoluto.
Em nome da dignidade humana, não podemos aceitar – respondeu o
Conselho. Preferimos morrer com dignidade a sobreviver rastejando como
escravos mentais.
A honra, a nobreza de espírito, não se constituem como valor de troca.
Impossível, repetiu o Patriarca do Conselho em resposta serena à
impetuosidade verborreica do representante dos Mandarins.
A Nova Europa prefere ser extinta, escolhe ser extinta, disse-o por duas
vezes, ocultando a existência dos Sessenta nos Açores.

Foi esta a notícia que nos chegou do Conselho dos Pantocratas como
resposta aos nossos sucessivos apelos de contacto no dia em que nasceu a
primeira criança neo-europeia fora da Europa.
Na Assembleia desse dia, referi que o tempo se encontrava suspenso
sobre a Nova Europa.
Respondemos louvando e engrandecendo a atitude do Conselho e
informando do nascimento da primeira criança.
O Conselho, dissemos, mostrara-se digno da história da Nova Europa.
Desconhecíamos a resposta dos Mandarins, mas todo o passado concorria
para que esta se consubstanciasse num categórico «Exterminem-nos».
O Absolutismo Oriental não conhecia outra espécie de linguagem face ao
nosso ético e categórico não.
Numa segunda mensagem, o Conselho louvava os nossos progressos e
regozijava-se fortemente pelo nascimento da primeira criança, «esperança
de um futuro diferente, mas sempre futuro», registava.
Só uma nova comunidade estável poderia gerar crianças.
Não esperássemos mais respostas, diziam, o desenlace deveria revelar-se
fatal.
O tempo, hoje suspenso, poderia tornar-se amanhã um potente e
aterrorizante vazio.
Se as ordens mandarínicas fossem de extermínio, os membros do
Conselho dos Pantocratas suicidar-se-iam na totalidade à mesma hora e no
mesmo local, num dos principais Conglomerados, a 200 quilómetros de
Munique, iniciando deste modo o que deveria ser o suicídio de uma
população de 100 milhões, que preferia morrer honrada a sobreviver
humilhada.
Caso não houvesse mais contactos, eu deveria registar no livro o fim da
Nova Europa.
Exactamente assim, não havia esperança que de outro modo fosse.
Num post-scriptum sincero e muito emotivo, o Conselho avisava a nova
comunidade de que os nado-mortos, aquando do nascimento em
comunidades pouco evoluídas como a nossa, atingiam os 200 por mil.
Deveríamos ter o máximo cuidado na higiene e nada deixar à
imponderabilidade.
Um dos antigos sincretistas recebeu a mensagem e dirigiu-se a correr à
nossa maternidade-hospital-farmácia-laboratório com cinco camas cobertas
por mantas compradas a Ponta Delgada.
Tínhamos previsto que cinco mulheres podiam dar à luz no mesmo dia,
ou em dias muito próximos.
Pelos nossos cálculos, fortemente falíveis, como se revelaram, pensámos
muito difícil que mais de 10 por cento das nossas mulheres entrassem ao
mesmo tempo em trabalho de parto.
Quando o ex-sincretista chegou pesaroso com a mensagem, alguns de nós
chorávamos de alegria, eu incluído.
Acabara de nascer, ridente, barulhenta e protestativa a primeira menina
neo-europeia na ilha do Pico.
Desconhecia-se a paternidade individual, mas a mãe, inchada de dores
após três horas de sólido sofrimento, reclamava para si a menina como
«sangue do seu sangue», assim o disse, uma frase estranhíssima, fortemente
animal, entre lágrimas, ranho, baba de saliva e lábios abertos sorridentes.
Todos exultámos pela lúcida sabedoria do Conselho dos Pantocratas ter
insistido em repetir anualmente a sessão de tortura de uma bárbara a dar à
luz o seu filho.
Sem esta experiência visual e existencial e sem o apoio da Joana, que já
tinha parido um bebé e se encontrava grávida de novo, não tenho a certeza
de que esta primeira criança tivesse nascido tão rápida e prodigamente.
Como condutor da comunidade, foi-me dado o privilégio – o que digo?, a
superbíssima honra – de ser o primeiro homem a pegar, a acarinhar e a
balouçar o bebé.
Não resisti, todo o meu corpo se contorceu resistindo, mas os sentimentos
emotivos levaram-no vencido e involuntariamente, de um modo explosivo,
vi-me, para espanto de todos, a acariciar a face direita do bebé com um
afectivo beijo prolongado, como se os meus lábios não ousassem despregar-
se da sua pele tenra e acetinada.
Vi-me rodeado da maioria dos meus companheiros homens.
Todos iam entrando imprevistamente na larga cabana hospital-
maternidade quando, espreitando entre as frinchas de madeira, deram
comigo a amparar entre os braços aquele pequenino ser que para todos nós
representava os dois símbolos máximos da humanidade – a renovação da
vida natural e o preenchimento voluntário do tempo futuro pela
humanidade.
Olhando de través, percebi que a maioria das mulheres chorava, melhor,
lacrimejava, mas lacrimejava de um modo visível, sólido, e alguns homens,
acompanhando as mulheres, choramingavam também.
Eu próprio, ambicionando manter o decoro apropriado, não me contive de
verter uma lágrima, uma única lágrima, só uma, mas grossa, gorda, como se
desde a fuga para os Açores ela se encontrasse bloqueada por um dique
racional e ora, liberta, se deixasse escorrer com alegria por uma das minhas
faces.
Pela primeira vez desde que tínhamos aterrado no Pico, havia mais de um
ano, as emoções suplantavam total e irremediavelmente o uso ponderado da
razão.
Eu não sabia se havia de me congratular ou entristecer.
A razão era fria, mas ponderada; a paixão, quente, irreflectida e
caprichosa, parcial, muito parcial, mas bela e feliz.
Não fui eu quem transmitiu à comunidade a nefasta notícia do presumível
derradeiro fim da Nova Europa.
Era este o derradeiro fim, os Mandarins não perdoariam a recusa do acto
de misericórdia aristocrata de poupança de 500 mil neo-europeus,
justamente os nossos cientistas, os melhores dos Sincretistas e Reitores.
Considerariam a recusa uma obstinada estupidez, merecedora de um
castigo definitivo.
Possivelmente, não esperariam pelo suicídio dos membros do Conselho
dos Pantocratas.
Assassiná-los-iam, decomporiam os seus corpos com os seus raios
silenciosos e invisíveis, sugariam as suas células com os potentes
aspiradores moleculares e projectá-las-iam no espaço interplanetário por
onde transitavam os inflamantes ventos solares.
Devia tê-lo feito, mas, falando em emoções, não tive coragem.
Ouvi a funesta notícia e fingi que não tinha percebido bem, aproximei-me
do rancho de homens que contemplavam o bebé e deixei que a notícia
passasse entre todos antes de a contar à comunidade inteira, reunida em
Assembleia, como era meu dever.
Incapaz de guardar para si um segredo tão aterrador, o ex-sincretista
espalhou a notícia.
Jorge Tomás recebera igualmente a notícia no seu computador
arqueológico, enviada por uma emissora da Worldweb do Império
Americano.
Olhava para mim e confirmava-o, ostentando um semblante sério e
grave.
Disse a palavra mais apropriada – FIM.
Esta palavra, sussurrada por Jorge Tomás, entristeceu-me a um ponto
limite, o ponto do desespero.
À lágrima que rolara solitária juntaram-se novas, agora de tristeza.
De eufórico, o ambiente no hospital-maternidade tornara-se fúnebre.
Reinava o peso do silêncio.
Debrucei-me sobre a cama da parturiente, porventura a única entre os
Sessenta que desconhecia a terrível notícia e, aterrorizada, olhava
boquiaberta para as nossas faces chorosas, incapaz de desvendar o
inescrutável mistério escondido pelos nossos rostos bisonhos.
Pousei-lhe a menina no colo e beijei-a paternalmente.
A todos disse, nunca como neste momento o presente esteve tão
carregado de passado e tão grávido de futuro.
Como já sabeis, hoje é dia de profundo pesar e luto.
A esta hora, ou dentro de dias, a Nova Europa morrerá fisicamente.
Quinhentos milhões de chineses substituir-nos-ão na totalidade do nosso
querido continente.
Mas hoje, cumprindo o sábio vaticínio do Conselho dos Pantocratas,
nasceu o primeiro neo-europeu fora da Europa, augurando uma nova
civilização, símbolo da que deixámos para trás e ora definitivamente
perdemos.
Sejamos dignos da herança recebida, é o que vos peço.
Há muito receávamos esta hora, esperançados de que ela nunca viesse.
Mas veio, cumpriram-se os mais horrendos presságios, e o corpo dos
nossos irmãos neo-europeus encontrar-se-á dentro em breve pulverizado e
espalhado pelo vastíssimo espaço do nosso sistema solar, sem
possibilidades de recuperação.
Não devemos esperar piedade da Grande Ásia, pelo que a antiga
esperança, fonte de ânimo no coração e na razão dos homens, deve morrer
aqui, hoje, agora.
Reunir-nos-emos ao fim do dia, ao poente, como o fazemos diariamente.
Mas hoje será um dia especial.
Não falaremos.
Ficaremos em silêncio até o Sol se pôr, como se estivéssemos assistindo,
visceralmente, à morte definitiva da nossa querida Nova Europa.
Logo que o céu escureça, acenderemos fogueiras em vez de candeeiros e
cada um, voluntariamente, à luz arrepiante das labaredas, relembrará
mentalmente os seus antigos familiares, os antigos amigos e a antiga
sociedade.
A convidada de honra da sessão será esta menina, nascida do nosso
ingente esforço de organização para, aqui, no Pico, perdurarmos
imperfeitamente o que se revelou até há cerca de um ano a organização
social mais perfeita criada pela humanidade.

Durante o mês seguinte, um sentimento de luto e nojo impregnou a nossa


pele e as nossas mentes.
Companheiros houve que nada fizeram, arrastando-se sobre as dunas de
areia vermelha, vazios de alma, de passado e de futuro, perscrutando o céu
e o mar azuis.
Pela primeira vez assistimos, ao longe, a um desfile de baleias, ou de
cachalotes, Jorge Tomás não conseguiu identificar convenientemente os
volumosos cetáceos, mas nem esse bailado marítimo, verdadeiramente belo,
serenou a nossa alma e aquietou os nossos nervos.
Um de nós, arrebatado e precipitado, numa Assembleia, pôs em causa a
organização da nossa comunidade.
Não é bem verdade, ele, prosélito, não pôs em causa a organização da
nossa comunidade.
Para melhor nos integrarmos entre os açorianos, propôs que nos
separássemos pelas restantes três ilhas ou, então, afoitos, emigrássemos
para o Império Americano.
Confundir-nos-íamos com a população.
Quem sabe, alguns de nós poderiam casar-se com nativos.
Dispersar-nos-íamos e integrar-nos-íamos, éramos poucos, não era
impossível.
Foi liminarmente recusada esta proposta, considerada voluntariosa,
temerata e ingénua.
A separação significaria a fragilidade individual, a dissolução das nossas
forças no seio da sólida e colossal organização material do Império
Americano, que rejeitaria e aniquilaria qualquer tentativa de mudança
institucional no sentido da igualdade e solidariedade entre todos os
homens.
Se o não conseguíssemos nós, alegava o companheiro recalcitrante,
consegui-lo-iam os nossos filhos ou os filhos dos nossos filhos.
Aleguei desespero por parte do nosso companheiro protestante, propunha-
nos uma estratégia voluntariosa e aventureira, cada um desunido de todos,
batalhando isolado, separado do todo que nos confere a força da união,
passada e futura, o que só poderia terminar com o nosso rápido
aniquilamento.
Nem todos possuem a firmeza e a vontade férrea de se presumirem
profetas em terra alheia e seria mais razoável imaginar que sem o
hipercórtex, abandonados ao domínio dos nossos sistemas cerebrais
periféricos, mais depressa desistíssemos do que vencêssemos.
Do mesmo modo, em terra estranha, sob uma língua estranha, cada um de
nós, guerreando pela igualdade de todos, seria considerado um utopista, um
revolucionário, porventura um poeta, talvez admirado pelos seus ideais,
porventura acarinhado, mas nunca seguido ao nível de comportamento das
multidões.
Vencido, mas não convencido, o nosso companheiro alternativo calou-se.
Adivinhei que um dia voltaria à liça, mais tarde, depois de infestar em
particular a cabeça de outros companheiros com as suas ideias.
A quase absoluta unanimidade rejeitou as suas peregrinas ideias, mas não
estava garantido que no futuro assim sucedesse.
Pensei que novas gerações, mais voluntariosas, para as quais os seus avós
e bisavós não seriam já seres reais, mas seres míticos, tendo habitado outro
continente, vivido de outro modo, mais puro e perfeito, poderiam ousar
imitá-los, um erro que pagariam caro.
Agora, a pouco mais de um ano da nossa fuga da Europa e no mês da
possível perda de todos os nossos companheiros neo-europeus, sentíamos
ainda, sensatamente, o fremir do medo, medo verdadeiro, que nos prendia
as acções aventureiras.
Testemunhei publicamente que devíamos obedecer ao último ditame do
Conselho dos Pantocratas, deveríamos permanecer no Pico durante 200
anos, aperfeiçoar ao máximo a nossa sociedade segundo os princípios da
Grande Ordenação e, depois, partir, antes que as ilhas de novo se
convulsionassem e porventura desaparecessem, consoante nos fora
informado.
Não seríamos já nós.
As duas últimas gerações a viver na ilha deveriam tomar a decisão de
partir: quando, como, por que meios e para onde.
À nossa geração incumbia levantar e solidificar as bases com que as
seguintes viveriam, cada uma garantindo fazer do futuro um tempo superior
ao passado.
Seria possível, segundo os nossos ex-sincretistas, que a geração que
partisse já pudesse acoplar ao seu neo-córtex um novo e não tão perfeito
hipercórtex, igualmente ligado e centralizado por um Grande Cérebro
Electrónico, não tão poderoso como o do passado, mas, de qualquer modo,
superior à totalidade dos computadores actualmente existentes na Terra.
Seria uma tarefa que exigiria a mobilização das máximas inteligências e
dos máximos especialistas das próximas quatro gerações para que a quinta
já pudesse viver de um modo não idêntico, mas aproximado, ao dos nossos
antepassados.

PASSAGEM DE TESTEMUNHO

Meio ano após o nascimento da primeira menina, e após o nascimento de


mais 39 crianças, a mãe da primeira levantou uma questão na Assembleia
que a todos estarreceu.
Quem possuía maior poder de autoridade sobre a menina, a Assembleia
ou ela, a mãe?
Quem mais se deveria interessar pela educação da menina, o todo da
Assembleia ou ela, a mãe, já que de paternidade incerta?
Dito de outro modo – interrompi eu antes que das questões se passasse à
fase de conclusões –, está na hora de pensarmos na criação de um Colégio.
E, ali, precipitada mas correctamente, adiantei a proposta que
espontaneamente me bailara na mente.
Eu ofereço-me, não quero usar a palavra Reitor, excessivamente
pomposa, não adequada aos novos tempos, mas ofereço-me como professor,
antiga palavra que designa aquele que tem a seu cargo prioritário a
educação das novas gerações a partir do tempo do desmame.
Penso não abusar da minha autoridade.
Pelo contrário, figuro-me como o mais indicado e o mais competente para
essa função pela minha idade e pelas minhas antigas funções.
Ainda que por vezes sinta as forças dos braços a esvaírem-se e o vigor da
mente a desfalecer, penso ser, entre todos, o mais bem preparado para o
honroso cargo de professor.
Ao fazê-lo, e no dia em que assumir as novas funções, declinarei a minha
função de Coordenador, se assim se pode dizer, mais coordenador do que
chefe, já que em momento algum impus aos restantes a autoridade da
proveniência superior do meu cargo.
A partir da próxima Assembleia, mais do que elegermos, nomearemos
três novos companheiros para me substituírem.
Não que cada um dos três represente um terço da Assembleia, como se
regressássemos à antiquíssima representação proporcional própria das
democracias do século XX, como se cada um figurasse uma fracção do todo,
ou uma «parte» do todo.
Não existem fracções entre nós, não somos uma sociedade fragmentada,
como se tem comprovado.
Nenhuma das grandes decisões colectivas tomadas o foi sem o forte vigor
do consenso ou da unanimidade, quebrando assim a entrada sub-reptícia do
pérfido individualismo entre nós.
Três Coordenadores porque, por um lado, penso que as tarefas futuras são
de tal modo ingentes que três dirigentes, aconselhando-se mutuamente, não
serão demais, adequando-se à pluralidade de tarefas necessária.
Por outro, três cabeças não permitirão a criação de um poder monolítico,
constituído por um chefe e uma corte privilegiada de conselheiros.
O tempo do comando individual, monolítico, necessário para uma
primeira e rápida adaptação, passou.
O Conselho dos Pantocratas decidiu-o assim, e decidiu bem.
Agora, a complexidade das tarefas exige uma direcção complexa.
Dos três, aconselho que dois sejam ex-sincretistas ligados a
especializações neuro-informáticas e um outro ligado a vertentes históricas
e culturais da Nova Europa.
O novo órgão não deverá ter nome, para que ao todo da sociedade,
representado na Assembleia, com a presença e a participação de todos, não
se sobreponha um órgão intermédio.
Assim se fragmentam as sociedades e assim se criam escalas hierárquicas
artificiais.
Os membros desse órgão permanente terão como única função, idêntica à
que exerci, a de aconselhamento da Assembleia, exclusivamente a de
aconselharem, e nunca a de tomarem decisões por ela.
Por isso, a designação de «Coordenador» parece ser a mais adequada,
coordena, não manda, não ordena nem delibera.
Proponho que, como defesa da Assembleia, nenhum dos três seja eleito, e
muito menos o grupo dos três em conjunto.
Pode criar-lhes a ilusão de possuírem um estatuto superior aos dos
restantes membros da Assembleia.
A eleição pode conduzir a divisões internas, contabilizadas no número de
votos.
Deverão oferecer-se, voluntariar-se.
Três dos nossos companheiros, ex-sincretistas, que se presumam
competentes para o cargo e nele tenham gosto, deverão oferecer-se, não se
submetendo a eleições.
Se um dos companheiros não estiver de acordo, deverá calar-se na
Assembleia, para não arrastar esta para uma divisão artificial, e dirigir-se-
me e apresentar o seu protesto, que será reflectidamente estudado por mim e
pelos três novos Coordenadores, podendo ser ou não aceite segundo o
argumentário apresentado.
Soube que durante o dia seguinte se tinham voluntariado cinco, três
homens, duas mulheres.
A sessão desse dia foi anulada, esperou-se um acordo prévio entre os
cinco.
Tentava-se que dos cinco restassem três por desistência dos restantes
dois.
Assim sucedeu.
Desistiram as duas mulheres após uma longa conversa havida comigo e
com outras mulheres.
O argumento – conservador – impôs-se por força lógica e existencial.
Se tudo corresse bem, dentro de dois a três meses, as mulheres estariam
de novo grávidas.
Deveriam acarinhar a sua gravidez e cuidar de um corpo saudável,
receptáculo do futuro biológico da comunidade.
A Base merecia o sacrifício de não se dedicarem a tarefas colectivas.
Assim se levantaram três voluntários na Assembleia do dia seguinte.
Não houve protestos.
A Assembleia terminou de imediato.
Eu recolhi-me, indeciso, desconhecia se fizera bem ou mal aconselhando
as mulheres a acautelarem-se de responsabilidades devido à sua natural
condição de parturientes.

AS NOVAS CASAS

Dois anos após a instalação no Pico, todas as famílias tinham construído a


sua casa, derrubando as velhas cabanas de caniço e restolho, desmontando
as tendas colectivas de pano sintético metalizado.
Ocupando o declive de uma encosta, todas as casas tinham seguido o
modelo da minha, pequena, baixa, suspensa no alto da colina.
Por me faltarem forças, a minha fora construída por toda a comunidade.
Algumas das casas foram edificadas a partir de caboucos de antigas casas
camponesas, derruídas pelos tremores de terra.
Eram casas simples, praticamente todas iguais, um quarto para dormir,
uma sala, ampla, para estar e comer, uma pequena cozinha acoplada a esta e
uma casa de banho com fossa.
Tudo muito simples e austero.
Mais extensas do que altas, mais compridas do que largas, eram rodeadas
por um pequeno jardim florido e uma horta utilitária.
Atrás e à frente, um friso de salgueiros baixos amortecia os ventos
marítimos e sombreava a canícula tropical de um sol majestoso sempre
presente.
Ao fundo do renque de casas, uma alta cisterna conservava a água da
chuva.
Todos vivíamos assim, poupados, frugais e felizes, fosse em público, na
Assembleia, que se reunia diariamente ao poente, muitas vezes apenas para
convívio, já que nada havia para decidir, fosse cada um ou cada família em
sua casa, que, com excepção da minha, nunca primava pelo isolamento.
Todas as casas tinham duas portas, a da frente e a de trás, mas nenhuma
porta tinha fechadura.

Como Professor, iniciei uma vida nova, a última fase da minha vida.
Desde que aterrara no Pico, vinha sentindo o corpo fraquejar.
A respiração tornara-se não opressiva, mas ruidosa, como um silvo de
vento que permanentemente atravessasse a minha garganta; os músculos,
menos fortalecidos, fatigavam-se mais rapidamente, o corpo pesava-me a
andar, como se arrastasse um fardo invisível às costas, que me forçava a
dobrar o peito; os ossos rangiam-me e, por vezes, à noite, doíam-me.
Percebi que tinha um prazo marcado para morrer.
Sabia que morreria logo após a finalização do livro da Crónica da
Criação e Extinção da Nova Europa.
Verdadeiramente, esta ainda não fora dada como extinta pelos Mandarins,
apenas como ocupada.
Só daria o livro por encerrado quando tivesse a certeza do fim derradeiro
da Nova Europa.
Até lá, tentaria sobreviver, entretendo os meus dias com pouco esforço
físico e muita escrita e meditação.
O espírito impor-se-ia ao corpo, forçando-o a arrastar-se, mesmo com
contínuas pontadas no fígado, que os chás da Joana não travavam, e uma
tremura incomodativa na ponta dos dedos.
Sentia-me tão certo de que só morreria após finalizar o manuscrito que
dava por mim artificialmente distraído, atrasando-o, para que sobrevivesse
um tempo mais, ainda que curto.
A libertação das funções de chefia ou coordenação dos Sessenta abriu-me
um tempo vasto nos meus dias.
Escrevia apenas uma parte do dia de modo a prolongar um pouco mais o
meu tempo de vida.
Fazia batota com a vida.
E a minha vasta experiência dizia-me que perdemos sempre que fazemos
batota com a vida.
Por isso, entreguei-me com denodo à minha nova tarefa, que acolhi com
alegria e prazer.
Com as novas funções, habituei-me a substituir a redacção do livro pela
redacção de resumos para as crianças sobre a história da civilização
humana, aproveitando alguns textos incluídos por inteiro no livro de
crónicas ou neste, de rascunho, que serve de anteparo inspirador para a
redacção do definitivo.
O COLÉGIO

Devido à existência de clima tropicalíssimo nos Açores, não achei por


bem que o Colégio se identificasse com uma nova cabana ou, mesmo, uma
casa em alvenaria, com soalho e tecto de madeira e paredes de pedra
basáltica.
Para que todas as crianças vivessem livremente, circundei um terreno,
pedi aos homens que o desmatassem e às mulheres e às crianças que o
alissassem.
Ali, à sombra de três salgueiros, se levantou o primeiro Colégio da ilha,
continuador da tradição dos antigos Colégios da Nova Europa.

De todos os edifícios levantados, o do hospital-maternidade-farmácia-


laboratório era o mais alto, de dois andares acima do térreo.
Na saúde dos adultos e no nascimento das crianças residiam as nossas
maiores preocupações.
Até então, devido à criteriosíssima escolha do Conselho dos Pantocratas,
os sistemas biológicos e fisiológicos de todos os membros da comunidade
tinham funcionado em perfeição, com excepção de umas pequenas febres e
dores intestinais provenientes da adaptação à nova atmosfera e à nova
alimentação mastigativa.
Febres que indiciavam inflamações interiores, mas não infecções.
Guardávamos religiosamente as caixas herméticas de medicamentos
enviadas pelo Conselho, tentávamos, com sucesso e a ajuda da Joana,
estudar a utilidade farmacêutica de todas as plantas do Pico e
coleccionávamos, como prevenção, listários dos medicamentos presentes no
único hospital de Ponta Delgada.
Poderiam ser necessários.
Dez dos nossos companheiros, homens e mulheres, dedicavam-se à
investigação laboratorial de plantas, prevenindo futuras doenças e dotando
as nossas refeições de complementos vitamínicos e proteicos.
Não nos sentíamos seguros, mas suficientemente confortáveis para
enfrentar antigas doenças.
Todas as crianças tinham sido vacinadas segundo o modelo da antiga
Europa e não prevíamos necessidade de vacinas contra doenças de carácter
tropical devido à limpeza higiénica de ventos salgados provindos do Mar
Americano, que tudo desinfestava.

Consoante as crianças iam crescendo ia adaptando o Colégio às suas


necessidades educativas.
A primeira alteração consistiu na criação de um vasto telheiro que cobria
metade do terreiro, precavendo assim dias de chuva tempestuosa, como é
hábito nos climas tropicais.
As crianças vinham de manhã, cerca das dez horas, quando eu dava por
terminada a sessão matinal de escrita, que praticava desde as seis da
madrugada na solidão da minha pequena casa.
Ora dávamos um passeio pelos arredores, ora nos internávamos pela ilha,
ora percorríamos os extensos areais da costa, descobrindo todos os dias
novas plantas, novos crustáceos, novas pedras, novas formas naturais, que
explorávamos em conjunto, eu do alto do burroque de Jorge Tomás, as
crianças cabriolando à minha volta.
Este passeio matinal retemperava-me as forças e a alma, transmitia-me
uma vontade de viver que não se esgotava nos músculos e me subia ao
cérebro, animando-me de um optimismo porventura exagerado.
Não raro, atribuíamos nomes a realidades que desconhecíamos, tentando
perscrutar as funções para que a natureza as criara e moldara.
Constituíam as mais belas partes da manhã e as mais estimulantes para
aqueles cérebros infantis, consciencializando-se de que tudo o que existia
não existia por acaso.
Aprendiam assim a respeitar cada ser, cada forma, como se um destino
insubstituível lhe estivesse desde sempre ligado.
As manhãs acompanhavam-se de correrias e brincadeiras, sempre
interrompidas por esclarecimentos ou por uma breve palestra minha.
Nada se destinava a ser decorado, apenas inteligivelmente compreendido,
já que, no seguimento do ensino dos Colégios da Nova Europa,
destinávamos os computadores para o armazenamento e a solidificação da
memória colectiva e o raciocínio analítico e sintético para a compreensão
individual, base da invenção, da criação e da descoberta.
Após as pequenas palestras, as crianças eram incentivadas a intervir, a pôr
questões, que, por mais infantis ou apatetadas que fossem, eu nunca
interrompia.
A minha experiência como Reitor ensinara-me quanto o riso e o
divertimento eram importantes para as mentes daqueles seres pequeninos
que teriam de sobreviver sem os implantes neurobiológicos que tinham
constituído o antigo processo de aprendizagem.
No passado, para se aprender uma língua nova, bastava actualizar o
programa «Aprendizagem de Línguas» e praticar um pouco, não mais de
um mês, para nos tornarmos fluentes.
Agora, toda a aprendizagem residia num esforço rigoroso e disciplinado,
de que a memória era parte importante, mas muito mais a compreensão e o
raciocínio.
Era meu dever adestrar as crianças nestas duas capacidades e minimizar a
utilização da memória, já que tudo o que desejaríamos saber se encontrava
registado nos nossos computadores e na Worldweb, de acesso relativamente
fácil.
Porque aprendiam com os pais a arte da agricultura e da jardinagem,
adestrei as crianças na arte do trabalho da pedra e da madeira, solicitando a
presença de ex-sincretistas que dominavam estas duas técnicas.
Requeri com abundância a presença de Jorge Tomás, da Joana e do
primogénito para que nos ilustrassem sobre a história da ilha, não segundo
os conhecimentos científicos, mas segundo a história civilizacional, mítica,
religiosa e lendária do arquipélago.
Quando não saíamos em explorações naturalistas, cuidávamos da horta,
do jardim, da estufa, do viveiro de sementes, preparando a refeição do meio
do dia, a única substancial, já que antes e depois nos limitávamos a tragar
um pedaço de pão com doces ou mel e à ingestão de água.
Desmentindo os conselhos de Jorge Tomás, os nossos ex-sincretistas
concluíram ser suficiente uma refeição diária substancial e múltiplas
pequeníssimas refeições no resto do dia, proporcionais ao esforço
cometido.
Igualmente se tornou quase lei na Base a utilização da sesta após a
refeição do meio do dia.
Os que não dormiam retiravam-se para descansar, reclinando o corpo,
pensando em possíveis intervenções na Assembleia de modo a aperfeiçoar-
se a qualidade de vida da comunidade.
As crianças preparavam a sua própria refeição ajudadas pelos pais,
requisitados todos os dias segundo uma escala rotativa.
Enquanto o faziam, e sobretudo enquanto comiam, eu narrava histórias
clássicas europeias, que recordava consultando os ficheiros sobre literatura
na Pré-História da humanidade, contava episódios narrados há 3000 anos
por Homero e Hesíodo, depois Vergílio, Plauto, Esopo, histórias germânicas
medievais, relia a aventura portuguesa e espanhola do tempo da primeira
expansão ultramarina da Europa, e de todas as histórias retirava conclusões
morais e históricas, separando com nitidez o bem do mal, o que frutificara
em bondade, liberdade, arte e conhecimento e o que servira para animalizar
o homem, levando-o à tentativa de extinção da Nova Europa.
Extraía sempre a mesma conclusão, as forças bestíferas que tinham
levado à explosão da violência e da posse no passado tinham sido as
mesmas que actualmente tinham tentado promover a extinção da Nova
Europa.
Pela narração das histórias clássicas, as minhas palavras não apelavam ao
medo nem se propunham instilar os sentimentos do terror ou do horror.
Muito pelo contrário, as histórias destinavam-se ao entendimento infantil,
fortificando nas crianças o sólido sentimento moral de que era preferível
oferecer-se à morte com dignidade, como porventura o tinham feito os
companheiros dos seus pais presentes no continente europeu, a viver sem
nobreza nem decência, rastejando humilhantemente como um animal
doméstico implorando comida a seu dono.
Percebia, pelas reacções, que os sentimentos de dever e de dignidade
moral se fortaleciam na sua consciência à medida que iam crescendo,
acompanhados de uma sã e infinita curiosidade científica sobre o
funcionamento orgânico da natureza, do universo, do mundo e da história
humana.
Esta era a minha única função como professor, não ensinar o que podia
ser consultado em qualquer catálogo da Worldweb, mas acicatar, instigar,
estimular em cada um o mundo moral da consciência e o desejo de uma
curiosa inteligência racional.
Após a sesta, cada um fazia o que queria, ou isoladamente, ou em grupos
espontâneos, brincando livremente.
Eu retirava-me para o cabeço da duna de areia vermelha, reclinava-me na
espreguiçadeira de vime e preparava uns rascunhos para as páginas que iria
escrever nessa noite ou na próxima madrugada.
Elas, as crianças, ali ficavam no terreiro, sem vigilância directa, recriando
jogos que eu lhes ensinara ou inventando novos.
Três ou quatro afastavam-se, já os conhecia, seriam os futuros escritores,
historiadores, pensadores, artistas, isolavam-se, cada um por si ou aos pares,
encostavam-se ao tronco de um salgueiro, desenhando rabiscos na terra
vermelha, de testa travessa e olhos perscrutantes como águias buscando a
presa do alto.
Grandes amizades, que permaneceriam o resto da vida, ali eram feitas
nesse período de total liberdade.
Uma tarde, recordei-me de trechos do opúsculo «A Amizade», de Cícero,
que estudara na última prova para o cargo de Reitor, recitava-os, por vezes
inventando partes que a minha velha memória já não recordava.
De tanto o ler, acabei por memorizar longas partes do opúsculo de
Cícero.
O objectivo não era tanto fazê-los ouvir Cícero, mas orientá-los no
aperfeiçoamento de uma sadia camaradagem, reflexo na vida diária do
Colégio do que deveria ser a sua futura existência adulta na comunidade.
Todo o meu esforço, seguindo a minha consciência, consistia em nada
ensinar, apenas facilitar o processo de descoberta individual através do
exemplo moral e do raciocínio científico.
Por vezes, eu levantava problemas sociais, recordando antigas formas de
vida na Velha Europa, a exploração do trabalho infantil, a presumida
superioridade ostentatória do homem sobre a mulher, o preenchimento da
totalidade da vida através de uma actividade em exclusivo, designada por
trabalho, o egoísmo dos narcisistas, que se figuravam a si próprios como
centro da sociedade, a avareza dos ricos, a soberba dos poderosos, a vaidade
dos superiores, o desprezo dos fortes, a humilhação dos fracos, a exploração
dos humildes.
Sentia as crianças enojarem-se ouvindo tão vis exemplos.
Exaltava a sã vida comunitária, onde cada um harmonizava os seus
desejos com as necessidades do todo, sentindo excelso prazer por ajudar
quem de ajuda precisava.
Falava-lhes no prazer como motor ético de vida e na utilidade como
critério social.
Enaltecia os valores da solidariedade mútua, da lealdade à palavra dada,
da honestidade de cada um para com todos e sobretudo para consigo
próprio, lançava-lhes questões morais, dilemas éticos, que deveriam discutir
mais tarde com os pais.
Mais do que uma vez os vi soluçar, e até chorar, um choro comovido,
quando rememorava a vida na Nova Europa, presumivelmente extinta às
mãos da ganância oriental.
Desenhávamos em tela e papel, com tintas compradas em Ponta Delgada,
quadros naturalistas e realistas, outros simbolistas e abstractos, e
percebíamos serem superiores em inteligência e criatividade as crianças que
não conseguiam desenhar com clareza o seu auto-retrato, ou as que, por
escrito, não conseguiam relatar as suas melhores e piores qualidades.
Saudavelmente criadas, não havia emulação nem concorrência entre as
crianças, cada uma não desejando ser superior às restantes.
Notei que por vezes, presumindo-se vencedores em jogos e corridas,
muitos se deixavam ficar para trás ou simulavam enganos para que outros,
menos hábeis, também pudessem ter a sua quota-parte de vitórias.
A harmonia social em casa e na comunidade reflectia-se no ambiente do
Colégio.
Raros eram os problemas disciplinares.
Vigoravam antes os pequenos conflitos espontâneos de alguns quererem
os mesmos objectos ao mesmo tempo.
Bom motivo para se disciplinarem, sabendo que tudo o que todos tinham
também eles o podiam ter, embora só alguns de cada vez.
Adultos felizes são homens que realizam os seus desejos, aprendendo em
crianças a moderá-los para que se tornem realizáveis.
A contenção e a temperança, a prudência, a sensatez – sentimentos por
mim permanentemente exaltados como modelares – ritmavam as relações
entre mim e as crianças, e, imitando os seus pais, entre estas.
Não existia excesso de individualismo no Colégio e, caso existisse, seria
racionalmente reprimido, bem como todo o estímulo para a ganância, a
cobiça, a avidez, a inveja e a sobranceria.
Não eram permitidas atitudes de chefia, apenas de orientação, de
coordenação, como a todos eu próprio apresentava a função de professor,
reclamando frente a todos o ditame máximo do Colégio, superior essência
de uma verdadeira comunidade, que cada um só seria feliz se todos o
fossem, que a ninguém se devia mais do que merecia e a todos era devido o
que a cada um se devia.
Uma vez por semana, passávamos a totalidade do dia no hospital-
maternidade-farmácia-laboratório, submetendo o raciocínio das crianças ao
rigor da experiência, obedecendo com prontidão ao jugo das leis da
natureza, respeitando-as, tentando imitá-las por via laboratorial, não as
subvertendo, para que mais tarde, em adultos, conhecidos os segredos,
pudessem fazer concordar o seu determinismo com as necessidades
humanas.
Neste último ano, foi levantado um novo edifício, designado por Central
de Comunicações.
Aqui se alojavam todos os computadores, os antigos e os novos, estes
construídos pelos ex-sincretistas a partir de peças avulsas compradas a
Ponta Delgada.
Aqui guardávamos os arquivos em caixas de plastónio, vindas na nave do
Jacques.
Aqui eram dadas lições às crianças um dia por cada duas semanas e aqui
aprendiam a ler e a escrever manipulando as teclas dos computadores.
Estávamos ainda muito, muito longe do domínio informático reinante na
Nova Europa, mas já conseguíamos receber imagens e informação de todo
o mundo, com directo acesso às mais importantes fontes de dados.
Porém, um silêncio tumular erguera-se sobre o destino dos 100 milhões
de neo-europeus após a recusa da última proposta dos Mandarins.
Desconhecíamos o que se passava no continente europeu e nenhuma rede
interna da Worldweb acusava um rumor que fosse.
Também não solicitávamos informação, já que nos pressupúnhamos em
segurança enquanto não fosse descoberta a nossa existência como os
últimos sobreviventes da Nova Europa.
Na utilização da Worldweb tornámo-nos mais receptores do que
emissores.
TERCEIRA PARTE
I

2294

Uma dezena de anos se passou.


Farei 100 anos por este tempo.
Comemoro o meu centésimo aniversário.
Desconheço o dia porque o Grande Cérebro Electrónico apenas registava
o ano, não o dia, combatendo assim o individualismo.
Todos os aniversários eram celebrados colectivamente na Nova Europa.
Comemorava-se o nascimento conjunto de todos os aniversariantes de um
certo ano na praça central do Conglomerado ao longo da Festa da Vida,
muitos divertimentos, muitos jogos e uma canção adequada entoada por
toda a praça.
Mal nascíamos, era-nos atribuído um Distintivo, mas não registado o dia
de nascimento.
Assim continuamos a fazer aqui, na Base, no Pico.
O aniversário de cada criança é celebrado no Colégio em conjunto com a
totalidade das crianças nascidas no mesmo ano.
O combate contra o individualismo continua tenaz e sem recuo.
Sem o hipercórtex, o homem é apenas um animal mais avançado tanto
emotiva quanto racionalmente, com tendência a autovalorizar-se
desmedidamente.
Sei que, excepcionalmente, se prepara uma festa para a celebração do
meu centésimo aniversário, durará a totalidade do dia e juntar-se-á a aos
festejos de celebração da memória da Nova Europa, realizados anualmente.
Evoluímos muito, tanto quanto, ao invés, o meu corpo declinou.
Deixei de ser professor este ano, verdadeiramente já o não era há cinco
anos, dividira a leccionação e o acompanhamento das crianças com outros
quatro companheiros voluntários, homens e mulheres.
Limitava-me a coordenar o Colégio de modo que todas as crianças sem
excepção tivessem as mesmas oportunidades, vivessem as mesmas
experiências e recebessem os mesmos conhecimentos.
Agora, a partir deste ano, resguardar-me-ei em casa, cultivando o meu
jardim, confeccionando as minhas refeições, ajudado pela Joana, e,
sobretudo, aperfeiçoarei e passarei a limpo a Crónica da Criação e
Extinção da Nova Europa, desde a sua origem pelos Pais Fundadores, nos
finais do século XXI, até à sua extinção, no século XXIII, e a sua perpetuação
por um grupo remanescente de Sessenta homens na ilha do Pico.
O livro está terminado.
Falta apenas passá-lo a limpo.
Penso que um ano me chegará.
Depois, posso morrer.
Finalmente, decidi-me pelo título definitivo do livro: Crónica da Nova
Europa, anulando «Criação» e «Extinção».
Jorge Tomás, já com cabelos brancos, pai de mais três crianças, partiu há
dois meses para São Miguel para cumprir as encomendas anuais.
Jorge Tomás e o seu primogénito tornaram-se a nossa plataforma
comercial, por eles têm passado todos os nossos contactos de compra e
venda com as restantes três ilhas, verdadeiramente só duas, a Terceira e São
Miguel.
Fomos prolíferos, somos agora quase 500 neo-europeus.
Assim continuamos orgulhosamente a designar-nos e já baptizámos o
Conglomerado da ilha com o nome de «Novíssima Europa».
Foi o único atrito que tivemos com Jorge Tomás – para ele a ilha foi, é e
será sempre chamada Pico.
Por respeito para com as suas convicções, que compreendemos, à sua
frente designamos a ilha por «Pico», mas entre nós designamo-la como a
ilha da Novíssima Europa.
Jorge Tomás, percebendo a nossa resistência, vinga-se, designando-nos
por neo-picarotos, querendo com isso dizer que operámos uma segunda
colonização da ilha, uma colonização científica, como diz, depois de os
portugueses terem feito, nos primórdios, uma colonização humana,
geográfica, apenas de povoamento.
Brincando, diz-nos que, após dez anos de residência, já nos podemos
auto-intitular «ilhéus», verdadeiros ilhéus, saudosos, nostálgicos,
melancólicos, aéreos.
Cremos, de facto, por enquanto, um «enquanto» de que desconhecemos a
duração, que no isolamento da ilha se encontra a base da nossa
sobrevivência.
Sentimo-nos demasiado fragilizados para estabelecermos relações francas
com os habitantes das restantes ilhas e sobretudo para estabelecermos
relações com outras populações do mundo, principalmente com as do
Império Americano.
Os açorianos de São Miguel e da Terceira, crendo nos boatos que a
família de Jorge Tomás pôs a correr, acreditam que somos refugiados dos
Bárbaros da Velha Europa, escapados à dissolução molecular e
correspondente fumigação para o espaço.
Porventura, os dirigentes militares do Império Americano devem ter já
conhecimento da nossa existência, mas em nada se preocupam com estas
quatro ilhas isoladas no seu Mar, não constituímos uma ameaça para a sua
segurança.
Se os Mandarins, raivosos e vingativos, soubessem da nossa existência
nos Açores, esforçar-se-iam por nos aniquilar, dando por completa a sua
obra cruel, embora para isso tivessem de invadir território do Império
Americano.
Pela Worldweb, sabemos que a Grande Ásia, exaltando a sua excelência
tecnológica, certamente em grande parte copiada da nossa, se orgulha
abertamente de ter invadido e derrotado a civilização cientificamente mais
avançada do mundo e de ter conferido um novo horizonte demográfico e
geográfico e uma maior vitalidade científica ao antigo continente europeu,
ora designado por Ásia Ocidental.
Mas não fala em extermínio.
Omite.
Como todo o assassino, de mal com a sua consciência, omite o acto
nefando por si praticado.
Vergonha face à História?
Ou deveremos ter esperança de que a Nova Europa não tenha sido
extinta?
Contra as pretensões mandarínicas, somos, assim, a prova viva, mas
oculta, da sobrevivência da Nova Europa, e eles, mais do que todos os
restantes poderosos, sabem, por experiência própria, que deixar vivos os
filhos dos dirigentes assassinados é provocar mortalmente o destino.
E não se enganam, se o pudermos e quando o pudermos, porventura num
lapso de tempo futuro entre os 100 e os 200 anos, não hesitaremos, não em
dizimá-los, nunca o faríamos, mas em provocar a maior revolução alguma
vez havida na China, em convertê-los ao pacifismo, à generosidade e ao
comunitarismo.
Sabemos que em dez anos a Grande Ásia descarregou, não os previsíveis
500 milhões de chineses na totalidade da Europa, mas 1000 milhões,
sobrelotando cada centímetro quadrado do continente.
Vastos edifícios históricos, como o Louvre em Paris, ou o Museu
Britânico, em Londres, tornaram-se residência permanente de antigos
camponeses rudes da zona de Cantão, cujos terrenos foram ocupados por
fábricas do tamanho de cidades.
Frequentam os corredores dos dois museus como espectros
desincorporados e desenraizados, queimando os quadros para se aquecerem
nas noites gélidas e escaqueirando a pedra das esculturas para construírem
pequenas casas familiares no interior dos museus.
A antiga zona da Alemanha é hoje ocupada por colónias malaias,
indianas, paquistanesas, nepalesas, japonesas, manchus e outras,
constituídas por antigas comunidades rebeldes ao poder chinês.
Ali foram abandonadas, devastando a Floresta Negra para cozinharem e
se aquecerem, e ali se unem – é o que lemos na Worldweb – para fazer face
às hordas armadas chinesas, que as pretendem transferir para o Sul de
África como trabalhadores.

A Europa morreu. Verdadeiramente, somos os últimos europeus.


A nossa importância e a localização do arquipélago são deveras
insignificantes face aos três impérios mundiais – o Asiático, o Americano e
o Russo, este o menos importante, cientificamente o mais atrasado dos três,
onde impera o irracionalismo religioso.
Não constituímos uma ameaça.
Porém, um simples descuido pode equivaler à nossa destruição.
Felizmente, nenhum dos três impérios vê utilidade nestes quatro ilhéus
situados a meio do Mar Americano, nem os próprios neo-americanos, seus
proprietários.
O Conselho dos Pantocratas revelou uma sabedoria inexcedível quando
escolheu os Açores para a morada dos Sessenta.

A Crónica da Nova Europa foi terminada, como acima referi, mas não
morri.
Convencera-me de que, mal a terminasse, morreria.
Estes últimos anos tenho-a reescrito, alterando-lhe muitas páginas
apressadamente escritas.
Emendo-a no sentido de a aperfeiçoar.
Aqui está ela à minha frente – mais ou menos 500 páginas soltas de papel
almaço, que recuso que sejam passadas para o computador e impressas,
ainda que para isso seja deveras solicitado.
Todos se oferecem para passá-las, ou, pelo menos, digitalizá-las como
imagem.
Recuso.
Sinto, agora, que quando a não puder alterar mais em forma manuscrita
nada me restará para fazer neste mundo.
Então, sim, morrerei.
São rezinguices de velho, talvez.
Porventura superstições, mas rezinguices e superstições que a ninguém
prejudicam.
Receio, também, é verdade, que uma tecnologia superior se infiltre na
memória dos nossos computadores e subtraia o livro, revelando ao mundo a
nossa identidade.
Porém, a verdade maior reside no prazer ilusório de ainda me saber útil e
de ter um papel a desempenhar no interior da comunidade.

Continuamos a trilhar o caminho para a perfeição ética.


Proximamente, acontecerão gravíssimos problemas quando florescer no
corpo da primeira geração aqui nascida a necessidade do acasalamento.
Em tudo a eduquei para que a prudência, a sensatez, a temperança e a
moderação reinassem na sua consciência, mas receio que o afloramento dos
instintos sexuais ao longo da puberdade, fervilhando as emoções, poderá
trazer – trará de certeza – muitas surpresas.
Novas opções deverão ser tomadas e não as antevejo sem perturbantes
dilemas ou trilemas.
Continua a haver menos homens e mais mulheres, mas a proporção
alterou-se.
São agora cinco mulheres para três homens.
Os meus companheiros Coordenadores, ora mais adultos, mais
experientes e mais sábios, saberão resolver qualquer diferendo.
Tenho a máxima confiança neles, tanto ao nível intelectual quanto ao
nível comportamental.
Já não existem Assembleias diárias ao poente.
Ficaram reduzidas a uma por semana.
A comunidade está fortalecida e a solidificação de hábitos
comportamentais revelou não serem necessárias tantas assembleias.
Apenas quando se tomam novas iniciativas.
Nenhum dos Sessenta morreu, o que é uma alegria para todos e espero ser
eu a inaugurar um terreiro perto do Colégio, onde se situará o cemitério.
Aqui ficará uma estela, sem nada escrito, em minha memória.
O meu corpo será incinerado.
Para cada um dos Sessenta que falecer, juntar-se-á nova estela, sempre em
branco.

MULTA COMPORTAMENTAL

Em dez anos, foi aplicada apenas uma Multa Comportamental.


Não por excesso de individualismo, por vaidade própria, por ganância ou
cobiça.
Mas por sentimento desajustado.
Numa família de dois homens e uma mulher, um destes desinteressou-se
da filha dos três, alegando que esta, pela fisionomia, não seria sua de
certeza, mas do outro homem.
Não ouviu a voz da razão.
A criança, sabendo-se desprezada por um dos pais, entrou no que se
poderia designar por um profundo incómodo.
Sentiu falta do cuidado de um dos pais.
Foi chamada a atenção dos Coordenadores para a necessidade de
regeneração daquela família, com intenso cuidado dos três adultos
relativamente à criança.
Assim ocorreu nos primeiros momentos.
Em breve, porém, o pai suspeitoso evidenciou novo desinteresse face à
criança.
A situação foi de novo debatida na comunidade e todos condenaram a
atitude do pai suspeito, recordando-lhe casos semelhantes em outras
famílias sem que o pai que a natureza não privilegiara mostrasse
descontentamento e até desinteresse com o nascituro.
Pelo contrário, os pais nesta situação sentiam-se moralmente mais
responsabilizados pela educação dos putativos filhos.
A criança em causa, com cinco anos, sofreu nova recaída, alheando-se da
mãe e do presumível verdadeiro pai e isolando-se dos companheiros no
Colégio.
Contra o esperado, o pai desprezador orgulhou-se do seu feito, declarando
abertamente não gostar da menina, não só por não ser sua filha mas também
pela sua personalidade solitária e melancólica.
Os Coordenadores, constatando a incorrecção, decidiram, como exemplo,
aplicar-lhe uma Multa Comportamental, a primeira aqui na Novíssima
Europa.
A incomodidade moral entre os membros adultos da comunidade era
tanta que não sabiam como aplicar a multa.
Alvitrou-se isolar o prevaricador durante uma semana numa ponta
afastada da ilha, o que combati com a minha máxima força, já que
semelhante castigo só serviria para sobrelevar o comportamento nefasto,
radicalizando-o, tornando o seu portador um homem rancoroso.
Propus que a multa consistisse em trabalho obrigatório, não actividade
livre, sim trabalho penoso no Colégio, de modo que ele constatasse a
necessidade de estabilidade familiar de todas as crianças e se apercebesse
de como errada e escusadamente estava fazendo sofrer uma criança que lhe
deveria merecer a maior das ternuras.
As regras sobre a constituição da família eram universais e ele próprio
participara com prazer e inteligência na sua aprovação.
Por presumir não ser seu pai, não podia pôr em risco injustamente a saúde
mental e, até, a personalidade em formação de uma criança.
Mesmo que não fosse seu pai, deveria na mesma, por imperativo moral,
disponibilizar-se para tratar carinhosamente a criança.
As regras determinavam que todas as crianças nascidas no seio de uma
família eram filhas de todos os adultos seus constituintes.
Por todos foi aceite a Multa Comportamental.
Ele próprio, o prevaricador, chamado à razão, caindo em si e percebendo
o dissídio que levantava, aceitou-a e durante uma semana conviveu todos os
dias com cerca de quatro centenas de crianças entre um e dez anos de idade,
tomando consciência de que nas nossas circunstâncias, muito fragilizadas,
era útil e forçoso que os adultos se sacrificassem pelas novas gerações, isto
é, pelo futuro da comunidade.

A COMUNIDADE

Dez anos depois de instalados na ilha, éramos já, não um grupo, mas uma
autêntica comunidade, dotada dos serviços necessários à sobrevivência
quotidiana e com não menos de uma centena de actividades diversificadas,
que realizavam pessoalmente os seus autores e executores.
Do ponto de vista alimentar, não éramos ainda totalmente autónomos,
mas para lá caminhávamos e tínhamos esperança de que no prazo de um
novo decénio assim nos tornássemos por via de uma dieta exclusiva de
vegetais, legumes e cereais.
Em breve, dispensaríamos o leite de vaca, a manteiga, o queijo e os ovos
de galinha.
Alguns dos nossos ex-sincretistas tinham estudado e copiado os
medicamentos comprados em Ponta Delgada e, na vertente farmacêutica,
tínhamos alguma independência.
Substituíamos os preparados químicos por compostos vegetais, com
resultados e eficácia animadores.
Inclusivamente, realizávamos pequenas operações cirúrgicas, como ao
apêndice das crianças e, no meu caso, às cataratas, e, a dois adultos,
tínhamos retirado tumores sebáceos.
Através de modelos informáticos, consultados na Worldweb,
preparávamo-nos para efectuar operações de maior risco, inclusive ao
coração.
Sofríamos de imensas carências, justamente porque sabíamos o que
podíamos fazer mas não dispúnhamos de técnica e de instrumentos para tal.
Por várias vezes nos perguntámos porque o Conselho de Pantocratas não
permitiu que andróides especializados nos acompanhassem, e a resposta era
sempre a mesma.
Os andróides necessitariam de ligação ao Grande Cérebro Electrónico.
Orgulhávamo-nos do amplo progresso realizado numa dezena de anos,
dotados de um plano moral excelente e de um optimismo histórico muito
sólido.
O segredo deste sucesso residia na educação comum recebida nos
Colégios da Nova Europa e numa fortíssima vontade de sobrevivência, que
nos responsabilizava como herdeiros de uma civilização, minimizando os
desejos individuais face à vontade geral.
Esta era só e exclusivamente uma: prolongar e continuar a civilização dos
nossos pais. Grande a responsabilidade, grande a vontade, óptimo o
caminho percorrido.

Os anos como professor arraigaram em mim a convicção prática de ser a


igualdade mais efeito da pluralidade do que da homogeneidade e de que o
córtex neoténico do ser humano teria sido criado para uma constante
aprendizagem.
Outra convicção fortemente enraizada em mim, apreendida com a prática
do ensino, residia na crença de possuir o acaso maior valor na determinação
do sentido da vida do que a mais bem programada existência.
Entre os alunos, uma palavra minha, solta avulsamente, caía na
consciência de uma criança individual de um modo radicalmente singular
relativamente ao modo como era recebida pela consciência das restantes
crianças, inflectindo-lhe o futuro, e ela, que até então desejara ser, por
exemplo, especialista em informática neuronal, via-se inesperadamente
acometida por inquietações líricas, românticas ou poéticas, até filosóficas.
E aquele outro, tão amigo dos animais domésticos, cuja vida parecia
destinada à pecuária ou à lavoura, ao experimentar pela primeira vez,
circunstancialmente, numa visita escolar ao Centro de Comunicações, a
prática do desenho no ecrã de um computador, encontrou nas artes
figurativas e decorativas o seu sentido para a vida.
Sempre avisara os alunos de que só seriam felizes se multiplicassem as
actividades, não deveriam condenar-se à tortura de exercerem uma única
actividade.
Era, para nós, como já o referi, a diferença entre actividade e trabalho,
este redutor, aquela expansiva e realizadora.
Sem a uniformização do hipercórtex, adequada a uma sociedade de 100
milhões de habitantes, cada criança no Colégio do Pico acrescentava
experiência à experiência até que uma destas a marcasse indelevelmente e
lhe permitisse escolher a actividade privilegiada a que se entregaria quando
adulto.
Porém, tinha sempre o cuidado de referir que deviam optar por duas ou
três actividades principais, permutadas entre si quando de uma se
fatigassem por esforçada rotina.
Por isso, as lições eram realizadas tanto no Colégio quanto em visitas
rotativas a todas as nossas instituições comunitárias e cada família
obrigava-se a programar as actividades da totalidade das crianças um dia
por ano.
Não havia assim fronteira definida entre o Colégio e a comunidade.
Quando abandonei o cargo de professor, melhor dito, a função – já que
cargos institucionais e cristalizados não existem na Novíssima Europa –, os
professores que me substituíram continuaram esta sadia relação entre o
Colégio e o exterior, aliás, incentivando-a mais, o que dera origem a alguns
problemas de relação.
Alguns elementos da comunidade pressupunham, erradamente, aliás, ser
o Colégio uma espécie de depósito ou armazém dos seus filhos, que os
instruía, os educava e deles cuidava ao longo do dia.
Uma visão incorrectíssima da educação, cavando um fosso entre o
Colégio, a família e a comunidade.
Não existe pior filosofia educativa, uma visão da educação que desenraíza
a criança do seu meio para lhe promover e exaltar as vertentes
individualistas da sua personalidade.
Deixei registado na última Assembleia a que assisti na qualidade de
professor que cada pai era também um educador e que os novos professores
eram também pais e mães, devendo existir uma vinculação total, na
educação das novas gerações, entre todos os órgãos da comunidade,
sobretudo no caso de crianças mais disponíveis para o uso da violência.
A minha experiência comprovou que a violência é natural no ser humano,
uma espécie de mecanismo inato de defesa do corpo e da consciência que,
em certas circunstâncias, se soltava e se elevava acima dos outros hábitos
individuais e sociais, tornando-se dominante no comportamento.
Havia, de facto, crianças naturalmente cruéis, isto é, que tinham prazer
em humilhar, violentar ou simplesmente ameaçar as outras.
Na Nova Europa, a implantação do hipercórtex quebrava esse prazer,
considerado nefasto, e a ligação ao Grande Cérebro Electrónico
domesticava a consciência, impondo-lhe outra actividade por fazer, que a
realizava.
Porquê algumas crianças e não outras era – e é – para mim um mistério.
Com exercícios adequados, esgotadores da energia física, e prelecções
individuais através de histórias morais antigas, que retirava dos livros
clássicos consultados na Worldweb, suavizava o instinto bélico das
crianças.
Neste aspecto, nunca tive problemas de maior, porventura tanto devido ao
respeito e à deferência que a minha vetusta figura inspirava nas crianças
quanto à minha infinita e sadia paciência.
Mal saí, os desacatos praticados por uma única criança, como pequenos
furtos e ameaças físicas, em parte desculpados pelos pais, constituíram
aceso motivo de debate na Assembleia semanal.
Os pais, tanto como os professores, foram fortemente responsabilizados
pela necessária mudança de hábitos da criança.

Tudo na Novíssima Europa corria normalmente, segundo os recursos


possíveis, as necessidades básicas que já tínhamos suprido e os desejos de
construção de uma sociedade o mais avançada possível do ponto de vista
tecnológico.
Jorge Tomás e São Miguel eram para nós o entreposto do mundo.
O que precisávamos e nos ultrapassava cientificamente encontrávamos
em Ponta Delgada por intermédio de Jorge Tomás, mais nosso amigo dez
anos depois do que no primeiro dia do nosso mútuo conhecimento.
O seu primogénito passara a frequentar o Colégio.
Depois de ter falado com o pai, convidei meigamente o primogénito de
Jorge Tomás a participar nas actividades do Colégio.
Foi uma grande alegria para ele.
Também participava assiduamente no Centro de Comunicações,
aprendendo tanto quanto as nossas crianças.
Com efeito, o primogénito de Jorge Tomás evidenciava uma inteligência
prática superior à das nossas crianças.
Algo dos seus ascendentes passara para os seus mecanismos de acção,
uma sabedoria do sangue que se ajustava menos aos aspectos teóricos do
mundo e mais à sua transformação diária através das pequenas acções, que,
no entanto, tornavam a existência mais cómoda.
Sem os aparelhos, os dispositivos electrónicos, as peças avulsas,
provindos de Ponta Delgada, os nossos ex-sincretistas neuro-informáticos
não teriam conseguido o milagre de em dez anos terem atingido um nível de
progresso científico que, quase partindo do zero, nos colocava ao nível da
Europa na primeira metade do século XXI.
Acabáramos de inaugurar um novo laboratório, ora independente do
hospital-maternidade, de produção de medicamentos de origem vegetal com
aplicação profiláctica, de que as crianças, mais do que os adultos, iriam
beneficiar fortemente.
Pelas nossas projecções, porventura optimistas, em menos de duas
décadas estaríamos preparados para efectuar transplantes de órgãos
biológicos, adquiridos na Worldweb e enviados para Ponta Delgada ao
cuidado de Jorge Tomás ou do seu primogénito.
II

O IMPÉRIO AMERICANO

A nossa intensa evolução científica tornou-se um problema, um problema


deveras grande.
A comunicação por Worldweb com inúmeras empresas virtuais no espaço
electrónico tornou-se notada e registada.
Não a comunicação em si, mas a comunicação exclusivamente científica,
a consulta de bibliotecas e laboratórios virtuais e a encomenda de inúmeros
artigos sobre diversos ramos de tecnologia avançada.
O Servidor do Departamento de Controlo do Espaço Virtual do Império
Americano, o serviço oficial que controlava a entrada de emigrantes no
espaço americano, descobriu uma comunidade humana na ilha do Pico, até
então praticamente desabitada, e registou uma concentração inusitada de
«curiosidade científica» – assim mesmo referido –, na pequeníssima e
desconhecida ilha do Pico.
Comparou-a com outro tipo de mensagens tendo por conteúdo a
exploração oceânica, a ecologia, a investigação sobre as espécies
arborícolas, sobre as aves, o clima, e não encontrou correspondência.
Era como se no Pico, abrigado das vistas humanas, se tivesse concentrado
um conjunto de cientistas em permanente congresso ou instalado um
laboratório bioneuronal-informático.

Espiaram-nos durante cerca de dois anos – foi-nos dito posteriormente –,


até que, de um modo inesperado, tinha eu 105 anos, naves com o emblema
da águia americana começaram a sobrevoar intensamente a ilha, e um
satélite, detectado pelos nossos radares, estacionou na atmosfera a uma
centena de metros do solo.
Eram, as naves e o satélite, a que rapidamente se seguiu uma estação
aérea, os olhos e os ouvidos do Império Americano, que assim mostrava
que se interessava por nós.
A Assembleia reuniu-se em três poentes seguidos, desconhecíamos
porque nos vigiavam, e tão ostensivamente.
Não tínhamos encomendado nenhum elemento químico ameaçador,
componente dos nossos preparados farmacêuticos, tínhamos esse imenso
cuidado, pois sabíamos existirem programas informáticos que varriam as
encomendas virtuais, prontos a detectar transacções que pusessem em risco
o território central do Império.
Estranhávamos e não entendíamos o que de nós podia o Império
Americano suspeitar.
Soubemo-lo, mais tarde, ter sido a concentração de pedidos de
encomendas de carácter tecnológico e de informação científica que alertou
os serviços do Império sobre a nossa existência.
Porém, pelos sensores das naves e pela potência do satélite, rapidamente
se concluiria não possuirmos armas hiperatómicas nem laboratórios
sofisticados capazes de produzir vírus ou bactérias letais, ou mesmo
substâncias tóxicas destinadas a criar uma pandemia mortal.
Não se percebia, pois, a recente chegada de uma estação aérea.
Tínhamos a sensação de que a estação viera para ficar, instalada como
uma cidade aérea.
Embora alertados e receosos, decidimos continuar a nossa rotina e nada
alterar.
Caso fôssemos contactados, diríamos a verdade, toda a verdade, já que
não só nos encontrávamos em território pertencente ao Império Americano
como o comportamento dos americanos era radicalmente diferente do dos
orientais.
Uma coisa era isolarmo-nos e escondermo-nos, outra mentirmos, o que
contraditaria a nossa ética.
Mais tarde, soubemos que o Império Americano em nada nos considerava
uma ameaça.
Numa escala de ameaça à segurança do império entre 1 e 10, fomos
classificados em posição 2, o que significava grau mínimo.
O que os tinha levado a aproximar-se de nós fora a curiosidade e o temor
– o que fazia ali perdida no Mar Americano uma comunidade desejosa de
sabedoria científica, comprando inúmeros instrumentos laboratoriais?
Verdadeiramente, mais do que o temor, foi a permanente curiosidade
infantil do povo americano que nos liquidou, depois de termos sido
arruinados pelo calculismo frio e cruel dos Mandarins orientais.
Com efeito, nas suas investigações sobre a nossa pequena comunidade,
descobriram, inesperada e acessoriamente, possuir a ilha um segredo
geológico.
Foi este facto que nos perdeu, se não o tivessem descoberto, ter-se-iam
ido embora.
A nossa comunidade e as limitadas explorações científicas em nada lhes
interessaram, nem perigo criavam para o Império.

Aqui, nestes rascunhos em que vou acrescentando novos dados ao livro


da Crónica da Nova Europa, pouco escrevi sobre o Império Americano
porque, até recentemente, em nada constituiu uma ameaça para a nossa
sobrevivência.
Devo agora acrescentar um capítulo sobre este Império.
Como igualmente não tenho escrito sobre o Império Russo, habitado por
seres bárbaros das estepes geladas, obedientes a novos Czares, vivendo em
regime pré-histórico após a explosão no seu território de quatro centrais
nucleares, que lhe contaminaram a terra e a atmosfera, porque em nada
interessa e interessou à Nova Europa, a europeia ou a açoriana.

Com efeito, o Império Americano designa-se assim em memória e honra


dos velhos tempos dos séculos XX e XXI.
Actualmente a sua política geral nada tem de imperial.
Muito pelo contrário.
Nos finais daquele último século, os então Estados Unidos da América,
após décadas de recessão económica e ataques terroristas selectivos ao
interior do seu território, retraíram-se, recuando para as suas fronteiras,
abandonando o seu estatuto de polícia democrática do mundo, que realizara
ao longo de século e meio.
Regressaram à doutrina Monroe do século XIX, «a América para os
americanos», agora restringida exclusivamente às fronteiras do país, que
incorporara, sem guerra, por falência económica e por tratados diplomáticos
pacíficos, os antigos estados independentes do México e do Canadá.
Com a emergência mundial da Grande Ásia e do seu imenso poderio
bélico, sobretudo atómico – ainda não existiam as actuais armas
hiperatómicas e os feixes de fotões –, e mercantil, cujas empresas tinham
invadido o planeta com produtos de fraca qualidade mas preço baixíssimo,
dominando a totalidade dos mercados, os Estados Unidos da América,
assoberbados por uma brutal crise económica, levando à bancarrota a
maioria das empresas gigantescas, conduzindo ao desemprego quase 60 %
da população adulta, abandonaram a política de intrusão nos diversos
conflitos regionais um pouco por todo o mundo, desmobilizaram dois terços
da sua tropa de elite, venderam a maioria dos porta-aviões e dos submarinos
atómicos – desmontados, sem potência nuclear – aos clãs guerreiros da
Velha Europa e transformaram o esforço financeiro com as Forças Armadas
em investigação científica de ponta, competindo com as novas descobertas
realizadas na Nova Europa.
Nós e os americanos tornámo-nos as duas civilizações cientificamente
mais avançadas do planeta.
Tal como nós, também eles criaram uma Bolha Hiperatómica de
Segurança, que defende os seus territórios principais de qualquer invasão,
mas, ao contrário de nós, diversificaram ao máximo as fontes de energia
que alimentam esta Bolha.
Num avanço científico firme e constante, inabalável, ao longo do século
XXII, com 30 por cento da população a trabalhar em unidades de
investigação e laboratórios, os americanos transformaram a sociedade
mercantil e burguesa dos dois séculos anteriores numa sociedade
tecnológica do mais alto grau, tão avançada quanto a da Nova Europa, mas
sem o fim último desta, a de conceder felicidade a todos os seus membros.
Enquanto a Nova Europa se mobilizava para a realização dos desejos de
cada cidadão, mesmo que virtualmente, possibilitando-lhe assim o usufruto
contínuo de uma vida feliz, a América transformou os seus cidadãos em
autênticas máquinas de trabalho, exclusiva forma de realização individual.
Nós eliminámos o conceito de trabalho, substituindo-o pelo de
actividade.
Eles, porventura por terem sofrido o choque de mais de metade da sua
população adulta ter ficado desempregada durante duas décadas, atingindo
níveis impensáveis de miséria económica, divinizaram o conceito de
trabalho.
A TECNOCRACIA DEMOCRÁTICA

Neste sentido, o Império Americano, com 1000 milhões de habitantes,


criou, na passagem do século XXI para o XXII, um novo regime político que
designou, paradoxalmente, por «Tecnocracia Democrática».
As eleições quinquenais com base em dois partidos políticos, o
Republicano e o Democrata, foram abolidas aquando da referida crise
económica que fez alastrar o desemprego como uma epidemia.
Primeiro, foram adiadas devido à falta de recursos financeiros.
Mas, verdadeiramente, todos os cidadãos recusavam o voto nos políticos
dos dois tradicionais partidos.
Quinze anos mais tarde, os partidos foram substituídos por uma estrutura
menos dispendiosa – os cidadãos votavam electronicamente em
representantes para direcção dos bairros e das pequenas comunidades, que
por sua vez faziam chegar às capitais estaduais as suas exigências,
habitualmente atendidas.
Nestas, dominavam e dominam, não políticos, mas técnicos altamente
competentes em todos os domínios sociais, das redes viárias aos planos
educacionais, dos cálculos demográficos à arquitectura urbana, dos
desportos e diversões às necessidades de assistência médica, dos combates
aos incêndios à protecção contra catástrofes climáticas ou ecológicas, dos
cemitérios aos parques infantis.
São estes técnicos – cursados em Administração Civil e Patrimonial, que
percorrem a pulso uma longa carreira altamente competitiva durante cerca
de 50 anos, submetidos a contínuas provas técnicas de afinada
especialização – que governam os múltiplos estados do Império
Americano.
São eles que, face às exigências e reclamações das comunidades, decidem
o que pode ou não ser aplicado, quando e em que medida, tendo sempre em
vista, pragmática e utilitariamente, como dizem, o Bem Comum, critério
único e máximo de toda a decisão: que cada medida regulamentar sirva o
maior número de cidadãos sem o prejuízo dos restantes.
Verdadeiramente, tanto quanto sei, e estudei deveras o sistema social
americano na minha antiga função de Reitor, não existem protestos maiores
das comunidades, nem a parcialidade e a injustiça das decisões são
relevantes, já que sempre fundamentadas em estudos técnicos, elaborados
por computadores, destinados a favorecer o maior número de pessoas do
bairro ou da comunidade.
A sua filosofia pragmática e utilitária força-os a privilegiar os estudos
consoante o maior número de cidadãos servidos no bairro ou na
comunidade.
As decisões de grande impacto são tomadas por Conselhos Superiores
Técnicos, que governam cada Estado, e por um Conselho Superior Técnico
Nacional, que delibera sobre as decisões que respeitam ao todo do Império.
Bem pelo contrário, os estudos dos Conselhos Superiores Técnicos, de
tão inovadores e competentes, encontram-se à frente das necessidades das
comunidades, propondo, sobretudo as suas comissões especializadas e as
suas comissões regionais, soluções mais eficazes e mais harmoniosas para
os problemas sociais comunitários em vias de emergir, ainda que não
pareçam constituir um verdadeiro problema para o comum dos cidadãos.
Sem eleições, mas com democracia, com votação electrónica contínua
para órgãos políticos de proximidade, o regime afirma-se, sem pudor, como
uma «tecnocracia», menos devido à existência de Conselhos Superiores
Técnicos e do regime de governação em função de pareceres técnicos
computadorizados, e mais porque tudo o que o cidadão pode fazer e tudo o
que o cidadão não deve fazer se encontra regulamentado, e regulamentado
ao mais ínfimo pormenor.
A escola é, para os americanos, a instituição que transmite, aos longo de
dez anos de frequência obrigatória, os diversos tipos de regulamentos,
forçando as crianças a segui-los e a memorizá-los.

TUDO SÃO REGULAMENTOS

Tudo são regulamentos e existem regulamentos para tudo.


Com efeito, o regulamento para os Americanos tem a força da lei para os
antigos Europeus.
Desde a ingestão de água, bem como a quantidade desta, ao acto de
defecação, desde o listário de circunstâncias em que o acto do divórcio é
aceite aos deveres e direitos – obrigatórios, com pena de lei – dos
trabalhadores segundo o cargo, a função e o desempenho, dos empregadores
e das empresas em função dos trabalhadores, a acção de cada instituição, de
cada família segundo o bairro – caso não seja aceite, a família terá de
escolher outro bairro e, se aceitou e prevaricou, é de imediato expulsa,
mesmo que nessa noite durma na rua –, tudo é regulamentado ao detalhe, as
actividades de cada cidadão são estabelecidas em cada hora do dia, em cada
dia da semana, em cada semana do mês, em cada mês do ano, em cada ano
de vida, e nada existe à luz da natureza, à superfície da terra, nenhum
fenómeno social acontece que não tenha sido regulamentado.
Se aconteceu e o não foi, sê-lo-á de imediato, normalizando-se.
O nascimento é regulamentado segundo o nível social da família, a idade
da mulher, o historial das suas doenças e a evolução do feto.
Nas escolas do Império Americano, a criança é forçada a assistir
diariamente a sessões de esclarecimento e memorização de regulamentação
enquadradora dos comportamentos individuais entre os cinco e os doze
anos.
Quando tem a sua primeira experiência sexual, ela também
regulamentada, e é aconselhada a casar-se pelo Conselho Técnico
Regional.
Este, suportado em estudos computadorizados, escolhe o parceiro do
casamento segundo uma regulamentação rigidíssima, com base em diversos
critérios, classes sociais, ADN compatíveis e optimizados e origens rácicas
semelhantes.
A escola tornou-se, assim, no Império Americano, não um local de
aprendizagem de conhecimentos ou de criação de arte e sabedoria, mas uma
instituição tecnocrática, administrativa, escriturária, repleta de provas
escritas e orais, em que predominam, como mestres, os que possuem uma
memória infinita, capaz de reproduzir de cor, sem um erro nem hesitação
oral, 100, 200 páginas de regulamentos, sem auxílio de qualquer dispositivo
mnemónico ou informático, conhecendo em pormenor a história das
sucessivas alterações aos regulamentos.
Da alimentação à higiene pública e pessoal, da profilaxia à terapêutica
das doenças comuns, das regras de tráfego aéreo e subterrâneo à selecção de
empregos, do modo de se frequentar restaurantes ou centros comerciais
gigantescos, do tamanho de um Conglomerado da Nova Europa, ao uso
normalizado de indumentária consoante a hora do dia e a circunstância, da
utilização das redes intraweb, segundo licenças específicas, à admissão na
universidade, das horas de sair e de entrar em casa, do horário de fornicação
do casal e com que resultados em termos de progénie – tudo, como referi,
se encontra regulamentado: o tamanho dos copos, a quantidade de álcool
ingerida por dia, a gramagem da carne, a altura permitida da erva no jardim,
o modelo dos sapatos para este ano, ou dos casacos e calças.
A lei é considerada uma regulamentação geral e abstracta, uma forma de
orientação comportamental para uma população de 1000 milhões de
habitantes.
Os regulamentos aplicam a lei e descem ao pormenor mais concreto,
indicando casos singulares, por vezes singularíssimos, até exóticos, a partir
dos quais a polícia e os técnicos competentes extravasam o fundamento
legal, aplicando-o a comportamentos análogos.
Neste sentido, sujeita a interpretações gerais, por vezes duvidosas,
passível de ser inflectida segundo direcções várias, favorecendo uns e
prejudicando outros, a lei foi há muito considerada um empecilho e
substituída obrigatoriamente por regulamentos específicos.
Tudo o que existe, como referi, é regulamentado, e nada vem ao ser ou se
torna ser que não esteja previamente regulamentado, o como, o porquê, o
onde, o para quê e a sua substância, isto é, a sua função.
Com excepção de um punhado de leis comuns a todo o império,
enformadas dos princípios éticos utilitários e tecnocratas, não existe uma
regulamentação geral e universal, mas regulamentos aplicáveis ao cidadão
individual segundo a sua actividade profissional, o seu grupo etário, o seu
nível social, os seus hábitos culturais, a área geográfica onde vive, o seu
nível financeiro, a sua prática desportiva, os seus gostos de lazer, os
costumes do bairro em que vive.
Assim, segundo o contexto, se cumpre o lema ético utilitário de beneficiar
o maior número de cidadãos sem prejuízo dos restantes.
Todos são responsáveis pela aplicação dos regulamentos e qualquer
vizinho ou familiar pode – e deve – denunciar a infracção de uma certa
cláusula pelo seu vizinho ou familiar.
O seu gesto será considerado uma atitude de nobreza, sendo devidamente
registado em computadores específicos.
Poderá – e deverá – requerer uma Certidão de Denúncia e apresentá-la
para efeitos de promoção no emprego ou como ajuda na admissão do filho à
universidade.
Por exemplo, apenas certos grupos sociais podem jogar golfe ou ténis
segundo a sua qualificação económica, social, financeira e, portanto, só
certos bairros ou cidades possuem campos específicos para estas
modalidades desportivas.
Os restantes cidadãos desconhecem a existência de golfe ou de ténis – ou
têm destes jogos um conhecimento ínfimo e distante –, o que em nada os
prejudica, visto terem ilimitado acesso a outro tipo de jogos, historicamente
mais condizentes com a sua situação social.
Outro exemplo, apenas um grupo restrito de pessoas pode frequentar a
ópera, o bailado ou o teatro, artes profundamente elitistas, ou um certo tipo
de filmes.
Qualquer elemento inferior da população que o queira fazer é de imediato
detido pela Polícia Comunitária, polícia vigilante dos costumes e
comportamentos.
Em compensação, nos arrabaldes, em grandes campos desportivos,
parques ecológicos e jardins relvados, todos se podem encontrar, cruzar e
até misturar, o patrão com o empregado, o tenista com o basquetebolista, o
artista com o pedreiro, o viajante com o sedentário.
Existem algumas semelhanças com a organização social da Nova
Europa.
Porém, enquanto nós avançámos, já neste século, para um controlo social
estrito através do Grande Cérebro Electrónico, os americanos
desenvolveram um sistema de controlo estrito dos cidadãos através da
absoluta regulamentação dos seus comportamentos individuais e de todas as
acções sociais, num sistema infinitamente mais burocrático.
No entanto, nos sistemas filosóficos, os dois regimes são infinitamente
diferentes.
Enquanto o nosso prima pela liberdade de escolha do cidadão, que o
Grande Cérebro Electrónico pode recusar, oferecendo alternativas, até
disponibilizando a sua realização virtual, o regime americano não permite a
escolha livre, regulamentando a vida total do cidadão.
A sua liberdade é marcada pela família donde provém, o bairro onde
nasce, a profissão dos pais, o grau de educação recebido.
No entanto, se, por mérito, evidenciar aptidões superiores à normalidade
social da sua família, do seu bairro, da sua educação, são-lhe concedidas
facilidades na mudança de bairro, de profissão e até de parceiro de
casamento, pertencente a um grupo social superior.
Pode, inclusivamente, apresentar-se a exames na universidade – devido à
sua imensa dificuldade, a prova mais difícil e mais temida do jovem
americano.
Quem nasce branco, de origem ancestral anglo-saxónica, possui
naturalmente privilégios – certas funções profissionais, certas áreas
geográficas, certos restaurantes e lugares públicos… – face aos que nascem
pretos, mulatos ou de origem oriental.
Os pensadores americanos alegam que a diferença entre o seu regime e o
neo-europeu reside apenas na diferença entre o número total de cidadãos do
Império – 1000 milhões de habitantes – e o número total de habitantes da
Nova Europa, 100 milhões.
Segundo as suas teorias e cálculos, é impossível a um território habitado
por tal número de habitantes a satisfação da totalidade dos desejos destes.
Esta pretensão só é possível, de novo segundo os seus cálculos, numa
população até 400 milhões de membros para um espaço geográfico do
tamanho do Império.
Com um excesso populacional, à democracia de base deve juntar-se uma
vertente tecnocrática, uma ditadura de regulamentação e um
espartilhamento entre grupos sociais e rácicos, de modo a manter-se a paz
social.
A partir dos 400 milhões, a sociedade só seria controlável com a
imposição rígida de regulação que a todos obrigue, não permitindo nem a
liberdade individual nem a mobilidade social.
A «Tecnocracia Democrática», que mais parece uma «Ditadura
Tecnocrática», seria o preço a pagar pela exagerada procriação humana ao
longo dos séculos XXI e XXII.
O aumento populacional havido na América nestes dois séculos,
conduzindo ao resultado actual de 1000 milhões de habitantes, não consente
a garantia da liberdade individual sob pena de originar um caos social,
totalmente incontrolável, que, a prazo, poderia desabar na organização
política da Velha Europa, mas permite, segundo os técnicos administrativos
do Estado, sob contenção social e rígidas regulamentações, um regime de
liberdade geral, colectiva, no qual nenhum cidadão que o mereça deixa de
ter direito ao que ambiciona.
Neste sentido, em vez de permitir o nascimento de um filho por casal,
como o faz a Grande Ásia, com excepção do território da Índia, em que os
casais podem – por enquanto – atingir três filhos, o Império Americano
permite a liberdade de procriação mas restringe a mobilidade social às
crianças, criando vastos guetos sociais e rácicos, base de mão-de-obra
barata.
O estatuto económico, social e cultural do adulto será sempre o seu
estatuto de nascimento, a não ser que prove merecer um superior e, neste
caso, serão os serviços técnicos do Estado a facilitar a sua ascensão,
estimulando-o no trabalho, recompensando-o, incentivando-o, abrindo-lhe
as portas de bairros e empresas de nível superior.
Quem o não merecer não é tratado de pior forma – pela sua passividade,
tem o que merece, permanecendo no mesmo estádio social.
Feito o cômputo geral, o branco será sempre patrão ou técnico e o preto
sempre trabalhador, vendo a sua participação política limitar-se à
comunidade onde nasceu e, a partir daqui, por um esforço considerável de
estudo e inteligência natural, poderá atingir uma qualificação técnica,
mudando imediatamente de bairro e de trabalho.
No entanto, os filósofos americanos orgulham-se de terem conseguido a
proeza de conservar os fundamentos mínimos da democracia – progresso,
bem-estar, realização pessoal –, através de uma forma ditatorial de carácter
não político, mas técnico: uma democracia técnica, ou tecnocrática, cujas
decisões regulamentares, não passíveis de discussão pública, se estatuem
como ditatoriais.
Ou uma ditadura democrática, ou uma democracia ditatorial.
Neste sentido, os americanos consideram-se mais «humanos» do que os
neo-europeus, mais plurais, embora menos felizes, já que a vinculação aos
itens regulamentares os forçam, não raro, a agir contra a sua vontade,
entendendo esta como a súmula referencial da totalidade dos desejos
individuais.
Porém, segundo eles, fundados num tal Freud, pensador dos séculos XIX e
XX, o acto de socialização consistiria justamente num acto de recalcamento
das pulsões ou desejos individuais em nome do bem comum e do bem-estar
da comunidade.
Em nome desta filosofia, a Polícia Comunitária tem ordens para prender e
interrogar um suspeito sem culpa formada, e pode e deve fazê-lo ao mais
leve indício de rebelião face à ordem estabelecida.
Isto é, ao mais leve indício de Desvio Comportamental, atestado por um
vizinho, colega ou familiar, o cidadão é de imediato preso e penalizado, e
forçado por técnicos especializados a regressar à normalidade, ainda que, de
facto, nunca se tenha desviado desta.
Assim, a função da polícia é sobretudo preventiva.
Caso um prevaricador ameace cometer um desvio comportamental e um
seu amigo, familiar, vizinho ou colega o não denuncie, este sofre pena
idêntica à do transgressor.
Todos os regulamentos encerram com uma cláusula comum, alertando
para que casos advindos não preceituados serão julgados segundo os casos
já experimentados.
Por isso, nada existe sem regulamento e mesmo a situação mais insólita é
descrita e penalizada a partir de situações prescritas.
Posteriormente, de modo que a lei contemple o maior número de casos
particulares, mesmo aqueles que, de tão exóticos, não se devem repetir,
estabelece-se nova legislação.

Se, para nós, neo-europeus, o princípio filosófico de base, fundador,


reside no prazer da acção ou da actividade – e, portanto, tudo o que cidadão
deseja deve possuir ou realizar, mesmo que apenas idealmente –, para os
americanos o princípio é outro, e muitíssimo diferente, fundado no que
designam por «mérito individual», tudo o que o cidadão deseja deve
conseguir por si próprio e à luz do cumprimento de todos os regulamentos,
vencendo os inúmeros obstáculos de nascimento.
Não é impossível que um afro-americano atinja níveis de realização só
regulamentados para os brancos, mas deve provar que o merece, sendo
melhor, mais competente, mais inteligente do que aqueles com os quais
compete.

A EDUCAÇÃO

Como a escola obrigatória se reduz à transmissão do conteúdo da


regulamentação dos comportamentos às novas gerações, a educação,
inclusive as primeiras letras, pertence por inteiro à família.
O que na Nova Europa designamos por Colégio, inteiramente gratuito, no
Império Americano foi integralmente entregue a associações e empresas
privadas.
Porém, porque as crianças têm de passar parte do dia nas escolas oficiais,
designadas por Escolas de Regulamentação, não existem propriamente
edifícios que alberguem as escolas privadas.
Estas empresas possuem implantes electrónicos que aplicam no neo-
córtex das crianças com a totalidade das matérias de ensino, o mais famoso
dos quais se designa Enciclopedex, um resumo de conhecimentos gerais,
básicos, que permite ao aluno saber onde fica tal e tal cidade, dominar a
matemática até ao nível algébrico, porventura alguma trigonometria, o
conhecimento físico até ao nível da mecânica elementar, a divisão dos
reinos da natureza e um conhecimento mais aprofundado da história do
Império Americano, isto é, desde o início da independência dos estados
americanos do domínio europeu, no século XVIII, até à actualidade.
Os professores, mais do que ensinar, orientam e consolidam na criança a
consulta de verbetes da Enciclopedex, na selecção de imagens e na
capacidade de raciocínio necessários para a compreensão das leis gerais da
natureza e da evolução da história.
A partir dos 12, 13 anos, outros programas informáticos são vendidos e
acoplados aos conhecimentos básicos, como a aprendizagem de uma nova
língua, exercícios especializados de matemática e física, apropriados para a
entrada na universidade, ou conhecimentos mais aprofundados de literatura,
de sociologia, de política e de história.
Existem programas especializados em eloquência e retórica para os que
seguirão profissões relacionadas com a oralidade.
No final, a partir dos 15 anos, o adolescente pode candidatar-se à
universidade, submetendo-se a exames de acesso muito difíceis.
Aqui reside, como explicitam os pensadores americanos, a grande
liberalidade do regime: todos se podem apresentar individualmente, do mais
desfavorecido ao mais rico, do negro ao branco.
Caso o adolescente seja admitido, nunca será excluído devido à sua
origem social ou rácica, existe um regime de bolsas estaduais,
rigorosamente fiscalizadas, que compensam as dificuldades económicas da
frequência de um curso de cerca de cinco anos lectivos.
E a verdade deve ser dita, as universidades do Império Americano são
superiores às da Nova Europa, assentes em implantes neuro-informáticos,
donde saem – saíam – os nossos Sincretistas ou técnicos superiores.
De facto, as suas universidades constituem autênticas concentrações de
debate e de investigação, que aproximaram, em muito, os seus resultados
científicos e tecnológicos dos da Nova Europa.
Em nome da humanidade do homem, como alegam, recusaram a
aplicação do hipercórtex ao cidadão, mas desenvolveram em grau extremo a
robótica, hoje denominada Biótica, criando andróides auxiliares para todas
actividades, bem como uma exploração intensiva de massas de escravos,
comprados em quantidades astronómicas aos Coronéis da América Latina e
aos Mandarins da Grande Ásia que governam a África.
Uma das poucas leis comuns a todo o Império recusa inflexivelmente a
possibilidade de um americano ser escravo.

OS ANDRÓIDES

Tal como a Nova Europa se caracteriza – ou se caracterizou – pela


existência do hipercórtex e do Grande Cérebro Electrónico, o Império
Americano caracteriza-se pela elevada sofisticação tecnológica atingida na
criação de andróides, ao ponto de eu próprio, na recepção a uma delegação
científica americana no Conglomerado perto da antiga cidade de Munique,
no ano de 2260, ter confundido um andróide com uma pessoa humana,
mantendo com ele uma conversa deveras interessante sobre os
descobrimentos ultramarinos realizados pela Península Ibérica nos idos de
1500.
Aos andróides são entregues todas as actividades de rotina, aquelas que
mantêm uma sociedade em funcionamento, em casa, nas ruas, nas
empresas, nos estádios, nos parques e jardins públicos, e todas as profissões
que envolvam um grave risco de periculosidade, como, por exemplo, o
trabalho laboratorial de criação de compostos químicos e bioquímicos de
alta toxicidade, as funções de bombeiro, de explorador de fundo do mar ou
de astronauta, o tratamento de animais perigosos.
Aos escravos é entregue o trabalho intensivo nas minas, nas redes viárias
e ferroviárias, na agricultura transgénica, que ocupa dois terços do terreno
arável do Império.
A diferença entre um andróide e um escravo reside na altíssima diferença
de preço, a fabricação de um andróide custa dez vezes mais do que o preço
de um escravo comprado no mercado internacional legal.
Neste sentido, quando se trata de trabalho intensivo e maciço, as
empresas preferem sempre a compra de escravos, já que a manutenção,
reparação e actualização dos andróides constituem uma valiosa fatia na
contabilidade das empresas.
Seguindo a ordem dos meus rascunhos, posso agora revelar que no
Império Americano a grande maioria dos professores, tanto das Escolas
Regulamentares como das empresas de serviços de conhecimento, são
andróides.
De igual modo, o vastíssimo exército do Império Americano é
constituído, ao nível das patentes baixas, quase integralmente por
andróides, criados em exclusivo para as Forças Armadas, que detêm os
segredos científicos da sua fabricação.
Nós, neo-europeus, recusámos sempre criar seres biomiméticos dos
humanos. Poderíamos tê-lo feito, ao fim e ao cabo um andróide é um
hipercórtex especializado envolvido por um tecido humano metálico e
sintético, desligado, evidentemente, do Grande Cérebro Electrónico.
Os cientistas americanos separam radicalmente o hipercórtex do corpo
humano, implantando-o em manequins ou robots, dando origem aos
andróides, robots-humanos especializados numa única função.
Este conjunto de conhecimentos, outrora designado por Robótica, tem o
nome hoje de Biónica ou Ciência Biónica, isto é, a ciência que reúne
tecidos vivos naturais ou sintéticos e dispositivos informáticos, tendo como
resultado a imitação em perfeição do corpo humano.
Equipados com nano-sensores especializadíssimos, são capazes de
reconhecer o conjunto de objectos e instrumentos necessários às suas
funções.
Os andróides americanos são, ao fim e ao cabo, máquinas biomiméticas
que fazem, e melhor, o que o homem faria em idênticas situações.
Por exemplo, em vez de se contratar um professor para a edução dos
filhos, existem andróides especializados nessa função, que acompanham,
protegem e ensinam as crianças ao longo de anos, necessitando apenas de,
uma vez por ano, passarem uma semana na oficina de manutenção, para que
os seus ficheiros sejam actualizados.
Neste sentido, as famílias americanas estão libertas de todos os serviços
domésticos, alimentação, limpeza, manutenção, cada família possui não
menos de três andróides especializados para todos os serviços que não
impliquem criação ou invenção.
Aliás, as maiores empresas internacionais trabalham na exportação de
andróides para a Grande Ásia e para os Coronéis sul-americanos,
importando, em troca, massas volumosas de escravos na proporção de um
andróide para 20 escravos humanos.
Serem servidos por andróides domésticos americanos constitui o mais
sofisticado costume entre os Mandarins.
Têm assim, os americanos, uma vida calma, regrada e excelente, votada
exclusivamente à sua profissão.
Ao contrário de nós, nunca transformaram os bens alimentícios em pó,
aspirando-o.
Fazem da refeição em conjunto – uma única refeição por dia, a meio da
tarde, que designam por «a refeição» – uma festa de família, um verdadeiro
ritual de alegria e convívio, em que todos os assuntos familiares são
debatidos e todos os andróides da família participam, alguns deles, os mais
antigos, com um século de existência.
Estes, herança de avós para pais e netos, recebem um nome, é-lhes cedido
um quarto particular e o dia do seu presumível aniversário é festejado
ruidosa e alegremente como o de qualquer outro membro da família.
Os americanos são, quanto aos costumes, imensamente conservadores,
tendo mantido intactas as instituições tradicionais.
Nascimentos, aniversários, refeições, entradas na universidade, primeiro
emprego, heranças, casas, morte e funeral, festas nacionais, cerimónias
litúrgicas religiosas, tudo se processa hoje como há duzentos anos.
A forma de família, por exemplo, permanece idêntica desde a fundação
da antiga América, nos finais do século XVIII, há quinhentos anos: um pai,
uma mãe e vários filhos, a família monogâmica abençoada por Deus,
palavra que escrevem sempre com maiúscula.
Tal como o seu nome e o pronome pessoal individual.
Verdadeiramente, tanto o pai como a mãe têm amantes fora da família,
mas não se fala disso, nem mesmo os andróides familiares que, sabendo-o,
possuem mecanismos de inibição face a tudo o que possa perturbar o
sagrado ambiente doméstico, isto é, sobre tudo o que possa constituir
elemento de divisão no seio da família.
Aliás, as mais populares empresas americanas são justamente aquelas que
alugam andróides peritos nas mais diversas formas de satisfação sexual.
Diferentemente da Nova Europa, que eliminou as viaturas terrestres e
incrementou ruas e estradas rolantes, os americanos eliminaram as ruas e as
estradas terrestres, transformando-as em parques, jardins urbanos ou em
novas urbanizações de vivendas e prédios e incrementaram os corredores
aéreos, tornando-se o país do mundo onde mais se viaja por via aérea, com
pequenas ou grandes viaturas apropriadas, designadas por naves e navetas,
para todos os percursos e situações.
As garagens de cave ou rés-do-chão transitaram para os telhados, hoje em
forma de terraços.
As antigas auto-estradas, largas e imensamente compridas, do tamanho de
mil a dois mil quilómetros, foram alugadas para plantações de cereais
transgénicos.

Enquanto a Nova Europa, de acordo com o seu espírito sumamente


pacifista, dispensou forças armadas, o Império Americano incrementou as
suas a um nível desmesurado, assentes em centenas de milhares de
andróides militares.
Porventura com razão.
Os seus estrategas máximos estão convencidos da existência futura de
uma guerra mundial cujos principais contendores serão eles próprios e a
Grande Ásia.
Consideram esta um vírus mortal de propagação lenta mas continuada,
destinado a dominar o mundo.
A reacção dos americanos à invasão do território da Europa pelos
Mandarins de Pequim e Xangai consistiu numa passiva não-interferência,
como se há muito aguardassem este desfecho e como se, para eles, esta
invasão se inserisse num plano asiático há longos anos delineado.
Presumem, portanto, ter sido a invasão da Europa um passo mais na
escala de domínio mundial prognosticada secretamente pelo Conselho
Superior de Mandarins.
Neste sentido, segundo um boato internacional que correu há cerca de 50
anos, propalado por um espião americano de origem manchu, os
americanos preparam-se para se constituírem, dentro de 150 a 200 anos,
como única região livre do mundo e única potência capaz de vencer a
Grande Ásia, inflamando o mundo de liberdade, como dizem, resgatando-o
das garras das ditaduras, também como dizem.
A Grande Ásia teria o plano de domínio do mundo no prazo de um a dois
séculos.
Os americanos levaram este boato muito a sério, alegando possuir provas
ao nível político mais elevado da existência deste plano.
Pequim desmentiu qualquer pretensão a uma hegemonia mundial.
A defesa americana assenta num facto simples e absolutamente
inexorável.
Se a Grande Ásia atacar mortalmente o Império Americano, este fará
implodir as principais cidades do país, da Cidade do México a Nova Iorque
e Toronto, ao mesmo tempo que exterminará com armamento hiperatómico
a totalidade do continente asiático, do Bósforo a Tóquio.
Com efeito, as autoridades americanas espalharam silos de mísseis
atómicos de 300 em 300 quilómetros ao longo do seu território e outros
silos de mísseis hiperatómicos apontados para a Ásia.
Não haverá, assim, possibilidade de salvação para nenhuma das duas
civilizações.
O orgulho americano não permite que o seu Império seja destruído por
potência alheia.
No momento derradeiro, farão explodir as suas principais cidades,
refugiando-se em vastíssimos bunkers criados para o efeito, enquanto vão
exterminando a totalidade do território asiático.
A sobrevivência será dura, mas desde já planificada.
De 1000 milhões de habitantes, passarão a 200 milhões, mas
sobreviverão.
E sobreviverão com a memória científica resguardada nos bunkers.
Rapidamente se imporão de novo.
Os Mandarins conhecem em perfeição estes planos, sabem-no tão bem
como os membros do Conselho Técnico Superior Nacional Americano.
Caso os chineses conseguissem suprimir ou desligar ou fazer explodir a
Bolha de Segurança Hiperatómica americana, como fizeram com a nossa, a
resposta dos americanos não seria a resignação, como aconteceu connosco,
mas o confronto imediato e directo, porventura a morte da civilização
humana, sobretudo a sua parte mais esclarecida, toda ela habitando o
hemisfério norte, com excepção dos brancos racistas que dominam a
Austrália e a Nova Zelândia através de um regime político de terror e
segregação racial da população javanesa e malaia.
Porém, nestes dois países independentes, o progresso tecnológico tem
sido mínimo, são países sujeitos passivos da história, importando
praticamente todos os objectos de conforto e qualidade de vida do Império
Americano, em troca de ouro abundante descoberto nos seus territórios.
A Europa, toda a Europa, seria arrasada pelo impacto das poeiras
radioactivas, suspensas na atmosfera durante cerca de 3000 anos, destruindo
todas as formas de vida até ao Norte de África, na zona do Atlas.
A espécie humana ficaria restringida aos escravocratas e aos escravos da
América do Sul e de África, zonas governadas por ditadores sanguinários.
Seria como se a humanidade regressasse aos primitivos dias da espécie,
agora com um ambiente climático poderosamente adverso.

Devo confessar que, a existir uma filosofia nova nos americanos, seria a
do higienismo.
São o povo mais limpo da terra, construíram andróides domésticos
especializados em detecção de bactérias, uma espécie de elite entre os
robots, que, após o trabalho dos restantes, percorrem os espaços em busca
de resíduos invisíveis, descobrindo e assinalando vírus e bactérias,
conhecidos e incógnitos.
Nas naves, no final de cada viagem, não entram novos passageiros sem
que o andróide vistorie todos os espaços com os seus portentosos sensores
químicos, pequeníssimos aparelhos que funcionam igualmente como um
mini mas potente laboratório de identificação de vírus e bactérias,
estudando-os e eliminando-os, se for caso disso.
Na maior parte das vezes, limitam-se a isolá-los para futuro estudo.
Em todos os locais públicos e privados, a acção destes andróides tem
prioridade sobre todas as restantes actividades, e mais de uma vez
importantes assembleias comerciais e técnicas foram interrompidas porque
um andróide assinalou nos seus sensores o aparecimento de uma simples
mancha desconhecida de sujidade, podendo, segundo a regulamentação,
desenvolver algum tipo de toxicidade ou contágio.
Uma simples gripe, propiciada por uma mudança brusca de temperatura,
pode lançar o pânico no interior de uma família ou de uma empresa,
gerando o isolamento absoluto do doente, acompanhado apenas por robots
até ao desaparecimento do que consideram ser um perigoso foco de
infecção.
Todos os lares e todos os locais de trabalho possuem andróides peritos em
medicina preventiva, que inspeccionam regularmente os sintomas
fisiológicos dos seres humanos, integrando-os em tabelas de índices de
salubridade pública, adequadas ao género e à idade.
O desvio de qualquer um destes índices tem como resultado imediato o
internamento em Hospitais de Manutenção até à reposição da normalidade
física e biológica.
Neste sentido, seja pela alimentação, seja pelos hábitos diários, todos os
produtos, actividades ou bens que possam molestar minimamente a saúde
humana são radicalmente proibidos, substituídos por outros que optimizam
o desempenho, fisiológico e neurológico.
Com o auxílio da medicina regenerativa semelhante à nossa, uma política
técnica acertada de transplantes e o aperfeiçoamento informático do
fenótipo do nascituro, o cidadão médio, cuja família paga do seu bolso
todas as despesas relacionadas com uma vida saudável, ou por ela paga a
empresa para que trabalha, vive até cerca dos 120 anos, 10 anos menos do
que pode viver um neo-europeu.
Diferença tão substancial reside sobretudo na aplicação do hipercórtex ao
cérebro humano no caso do neo-europeu, subtraindo-lhe a corrosão dos
sentimentos e das emoções na vida do dia-a-dia, autêntica bomba de
desgaste acelerador do ritmo dos diversíssimos órgãos do corpo.
Por mais racionais que os americanos tentem ser, os sistemas periféricos
do cérebro influenciam fortemente as suas condutas, antes de mais através
da dupla obsessão, neles extremamente peculiar, da higiene e da profilaxia e
da necessidade psicológica sentida de um desenvolvimento máximo da
auto-estima atingido por via do nível de realização pessoal e profissional.
Como vimos, cada americano tem de a conseguir por si próprio, partindo
do patamar legado pelos seus pais.
É, sem dúvida, do ponto de vista individual, uma vida difícil, que lhes
consome as emoções, subtraindo-lhes em média dez anos de vida.
Para que a saúde não decline, a maioria das famílias investe mais no que
possa proporcionar uma vida saudável do que na educação dos filhos.
Neste sentido, a frequência da universidade tornou-se um bem apenas
atingido por uma minoria, da qual saem na prática os técnicos que
governam a comunidade, os estados federais e até o Império.
O saber especializado encontra-se à disposição de todos através de
implantes neurológicos, mas o saber especializadíssimo é apanágio das
universidades.
A universidade continua a guardar, assim, o alfobre da mais alta elite
americana.
III

O CERCO AÉREO

Encontramo-nos em estado de alerta.


Uma estação orbital imobilizou-se a menos de 300 metros de altura, do
lado esquerdo da Montanha, donde pequenas naves-robots descem à
superfície da ilha, em locais afastados da nossa Base.
As naves americanas tornaram-se insistentes.
Não disfarçam a sua presença, descem a níveis assustadoramente baixos e
perfeitamente visíveis.
Percebemos que captam imagens da nossa pequena comunidade,
estudam-nos, investigam-nos cuidadosamente.
Desconhecemos porquê.
Percebemos que fazem experiências, estudando o subsolo.
A conselho meu, deslocámo-nos a um pequeno planalto tirado
directamente da vertical da estação-maior, refúgio das navetas.
Fizemos o que devíamos fazer, não nos escondemos, desfraldámos uma
tira branca de pano metálico com o dizer «Bem-Vindos».
Uma atitude de paz.
Jorge Tomás deslocou-se a São Miguel de propósito, a recolher
informações.
Regressou sem nada de útil.
Ninguém sabe de nada, todos acham estranha a concentração de naves
sobre o Pico.
Porém, ninguém contesta.
Estão em território americano, sua casa.
Todos sabem que o Conselho Superior Técnico Nacional em nada se
preocupa com o arquipélago, com uma população e uma riqueza
insignificantes, praticamente de sobrevivência.
Aceitaram os Açores como parte integrante do Império Americano devido
a pressões exercidas pelos descendentes dos antigos imigrantes, mas desde
o princípio que lavam daí as mãos.
Só se intrometeriam em caso de invasão por forças orientais, não por
ocupação de parte de uma ilha por um pequeno grupo, que, ora pela roupa,
ora pela tecnologia, sabem ser de europeus, e, pela ordenação da Base,
confirmam serem neo-europeus fugidos do extermínio.
Fazemos a nossa vida, mas o medo não deixa de aflorar.
Nota-se pela quantidade inusitada de vezes que os meus concidadãos
olham para o céu, temendo que deste sobrevenha um ataque inesperado.
As forças desfalecem-me.
Raramente saio de casa.
Uma das professoras destaca duas ou três crianças para me fazerem
companhia e me ajudarem nos arranjos domésticos.
O primogénito de Jorge Tomás também frequenta assiduamente a minha
casa, interessando-se pelas histórias que narro.
Gostam de ouvir as minhas histórias sobre a Nova Europa, terra de seus
pais e seus antepassados e nossa pátria eterna.
Reúno crianças em minha casa e narro-lhes inúmeras histórias, que,
percebo, funcionam na sua mente como os antigos mitos e as antigas
religiões para os povos da Pré-História.
Narro-lhes como a vida era bela, farta, boa, suave, serena e harmoniosa,
sem doenças, sem carências, animada de uma vasta sabedoria científica,
controlada pelo Grande Cérebro Electrónico e orientada pelo Conselho dos
Pantocratas.
Falo-lhes dos antigos Colégios, torcem o nariz quando lhes ensino que as
crianças, fabricadas química e biologicamente nos Criatórios, não tinham
mãe nem pai, uma placenta sintética substituía o ventre materno e biberões
de leite artificial o seio materno.
Não compreendem, vinculadas que estão ao colo e ao leite da mãe.
Não imaginam ser possível nascer em laboratório e ser alimentado com
leite químico.
Riem-se uns para os outros, como se me acusassem de senilidade.
Percebo que me respeitam e se silenciam.
Envio-os para as mães naturais, que confirmam as minhas palavras e, em
vez de se espantarem e se admirarem com o nível tecnológico que os pais
tinham atingido na Nova Europa, sentem um calafrio de horror imaginando
uma sociedade sem pais nem mães.
Insisto nas virtudes da ausência de família natural, empenho-me em
esclarecer os seus benefícios, e as crianças, apegadas ternamente às mães,
espalham pela sala um silêncio aterrador, profundo, que me sensibiliza.
Surpreendem-se quando me aponto, a mim, como exemplo verdadeiro das
minhas palavras, o meu corpo nascido artificialmente, alimentado
exclusivamente a pó vaporizado, os meus órgãos regenerados a partir dos
60 anos; tocam-me com um fervor religioso na zona do crânio que aloja o
hipercórtex desligado, presos entre a atracção e o medo, afagam-me a parte
superior do crânio, igual à de seus pais, e, percebendo não ser natural, por
eles próprios não a possuírem, começam lentamente a aceitar como
verdadeiras as minhas palavras sobre a civilização donde procedem.
Preferem as suas cabeças naturais e emotivas, dão elevado valor às suas
pequenas brincadeiras cruéis, separando, contra as palavras dos adultos, os
companheiros entre amigos e colegas.
Maravilham-se quando lhes conto que na Nova Europa desejar era poder,
mas os mais velhos – vejo perfeitamente – dão um desconto às minhas
palavras, como se dissessem que sim, seria uma sociedade com menos
carências de bens e instrumentos, mas não aceitam que tudo estivesse
resolvido a contento dos desejos individuais.
É difícil, noto, transmitir-lhes a verdade.
Imperfeitos, habitando uma sociedade imperfeita, deliciam-se com a
imperfeição, os seus limitados cérebros não admitem a existência de uma
sociedade perfeita.
Mais valor presto hoje ao meu livro, expressão do sábio aviso do
Conselho dos Pantocratas.
Se nem os descendentes directos acreditam na existência da nossa antiga
civilização perfeita, como acreditará nela o homem do longínquo futuro, se
o futuro for, como parece vir a ser, no prazo não muito alongado de 200 a
300 anos, o resultado catastrófico de uma guerra mundial entre o Império
Americano e a Grande Ásia?
Acreditarão na existência de uma sociedade onde não existia trabalho,
este, que se afigura como uma condenação da existência humana?
Só actividades gostosas, múltiplas, que a todos satisfaziam e realizavam?
Tenho fama de ser bom contador de histórias, possuidor de uma vasta
imaginação, as crianças sentem-se felizes quando são escolhidas para
passarem um dia na minha casa, cuidando de mim, lendo-me os sintomas
físicos da degenerescência em aparelhos primitivos encomendados a São
Miguel.
Todas querem passar uma tarde ou uma manhã em minha casa, tive de
refrear o seu ânimo e rogar aos professores que não me mandassem mais de
três ou quatro por dia.
Uma menina, de 12 anos, afeiçoou-se a mim nos últimos tempos, sempre
que pode corre para minha casa e aqui fica o máximo tempo possível.
Trata-me como se tratasse um avô.
Parece querer proteger-me não sei de que perigos.
Em certos dias de cansaço natural ou indisposição física, peço às crianças
que regressem ao Colégio e percebo pela sua cara amarrotada que gostariam
de ficar comigo a totalidade do dia, escutando histórias verdadeiras, que
muitos consideram míticas, fabulosas.
Escuso-me com a escrita do livro, que devo aperfeiçoar com rapidez face
à latente ameaça do Império Americano, mas a verdade é que me canso
facilmente e me desgosto de entender que as minhas palavras autênticas,
genuínas, retratando a realidade tal como ela foi, são por vezes encaradas
como parte de uma história maravilhosa da humanidade, uma espécie de
nova Bíblia ou novo Alcorão.
A menina insiste, quer ficar, diz que me ajuda a escrever o livro, deixo-a
ficar, privilegio-a.
Também me sinto privilegiado por uma criança me preferir a seus pais e
às outras crianças.

A inquietação com a ostensiva vigilância dos americanos faz-me recordar


as pérfidas recordações dos últimos dias vividos na Nova Europa.
A maioria dos Sessenta despreocupou-se das suas actividades, os rumores
têm atravessado as paredes e as famílias.
Ao poente, reclinam-se nas cadeiras ou nas espreguiçadeiras imaginando
um destino idêntico ao que presumem ter acontecido a seus pais.
Nada podemos fazer, e tudo o que fizéssemos poderia revelar-se suspeito,
como se escondêssemos ou abrigássemos uma arma secreta e letal.
Transmito a mensagem de que somos inocentes de tudo e assim espero
que os americanos nos vejam, uma comunidade inocente, que tenta
sobreviver e progredir todos os dias, incapaz de constituir uma ameaça seja
para quem for.
Jorge Tomás regressou a Ponta Delgada, apurando o ouvido e o olhar.
Levou o seu primogénito.
Percebe-se que o industria nos pequenos negócios.
Jorge Tomás de nada soube, apenas que os americanos fazem
experiências no subsolo das quatro ilhas, mas nada transborda sobre o
objecto dessas experiências.
Eu desconfiei.
Da última vez que Jorge Tomás fora a Ponta Delgada levara a Joana e os
filhos, com a alegação de que um dos sogros estava a morrer, mas regressou
apenas com o primogénito.
Interpelei-o, perguntando-lhe porque regressara apenas com o
primogénito.
Respondeu-me que cada um sabe de si e Deus de todos.
Disse-lhe que não acreditava num deus invisível.
Deus ampararia a família de Jorge Tomás, mas nós não tínhamos um deus
que nos amparasse.
Roguei-lhe que se soubesse mais do que dissera mo confessasse, a mim,
individualmente.
Nada mais sabia, garantiu, apenas achava que devia proteger a Joana e os
filhos; juntando-os aos açorianos de São Miguel.
Se fosse preciso, dali poderia viajar-se rapidamente para território
americano, no Pico não.
Não sabia se havia de acreditar.
Conhecia suficientemente Jorge Tomás para perceber a sua preocupação
com a família.
Jorge Tomás agradeceu-me ter acolhido o seu primogénito, agora que,
com o temor dos americanos, o Colégio funcionava irregularmente.
O adolescente desejava ouvir as histórias lendárias da Nova Europa.
Protestei, não são lendárias.
Pois, disse Jorge Tomás.
Foi assim que, inesperadamente, passei a ter a companhia quase
permanente de um adolescente, deveria ter 15 anos, já que nascera meses
antes da nossa chegada à ilha, e de uma menina de 12 anos, em plena
puberdade.
Ambos práticos, ambos meigos, ambos respeitadores, ambos solícitos.

Numa das Assembleias realizadas ao poente, um grupo alvitrou que


comunicássemos directamente com a estação americana através da
Worldweb.
Talvez nos respondessem.
A proposta foi aceite.
Durante uma semana, enviámos mensagens pacíficas e conciliadoras para
todos os endereços electrónicos oficiais do Império.
Não obtivemos resposta, nem sequer a acusação de recepção.
No final dessa semana, carregada de expectativa, falei na Assembleia.
Mal conseguia andar, sentava-me apenas em almofadões, que me
suavizavam a permanente dor nos ossos.
Falei reclinado, com voz inaudível, aumentada informaticamente.
Exaltei a esperança – era o que devia fazer.
Não devia confirmar e ampliar o sentimento de desespero que se
impregnava lentamente na mente de todos.
Recordei a têmpera digna da personalidade dos nossos maiores, citei
palavras de antigos membros do Conselho dos Pantocratas, recordei que
tínhamos uma missão a cumprir, prolongar o espírito da Nova Europa
prestando-lhe um corpo novo, sem dúvida improvisado nestes primeiros
anos, que poderiam durar quase dois séculos, como fôramos avisados,
depois, sim, os nossos tetranetos sobre outra terra, sob outro clima,
construiriam, felizes, uma Novíssima Europa.
Agora, só interessava sobreviver o melhor possível.
Para os americanos, seríamos apenas – e apenas – um grupo de refugiados
que intentava sobreviver.
As crianças, habituadas a ouvir-me, gostaram, bateram palmas no final da
minha alocução, o que soou estranho.
Via-lhes os olhos sorridentes, luzidios.
Os adultos, atormentados pelas recordações nefastas dos últimos tempos
vividos na Europa, lançaram-me um sorriso amargo, de quem ouve com
agrado e até agradece palavras de tão sensata esperança.
Percebiam que eu não podia falar de outro modo, mas não atendiam como
verdadeiras as minhas palavras.
Percebi, eu próprio, que os braços dos Sessenta se suspendiam inactivos
devido a inúmeras dúvidas sobre o destino da Base, sobretudo das quase
600 crianças a que todos, como pais e mães, se tinham sentimentalmente
apegado chamando-lhes filhos.
Porém, mais do que a protecção maternal ou paternal dedicada aos filhos,
percebi que o desânimo, o desalento, o esmorecimento, a falta de esperança,
que de certo modo roçava o desespero, eram sentimentos gerais por parte da
geração mais velha, uma espécie de comoção colectiva que a todos,
inclusive a mim, perturbava, direccionada sobretudo para a protecção e
segurança dos mais novos.
Em momento de descontrolo emotivo, algumas vozes recriminaram o
Conselho dos Pantocratas por não nos ter escondido do mundo de um modo
mais eficiente, éramos e estávamos excessivamente débeis para que a nossa
presença devesse ser sentida.
Com as minhas frágeis forças, defendi o Conselho dos Pantocratas,
tínhamos vindo para uma ilha deserta, perigosamente vulcânica, relíquia de
antigos cataclismos, não era decerto um sítio convidativo para viver.
Algo de inesperado teria acontecido para nos lançar sob a alçada do olho
americano, dando-nos assim tanta importância, nós, pouco mais de meio
milhar de pessoas insignificantes, fazendo a sua rotina insignificante numa
ilha quase perdida nos mapas.
Que teria acontecido?
Porém, a indignação contra a decisão do Conselho dos Pantocratas foi
subindo de tom. Alguns de nós, inclusive eu, indignaram-se contra os
indignados.
Falta de respeito por quem sobre nós sempre vigiou e hoje se encontra
morto ou escravizado, falta de sentido das proporções, isto é, de sensatez.
Entre os indignados, que não eu, propôs-se a aplicação de Multas
Comportamentais a quem ousasse criticar o antigo Conselho.
Não era hora de recriminações, muito menos de castigos éticos, sim de
união, unidade que nascia da pluralidade, não nos devíamos esquecer, nunca
abandonando a nossa finalidade colectiva: sobreviver, criando uma nova
sociedade em tudo idêntica à antiga.
A INSENSATEZ

A amígdala cerebral que comanda as nossas emoções pulsava ao rubro.


As minhas palavras, em vez de se acompanharem do condão do
apaziguamento, contribuíram para a exaltação dos sentimentos da ira e da
raiva dos recalcitrantes.
Na Assembleia seguinte, um deles, ex-Sincretista, actualmente um dos
criadores e controladores do sistema informático, alvitrou raivosamente, de
olhos pulados e narinas arfantes, as comissuras dos lábios injectadas de
saliva, como uma baba esbranquiçada, que devíamos fretar um barco e fugir
para São Miguel, dispersarmo-nos entre os habitantes dessa ilha.
A táctica seria dispersar para sobreviver.
Devíamos comer carne de vaca, de lebre, de coelho, de galinha, de
cabrito, como os micaelenses, os nossos filhos deviam frequentar as suas
escolas, mimetizando a população nativa, disfarçando-nos no seu seio,
conseguiríamos sobreviver.
Sozinhos, ainda que unidos, seríamos extintos de uma só vez.
Outro, um antigo Cidadão Dourado, aventou a possibilidade de a
comunidade inteira se oferecer para partir para a América, tornando-se
membro do Império.
Alegou que nos encontrávamos clandestinamente em território do
Império, logo – reafirmou com emoção –, se nos voluntariássemos para
partir, talvez o Império nos aceitasse sem problemas.
O ex-Sincretista, aproveitando esta intervenção, reafirmou a necessidade
de nos separarmos, poderíamos ir para a América, mas para territórios
diferentes, com profissões diferentes.
Só assim sobreviveríamos.
No Pico, juntos, seríamos sempre um alvo fácil.
Usaríamos o conhecimento científico americano para queimarmos etapas
e, assim, unidos pela Worldweb, talvez atingíssemos mais rapidamente e
com menos perigo o estado de evolução destinado pelo Conselho dos
Pantocratas para daqui a 200 anos.
De qualquer modo, disse o ex-Cidadão Dourado, ficar no Pico é não
passar da cepa torta.
Foi um poente muito conturbado.
Informado, senti-me na obrigação de sair de casa, fui levado para a
Assembleia deitado numa maca.
Não tinha força para me reclinar, muito menos para me levantar, falei
deitado, disse uma só palavra, mas fundamental: «União.»
Pedi para que outros a repetissem.
Assim ia crescendo uma toada uníssona: «União. União. União.»
A Assembleia ficou dividida entre o apego à união e a disseminação por
São Miguel ou pelo território do Império Americano.
Alguns solicitaram ruidosamente uma votação.
Intervim de novo, tentando serenar os ânimos.
Pedi para não se votar, o voto estaria ferido pela emoção parcial, pela
raiva, o furor.
A exaltação contaminaria o voto.
Possivelmente, dias depois, mais serena, a Assembleia arrepender-se-ia
do sentido do voto anterior, alguns considerá-lo-iam criminoso.
Só através do debate tranquilo, da argumentação racional, consciente e
lúcida, poderíamos avançar unidos, plurais mas unidos.
Não valia a pena fugir – disse.
A Nova Europa nascera contra a falsa democracia do império do voto por
massas não esclarecidas, em cujo cérebro não reinava a verdade, mas a
opinião superficial, parcial e interesseira.
O voto, nestas circunstâncias, mais se identificava com a demagogia do
que com a democracia, reafirmei com toda a minha autoridade, que, por ser
muita – devo dizê-lo sem imodéstia –, travou a votação daquela proposta
insensata da disseminação dos neo-europeus entre os íncolas de São Miguel
ou da América.
Seríamos espiados pelas naves americanas, de tudo saberiam.
Fragilizados moralmente, atrasados cientificamente, muito debilitados
tecnologicamente, a pulverização das nossas famílias e a disseminação de
toda a nossa população pela ilha de São Miguel ou pelo território do
Império acarretariam o altíssimo risco de uma lenta mas crescente
integração.
Seria um verdadeiro suicídio.
E a população, acolher-nos-ia?
Teríamos de seguir o exemplo do povo judeu, expliquei, que atravessou
dois mil anos de história da Europa sem se integrar nas comunidades
cristãs, que o perseguiam, por vezes o assassinavam, até conseguir o seu
estado independente.
A Assembleia aceitou.
Não houve votação, mas sentimo-nos divididos, tão divididos como
nunca tínhamos estado.
Cada adulto regressou a casa remordido pela inquietação e pela dúvida, se
não mesmo pelo tormento de um futuro que muitos presumiam vazio, vazio
de novo.
Os braços caíam desmusculados, inertes.
As mulheres pouco coziam a farinha de trigo para o pão.
Apanhavam as abóboras e assavam-nas, coziam-nas, fritavam-nas em
fatias como panados, faziam sopa de abóbora – só, para todos comerem.
Os homens não se queixavam.
Tanto lhes fazia.
Pressentiam os dias sem fim e as noites mais escuras.
O Colégio fechara por desinteresse dos pais.
Brincavam com os filhos por desenfado, convidados por estes, ignorantes
do perigo.
As famílias isolavam-se, partiam para o interior, onde germinava o
dentabrum, uma raiz esverdácea, que, bebida como chá, serenava o
espírito.
Dela faziam pão ou, com açúcar, um doce, com que enchiam a boca dos
filhos, deitando-os a dormir dia e noite.
Relaxavam-se no vestir.
Se até agora usavam camisa e calça branca, por vezes um colete para
tapar o peito e as costas do frio da noite, eis que se destemperaram nos
costumes, a roupa branca era usada suja, sem lavagem.
Com o vento marítimo e os saltitotes das cabras de Jorge Tomás, os
antigos muros dos currais das vinhas, de pedra forte e preta, reconstruídos
pela comunidade nos anos anteriores, foram-se derruindo e ninguém os
recompunha porque futuro parecia não haver.
O terreno limpo em torno dos maroiços ficou empedrado e selvagem, e
assim se oferecia à vista de todos, permanentemente feio e sujo.
Em Setembro, não se fez a vindima pela primeira vez e os bacelos
criaram folhas e ramos apodrecidos, secos, e lá permaneceram, silvando ao
vento, gerando uma uva mijona, sombreando as lajes de basalto.
Numa das Assembleias, alguém alvitrou que lançássemos aviso para um
navio, um paquete, desses que sulcavam o Mar Americano transportando
cargas de escravos africanos para o trabalho nas plantações americanas, do
Sul ou do Norte.
Partíssemos um pouco à aventura, em levas sucessivas, tentando lobrigar
uma ilha desconhecida desabitada, na América Central, e várias havia.
Loucos, responderam outros, que não se viam tão atemorizados que se
lançassem ao mar com quase seiscentas crianças, viajando ao sabor dos
ímpetos dos mestres negreiros.
Loucos, diziam, gritavam, loucos, loucos.
Gerara-se o pânico, as palavras e as acções haviam-se descontrolado.
Uma única intenção: a sobrevivência a todo o custo.
Ninguém acreditava que os americanos não viessem pedir conta da nossa
estadia na ilha e, em função, nos forçassem a sair ou, mesmo, nos levassem
à força para o Império, arregimentados como força de trabalho.
Éramos brancos e finos na educação, não serviríamos como escravos.
Integrar-nos-iam nos batalhões de brancos que serviam o Império como
capatazes de escravos sul-americanos, orientais ou negros.
As cerca de seis centenas de crianças poderiam servir como isco para as
suas instituições, vendidas a casais que desejavam ser pais sem passarem
pelas dores do parto ou pelas preocupações de cuidarem de um bebé.
No Império Americano havia mercado para tudo e a venda e transferência
de crianças para novos pais adoptivos fazia parte das regras inabaláveis da
lotaria da compra e venda.
A família beneficiada trataria, por sua vez, de beneficiar as instituições ou
empresas, oferecendo uma casa nova ou a matrícula numa universidade ao
filho do transaccionador.
Numa Assembleia, alguém perguntara como nos defenderíamos se as
naves americanas nos atacassem.
Em tempos normais, a pergunta seria escusada.
Não nos defenderíamos, não possuíamos armas, não as queríamos
possuir, nunca as possuiríamos.
O mesmo inquiridor detinha uma solução: poderíamos liquefazer e
vaporizar raiz de dentabrum e aspergi-la entre os militares que descessem
das naves.
Pedido o meu conselho, fui impositivo: não, não, não, antes morrer do
que renegar os nossos princípios.
Os princípios são eternos, os homens provisórios.
A situação de profunda incerteza tirou força à vida comunitária.
As actividades, distribuídas pelos três Coordenadores de acordo com os
desejos individuais e as necessidades da comunidade, foram
substancialmente negligenciadas.
No hospital, houve pela primeira vez carência de medicamentos
confeccionados no nosso laboratório e acumulação de toalhas e lençóis
manchados de sangue, a merecer uma verdadeira Multa Comportamental.
Porém, a coordenadora da enfermaria sentia-se excessivamente
fragilizada para chamar a atenção das companheiras encarregadas da
limpeza de roupas e fazendas.
Foi chamada à atenção, desculpou-se, protestou, defendeu-se.
Houve desavença.
No fim, todos se compreenderam incapazes de atitudes rígidas até à
resolução do «problema»: o estacionamento das naves e estações
americanas sobre as nossas cabeças.
Era assim, eufemisticamente, que designávamos a acção de espionagem
americana: o «problema», e ninguém encontrava solução para ele.
Não bastava decompô-lo em elementos simples para o solucionar.
Não possuíamos navetas para subir até às suas naves e as expedições
americanas no subsolo da ilha eram efectuadas por andróides especializados
em amostras geológicas.
Inserimos mensagens na Worldweb, solicitando um encontro, e Jorge
Tomás, que, receoso, refugiara a Joana e os filhos em Ponta Delgada, partiu
para esta cidade para falar com as autoridades máximas de São Miguel.
Regressou dois dias depois.
Em Ponta Delgada, ninguém sabia de nada – disse.
Mas disse-o de um modo atabalhoado.
Percebi que escondia algo.
Chamei-o.
Jurou-me que mal soubesse algo de definitivo mo comunicaria.
Os micaelenses tinham-lhe enchido os ouvidos com boatos.
Apenas boatos, uns cómicos, referindo a incompetência dos americanos,
outros trágicos, de que se escusava falar.
Todos se espantavam por aquela intromissão inesperada dos americanos
em território açoriano.
Apenas uma coisa havia a fazer: esperar.
Na Assembleia, alegou-se que esperar podia ser excessivamente
contemporizador.
Devíamos tornar patentes os nossos direitos como seres humanos, os
americanos não se assemelhavam aos Mandarins orientais.
Alegaríamos que éramos brancos e tínhamos sido forçados e entrar em
território do Império.
As palavras de Jorge Tomás foram autenticamente assassinas, recordou-
nos sermos verdadeiramente alienígenas nos Açores, totalmente estranhos
ao arquipélago e ao Império, território no qual tínhamos entrado
clandestinamente.
Em consequência, as autoridades militares americanas aclaravam o que se
passava ali de tão estranho, que dos habituais três, quatro ou cinco
habitantes da família Tomás passara a mais de meio milhar numa simples
década e meia.
Mas isso não explicava as intensíssimas explorações no subsolo.
Um mistério, pensei, que gostaria de ver resolvido antes de morrer.

Já só como papas, farinha cozinhada em água, condimentada com sumos


de frutos.
A minha dentadura, outrora tão resistente, foi-se desmoronando dente a
dente, tombados sem dor nem sangue.
Não espero já viver muito tempo.
Presumo que pela ordem das coisas já devia estar morto.
A dor no peito, na zona do coração, instalou-se definitivamente,
solidificou-se, apenas suavizada pela acção de chás relaxantes, que me
forçam o sono quase metade do dia.
Metade do dia durmo, a outra dormito num estado entre o sono e a vigília,
abandonado às minhas ideias, ditando-as à menina a quem me afeiçoei, que
vai escrevinhando as páginas recentes deste livro.
Por isso, peço perdão ao futuro leitor – se o tiver, claro – por este discurso
tão desarticulado, fragmentário, sem uma lógica coerente e explicações
claras.
Escrevo sobre o «problema», as nossas preocupações, sobretudo os
nossos temores, o maior dos quais reside, angustiadamente, na possibilidade
de extinção definitiva da Nova Europa.
Continuamos sem saber se os nossos companheiros europeus foram ou
não extintos, se teriam sido sexualmente cruzados com os asiáticos, como
pretendiam os Mandarins, dando origem a uma subespécie humana
destinada exclusivamente ao trabalho escravo.
Não gostaria de ser o seu cantor, mas não posso deixar de ditar, pela
segunda vez, o que pode ser o último testemunho da nossa civilização.
A sermos duplamente extintos, primeiro na Europa, agora nos Açores,
hesito sobre qual o destino que devo dar ao livro.
Deixá-lo em posse de Jorge Tomás e do seu primogénito – é uma
hipótese.
Outra, destruí-lo.
Também eu desanimo, a dupla extinção torna-se uma pena
excessivamente cruel para uma civilização tão perfeita.
Convenço-me de que os americanos nos levarão como força de trabalho
para um dos seus vastos territórios de plantas comestíveis artificiais,
transgénicas.
Sinto-me inibido de esperança na existência futura de uma humanidade
perfeita, pacífica, harmoniosa e bela.
Hesito em desobedecer às ordens do Conselho.
Sei que, se mandasse destruir o livro, a minha ordem seria interpretada
como expressão de senilidade.
Não me obedeceriam.

Por vezes, notei que a menina e o primogénito de Jorge Tomás se


sentavam no alpendre a falar, isolados, rindo-se, alegres, como se o temor
não tivesse tomado conta das nossas vidas.
Não conseguia ouvir o que diziam.
Tinham-se tornado companheiros inseparáveis, como amigos de há
muito.
A menina tinha pedido autorização aos pais para me fazer companhia
diária, permanente por vezes.
Quando a respiração se me engrossava, tornando-se opressa, aqui dormia,
como prevenção.
Tinha percebido que a afeição que me dedicava era profundamente
sincera, já que se me entregava por completo, lavando-me, preparando-me
as refeições, lendo-me o manuscrito do livro, amparando o meu corpo entre
o interior da casa e o alpendre, mas constituía também um modo útil de se
encontrar a sós com o primogénito de Jorge Tomás.
Primeiro, assustadoramente, depois benevolentemente, constatei que a
menina e o primogénito de Jorge Tomás se davam as mãos.
A verdade é que me afeiçoei excessivamente à menina, demorava-me
longo tempo a fitá-la com o olhar interessado de pai ou de avô.
A menina era loura, recordando-me a cor do cabelo de muitos dos nossos
alunos nos Colégios da Nova Europa, de corpo alto e delgado,
proporcionado, tão magro quanto harmónico, olhos doces, os lábios finos,
graciosos, vermelho-vivos, que, por contraste com o rosto alvo, me atraíam
o olhar, faces serenas, sorriso brando, olhar lento, dentes brancos evidentes.
Buscava-a com o olhar como quem busca um ideal de beleza.
Também era inteligente, não como o primogénito de Jorge Tomás, gozava
de um discernimento analítico, uma atracção pela teoria, uma maior
percepção abstracta, que exercitava enumerando paradoxos e ilustrando-se,
através das minhas palavras, na filosofia dos antigos sábios.
Fazia-me uma boa e bela companhia – tudo o que eu precisava.
Evidenciava-me, pela sua cuidada atenção, escutando as minhas histórias,
pelo seu auxílio na redacção do manuscrito, que eu ainda não era
dispensável, que havia ainda alguma utilidade na minha existência.
Por ela, pela sua devoção, senti que ainda não fora totalmente rejeitado,
muito menos abandonado, habituara-me, nos primeiros dez anos, a
considerar que a comunidade não podia viver sem mim.
Provara-se o contrário nos últimos cinco anos – e ainda bem.
Devia combater o falso e ilusório orgulho de que a comunidade não
subsistiria sem mim.
Revia-me na menina, na sua personalidade suficientemente comedida,
como sempre fora a minha, mas também suficientemente aventureira, já
que, recentemente, não hesitara em abandonar a sua casa para ir viver com
o primogénito de Jorge Tomás, como contarei.
Porém, como eu, parecia preferir a estabilidade à instabilidade.
O FIM DO CERCO

O nosso temor agravou-se com um incêndio inesperado numa das salas


do edifício das Comunicações.
Não se sabe como começou, mas todos presumiram falta de manutenção
nos circuitos electrónicos.
Pela primeira vez assistíamos a um fogo, algo de impensável na Nova
Europa devido à incombustibilidade do plastifex.
Espantámo-nos, boquiabertos, sem sabermos como reagir.
Os depósitos de água estavam longe e desprovidos de mangueiras.
Quando as labaredas circulavam da sala central para as laterais, tolhendo
as travessas do telhado, uma das naves americanas desceu inesperadamente,
aspergindo todo o edifício com uma substância melosa branca, espumosa,
que de imediato se solidificou, cercando o fogo, apagando-o.
Assim como desceu, a nave inesperadamente retornou ao seu lugar,
elevando-se nos céus na vertical, num movimento aparentemente brusco.
Dissemos-lhe adeus, sobretudo as crianças, manifestando assim o nosso
agradecimento.

O incêndio fragilizou-nos, o super-servidor electrónico, que funcionava


como central de comunicações, ficou inutilizado.
Os seus arquivos encontravam-se distribuídos em caixas de plastónio,
mas não tínhamos agora meio único de receber informações da totalidade
do mundo enquanto não recuperássemos o super-servidor.
Com a eclosão do incêndio, percebemos ser a nossa existência vigiada ao
minuto e ao milímetro.
Não sabíamos o que pensar, o que fazer, o que esperar.
Os três Coordenadores multiplicaram-se em reuniões, amaciando a
inquietação colectiva que a todos prendia, mas não podiam negar estarem
eles próprios igualmente presos por uma estranha angústia.
Após o incêndio, vieram as acusações, as culpas, seis dos Sessenta tinham
como actividade principal a manutenção do sistema informático.
Receberam em silêncio as acusações.
Desculparam-se, um lacrimejou, abandonou intempestivamente a
Assembleia, recolheu-se a casa, levando os dois filhos.
A mulher e dois ou três homens que com ele privavam seguiram-no.
Receberam uma pateada de um grupo aninhado na ala esquerda.
Deitado, chegou-me o eco aos meus frágeis ouvidos.
Nada podia fazer.
As mensagens que eu enviava à Assembleia, explicadas por um dos
Coordenadores, não possuíam já a força da minha antiga autoridade.
Não conseguiria incutir bom senso à Assembleia.
Desde o dia do incêndio, animada por um instinto subterrâneo, a divisão
alastrou-se entre as famílias, acusando-se mutuamente dos males que entre
todos emergiam, viravam-se as costas de casa para casa, menos por
exclamação de ódio e mais por desespero fatal, uma espécie de solidão
inconsútil que a todos abraçava invisivelmente, privando-os do sentimento
comunitário de vizinhança, até então solidamente fortalecido.
Entre todos, de manhã e de tarde, o silêncio imperava, interrompido por
palavras de circunstância.
Lentamente, gradualmente, o sentimento de impotência fazia a sua
soberana aparição, penetrando nas consciências.
Nada valia a pena fazer enquanto o «problema» não estivesse resolvido.
Nem sequer pensar.
A Nova Europa fora um sonho, uma utopia, que um rasgão no tempo
concretizara, realizado por homens sábios, cientistas geniais, mas
românticos e sonhadores.
Porém, o século actual e o próximo constituiriam tempos de decadência.
O sonho revelava-se, hoje, um pesadelo.
Não valia a pena tentar repetir a Nova Europa.
Seria melhor aceitar as condições dos americanos, quaisquer que fossem,
mesmo humilhantes, e terminar com tudo, definitivamente.
Partir, por grupos de família, todas em conjunto ou uma de cada vez, os
adultos resguardando as crianças, para as plantações e as estufas de frutos e
legumes transgénicos.
Menos de dez anos de trabalho forçado, depois a morte por exaustão, era
este o tempo de vida de um trabalhador adulto nas plantações.
Finalmente – suspiravam alguns – a morte, o fim de todos os problemas.
Era o que todos sentiam e pensavam, sentados nas dunas, mirando a
inquietude da superfície do mar, negligenciando as actividades
obrigatórias.
Os depósitos no Armazém de Abastecimentos atingiam níveis mínimos
preocupantes, as comunicações estavam praticamente interrompidas desde
o dia do incêndio, as crianças, caprichosas, assustadiças, preferiam ficar em
casa a ir ao Colégio, para alívio dos professores, que se dedicavam quase
em exclusivo aos seus filhos, os Coordenadores sentiam-se impotentes,
incapazes de forçar os pais a fazer o que deviam.
Algumas das crianças, com mais de dez anos, reclamavam o fim do dia
inteiro na escola, a menina a quem me afeiçoara saía de casa e aninhava-se
na minha, escrevendo as palavras que lhe ditava, confeccionando-me as
papas de aveia e um ou outro caldo de legumes.
Agradecia-lhe, beijando-lhe as mãos com a minha boca desdentada e o
meu olhar cristalizado do chá de dentabrum.
Outros, com a mesma idade, decidiram viver na Casa dos Solteiros, como
lhe chamavam, uma cabana no fundo do renque de casas, mas vinham
comer ou abastecer-se a casa dos pais.
Os Coordenadores clamaram na Assembleia que não se viam como
ditadores, tiranos, não podiam obrigar a cumprir as suas funções quem não
se sentisse interiormente obrigado.
Outros justificaram-se, alegando ser inconsequente uma actividade de que
se desconhecia o fim.
Que interessava lavar a roupa hoje, se amanhã os americanos nos
encarcerassem e nos transportassem para o Império?
Se eu estivesse na Assembleia teria clamado que seria mais digno ser
preso com roupa lavada do que com ela suja.
Já sabia a resposta de alguns, sem o hipercórtex o homem estaria
condenado por natureza a brigar, a guerrear, estaria destinado à violência e
ao mal, que constitutivamente cercava o seu coração.
Os três Coordenadores exigiram respeito pelos princípios que eu incutira
na comunidade, fabricaram uma invencionice para serem obedecidos, eu
estaria a morrer, «prestes».
Era verdade que eu estava a morrer, mas era falso que estava a morrer
«prestes».
Eu sentia-me bem, tanto quanto se sente bem alguém cujos órgãos
biológicos se encontram em falência geral, mas falência «lenta», não
«prestes».
Com esta invencionice, conseguiram unir a comunidade, eu seria o
primeiro morto dos Sessenta.
As crianças desconheciam o que era a morte e os adultos respeitavam o
meu último alento, silenciando-se, não se acusando mutuamente das
desgraças que a todos acometiam.
As crianças recordavam o envelhecimento natural das plantas e a morte
dos animais de Jorge Tomás para perceberam o que significava a minha
morte.
Uma longa fila de crianças atravessou o meu quarto ao longo de vários
dias.
A meu lado, sempre a menina.
Meio varado pelo dentabrum, aceitava as suas homenagens, mas custava-
me fazer-me de moribundo, o que não significava que o não fosse e assim
me sentisse, mas pesava-me, sentia-me empurrado para a morte por
conveniência da comunidade.
Porém, a minha adiada morte surtiu o efeito contrário.
As homenagens tinham sido feitas – pensavam –, agora eu que morresse
quando quisesse.
A menina instalou-se definitivamente em minha casa, prodigalizando-me
os seus cuidados.
O primogénito de Jorge Tomás aparecia de madrugada e retirava-se ao
poente.
Quando o fim derradeiro fosse anunciado, regressariam em força novas
homenagens, a minha figura seria transmitida a todos como modelo de um
grande homem antigo da Nova Europa, cujo exemplo seria hoje impossível
de replicar.
Quem sabe se não acabariam por me levantar uma estátua, contrariando
todos os princípios da Grande Ordenação.

Eu estava habituado a ouvir a voz de Jorge Tomás.


Dia sim, dia não, visitava-me, narrava-me histórias tradicionais dos
Açores, via-se que tinha gosto em rememorar tempos anteriores ao seu
nascimento, contadas pelo pai e pelo avô.
Ouvia desinteressadamente, distraía-me escutando histórias de quando o
homem apenas tinha a mão e o cérebro para lutar contra a braveza da pedra
no Pico.
Um dia, Jorge Tomás desapareceu.
Perguntei por ele ao seu primogénito.
Andava pelo outro lado da ilha, não sabia o que o pai fazia.
Uma semana, outra semana, e Jorge Tomás sem aparecer.
Conhecia-o.
Percebi que, fosse qual fosse, o fim se aproximava.
As notícias só podiam ser más para que ele não mas viesse contar.
Pedi para ser estendido numa espreguiçadeira à porta da casa, ao
princípio da manhã e ao fim da tarde, queria expor-me ao sol e ao vento
marítimo com a certeza de que o calor e o frio apressariam o meu
passamento.
Não queria assistir ao fim último da Nova Europa.
Porém, ao contrário do que pensara, os elementos naturais enrijeceram-
me o corpo e avolumaram a minha fragilíssima saúde.
A convivência com a natureza simplificou-me o espírito, desinquietou-
me, tornei-me mais sereno, resignado a aceitar a inevitabilidade do fim.
Tudo o que nascia morria, e tudo o que morria renascia num outro tempo
com novas qualidades, como o sol e a lua, as estações do ano, as gerações
de animais e plantas.
A Nova Europa morreria, mas renasceria um dia, porventura não tão
perfeita.
Decidi não ordenar que o livro fosse destruído após a minha morte, já
que, enternecido pela letra da menina e pela leitura que as outras crianças
faziam, sentia um despudorado orgulho quando lhe chamavam «o nosso
livro».
Não tinha o direito de o fazer desaparecer.
IV

A DESCIDA DOS AMERICANOS

Sem aviso, uma madrugada, desenhando um círculo perfeito, as naves


americanas desceram lentamente, ordenadamente, a não mais de meia
centena de metros de altura.
Sentimo-nos inquietos mas pacificados, finalmente o «problema» decidia-
se.
Fitámos impávidos a lenta descida dos aparelhos cinzentos, que nos
tapavam os raios nascentes do sol.
Assim ficámos, de boca aberta e olhar receoso, mas aliviados.
Durante não menos de uma hora o silêncio reinou, silêncio nosso e das
naves, imobilizadas, suspensas no ar.
Éramos um alvo fácil, seis centenas de corpos por ali dispersos, as
crianças mais pequenas atrás das mães ou dos pais.
Os Coordenadores avisaram os adultos para que tranquilizassem as
crianças, atemorizadas pelo tamanho e pelo metal cinzento das naves, tão
maior e brilhante quanto mais se aproximava do solo.
Ninguém devia entrar em pânico, sinal de cobardia, as crianças não
deviam chorar.
Trouxeram-me apressadamente para o alpendre.
A minha casa era a mais alta.
Tinha esperança de ser o primeiro a receber os americanos, a minha
atitude inicial deveria ser tomada como exemplo.
Recebê-los-ia em paz, com um sorriso cordial.
Infelizmente, não me poderia levantar e abraçar o primeiro americano que
se aproximasse.
Nos últimos dias tinha reflectido muito.
Confiava nos três Coordenadores.
Eles saberiam o que fazer.
Tínhamos de acreditar na boa vontade do Império Americano.
Este não se assemelhava à Grande Ásia.
Quem sabe se nele estaria a nossa salvação, a cedência de laboratórios e
de instrumentos científicos mais avançados que permitissem a criação de
uma imitação do Grande Cérebro Electrónico e do hipercórtex?
Do meu alpendre improvisado, vislumbrei Jorge Tomás no pico de uma
pequena colina, em pé, corpo hirto, pernas erectas.
Balouçava da bandoleira uma espingarda mecânica com que
horrivelmente caçava coelhos selvagens, enchendo-os de chumbo.
O chapéu de abas largas tombava-lhe sobre a testa e escondia-lhe os
olhos.
Jorge Tomás caçava sempre que a raiva o perturbava e o dominava.
Caçava porque se enraivecera.
Pelo seu porte rígido, percebi que sabia o que se ia passar.
Deveria, como nós, sentir-se impotente.
Soubesse o que soubesse, nada poderia fazer.
As sãs pernas musculosas e hirtas não denunciavam acontecimentos
benignos.
O corpo demasiado inflexível e a distância da nossa comunidade
assinalavam reprovação.
Reprovação e impotência.
Recusava-se a ser o mensageiro de péssimas notícias.
Porventura, fora ameaçado.

A meio do dia, uma das naves maiores abriu-se, expulsando uma naveta
de transporte, que aterrou no centro da nossa comunidade.
Dela saíram três militares americanos, uniformizados, de patente superior,
um de branco, outro de verde, outro de azul.
Louros os três, altos, musculosos, peitos resistentes, pernas e braços
hirtos como os de Jorge Tomás, a testa franzida, o olhar acutilante, lábios
tensos.
Avançaram cinco passos, postaram-se diante dos Coordenadores,
evidenciando conhecimento da nossa hierarquia.
Confirmando-o, lançaram para mim um gesto oblíquo de saudação, a que
correspondi levantando a mão direita.
Da minha casa, percebi que os três militares observaram insistentemente
os grupos de crianças, sorrindo, miravam as crianças com o olhar cobiçoso
do interesse.
Sabiam tudo sobre a nossa existência.
Não valia a pena fingir o que não éramos.
A verdade devia ser dita, e foi dita por um dos Coordenadores.
Foram convidados a beber chá de Gorreana no que tínhamos designado
por Casa da Coordenação.
Todos sentados em torno de uma mesa, três frente a três.
Nós fomos directos e sinceros.
Só dissemos a verdade.
Os americanos foram directos mas não sinceros.
Só nos disseram meia verdade.
Soube a outra metade da verdade mais tarde, por Jorge Tomás, incapaz de
conter a verdade toda no peito, e cuja intervenção salvou a minha vida.
Mas não lhe estou agradecido, ele sabe-o, preferia ter morrido.
Não consigo vislumbrar o seu corpo baixo e atarracado sem sentir um
profundo rancor.
Mesmo quando me serve o chá e o pão que me mantêm vivo como O
ÚLTIMO EUROPEU.
O único que se mantém fiel aos princípios civilizacionais da Nova
Europa.

O inevitável aconteceu.
O primogénito de Jorge Tomás e a menina aconselharam-se comigo:
queriam viver juntos, ter filhos, amavam-se.
Regozijei-me, senti-me alegre, um contentamento jubiloso, saber que o
sangue neo-europeu se derramaria na linhagem genética das valorosas
famílias do Pico que, desde o século XVI, arrostavam com a desgraça do
isolamento e da infertilidade da terra basáltica e, mesmo assim, tinham
sobrevivido e humanizado a ilha, transformando-a numa terra bem-
aventurada, desgraçadamente sujeita a tremores vulcânicos.
Já tinham falado com Jorge Tomás, este aceitaria a menina em sua casa
desde que eu e a Assembleia déssemos autorização, para ele seria um
privilégio receber uma menina neo-europeia em sua casa e na sua família.
Quebraria com prazer a tradição de o primogénito da família se casar com
uma micaelense.
Outras as circunstâncias, outra a solução.
Os dois jovens já tinham falado com os pais da menina, que hesitaram.
Mandaram-nos falar comigo.
Se eu aceitasse, eles aceitariam.
Em outro momento, eu exigiria uma Assembleia – tratava-se do primeiro
neo-europeu a viver com alguém exterior à nossa comunidade, a gerar
filhos que porventura seriam educados em costumes estranhos.
Quem sabe se, devido à ascendência paterna, os filhos não se tornariam
religiosos.
Quem os demoveria?
Porém, as conversações com os militares ocupavam a nossa mente na
totalidade, não havia lugar a Assembleias.
Assim o expliquei aos três Coordenadores e aos pais da menina.

Os três militares superiores explicaram que o Império Americano, como


eu já suspeitava, tinha sido atraído pelo inusitado movimento do Pico,
sobretudo electrónico, contínuas encomendas de material científico e
contínuas consultas de artigos científicos.
Informações provindas de São Miguel confirmavam uma recente
colonização do Pico.
Não lhes foi difícil perceber serem os novos habitantes um grupo
remanescente salvo da invasão asiática da Nova Europa.
Tivemos a confirmação por Jorge Tomás – alegaram –, que nos prestou
informações em Ponta Delgada e nos garantiu constituírem uma
comunidade pacífica e generosa.
Os nossos sensores informáticos confirmaram-no.
Congratulámo-nos por a Nova Europa ter conseguido salvar um grupo de
peritos, que a estão a tentar replicar no Pico.
Estivemos quase a interferir, garantindo ajuda científica e tecnológica
através dos nossos andróides.
O nosso Conselho Superior impediu-nos.
Tornado público, podia ser entendido como um desafio à Grande Ásia.
A informação sobre a vossa existência foi considerada segredo de
Estado.
Limitámo-nos a manter o Pico sob vigilância.
Porém, com as informações sobre a vossa forma de vida aqui no Pico, foi
recebido outro género de dados científicos, muito importantes, dados
geológicos colhidos em profusão.
Os dados indicaram que a ilha do Pico pode ser considerada, pela sua
posição marítima e a sua natureza vulcânica, uma das mais importantes
fontes de energia geotérmica, possivelmente uma das maiores do mundo.
Toda a ilha é, em si, uma central infinita de energia calórica.
Descobrimos na costa as relíquias de uma central geotérmica construída
pelos portugueses no início do século XXI.
Os portugueses tiveram essa intuição, mas não possuíam ainda
conhecimentos tecnológicos suficientes para a exploração cabal desta fonte
de energia.
Com os actuais instrumentos de exploração, o Pico pode alimentar um
quarto das necessidades energéticas do Império Americano.
Caso não tivéssemos descoberto, inesperadamente, esta espantosa fonte
de energia, não estaríamos aqui.
Não teríamos vindo.
O Império Americano, do México ao Canadá, alberga comunidades muito
diferentes, em diversos níveis evolutivos de civilização.
Sabemos lidar – bem – com a pluralidade social.
Só exigimos obediência aos Regulamentos locais, criados, aliás, pelos
próprios Conselhos Técnicos Regionais.
A vossa comunidade seria mais uma.
Infelizmente para vós, felizmente para o Império, vamos estabelecer aqui
a maior central de energia do mundo.
As plantas de construção já foram estudadas e desenhadas.
Está tudo preparado para transformar a ilha numa fabulosa fábrica de
energia nos próximos dois anos.
O Pico será brevemente ocupado por dois mil técnicos, os primeiros
desembarcarão dentro de um mês.
Não podemos manter-vos aqui.
Acresce que alguns dos vossos ex-Sincretistas são especializados em
energia geotérmica, depressa perceberão a nossa nova tecnologia de
extracção.
Não podemos correr esse risco.
O militar trajado de azul gaguejou e parou de falar.
O de branco continuou.
Dentro de dois meses um campo militar substituirá as vossas casas,
dentro de três os arruamentos estarão levantados e cada área dos edifícios
principais delimitada, preparada para receber…
Um dos Coordenadores interrompeu, aparentemente ansioso e curioso.
Perguntou: onde viveremos?, onde se instalarão as nossas novas casas?
Os três militares sorriram e responderam em coro.
Nada têm a recear.
Tinham ensaiado a resposta.
O militar uniformizado de azul continuou.
Temos uma solução, mas não a queremos aplicar sem o vosso acordo.
Os três Coordenadores denotaram um leve estado de dureza nas palavras
do militar de azul e perceberam – uma percepção conjunta e absolutamente
clara – que, se não obedecessem, o conflito estalaria.
Todos eram homens civilizados, negociar com o Império Americano não
era o mesmo que negociar com os Coronéis sul-americanos.
O Império já tinha pensado, já tinha uma solução.
No Império, tudo se regulamentava, se normalizava.
A desproporção entre a força do Império e a nossa era tão gigantesca que
não devia haver lugar a negociações, e no entanto elas davam-se como se
entre dois pontos equilibrados.
O Império sentava-se à mesa connosco, míseros insectos habitando um
ínfimo território, expunha o seu querer e solicitava o nosso acordo.
No final, tinha de sair um regulamento.
Eu, informado, não gostei, devo dizê-lo, achei diplomacia a mais, isto é,
hipocrisia a mais.
Conhecia suficientemente os americanos para não acreditar em políticas
generosas.
Eram egoístas, apenas interessados no que era seu.
Se pediam colaboração, acordo, um pacto, como acrescentara o militar de
azul, algo de oculto devia pulsar nas suas mentes.
Não se pede o que se tem, e o Pico era deles, a não ser que se pretenda
outra coisa, se tenha um objectivo secreto.
O militar de branco apresentou a proposta: o Pico era território
americano, assim devia continuar a ser, para mais revelando-se
preciosamente rico em energia.
Desconhecia-se o futuro e devia garantir-se o presente.
A ilha seria considerada território americano inviolável.
Ninguém ali habitaria, com excepção de Jorge Tomás e a sua família,
descendentes dos primitivos povoadores e, verdadeiramente, cidadãos
americanos.
Mas só ali permaneceriam porque não tinham conhecimentos científicos
suficientes para entenderem o novo processo bioquímico que o Império iria
implementar para transformar a energia calórica em energia eléctrica.

Outro dos três Coordenadores abriu as mãos, podemos ser úteis, disse.
O último dos Coordenadores amaciou a oferta, bem, temos os nossos
próprios costumes, a nossa singular família, a educação das nossas crianças,
talvez possamos viver aqui num regime à parte dos novos habitantes, por
exemplo na base da Montanha, distanciada da costa.
O militar de azul levantou repentinamente a mão e baixou-a de um modo
cortante, como o gume de uma antiga guilhotina – é sobre isso que temos de
falar, disse, seco como um bloco de granito, a voz mais alta e sólida.
O militar de verde acrescentou – gostaríamos que saíssem.
Os três Coordenadores abriram os olhos, sentiram as bocas secar-se-lhes,
humedeceram os lábios com a ponta da língua, a um deles tremeram-lhe
ligeiramente os dedos.
Os outros dois comentaram, sorrindo amareladamente, sair como?
O militar de branco foi rápido na resposta – sair, pura e simplesmente.
O militar de azul tranquilizou os Coordenadores – temos uma boa
solução, parece-nos.
O Pico terá de ficar desabitado de elementos estranhos ao Império, Jorge
Tomás ficará – repetiu, apontando para o cimo da curta colina, onde este se
sentava na areia vermelha –, é o único verdadeiro habitante da ilha e não
possui conhecimentos científicos para que dele desconfiemos, não seria
justa a sua expulsão.
Todos os restantes terão de sair.
Os três Coordenadores – informaram-me posteriormente – desejaram
naquele momento aconselhar-se comigo sobre como responder a uma
ordem de expulsão.
O militar de azul garantiu que não era expulsão, antes um pedido, pedido
que contemplava um acordo, não, não se tratava de uma expulsão.
Inopinadamente, o militar de branco perguntou quantas crianças tinha a
comunidade.
Foi-lhe respondido – entre quinhentas a seiscentas, incluindo
adolescentes.
Os três militares sorriram e tamborilaram os dedos, como se estivessem
fazendo contas.
Pareceram ganhar novo ânimo.
O militar de verde puxou de um mapa dobrado no interior do casaco de
uniforme, desdobrou-o, depô-lo sobre a mesa, ergueu o dedo demonstrador
e apontou, sorrindo, um sorriso pálido, desmaiado – eis os territórios que
cobrem os antigos estados do Texas e da Califórnia, hoje praticamente
desabitados, a Califórnia, devido às contínuas convulsões físicas havidas no
século passado, excessivamente dolorosas.
Quem sobreviveu, emigrou para a Costa Leste do Império, a maioria para
o México.
Estudámos profundamente o relevo geológico e estamos em condições de
garantir a inexistência de tremores de terra nos próximos séculos, temos
feito apelo a uma nova colonização da Califórnia.
Debalde, por maiores que sejam os benefícios oferecidos, a massa de
emigrantes é mínima comparada com a vastidão do território.
O Texas é um estado seco, desértico, praticamente inútil e dispendioso
desde que secaram os poços de petróleo, o que resta é pouco explorado
devido aos terrenos poluídos.
Vamos limpar o Texas, purificar as suas águas e terras.
Quem for para lá viver terá todas as condições, os seus filhos já viverão
num dos melhores territórios do Império.
O militar de verde retirou do bolso um computador, do tamanho da palma
da mão, desdobrou-o em três, ligou-o, passou-o para o lado da mesa onde
estavam os três Coordenadores.
Estão aqui todas as informações actuais, actualíssimas, sobre a Califórnia
e o Texas, informem-se, dentro de uma semana queremos a resposta
definitiva – ou Califórnia ou Texas.
Levantaram-se os três militares.
Os três Coordenadores permaneceram sentados, abismados.
A realidade mudara demasiado depressa, excessivamente depressa.
Não sabiam o que haviam de pensar, menos o que dizer.
Década e meia convivendo com o mar, o céu, o sol, a Montanha, o mundo
avançando lentamente, uma conquista por dia, por vezes duas, para que no
futuro, porventura dentro de um século, se retornasse ao patamar europeu.
Agora, de supetão, o mundo reviravolteava-se de novo, um buraco abria-
se aos pés da comunidade, sugando-lhe o futuro previsto e desejado.
Enviavam-na – convidavam-na, diziam – para o fim do fim do mundo, o
Texas desértico, que ora receberia um programa de despoluição ambiental,
ou a ardente Califórnia, ora de terras sossegadas.
Um e outro territórios onde ninguém desejava viver e onde todo o esforço
civilizacional da comunidade nos últimos quinze anos se revelaria
porventura inútil.
Teriam de começar de novo a partir do zero.
Ou talvez não, talvez a tecnologia americana ajudasse, os seus técnicos se
mostrassem generosos, porventura dispensassem andróides especializados
que contribuíssem para a aceleração científica da Novíssima Europa.

Os três militares regressaram à naveta e esta à nave.


Antes, confirmaram a existência de cerca de meio milhar de meninos e
meninas entre os breves meses e o princípio da adolescência.
O olhar dos três militares desviava-se para o bulício das crianças na praça
central da Base.
Inquiriam sobre a sua robustez física, o coeficiente de inteligência, a
saúde mental.
Pareciam apreciar uma «peça» no mercado de escravos.

Os três Coordenadores foram assoberbados pela mais de meia centena de


adultos, ansiavam por notícias.
Percebi que Jorge Tomás se retirara, nos voltara as costas, avançava para
a sua casa negra, ao fundo de Madalena do Pico, costas curvadas,
consciência pesada.
Jorge Tomás enchia-se de um pudor que o comprometia, ele, outrora tão
liberto na fala.
Pela sua atitude, depreendia-se que Jorge Tomás escondia uma verdade
cuja revelação poderia ser catastrófica.
Eu sabia que ele sabia algo que não podia revelar, porventura para não se
pôr em perigo ou à sua família, quem sabe para não comprometer a sua
permanência na ilha.
Intuí que tivera conhecimento do plano dos americanos, mas nada pudera
fazer.

O sol dardejava violentamente, humidificando os meus olhos,


inflamados.
Servi-me de um óculo, de visor único, sombreando a intensidade dos
raios solares.
O visor dava-me um ar vagamente americano.
Tirei-o rispidamente, joguei-o ao chão.
A menina levou-me para dentro.
Aqui, para espanto da menina, deixei correr as lágrimas.
Com a minha idade, basta ler as feições dos homens para conhecer as
suas intenções, quem nos falou não falou verdade, pelo menos toda a
verdade.

O MEU VOTO

Ao poente, reuniu-se a Assembleia.


Nada havia a escolher, dois desertos selvagens, um tremente, outro
poluído, que os americanos nos garantiam serenar, o primeiro, e purificar, o
segundo.
Alguém recordou que novos piratas acossavam a costa da Califórnia e
raptavam crianças, que vendiam no mercado negro a casais que não
desejavam ser atormentados pelos rigores da gestação ou pela educação de
bebés, um mercado florescente no Império Americano havia cerca de 50
anos.
Dois membros da Assembleia tinham passado o dia a fazer listas de
recursos que devíamos exigir dos militares.
Mulheres falavam em protecção e segurança.
O ex-Cidadão Dourado que, numa anterior Assembleia, aventara a
possibilidade de nos integrarmos no Império, sorria de alegria, garantindo
que tivera razão antecipada.Tinha a certeza de que lá estaríamos melhor do
que aqui.
Em vez de partirmos dentro de 185 anos, partíamos já, criaríamos a
Novíssima Europa lá, na Califórnia ou no Texas.
A maioria parecia inclinar-se para o Texas.
Insensatamente, já havia sorrisos.
Torci o nariz, franzi a testa, dobrei os dedos da mão direita, fechando-a
em forma de punho, o punho com que, se pudesse, derrubaria o mundo.
Com voz quase inaudível, reclamei ser ouvido.
Deitado, falei para um dos Coordenadores que, por sua vez, a todos
falava.
Disse que o mundo fora suficientemente injusto para com a Nova Europa,
possivelmente exterminada pela Grande Ásia, e agora o seu remanescente
exterminado pelo Império Americano.
Percebi sinais de descontentamento.
Os três Coordenadores miraram-me com respeito, mas também com
incredulidade.
Alguém falou em senilidade, ouvi perfeitamente.
A meu lado, a menina amachucou a cara, indignada.

Um furor tomara conta das famílias, como se todos quisessem fugir do


Pico, os filhos mais do que os pais.
A ilha isolara-os do mundo.
O permanente horizonte de mar e céu extenuara-os.
As contínuas carências e o esforço titânico de as suplantar esgotaram-
nos.
A América tornara-se a oportunidade – a única oportunidade – de fugirem
a um sentimento claustrofóbico.
Todos viam no Pico um bloqueio aos seus desejos de conhecimento, de
aventura, de realização e, contra o que tinham aprendido no Colégio, de
Poder.
A América esgotaria os seus desejos.
Se não os esgotasse, realizá-los-ia com maior intensidade.
Na Assembleia, relatada a proposta americana, todos soltaram a língua,
inclusive algumas crianças mais velhas, que, inesperadamente para mim,
encaravam o Pico como uma prisão.
Eu não acertara.
As intenções e os princípios filosóficos que, com mandato do Conselho
dos Pantocratas, tentara implantar na ilha, prolongando saudavelmente a
Nova Europa, tinham falhado, e não falhado de um modo parcial e humano,
mas total e absolutamente.
Todos pareciam saudavelmente alegres pela possibilidade de partirem
para a Califórnia ou para o Texas.
Cada família tinha a sua opinião, superficialmente assente nas
informações electrónicas gravadas no computador militar, onde mais se
falava da antiga história heróica dos dois territórios do que das áreas
habitadas por bandoleiros que sobreviviam da intermediação de escravos
sul-americanos ou de sobreviventes das populações pobres mexicanas
arrastadas à força para as minas geladas do Canadá.
Todos acreditavam, ingenuamente, em tudo o que os militares tinham dito
e prometido, inclusive os Coordenadores, contagiados pela onda de euforia,
de «libertação», como diziam alguns.
Convenciam-se de que, auxiliados pelo poder americano, industriados por
andróides de inteligência semelhante à do nosso hipercórtex, poderiam
rapidamente atingir elevados patamares de progresso.
Porventura, antes de morrerem, poderiam usufruir de algumas das antigas
delícias de conforto e prazer existentes na Nova Europa.
Constatei que a ausência de hipercórtex lhes retirara a capacidade de
lucidez e, portanto, de suspeita, de dúvida, de interrogação, de crítica, e,
levados pela emoção, confundiam os seus desejos – o abandono da ilha, a
superação do permanente horizonte marítimo, a busca de um sonho, a
aventura de uma viagem – com a realidade ostentada pelos militares.
Curiosamente, talvez como recordação da vida na Nova Europa, longe
das zonas costeiras, a maioria preferiu o Texas, terra escaldante e tóxica,
com planos de despoluição, nos quais se integrariam.
No final, os «texanos», como a si próprio se intitulavam, convenceram a
minoria «californiana» e foi unanimemente aprovada a partida o mais
rapidamente possível para o Texas.
Todos pareciam querer ver-se livres do Pico e dos Açores.
Deixar o passado para trás, como alguns diziam.
Decidiram votar.
Votaram.
Faltava um voto, o meu.
Ninguém mo pediu.
Senti que já não fazia parte da comunidade, esperavam que morresse, era
o último representante da derradeira estirpe dos europeus humanistas.
Não era possível – pensei, quando tomei conta da decisão –, a Nova
Europa acaba aqui, neste momento.
Um dos Coordenadores olhou para a minha casa, viu-me deitado na
espreguiçadeira, levantou a mão como se acenasse e me cumprimentasse,
mas logo a deixou cair, alegando que o meu voto não interferiria na
decisão.
Esta estava tomada.

Chamei à minha presença os três Coordenadores.


Face à sua incredulidade, que identificava com ingenuidade, falta de trato
com o mundo, repeti que o Império Americano iria exterminar-nos, algo em
mim suspeitava das intenções, dos gestos e das palavras dos três militares –
a proposta fazia parte de uma representação.
Tinham vindo fazer teatro à nossa frente, a verdade estava em outro lado.
Insinuei que Jorge Tomás sabia coisas que não podia dizer, fora
porventura ameaçado, quem sabe, a Joana e os filhos ameaçados.
Pedi que o chamassem, assim o fizeram.
Não veio, virou as costas à criança que um dos Coordenadores lhe
mandara.
A criança disse – internou-se na ilha.
Desaparecera.
Nenhum segredo lhe escaparia da boca.
Virei a cara para o lado da Montanha.
Hesitantes, os três Coordenadores regressaram à Casa da Coordenação.
Não devia chorar, mas foi-me impossível conter duas lágrimas.
Supremamente inquieto, não dormi essa noite.
V

O ÚLTIMO EUROPEU

Sob uma ufania inusitada, a que o tempo primaveril ajudou, fazendo


lembrar o clima quente mas menos tropical da Nova Europa, desmontaram-
se o hospital e o laboratório, os Centros de Comunicações e de Convívio e a
Casa da Coordenação e esvaziaram-se as casas familiares.
Os americanos tinham contribuído com inúmeras caixas e malões de
material sintético para alojar os excessivos bens que a comunidade tinha
acumulado ao longo de quinze anos.
A Assembleia não se reuniu de novo e eu fui visitado por todos os meus
concidadãos, que, como quem visita um moribundo, de mim se
despediram.
Devo a Jorge Tomás a permanência no Pico, alegou perante os três
militares que o meu corpo não aguentaria a viagem e os três Coordenadores
defenderam que, além da mudança e da nova instalação, seria para mim
excessivo o sol abrasador do Texas.
Percebi que, ainda que respeitado e, até, venerado, eu constituía um
problema para as novas ambições da comunidade, que se queria livre para
não seguir com rigor os princípios éticos da Nova Europa.
Seria um alívio para todos se eu permanecesse na ilha, e assim insistiram
com os militares americanos.
Estes consideravam-me menos do que uma insignificância e autorizaram
a minha permanência.
Verdadeiramente, deduzi eu, só para Jorge Tomás e para a menina a
minha presença não constituía um estorvo.
Resisti à pressão dos três Coordenadores – ambicionavam levar consigo
estas duzentas e muitas páginas manuscritas, aquelas que considero
definitivas, mais o manuscrito da Crónica da Nova Europa.
Não deixei, não deixei com toda a força.
Precisava de acrescentar estas últimas páginas.
Deixá-los-ei, aos dois livros, à menina, será ela a guardiã da história da
Nova Europa.
Hipocritamente, combinou-se que uma das nossas crianças, quando
adulta, retornaria ao Pico para resgatar a estela branca da minha sepultura e
o livro – foi o modo que encontrei de sossegar os três Coordenadores.
Em casa de Jorge Tomás, ficou a menina, que, no entanto, mais se
demorava na minha, cuidando do meu corpo.
No dia da partida da comunidade, casar-se-ia ao modo americano com o
primogénito de Jorge Tomás.
Pelo seu olhar tão belo e esperançoso, presumo que esteja grávida.

Na madrugada ansiada, desceram duas naves da estação, uma mais


pequena, cinzenta, aparentemente militar, sem insígnias nem identificação,
e outra, maior, multicolorida, decorada com bandeiras amovíveis, letras
gigantes pintadas, «Mundo Disney», em homenagem a Walt Disney, um dos
ancestrais pais da cultura americana.
Os três militares explicaram não estar disponível na estação uma nave que
acolhesse cerca de seis centenas de passageiros.
A comunidade teria de partir desdobrada pelas duas naves, as crianças até
10 anos seguiriam na nave maior, com inúmeras diversões e um contingente
de educadores, de amas e de andróides especializados em animação infantil,
que tornariam as duas horas de viagem um longo minuto de diversão.
Os restantes seguiriam na nave cinzenta.
Triste, melancólico e vazio de sentimentos, assisti à grande partida do
varandim de minha casa, acompanhado pela menina e pelo primogénito de
Jorge Tomás.
Este, inexplicavelmente, desaparecera, o filho informou-me de que fora
caçar coelhos para Sul.

Dois meses depois da grande partida senti o coração vacilar


excessivamente.
Segurei a mão de Jorge Tomás e implorei-lhe que me contasse a verdade,
toda a verdade.
Não queria morrer iludido.
Jorge Tomás apiedou-se de mim, mandou sair a menina e o primogénito.
Perguntei-lhe directamente – porque não vieste despedir-te de todos no
dia da grande partida?
Jorge Tomás, raivoso, apertou-me a mão ao ponto de ma fazer doer.
Disse – não quis participar, não na grande partida, mas na grande farsa.
Abri desmesuradamente os olhos.
Percebi que as suas palavras seriam as últimas que ouviria, precisava de
guardar alguma força para as registar no livro, as derradeiras linhas.
Se me faltassem as forças, rogaria ao primogénito de Jorge Tomás que as
escrevesse como fecho da Crónica.
Não seria capaz de macular a consciência da menina com tão escandalosa
novidade.
A menina nunca deveria saber de nada.
Pediria a Jorge Tomás e ao seu primogénito que nunca lhe contassem a
verdadeira história.
Fechei os olhos e abri o coração à verdade.

Os técnicos superiores tinham concluído que a maioria dos neo-europeus


adultos e adolescentes nunca se integrariam no Império Americano
cumprindo escrupulosamente os regulamentos.
Devido à sua formação e à sua personalidade, os neo-europeus tornar-se-
iam cidadãos marginais, seres contestatários, perturbadores da normalidade
regulamentar, fundamento da felicidade do Império.
O seu passado privilegiado na Nova Europa e de batalhadores pela
sobrevivência na Novíssima Europa apontava para que a maioria se
revoltasse, exigindo continuamente novas condições de vida, melhores
instrumentos científicos, porventura laboratórios mais bem equipados,
contactos com universidades e, até, quem sabe, condições de liberdade e
igualdade sociais – exigências não aceites pelo Império, que para eles
estipulara, não uma vida de técnicos superiores, mas uma vida de cidadãos
normais.
Com evidência, garantida pelos melhores técnicos de psicologia do
Império, a maioria tornar-se-ia, a breve ou a longo trecho, um problema
social, quiçá alguns, estimulados pelos obstáculos, poderiam tornar-se
líderes de futuras revoltas regionais.
Eram, seriam, um problema para o Império.
E os técnicos superiores do Império não admitem problemas que não
solucionem de imediato.
E solucionaram – chamaram-lhe a «Solução Final».
Por isso, os técnicos superiores que chegaram aos Açores nas primeiras
naves e que descobriram a energia geotérmica – que a comunidade neo-
europeia nunca conheceu –, retiraram-se, substituídos pelos militares.
Os militares foram encarregados de matar – sem dor, garantiu Jorge
Tomás com força desproporcionada, subindo o tom das palavras – todos os
adultos e adolescentes levados na nave militar.
Como foram mortos, não sei.
O mais de meio milhar de crianças seria entregue pelos três militares a
uma agência, que as venderia a famílias americanas que desejavam ser pais
sem o sofrimento da gravidez e as preocupações do tratamento de um bebé.
São famílias brancas, disse Jorge Tomás, consolando-me.
As crianças ficarão bem, disse, mitigando-me a dor, assustado com a mão
que eu levara ao coração.
Na nova família, os mais pequenos esquecerão definitivamente a
Novíssima Europa e serão adultos felizes segundo os regulamentos.
Não valia pena continuar a viver.
Pedi para ficar só, fui intempestivo.
Disse, deixa-me só.
Morreria nesse dia ao poente, decidi, eu, o último verdadeiro europeu.
Amanhã já não veria o sol nascer.

Novíssima Europa,
ilha do Pico, Açores,
ano de 2299

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