Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Ultimo Europeu - 2284 - Miguel Real
O Ultimo Europeu - 2284 - Miguel Real
OS ÚLTIMOS EUROPEUS
A INVASÃO ORIENTAL
OS CIDADÃOS DOURADOS
Nos últimos dez anos, os novos Mandarins tinham encontrado uma forma
científica de subverter as oito centrais geotérmicas instaladas na periferia do
centro da Terra que alimentavam a totalidade da Nova Europa de energia
abundante e permitiam a existência de uma atmosfera comum eléctrica pela
qual cada mente individual humana comunicava telepaticamente com as
restantes e com todos os electro-humanos, robots e andróides, trocando
sugestões e opiniões e recebendo espontaneamente conselhos do Grande
Cérebro Electrónico.
A HISTÓRIA E A PRÉ-HISTÓRIA
Hoje, com a Nova Europa – felizmente que me foi dado viver tempos
recentes –, ultrapassou-se a fase carnívora da humanidade.
E mesmo a fase vegetariana da humanidade.
Regressámos, com novas qualidades, à mais genuína e primitiva fase
humana.
Não, não nos tornámos frugíveros sem mais.
Alimentamo-nos do que de melhor existe entre os frutos, os cereais, os
legumes e os vegetais, mas atomizados, condimentados com elementos
químicos regeneradores do corpo e aspergidos directamente para a boca
através de pequeníssimos pulverizadores portáteis.
Estes são enchidos por via de uns tubos verticais elásticos existentes em
todas as paredes dos edifícios dos Conglomerados.
Designamos o nosso regime alimentar por Sensitivo ou Gustativo, já que
anulámos o fenómeno da mastigação.
Limitamo-nos a inalar o pó do pulverizador em conjunto com a inspiração
de oxigénio. Distinguimos os sabores através do olfacto e do paladar.
A um homem racional cumpre uma alimentação racional, isto é, uma
alimentação adequada a cada actividade e a cada estádio físico e biológico
do corpo.
Nenhum elemento tóxico ou venenoso é ingerido pelo neo-europeu,
nenhuma molécula nociva à natureza saudável do seu corpo, e todos os pós
sorvidos possuem componentes bioquímicos que potenciam os diversos
sistemas biológicos do corpo.
O SINAL
A FAMÍLIA DE AFINIDADE
A SEXUALIDADE
A EDUCAÇÃO
Não tive mãe nem pai, já o disse, e deles nunca senti falta.
Nasci num Criatório, no seio de uma placenta química, alimentado por
um líquido amniótico sintético e por artefactos apropriados.
A gestação artificial do feto durou seis meses, donde fui transferido para
uma incubadora.
Aqui, já dotado de funções sensório-motoras, realizou-se a maturação
física do corpo.
Vaporizadores mecânicos substituíram a alimentação do sangue pelo
cordão umbilical.
Um mês antes do nascimento oficial, aos oito meses, foi-me acoplado,
ligado e activado o hipercórtex, bem como os implantes neuronais no neo-
córtex natural.
Fui dos últimos neo-europeus a receber um hipercórtex artificial.
Hoje, o hipercórtex nasce espontaneamente do neo-córtex por via da
manipulação genética.
Desde o primeiro segundo, nascemos preparados para uma aprendizagem
electrónica e informática, dispensando-nos as antigas fases de evolução e
maturação cerebrais, como aprender a falar.
Andróides especializados propiciaram-me todos os estímulos necessários,
desde a alimentação por vaporização à articulação correcta dos membros.
Ao fim do primeiro ano de existência, recebi novos implantes cerebrais,
dotando-me de rudimentos da linguagem Universalis e exercitando-me na
comunicação mental.
Aos dois anos, saí do Criatório e fui destinado ao Colégio do
Conglomerado.
Aqui vivi até aos 15 anos, exercitando ao máximo a inteligência e os
processos racionais bio-neuronais e informáticos, aprendendo a comunicar
com máquinas-robots, inclusivamente andróides.
Fui entregue ao cuidado de dois Agenciadores.
Os Agenciadores são cidadãos especializados que optimizam uma
actividade física, social ou mental.
No meu caso, a actividade educacional.
Não se trata de ensinar, como o fazia o professor na Pré-História, mas de,
através de programas informáticos recebidos no hipercórtex ou de implantes
neuronais instalados no neo-córtex, conduzir a criança a exercer
procedimentos práticos sociais que a habilitem a extrair destes o máximo
rendimento e proveito, o conhecimento de línguas, de matemática e física,
de história.
Existem programas informáticos que agilizam a aprendizagem.
Os Agenciadores são técnicos que harmonizam estes programas com as
actividades sociais que a criança ou o adolescente deverá aprender para
retribuir à sociedade tanto quanto dela recebe em alimentação, conforto,
prazer e segurança.
Os programas do neo-córtex ou do hipercórtex necessitam de ser
neurologicamente activados para que o utilizador atinja uma competência
mediana na sua utilização.
Muitas vezes, no exercício destas actividades, as crianças são estimuladas
por andróides específicos.
Simultaneamente, as crianças recebem a visita de Acratas, cidadãos
habilitados para o aconselhamento cívico.
Os Acratas simulam no espaço do Colégio todas as actividades
profissionais e sociais que as crianças encontrarão no bulício diário dos
Conglomerados.
O Acrata é, por assim dizer, o prestimoso auxiliar prático do Grande
Cérebro Electrónico e tem como função fazer entender, por linguagem clara
Universalis e exemplos acessíveis, o que a Nova Europa espera do jovem
cidadão.
Um dos Acratas insiste semanalmente no papel revigorante da Liberdade
e convida o colegial a usar das suas potencialidades cerebrais para criar ou
inventar mecanismos que, no sentido de a aperfeiçoar, tornem a sociedade
mais poderosa e mais sólida, mesmo subvertendo ou recriando as regras
sociais estabelecidas, conferindo um suplemento de prazer ao corpo e ao
espírito dos neo-europeus.
O Colégio possui apenas uma finalidade: facultar ao futuro cidadão a
fruição de todas as experiências possíveis e das consequentes reacções do
Grande Cérebro Electrónico segundo os ditames da Grande Ordenação,
evidenciando o que é e não é possível fazer em sociedade.
Por isso, as crianças e os jovens são convidados pelos Agenciadores e
pelos Acratas a retirar o máximo rendimento e a activar com o máximo
desempenho as informações aleatórias presentes no seu hipercérebro e a
não se conformarem com os conselhos e os ditames classicamente
estabelecidos.
De certo modo, os Colégios encontram-se em rebelião permanente, e a
sua energia física é repetidamente esgotada em actos de contestação.
De facto, nenhum cidadão se torna mais dócil e participativo em adulto
do que aquele que na juventude pôde rebelar-se livremente contra as
instituições dominantes.
Não existe repressão na Nova Europa porque o cidadão é convidado à
desobediência ao longo da infância e juventude, experimentando os limites
possíveis da comunidade.
Caldeando-se na sublevação, entende posteriormente a necessidade das
instituições e torna-se seu defensor querido.
E, sempre que o desacordo o leva a desobedecer, solicita ao Grande
Cérebro Electrónico a experiência mental da vivência do que gostaria de ser
ou ver realizado.
Este regista na sua memória os mecanismos dessa experiência, como se o
cidadão a tivesse vivido.
A este cidadão, designamo-lo por Cidadão Dourado, cidadão de ouro, que
pode o que quer, que satisfaz todos os seus desejos e cujo elemento
permanente de vida é o prazer.
Os Acratas concedem autorização para os colegiais levarem a cabo a
experiência que quiserem dentro dos muros de plastifex da instituição.
Experimentarem novas formas de organização social, novas modalidades
de comportamento e de companheirismo.
Com a sua sensata sabedoria, continuamente aconselhados pelo Grande
Cérebro Electrónico, os Acratas sabem ser goradas todas essas novas
experiências, mas incentivam os jovens a realizá-las, estimulando-lhes o
prazer da descoberta e da novidade, mais tarde projectado em realizações
úteis e positivas.
Na verdade, o Grande Cérebro Electrónico contabiliza em mais de um
milhão por ano as propostas resultantes de novas experiências juvenis, mas
apenas dez são contempladas com a aprovação do Conselho dos Pantocratas
e têm direito a figurarem no Livro de Aditamentos à Grande Ordenação,
tornando-se doravante exemplo imitável e aconselhado.
Assim, o imensíssimo volume de actos de contestação morre frustrado,
sem consequências sociais práticas, não atravessando os muros dos
Colégios.
O DISTINTIVO
O CONTACTO
VIOLÊNCIA E PRISÃO
NASCER E MORRER
AS IMAGENS
A MISSÃO
AMÉRICA DO SUL
Impossível.
Impossível e inviável.
Os Mandarins negociavam dissimuladamente.
Não queriam arcar com a responsabilidade histórica de exterminação do
mais feliz, mais racional e mais avançado de todos os povos do mundo.
Fingiam, piedosamente, oferecer-nos uma salvação.
Uma salvação que não era senão um beco sem saída.
Mesmo que os Coronéis aceitassem, dar-nos-iam as piores terras,
ferrosas, inférteis, selvagens, ou, usando da atitude chinesa, simulariam dar-
no-las para mais tarde nos exterminarem, a maioria de nós vendida de novo
aos Mandarins para África como escrava.
Os Coronéis sul-americanos, donos do território, não nos aceitariam, nem
em troca de fabulosas quantias em ouro e prata.
O Conselho dos Pantocratas tinha recusado a proposta, liminarmente.
Os cidadãos neo-europeus, educados com valores morais e respeitadores
da liberdade, constituiriam a maior das ameaças aos regimes ditatoriais da
América do Sul, assentes em populações escravas que trabalhavam em
vastíssimas fazendas, algumas do tamanho do território de um clã da Velha
Europa.
Um único neo-europeu constituiria um nefasto exemplo para as
populações daquele subcontinente, sobrevivendo na ignorância e na
superstição religiosa, desconhecedoras de outra forma de existência.
Após a guerra entre o Brasil e a Venezuela, que congregara todos os
estados latino-americanos em dois blocos militares, havia mais de um
século que a América do Sul perdera todos os regimes democráticos.
Tal como na Velha Europa após a Grande Fome, tinham-se levantado
entre a população mutilada e miserável clãs guerreiros, comandados, não
por empresas, mas por «Coronéis» tirânicos cujo poder assentava em
milícias fortemente armadas de jagunços.
Tinham transformado os antigos países em vastíssimas plantações de
cereais, de vegetais, de frutos, que exportavam para a Nova Europa e para o
Império Americano.
Outros países tornaram-se viveiros de escravos, que igualmente
exportavam em grandes naves aéreas como mão-de-obra flutuante,
disponível para trabalhar onde fosse necessário.
Constituíam os regimes mais imorais e corruptos do planeta e nenhum
homem de bom senso se atreveria a viajar para ou através da América do
Sul.
A guerra feroz entre o Brasil e a Venezuela tinha aniquilado cerca de 300
milhões de sul-americanos.
Cidades outrora florescentes e monumentais, como Bogotá, Caracas,
Buenos Aires, La Paz, Quito, São Paulo, eram hoje ruínas radioactivas
habitadas por povos decrépitos, moribundos, carregados de malformações
genéticas.
Gigantescos cemitérios humanos, as cidades tinham sido tragadas por
antigos animais selvagens, ora tornados urbanos, como o jaguar.
Grandes extensões geográficas encontravam-se praticamente
despovoadas.
Seria para estas áreas que os Mandarins intentavam transferir os 100
milhões de neo-europeus, do litoral Este da ponta Sul do Chile até à
Amazónia, criando uma fronteira artificial.
O Patriarca informou-me de um modo conciso de que as negociações
prosseguiam.
Pela sua voz, firme mas emotiva, percebi que seria impossível o Conselho
aceitar semelhante exigência oriental.
Os Coronéis também não se mostravam dispostos a aceitar-nos,
informou-me o Patriarca.
A verdadeira razão da sua recusa residia no medo do futuro.
Quando, dentro de 50 ou 100 anos, a Nova Europa estivesse restaurada na
América do Sul, o nosso regime constituiria uma autêntica ameaça aos seus
poderes cruéis e despóticos.
A razão dos Pantocratas assentava em outros motivos, éticos em primeiro
lugar, como já expliquei, mas também geográficos.
O nosso regime fora criado de um modo organicamente perfeito para uma
população pouco dispersa, estabelecida numa linha recta natural entre o
antigo Portugal e a antiga Polónia, país outrora martirizado por permanentes
invasões dos seus vizinhos Russos e Alemães.
Estendida para quase o dobro numa natureza silvícola profundamente
agreste, a novíssima Nova Europa dificilmente singraria, incapaz de prestar
felicidade aos seus cidadãos, isto é, de realizar os seus desejos.
Somos felizes porque nos separámos da restante humanidade e fomos
gratificados por uma natureza amena e delicada.
Orgulhamo-nos desta separação e não intentamos alargar a nossa forma
de existência a outros povos que, sem hipercórtex individual e sem o
Grande Cérebro Electrónico colectivo, não poderia deixar de falhar.
Na pequenez geográfica, na escassez demográfica – 100 milhões – e no
clima suave de natureza semitropical, encontra-se a chave da nossa
perfeição.
Os Mandarins orientais sabem que ambicionamos não nos expandir, mas
os Coronéis sul-americanos, brutos, rudes, ignorantes, não o sabem, ou os
que o sabem desconfiam das nossas pérfidas e secretas intenções,
presumindo que nos assemelhamos a eles, ávidos de poder e riqueza.
Os Mandarins respeitam-nos como povo, consideram a Nova Europa a
parte mais desenvolvida e perfeita da humanidade e não desejam destruir
nada do que construímos.
Pelo contrário, desejam aprender com as nossas «máquinas», como
dizem.
O seu orgulho aristocrático não lhes permite exprimir directamente os
seus desejos.
Mas percebe-se que vivem da imitação dos nossos sucessos tecnológicos
e científicos. Mal saíssemos da Europa, melhor, mal fôssemos expulsos,
esquadrinhariam cada peça do Grande Cérebro Electrónico e cada
membrana das circunvoluções do hipercórtex.
Se não sairmos, se tiverem de nos exterminar, têm a certeza de que
implodiremos todos os edifícios que alojam as nossas mais importantes
descobertas e invenções, nada lhes legando.
Possivelmente por este motivo, mais do que por respeito humanístico,
negoceiam o que designam por uma «saída honrosa».
O Conselho dos Pantocratas – tenho a certeza absoluta – saberá responder
no exacto sentido contrário às ambições dos Mandarins, mantendo a
dignidade de uma civilização que deve afirmar-se, na vida e na morte, como
um exemplo eterno para a humanidade.
Os orientais não anseiam por dominar os nossos triunfos tecnocientíficos
para conceder felicidade aos seus cidadãos, mas para os orientar e controlar
como verdadeiros súbditos.
Disporiam de instrumentos electrónicos e informáticos para dominar as
populações, não com a feroz mão-de-ferro de hoje, mas com a amenidade
permitida pela ciência, não estando sujeitos a contínuas rebeliões, sempre
afogadas em sangue, pondo em causa a estabilidade do regime e o poder
vitalício e omnipotente dos Mandarins.
O Patriarca informou-me de que a proposta anterior da Grande Ásia,
liminarmente rejeitada pelo Conselho dos Pantocratas, pressupunha o
aprisionamento e o exílio para África de todos os neo-europeus com
funções iguais ou superiores às de Reitor.
Isto é, quebravam a espinha da Nova Europa, separando a sua elite
organizativa e moral da restante população.
Os restantes habitantes, Agenciadores, Acratas, Cidadãos Dourados,
Sincretistas, mais ou menos 90 por cento da população, trabalharia para a
nova população oriental.
Aos 500 milhões de chineses descarregados na Europa, em toda a Europa,
Velha e Nova, juntar-se-iam os 90 milhões de neo-europeus, que
assegurariam as funções principais da nova sociedade.
O nosso Patriarca respondeu que nenhum neo-europeu trabalha para um
estrangeiro.
Verdadeiramente, o neo-europeu desconhece o que significa a
obrigatoriedade do trabalho com horários, funções, competências e
objectivos rígidos.
Tornar-se-ia o trabalhador mais indisciplinado ao cimo da terra.
A proposta asiática foi recusada.
Sem o Grande Cérebro Electrónico e de hipercórtex desligado, o Cidadão
Dourado não possuiria nenhuma inteligência superior e nenhuma habilidade
técnica.
Se não aceitássemos a partida para a América do Sul, seríamos
exterminados.
Foi a última proposta, absolutamente atroz, tirânica e medonha, própria
do sentimento de ausência de piedade que sempre caracterizou os impérios
orientais.
Todos os neo-europeus seriam exterminados em conjunto com a
população remanescente da Velha Europa.
A Nova Europa desapareceria para sempre, e, por mais que fizessem
explodir os mecanismos científicos em que esta assenta, algo restaria, a
partir do qual os cientistas chineses os reconstruiriam.
A Europa, agora, sim, tornar-se-ia o que a Grande Ásia ambicionava: o
cabo sudoeste da Ásia ou, como o designavam, a «Ásia Ocidental».
Apenas os orientais aqui poderiam habitar, e certamente muita mão-de-
obra escrava africana e sul-americana.
As naves avançariam da Grécia para as antigas ilhas britânicas,
pulverizando todos os corpos vivos detectados pelos radares.
Quem se escondesse seria posteriormente chacinado.
Cem milhões de neo-europeus e os restantes trezentos milhões de
habitantes da Velha Europa desapareceriam da face da terra num único dia.
O Conselho dos Pantocratas – informou-me o Patriarca – tinha detectado
divisões entre os Mandarins.
Alguns destes tinham percebido que a nossa recusa em integrar os
Sincretistas no corpo de cientistas orientais constituía um verdadeiro
desperdício de conhecimento.
Deveriam ter recebido ordem do Conselho Imperial de Tóquio, Nova
Deli, Xangai e Pequim para tudo prometerem para que se conservasse a
sabedoria científica e tecnológica acumulada na Nova Europa.
Porém, a recusa total e absoluta do Conselho dos Pantocratas não lhes
deixava outra saída além da exterminação completa.
Dois Mandarins deram a entender ser um desperdício a exterminação dos
nossos Sincretistas e Reitores.
Estavam dispostos a ceder em troca da sua permanência na nova Ásia
Ocidental.
Deviam ser concentrados numa zona geográfica específica.
Em cumprimento dos princípios filosóficos e morais da Europa, o
Conselho recusou liminarmente.
A insistência dos dois Mandarins recordou ao Conselho dos Pantocratas a
necessidade de garantir a sobrevivência da Nova Europa.
Seria inestimável guardar a sua memória viva.
O Patriarca propôs ao Conselho que se seleccionasse um restrito número
de neo-europeus, de idade não superior a 90 anos, que, na sua diversidade
de actividades e estudos, pudesse revitalizar a Nova Europa fora da
Europa.
Corromper-se-ia um Aitão – um Mandarim inferior – com fabulosas
quantidades de prata armazenada (retirada do fundo do Mar Americano dos
galeões espanhóis de transporte da prata entre a América do Sul e a Europa
nos séculos XVI e XVII) para este dispor uma pequena nave que transportasse
os neo-europeus escolhidos para território não-Europeu.
Pela primeira vez – e única em cerca de dois séculos de História –, os
membros do Conselho dos Pantocratas dividiram-se.
Os elementos moralmente mais rígidos, invocando o texto da Grande
Ordenação, recusaram.
Para eles, os princípios éticos da Nova Europa eram eternos, invioláveis e
inegociáveis.
Exprimiam a essência da totalidade dos desejos da humanidade, ora
realizada.
A morrer, deveríamos morrer todos, dando por extinta a Nova Europa,
cuja fama e brilho de perfeição incendiaria os tempos futuros da
humanidade.
No porvir, novas civilizações seguiriam o nosso exemplo.
Fôramos um excelso ser, seríamos agora um puro nada.
Outros invocaram as palavras pragmáticas do Mandarim chinês,
considerando um total desperdício histórico o desaparecimento radical da
nossa civilização.
Constituía um dever ético a tentativa de sobrevivência da mais
aperfeiçoada das sociedades humanas.
Não bastaria um livro, feito de matéria efémera, ameaçado de
desaparecimento, ou os ficheiros secretos no coração do Grande Cérebro
Electrónico e de um satélite pairando em órbita desconhecida, porventura
nunca descodificados pela mente dos homens do futuro.
A ser assim, o futuro, sobretudo o longínquo, desconheceria totalmente a
existência da Nova Europa, e dela se levantariam as mais nubladas
mitologias, como hoje se têm levantado sobre Atlântida, pressupor-se-ia
fruto das elucubrações da mente humana, inclinada para a utopia.
A Nova Europa fora uma realidade, não uma utopia.
Procedeu-se a uma votação pela primeira vez no interior do Conselho.
Venceu por clara maioria a tese da fuga e sobrevivência.
Eu fora um dos seleccionados para esta fuga e presumível sobrevivência.
OS SESSENTA
OS AÇORES
OS PRINCÍPIOS MORAIS
DOIS – O fim último de cada acção deverá residir, para todos e para cada
um, numa síntese entre utilidade e prazer. Numa primeira fase, seria
possível que a utilidade suplantasse o prazer, mas o prazer, o prazer de
viver, atendendo às circunstâncias, deveria ser o derradeiro móbil de cada
acção;
O ESTADO DE NATUREZA
O que fazer?
Três horas apressadas junto do Conselho, duas horas na nave, uma hora
no Pico – pouco tempo para reflectir e tomar decisões para quem se
habituara a pensar em companhia e colaboração do Grande Cérebro
Electrónico, sobretudo se habituara a tomar decisões exclusivamente
lógicas, racionais.
Agora, as emoções fluíam e refluíam, embaraçando-nos, e, confusos, as
indecisões tornavam-se maiores do que as certezas.
Não tinha nenhuma convicção senão de que deveria ser o primeiro
responsável pela salvação dos Sessenta, incluindo eu.
Deveria ser o primeiro responsável pela sobrevivência de uma
civilização.
Tornava-se necessário criar mecanismos organizativos que, se não
redimissem, pelo menos esbatessem os possíveis e previsíveis conflitos, não
violentos, porque toda a nossa formação se baseara na serenidade,
tivéramos e queríamos continuar a ter a paz como um dos mais altos valores
de nossa civilização.
Poderiam nascer conflitos de personalidade, conflitos de interesse,
conflitos na utilização de recursos, tão escassos para quem vivera habituado
a satisfazer completamente as suas necessidades e a realizar em plenitude os
seus desejos.
Não éramos já animais, mas tínhamos deixado de ser totalmente
racionais.
Em pouco menos de um mês regredíramos, tínhamo-nos tornado apenas
humanos.
A minha lucidez, agora, dava-me a entender que ser apenas homem
constituía o mais difícil estatuto do universo, depender tanto do que a mãe
natureza nos facultava quanto do que as nossas faculdades conseguiam
engendrar.
Não tínhamos regressado ao estado natural, o Conselho dos Pantocratas
tinha carregado a nave de Jacques de água, comida em pó e inúmeros
instrumentos que nos seriam utilmente salvadores, inventariados
apressadamente por dois grupos, separando-os numa escala lógica de
prioridades e necessidades.
O verdadeiro estado natural do homem residia num estado social de
associação civil, só este permitiria a expansão e concretização das
potencialidades racionais humanas.
O estado de natureza, como situação de guerra de todos contra todos,
nunca existira, fora uma ficção inventada pelos filósofos dos séculos XVII e
XVIII.
O natural no homem é a cooperação, não que para isso esteja
instintualmente vocacionado, mas porque a sua fragilidade constitutiva o
força a unir-se contra as fontes do mal, a dor física, o sofrimento psíquico, a
carência de meios e a morte.
A união, a cooperação, a ajuda mútua, a solidariedade entre seres do
mesmo grupo ou da mesma espécie, obviam à sobrevivência, não à guerra,
à mortandade colectiva, ao assassínio indiscriminado.
Nunca houvera estado de natureza no homem.
Sempre este vivera em estado civil.
Assim, seria forçoso activar um pacto entre os Sessenta que garantisse a
concórdia mútua, não bastaria a aplicação dos três princípios morais e um
quarto organizacional.
Reflecti.
Escrevi no livro que, para uma nova sociedade fundada por tão reduzido
número de membros, no pacto deveria constar:
JORGE TOMÁS
Nesse triste poente, seco e abrasador como até então não conhecêramos o
anoitecer, de fogueiras acesas para não exaurirmos a energia líquida
química dos geradores, Jorge Tomás, a meu lado, a todos previamente
apresentado, informou-nos de que São Miguel nos podia abastecer de um
gel carburante para geradores, e mesmo de novos geradores.
Desde os terramotos que São Miguel ficara sem rede pública eléctrica,
substituída por geradores comunitários.
Céptico, valorizei as informações de Jorge Tomás, que se propunha ir a
Ponta Delgada, a capital de São Miguel, abastecida a partir de empresas
americanas, trocar os nossos computadores de décima sexta geração por uns
mais recentes.
Nessa Assembleia, pausadamente, preparando-os para a desgraça,
informei os meus companheiros de que porventura àquela hora os neo-
europeus, alguns certamente das famílias de afinidade dos presentes, já
tinham sido entregues a famílias asiáticas ou africanas para copularem até à
exaustão com o fito de ser criada uma raça mestiça.
Com o hipercortéx desligado, os mecanismos biológicos que impediam a
gravidez eram automaticamente desbloqueados.
Os Mandarins, com o seu zelo administrativo e burocrático, deveriam ter
calculado um número máximo de fornicações num determinado prazo, a
partir do qual, não resultando, o neo-europeu, homem ou mulher, seria
aniquilado.
Alguém da Assembleia perguntou pelos nossos companheiros não
sexualmente activos, como as crianças e os octo, os nonagenários e os
centenários.
Eu não sabia responder, nem queria acreditar que tivessem sido
impiedosamente dizimados.
Restava-me a esperança de que os Mandarins os destinassem a uma
actividade produtiva, aproveitando sobretudo a longa experiência sapiencial
e científica de muitos deles, quem sabe se as crianças não seriam destinadas
a trabalhos domésticos.
Outro, chorando, libertando as suas emoções, admoestou os chineses por
não usarem as centenas de milhares de óvulos acumulados nos Criatórios.
A esta questão a minha lucidez soube responder.
Os Pantocratas devem ter calado a existência desses bancos de óvulos em
todos os Conglomerados, já que, sem utilidade maior de imediato, os
Mandarins poderiam pura e simplesmente exterminar a maioria da
população e usar os bancos de óvulos.
Alguém se lamentou, carpindo a sorte dos concidadãos sexualmente
activos e mais dos sexualmente inactivos, porventura feitos prisioneiros ou,
talvez, já mortos.
Neste caso, a nossa imaginação concebeu, contra a nossa vontade, a
centena de elementos do Conselho dos Pantocratas mortos, todos eles com
mais de 130 anos.
Não valia a pena fingir que os Mandarins poupariam os membros do mais
alto órgão de poder da Nova Europa.
Seriam os primeiros a morrer, o que equivaleria, para os novos Senhores,
à extinção da civilização que tinham acabado de ocupar.
Lenta e calmamente, com um semblante grave, animado de um profundo
pesar, que o meu rosto enrugado denunciava, clamei para todos:
IDENTIDADE INDIVIDUAL
CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIAS
Éramos 20 homens e 40 mulheres, todos férteis menos eu, cuja idade não
permitia já a reprodução sexual.
Na sua sabedoria, os Pantocratas tinham previsto que cada um – menos
eu, claro – engravidaria duas mulheres por ano, e, segundo as suas contas,
confirmadas pelos cálculos a que procedemos nos novos computadores,
dentro de cerca de 10 anos atingiríamos o ponto de não retorno da
sobrevivência colectiva, mesmo contando com a possibilidade de uma
doença endémica, contagiosa, que vitimasse dois terços de nós.
Ou seja, constituiríamos uma comunidade com não menos de 500
indivíduos.
Caso tudo corresse em perfeição, e admitindo uma única morte – a minha
– ao longo da primeira dezena, dezena e meia de anos, poderíamos florescer
com uma população entre 500 a 800 membros, constituída pela geração
pioneira, uma outra, já nascida na ilha, activa, em processo de adultificação,
e outra, novíssima, em crescimento.
Contra as previsões do Conselho dos Pantocratas, que prognosticara 200
anos de acalmia geológica nos Açores, caso sobreviessem tremores de terra,
maremotos, erupções vulcânicas ou, mesmo, uma febre contagiosa, seria
sempre possível – mesmo provável – que 10 por cento da população
sobrevivesse, o que significava 50 a 80 indivíduos.
Regrediríamos ao ponto zero.
Para que a reprodução se efectivasse o mais rapidamente possível e em
2285 atingíssemos um número populacional estável de cerca de 100
membros, propus à Assembleia que a partir do terceiro mês se iniciasse a
fornicação colectiva entre os 19 homens e as 40 mulheres.
Foi esta a notícia que nos chegou do Conselho dos Pantocratas como
resposta aos nossos sucessivos apelos de contacto no dia em que nasceu a
primeira criança neo-europeia fora da Europa.
Na Assembleia desse dia, referi que o tempo se encontrava suspenso
sobre a Nova Europa.
Respondemos louvando e engrandecendo a atitude do Conselho e
informando do nascimento da primeira criança.
O Conselho, dissemos, mostrara-se digno da história da Nova Europa.
Desconhecíamos a resposta dos Mandarins, mas todo o passado concorria
para que esta se consubstanciasse num categórico «Exterminem-nos».
O Absolutismo Oriental não conhecia outra espécie de linguagem face ao
nosso ético e categórico não.
Numa segunda mensagem, o Conselho louvava os nossos progressos e
regozijava-se fortemente pelo nascimento da primeira criança, «esperança
de um futuro diferente, mas sempre futuro», registava.
Só uma nova comunidade estável poderia gerar crianças.
Não esperássemos mais respostas, diziam, o desenlace deveria revelar-se
fatal.
O tempo, hoje suspenso, poderia tornar-se amanhã um potente e
aterrorizante vazio.
Se as ordens mandarínicas fossem de extermínio, os membros do
Conselho dos Pantocratas suicidar-se-iam na totalidade à mesma hora e no
mesmo local, num dos principais Conglomerados, a 200 quilómetros de
Munique, iniciando deste modo o que deveria ser o suicídio de uma
população de 100 milhões, que preferia morrer honrada a sobreviver
humilhada.
Caso não houvesse mais contactos, eu deveria registar no livro o fim da
Nova Europa.
Exactamente assim, não havia esperança que de outro modo fosse.
Num post-scriptum sincero e muito emotivo, o Conselho avisava a nova
comunidade de que os nado-mortos, aquando do nascimento em
comunidades pouco evoluídas como a nossa, atingiam os 200 por mil.
Deveríamos ter o máximo cuidado na higiene e nada deixar à
imponderabilidade.
Um dos antigos sincretistas recebeu a mensagem e dirigiu-se a correr à
nossa maternidade-hospital-farmácia-laboratório com cinco camas cobertas
por mantas compradas a Ponta Delgada.
Tínhamos previsto que cinco mulheres podiam dar à luz no mesmo dia,
ou em dias muito próximos.
Pelos nossos cálculos, fortemente falíveis, como se revelaram, pensámos
muito difícil que mais de 10 por cento das nossas mulheres entrassem ao
mesmo tempo em trabalho de parto.
Quando o ex-sincretista chegou pesaroso com a mensagem, alguns de nós
chorávamos de alegria, eu incluído.
Acabara de nascer, ridente, barulhenta e protestativa a primeira menina
neo-europeia na ilha do Pico.
Desconhecia-se a paternidade individual, mas a mãe, inchada de dores
após três horas de sólido sofrimento, reclamava para si a menina como
«sangue do seu sangue», assim o disse, uma frase estranhíssima, fortemente
animal, entre lágrimas, ranho, baba de saliva e lábios abertos sorridentes.
Todos exultámos pela lúcida sabedoria do Conselho dos Pantocratas ter
insistido em repetir anualmente a sessão de tortura de uma bárbara a dar à
luz o seu filho.
Sem esta experiência visual e existencial e sem o apoio da Joana, que já
tinha parido um bebé e se encontrava grávida de novo, não tenho a certeza
de que esta primeira criança tivesse nascido tão rápida e prodigamente.
Como condutor da comunidade, foi-me dado o privilégio – o que digo?, a
superbíssima honra – de ser o primeiro homem a pegar, a acarinhar e a
balouçar o bebé.
Não resisti, todo o meu corpo se contorceu resistindo, mas os sentimentos
emotivos levaram-no vencido e involuntariamente, de um modo explosivo,
vi-me, para espanto de todos, a acariciar a face direita do bebé com um
afectivo beijo prolongado, como se os meus lábios não ousassem despregar-
se da sua pele tenra e acetinada.
Vi-me rodeado da maioria dos meus companheiros homens.
Todos iam entrando imprevistamente na larga cabana hospital-
maternidade quando, espreitando entre as frinchas de madeira, deram
comigo a amparar entre os braços aquele pequenino ser que para todos nós
representava os dois símbolos máximos da humanidade – a renovação da
vida natural e o preenchimento voluntário do tempo futuro pela
humanidade.
Olhando de través, percebi que a maioria das mulheres chorava, melhor,
lacrimejava, mas lacrimejava de um modo visível, sólido, e alguns homens,
acompanhando as mulheres, choramingavam também.
Eu próprio, ambicionando manter o decoro apropriado, não me contive de
verter uma lágrima, uma única lágrima, só uma, mas grossa, gorda, como se
desde a fuga para os Açores ela se encontrasse bloqueada por um dique
racional e ora, liberta, se deixasse escorrer com alegria por uma das minhas
faces.
Pela primeira vez desde que tínhamos aterrado no Pico, havia mais de um
ano, as emoções suplantavam total e irremediavelmente o uso ponderado da
razão.
Eu não sabia se havia de me congratular ou entristecer.
A razão era fria, mas ponderada; a paixão, quente, irreflectida e
caprichosa, parcial, muito parcial, mas bela e feliz.
Não fui eu quem transmitiu à comunidade a nefasta notícia do presumível
derradeiro fim da Nova Europa.
Era este o derradeiro fim, os Mandarins não perdoariam a recusa do acto
de misericórdia aristocrata de poupança de 500 mil neo-europeus,
justamente os nossos cientistas, os melhores dos Sincretistas e Reitores.
Considerariam a recusa uma obstinada estupidez, merecedora de um
castigo definitivo.
Possivelmente, não esperariam pelo suicídio dos membros do Conselho
dos Pantocratas.
Assassiná-los-iam, decomporiam os seus corpos com os seus raios
silenciosos e invisíveis, sugariam as suas células com os potentes
aspiradores moleculares e projectá-las-iam no espaço interplanetário por
onde transitavam os inflamantes ventos solares.
Devia tê-lo feito, mas, falando em emoções, não tive coragem.
Ouvi a funesta notícia e fingi que não tinha percebido bem, aproximei-me
do rancho de homens que contemplavam o bebé e deixei que a notícia
passasse entre todos antes de a contar à comunidade inteira, reunida em
Assembleia, como era meu dever.
Incapaz de guardar para si um segredo tão aterrador, o ex-sincretista
espalhou a notícia.
Jorge Tomás recebera igualmente a notícia no seu computador
arqueológico, enviada por uma emissora da Worldweb do Império
Americano.
Olhava para mim e confirmava-o, ostentando um semblante sério e
grave.
Disse a palavra mais apropriada – FIM.
Esta palavra, sussurrada por Jorge Tomás, entristeceu-me a um ponto
limite, o ponto do desespero.
À lágrima que rolara solitária juntaram-se novas, agora de tristeza.
De eufórico, o ambiente no hospital-maternidade tornara-se fúnebre.
Reinava o peso do silêncio.
Debrucei-me sobre a cama da parturiente, porventura a única entre os
Sessenta que desconhecia a terrível notícia e, aterrorizada, olhava
boquiaberta para as nossas faces chorosas, incapaz de desvendar o
inescrutável mistério escondido pelos nossos rostos bisonhos.
Pousei-lhe a menina no colo e beijei-a paternalmente.
A todos disse, nunca como neste momento o presente esteve tão
carregado de passado e tão grávido de futuro.
Como já sabeis, hoje é dia de profundo pesar e luto.
A esta hora, ou dentro de dias, a Nova Europa morrerá fisicamente.
Quinhentos milhões de chineses substituir-nos-ão na totalidade do nosso
querido continente.
Mas hoje, cumprindo o sábio vaticínio do Conselho dos Pantocratas,
nasceu o primeiro neo-europeu fora da Europa, augurando uma nova
civilização, símbolo da que deixámos para trás e ora definitivamente
perdemos.
Sejamos dignos da herança recebida, é o que vos peço.
Há muito receávamos esta hora, esperançados de que ela nunca viesse.
Mas veio, cumpriram-se os mais horrendos presságios, e o corpo dos
nossos irmãos neo-europeus encontrar-se-á dentro em breve pulverizado e
espalhado pelo vastíssimo espaço do nosso sistema solar, sem
possibilidades de recuperação.
Não devemos esperar piedade da Grande Ásia, pelo que a antiga
esperança, fonte de ânimo no coração e na razão dos homens, deve morrer
aqui, hoje, agora.
Reunir-nos-emos ao fim do dia, ao poente, como o fazemos diariamente.
Mas hoje será um dia especial.
Não falaremos.
Ficaremos em silêncio até o Sol se pôr, como se estivéssemos assistindo,
visceralmente, à morte definitiva da nossa querida Nova Europa.
Logo que o céu escureça, acenderemos fogueiras em vez de candeeiros e
cada um, voluntariamente, à luz arrepiante das labaredas, relembrará
mentalmente os seus antigos familiares, os antigos amigos e a antiga
sociedade.
A convidada de honra da sessão será esta menina, nascida do nosso
ingente esforço de organização para, aqui, no Pico, perdurarmos
imperfeitamente o que se revelou até há cerca de um ano a organização
social mais perfeita criada pela humanidade.
PASSAGEM DE TESTEMUNHO
AS NOVAS CASAS
Como Professor, iniciei uma vida nova, a última fase da minha vida.
Desde que aterrara no Pico, vinha sentindo o corpo fraquejar.
A respiração tornara-se não opressiva, mas ruidosa, como um silvo de
vento que permanentemente atravessasse a minha garganta; os músculos,
menos fortalecidos, fatigavam-se mais rapidamente, o corpo pesava-me a
andar, como se arrastasse um fardo invisível às costas, que me forçava a
dobrar o peito; os ossos rangiam-me e, por vezes, à noite, doíam-me.
Percebi que tinha um prazo marcado para morrer.
Sabia que morreria logo após a finalização do livro da Crónica da
Criação e Extinção da Nova Europa.
Verdadeiramente, esta ainda não fora dada como extinta pelos Mandarins,
apenas como ocupada.
Só daria o livro por encerrado quando tivesse a certeza do fim derradeiro
da Nova Europa.
Até lá, tentaria sobreviver, entretendo os meus dias com pouco esforço
físico e muita escrita e meditação.
O espírito impor-se-ia ao corpo, forçando-o a arrastar-se, mesmo com
contínuas pontadas no fígado, que os chás da Joana não travavam, e uma
tremura incomodativa na ponta dos dedos.
Sentia-me tão certo de que só morreria após finalizar o manuscrito que
dava por mim artificialmente distraído, atrasando-o, para que sobrevivesse
um tempo mais, ainda que curto.
A libertação das funções de chefia ou coordenação dos Sessenta abriu-me
um tempo vasto nos meus dias.
Escrevia apenas uma parte do dia de modo a prolongar um pouco mais o
meu tempo de vida.
Fazia batota com a vida.
E a minha vasta experiência dizia-me que perdemos sempre que fazemos
batota com a vida.
Por isso, entreguei-me com denodo à minha nova tarefa, que acolhi com
alegria e prazer.
Com as novas funções, habituei-me a substituir a redacção do livro pela
redacção de resumos para as crianças sobre a história da civilização
humana, aproveitando alguns textos incluídos por inteiro no livro de
crónicas ou neste, de rascunho, que serve de anteparo inspirador para a
redacção do definitivo.
O COLÉGIO
2294
A Crónica da Nova Europa foi terminada, como acima referi, mas não
morri.
Convencera-me de que, mal a terminasse, morreria.
Estes últimos anos tenho-a reescrito, alterando-lhe muitas páginas
apressadamente escritas.
Emendo-a no sentido de a aperfeiçoar.
Aqui está ela à minha frente – mais ou menos 500 páginas soltas de papel
almaço, que recuso que sejam passadas para o computador e impressas,
ainda que para isso seja deveras solicitado.
Todos se oferecem para passá-las, ou, pelo menos, digitalizá-las como
imagem.
Recuso.
Sinto, agora, que quando a não puder alterar mais em forma manuscrita
nada me restará para fazer neste mundo.
Então, sim, morrerei.
São rezinguices de velho, talvez.
Porventura superstições, mas rezinguices e superstições que a ninguém
prejudicam.
Receio, também, é verdade, que uma tecnologia superior se infiltre na
memória dos nossos computadores e subtraia o livro, revelando ao mundo a
nossa identidade.
Porém, a verdade maior reside no prazer ilusório de ainda me saber útil e
de ter um papel a desempenhar no interior da comunidade.
MULTA COMPORTAMENTAL
A COMUNIDADE
Dez anos depois de instalados na ilha, éramos já, não um grupo, mas uma
autêntica comunidade, dotada dos serviços necessários à sobrevivência
quotidiana e com não menos de uma centena de actividades diversificadas,
que realizavam pessoalmente os seus autores e executores.
Do ponto de vista alimentar, não éramos ainda totalmente autónomos,
mas para lá caminhávamos e tínhamos esperança de que no prazo de um
novo decénio assim nos tornássemos por via de uma dieta exclusiva de
vegetais, legumes e cereais.
Em breve, dispensaríamos o leite de vaca, a manteiga, o queijo e os ovos
de galinha.
Alguns dos nossos ex-sincretistas tinham estudado e copiado os
medicamentos comprados em Ponta Delgada e, na vertente farmacêutica,
tínhamos alguma independência.
Substituíamos os preparados químicos por compostos vegetais, com
resultados e eficácia animadores.
Inclusivamente, realizávamos pequenas operações cirúrgicas, como ao
apêndice das crianças e, no meu caso, às cataratas, e, a dois adultos,
tínhamos retirado tumores sebáceos.
Através de modelos informáticos, consultados na Worldweb,
preparávamo-nos para efectuar operações de maior risco, inclusive ao
coração.
Sofríamos de imensas carências, justamente porque sabíamos o que
podíamos fazer mas não dispúnhamos de técnica e de instrumentos para tal.
Por várias vezes nos perguntámos porque o Conselho de Pantocratas não
permitiu que andróides especializados nos acompanhassem, e a resposta era
sempre a mesma.
Os andróides necessitariam de ligação ao Grande Cérebro Electrónico.
Orgulhávamo-nos do amplo progresso realizado numa dezena de anos,
dotados de um plano moral excelente e de um optimismo histórico muito
sólido.
O segredo deste sucesso residia na educação comum recebida nos
Colégios da Nova Europa e numa fortíssima vontade de sobrevivência, que
nos responsabilizava como herdeiros de uma civilização, minimizando os
desejos individuais face à vontade geral.
Esta era só e exclusivamente uma: prolongar e continuar a civilização dos
nossos pais. Grande a responsabilidade, grande a vontade, óptimo o
caminho percorrido.
O IMPÉRIO AMERICANO
A EDUCAÇÃO
OS ANDRÓIDES
Devo confessar que, a existir uma filosofia nova nos americanos, seria a
do higienismo.
São o povo mais limpo da terra, construíram andróides domésticos
especializados em detecção de bactérias, uma espécie de elite entre os
robots, que, após o trabalho dos restantes, percorrem os espaços em busca
de resíduos invisíveis, descobrindo e assinalando vírus e bactérias,
conhecidos e incógnitos.
Nas naves, no final de cada viagem, não entram novos passageiros sem
que o andróide vistorie todos os espaços com os seus portentosos sensores
químicos, pequeníssimos aparelhos que funcionam igualmente como um
mini mas potente laboratório de identificação de vírus e bactérias,
estudando-os e eliminando-os, se for caso disso.
Na maior parte das vezes, limitam-se a isolá-los para futuro estudo.
Em todos os locais públicos e privados, a acção destes andróides tem
prioridade sobre todas as restantes actividades, e mais de uma vez
importantes assembleias comerciais e técnicas foram interrompidas porque
um andróide assinalou nos seus sensores o aparecimento de uma simples
mancha desconhecida de sujidade, podendo, segundo a regulamentação,
desenvolver algum tipo de toxicidade ou contágio.
Uma simples gripe, propiciada por uma mudança brusca de temperatura,
pode lançar o pânico no interior de uma família ou de uma empresa,
gerando o isolamento absoluto do doente, acompanhado apenas por robots
até ao desaparecimento do que consideram ser um perigoso foco de
infecção.
Todos os lares e todos os locais de trabalho possuem andróides peritos em
medicina preventiva, que inspeccionam regularmente os sintomas
fisiológicos dos seres humanos, integrando-os em tabelas de índices de
salubridade pública, adequadas ao género e à idade.
O desvio de qualquer um destes índices tem como resultado imediato o
internamento em Hospitais de Manutenção até à reposição da normalidade
física e biológica.
Neste sentido, seja pela alimentação, seja pelos hábitos diários, todos os
produtos, actividades ou bens que possam molestar minimamente a saúde
humana são radicalmente proibidos, substituídos por outros que optimizam
o desempenho, fisiológico e neurológico.
Com o auxílio da medicina regenerativa semelhante à nossa, uma política
técnica acertada de transplantes e o aperfeiçoamento informático do
fenótipo do nascituro, o cidadão médio, cuja família paga do seu bolso
todas as despesas relacionadas com uma vida saudável, ou por ela paga a
empresa para que trabalha, vive até cerca dos 120 anos, 10 anos menos do
que pode viver um neo-europeu.
Diferença tão substancial reside sobretudo na aplicação do hipercórtex ao
cérebro humano no caso do neo-europeu, subtraindo-lhe a corrosão dos
sentimentos e das emoções na vida do dia-a-dia, autêntica bomba de
desgaste acelerador do ritmo dos diversíssimos órgãos do corpo.
Por mais racionais que os americanos tentem ser, os sistemas periféricos
do cérebro influenciam fortemente as suas condutas, antes de mais através
da dupla obsessão, neles extremamente peculiar, da higiene e da profilaxia e
da necessidade psicológica sentida de um desenvolvimento máximo da
auto-estima atingido por via do nível de realização pessoal e profissional.
Como vimos, cada americano tem de a conseguir por si próprio, partindo
do patamar legado pelos seus pais.
É, sem dúvida, do ponto de vista individual, uma vida difícil, que lhes
consome as emoções, subtraindo-lhes em média dez anos de vida.
Para que a saúde não decline, a maioria das famílias investe mais no que
possa proporcionar uma vida saudável do que na educação dos filhos.
Neste sentido, a frequência da universidade tornou-se um bem apenas
atingido por uma minoria, da qual saem na prática os técnicos que
governam a comunidade, os estados federais e até o Império.
O saber especializado encontra-se à disposição de todos através de
implantes neurológicos, mas o saber especializadíssimo é apanágio das
universidades.
A universidade continua a guardar, assim, o alfobre da mais alta elite
americana.
III
O CERCO AÉREO
A meio do dia, uma das naves maiores abriu-se, expulsando uma naveta
de transporte, que aterrou no centro da nossa comunidade.
Dela saíram três militares americanos, uniformizados, de patente superior,
um de branco, outro de verde, outro de azul.
Louros os três, altos, musculosos, peitos resistentes, pernas e braços
hirtos como os de Jorge Tomás, a testa franzida, o olhar acutilante, lábios
tensos.
Avançaram cinco passos, postaram-se diante dos Coordenadores,
evidenciando conhecimento da nossa hierarquia.
Confirmando-o, lançaram para mim um gesto oblíquo de saudação, a que
correspondi levantando a mão direita.
Da minha casa, percebi que os três militares observaram insistentemente
os grupos de crianças, sorrindo, miravam as crianças com o olhar cobiçoso
do interesse.
Sabiam tudo sobre a nossa existência.
Não valia a pena fingir o que não éramos.
A verdade devia ser dita, e foi dita por um dos Coordenadores.
Foram convidados a beber chá de Gorreana no que tínhamos designado
por Casa da Coordenação.
Todos sentados em torno de uma mesa, três frente a três.
Nós fomos directos e sinceros.
Só dissemos a verdade.
Os americanos foram directos mas não sinceros.
Só nos disseram meia verdade.
Soube a outra metade da verdade mais tarde, por Jorge Tomás, incapaz de
conter a verdade toda no peito, e cuja intervenção salvou a minha vida.
Mas não lhe estou agradecido, ele sabe-o, preferia ter morrido.
Não consigo vislumbrar o seu corpo baixo e atarracado sem sentir um
profundo rancor.
Mesmo quando me serve o chá e o pão que me mantêm vivo como O
ÚLTIMO EUROPEU.
O único que se mantém fiel aos princípios civilizacionais da Nova
Europa.
O inevitável aconteceu.
O primogénito de Jorge Tomás e a menina aconselharam-se comigo:
queriam viver juntos, ter filhos, amavam-se.
Regozijei-me, senti-me alegre, um contentamento jubiloso, saber que o
sangue neo-europeu se derramaria na linhagem genética das valorosas
famílias do Pico que, desde o século XVI, arrostavam com a desgraça do
isolamento e da infertilidade da terra basáltica e, mesmo assim, tinham
sobrevivido e humanizado a ilha, transformando-a numa terra bem-
aventurada, desgraçadamente sujeita a tremores vulcânicos.
Já tinham falado com Jorge Tomás, este aceitaria a menina em sua casa
desde que eu e a Assembleia déssemos autorização, para ele seria um
privilégio receber uma menina neo-europeia em sua casa e na sua família.
Quebraria com prazer a tradição de o primogénito da família se casar com
uma micaelense.
Outras as circunstâncias, outra a solução.
Os dois jovens já tinham falado com os pais da menina, que hesitaram.
Mandaram-nos falar comigo.
Se eu aceitasse, eles aceitariam.
Em outro momento, eu exigiria uma Assembleia – tratava-se do primeiro
neo-europeu a viver com alguém exterior à nossa comunidade, a gerar
filhos que porventura seriam educados em costumes estranhos.
Quem sabe se, devido à ascendência paterna, os filhos não se tornariam
religiosos.
Quem os demoveria?
Porém, as conversações com os militares ocupavam a nossa mente na
totalidade, não havia lugar a Assembleias.
Assim o expliquei aos três Coordenadores e aos pais da menina.
Outro dos três Coordenadores abriu as mãos, podemos ser úteis, disse.
O último dos Coordenadores amaciou a oferta, bem, temos os nossos
próprios costumes, a nossa singular família, a educação das nossas crianças,
talvez possamos viver aqui num regime à parte dos novos habitantes, por
exemplo na base da Montanha, distanciada da costa.
O militar de azul levantou repentinamente a mão e baixou-a de um modo
cortante, como o gume de uma antiga guilhotina – é sobre isso que temos de
falar, disse, seco como um bloco de granito, a voz mais alta e sólida.
O militar de verde acrescentou – gostaríamos que saíssem.
Os três Coordenadores abriram os olhos, sentiram as bocas secar-se-lhes,
humedeceram os lábios com a ponta da língua, a um deles tremeram-lhe
ligeiramente os dedos.
Os outros dois comentaram, sorrindo amareladamente, sair como?
O militar de branco foi rápido na resposta – sair, pura e simplesmente.
O militar de azul tranquilizou os Coordenadores – temos uma boa
solução, parece-nos.
O Pico terá de ficar desabitado de elementos estranhos ao Império, Jorge
Tomás ficará – repetiu, apontando para o cimo da curta colina, onde este se
sentava na areia vermelha –, é o único verdadeiro habitante da ilha e não
possui conhecimentos científicos para que dele desconfiemos, não seria
justa a sua expulsão.
Todos os restantes terão de sair.
Os três Coordenadores – informaram-me posteriormente – desejaram
naquele momento aconselhar-se comigo sobre como responder a uma
ordem de expulsão.
O militar de azul garantiu que não era expulsão, antes um pedido, pedido
que contemplava um acordo, não, não se tratava de uma expulsão.
Inopinadamente, o militar de branco perguntou quantas crianças tinha a
comunidade.
Foi-lhe respondido – entre quinhentas a seiscentas, incluindo
adolescentes.
Os três militares sorriram e tamborilaram os dedos, como se estivessem
fazendo contas.
Pareceram ganhar novo ânimo.
O militar de verde puxou de um mapa dobrado no interior do casaco de
uniforme, desdobrou-o, depô-lo sobre a mesa, ergueu o dedo demonstrador
e apontou, sorrindo, um sorriso pálido, desmaiado – eis os territórios que
cobrem os antigos estados do Texas e da Califórnia, hoje praticamente
desabitados, a Califórnia, devido às contínuas convulsões físicas havidas no
século passado, excessivamente dolorosas.
Quem sobreviveu, emigrou para a Costa Leste do Império, a maioria para
o México.
Estudámos profundamente o relevo geológico e estamos em condições de
garantir a inexistência de tremores de terra nos próximos séculos, temos
feito apelo a uma nova colonização da Califórnia.
Debalde, por maiores que sejam os benefícios oferecidos, a massa de
emigrantes é mínima comparada com a vastidão do território.
O Texas é um estado seco, desértico, praticamente inútil e dispendioso
desde que secaram os poços de petróleo, o que resta é pouco explorado
devido aos terrenos poluídos.
Vamos limpar o Texas, purificar as suas águas e terras.
Quem for para lá viver terá todas as condições, os seus filhos já viverão
num dos melhores territórios do Império.
O militar de verde retirou do bolso um computador, do tamanho da palma
da mão, desdobrou-o em três, ligou-o, passou-o para o lado da mesa onde
estavam os três Coordenadores.
Estão aqui todas as informações actuais, actualíssimas, sobre a Califórnia
e o Texas, informem-se, dentro de uma semana queremos a resposta
definitiva – ou Califórnia ou Texas.
Levantaram-se os três militares.
Os três Coordenadores permaneceram sentados, abismados.
A realidade mudara demasiado depressa, excessivamente depressa.
Não sabiam o que haviam de pensar, menos o que dizer.
Década e meia convivendo com o mar, o céu, o sol, a Montanha, o mundo
avançando lentamente, uma conquista por dia, por vezes duas, para que no
futuro, porventura dentro de um século, se retornasse ao patamar europeu.
Agora, de supetão, o mundo reviravolteava-se de novo, um buraco abria-
se aos pés da comunidade, sugando-lhe o futuro previsto e desejado.
Enviavam-na – convidavam-na, diziam – para o fim do fim do mundo, o
Texas desértico, que ora receberia um programa de despoluição ambiental,
ou a ardente Califórnia, ora de terras sossegadas.
Um e outro territórios onde ninguém desejava viver e onde todo o esforço
civilizacional da comunidade nos últimos quinze anos se revelaria
porventura inútil.
Teriam de começar de novo a partir do zero.
Ou talvez não, talvez a tecnologia americana ajudasse, os seus técnicos se
mostrassem generosos, porventura dispensassem andróides especializados
que contribuíssem para a aceleração científica da Novíssima Europa.
O MEU VOTO
O ÚLTIMO EUROPEU
Novíssima Europa,
ilha do Pico, Açores,
ano de 2299