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Vidas e Mortes de Abel Chivukuv - Jose Eduardo Agualusa
Vidas e Mortes de Abel Chivukuv - Jose Eduardo Agualusa
Vidas e Mortes de Abel Chivukuv - Jose Eduardo Agualusa
Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
quetzal@quetzaleditores.pt
Tel. 21 7626000
ISBN: 978-989-722-952-7
A segunda morte de Abel Epalanga Chivukuvuku
NO PRIMEIRO DIA DE NOVEMBRO DE 1992, DOMINGO, DIA DE TODOS-OS-
SANTOS, o noticiário das cinco da tarde da Radio France
Internationale, RFI, na sua emissão para África, anunciou a morte do
engenheiro Jeremias Kalandula Chitunda e do brigadeiro Abel
Epalanga Chivukuvuku, dois dos mais destacados dirigentes da
União Nacional para a Independência Total de Angola, UNITA.
Ao ouvir o noticiário, Abel não mostrou surpresa:
— Estamos mortos. Lá fora já se sabe que morremos. Estamos
então mortos para o mundo.
Jeremias Chitunda, de 50 anos, um homem baixo e encorpado,
de modos suaves e linguagem esmerada, não conseguiu esconder o
susto:
— Tu, que foste militar, já alguma vez enfrentaste uma situação
tão perigosa como aquela em que estamos agora?
O seu companheiro encolheu os ombros. Alto, ágil, com olhos
vivos e um rosto de traços perfeitos, Abel fazia grande sucesso entre
as mulheres, o que enfurecia os homens de Luanda. Dali a dez dias,
a 11 de novembro, completaria 35 cacimbos, data em que também
se festejariam os dezassete anos da independência de Angola.
— Sim, mais-velho, passei por muitas situações de risco. A
diferença é que numa operação militar temos normalmente um
ponto de recuo. Aqui, não há saída…
Os dois homens estavam escondidos numa vivenda, nas
proximidades do complexo residencial atribuído pelo governo a
Jonas Savimbi, em Luanda. Durante os últimos meses, mesmo
depois de o Jaguar Negro dos Jagas (um dos nomes de guerra que o
líder da UNITA gostava de utilizar, o que sempre me pareceu um
pouco estranho, dado o jaguar ser um animal nativo das américas)
ter abandonado a capital, as duas grandes casas do complexo
continuaram a funcionar como uma espécie de quartel-general do
seu movimento.
O Miramar, onde se erguia a propriedade, era então — e ainda é
—, um dos bairros nobres da cidade, ali se concentrando
embaixadas e residências do corpo diplomático, de ministros e
generais. Nos edifícios que receberam Jonas Savimbi, durante quase
um ano, funciona atualmente o Complexo Hoteleiro da Endiama,
CHE, local utilizado pela alta burguesia angolana como cenário de
faustosas festas de casamento.
Depois de analisarem a situação entre Salupeto Pena, Ben-Ben,
Jeremias e Abel, Jeremias optou por se retirar, manhã cedo, da casa
de Savimbi, receando que esta viesse a ser atacada por jovens
milicianos. Abel acompanhou-o. Para evitar as ruas, patrulhadas
pelas milícias, os dois homens optaram por saltar os muros,
atravessando os bem cuidados quintais e jardins das vivendas do
quarteirão. Jeremias Chitunda, muito aflito, corria em passinhos
curtos, suando abundantemente, enquanto segurava uma pasta
diplomática. Dava uma breve corrida, atirava a pasta para o quintal
vizinho, e depois Abel ajudava-o a galgar o muro. Para o vice-
presidente da UNITA, um engenheiro de minas formado nos EUA,
aquele era um exercício violento e inesperado. Finalmente,
encontraram uma porta aberta e entraram. Na altura julgaram que
fosse a residência do embaixador de França. Abel deixou o
engenheiro a repousar, sentado numa cadeira, e arriscou uma breve
incursão. Vasculhou a cozinha, procurando comida. Não encontrou
quase nada. Regressou, trazendo duas cervejas. Chitunda irritou-se:
— Estás a roubar? Tu, um dirigente da UNITA? Como te atreves?
O antigo guerrilheiro estendeu-lhe uma das garrafas:
— Calma, mais-velho. Seja como for, já entrámos em casa alheia.
Além disso, eu estava à procura de comida. Há quanto tempo não
comemos? Quem rouba comida porque tem fome não é criminoso.
Infelizmente, só encontrei cerveja…
— E tu agora bebes álcool? Não aprendeste nada na Missão do
Dondi?
— Nunca bebi cerveja. Mas se não for agora, será quando? Esta
é uma boa ocasião. Vá, beba uma comigo…
Jeremias Chitunda aceitou a garrafa. Ao longe ribombavam
explosões. Mais perto, escutava-se o pipocar de armas automáticas.
Desde a passada sexta-feira que Luanda estava em guerra aberta,
com os militantes e dirigentes do principal partido da oposição sendo
caçados, um a um, por efetivos da Polícia e do Exército. O pior que
lhes poderia acontecer era caírem nas mãos dos milhares de jovens
milicianos armados pelo governo que corriam pelas ruas da cidade,
aos gritos, com fitinhas de diversas cores amarradas à cabeça. Esse
adereço fez com que ficassem conhecidos como «fitinhas».
Abel, com o seu ouvido treinado por muitos anos de combate nas
matas de Angola, foi o primeiro a escutar as vozes:
— Vem aí alguém, é melhor nos escondermos…
Esconderam-se na casa de banho. Vários homens entraram na
arrecadação, conversando uns com os outros num idioma
impenetrável.
— Que língua é essa? — sussurrou Chitunda.
— Não sei. Nunca ouvi nada parecido. Certamente não são
angolanos, e isso é uma boa notícia — soprou Abel. — Vou aparecer.
— Não faças isso. É perigoso…
Demasiado tarde. Abel saiu, de mãos no ar, assustando os quatro
homens. Eram filipinos e montavam guarda à residência. Em inglês,
Abel explicou quem era. Lamentou ter entrado sem autorização e
pediu que o deixassem ficar escondido até a situação acalmar e tudo
se esclarecer. Os seguranças tinham vindo à procura de baterias. O
proprietário, diretor da Chevron, refugiara-se com a família numa
outra casa. Muitos moradores haviam optado por abandonar o
bairro, nos dias anteriores, com receio de confrontos, dada a
proximidade da vivenda de Savimbi. Entendiam a situação de Abel e
não viam problema em que continuasse escondido. Mal os filipinos
partiram, Chitunda saiu da casa de banho, num estado de extrema
agitação:
— Pronto! Esses aí vão nos denunciar. Daqui a pouco temos os
fitinhas na porta…
Logo anoiteceu. Passados minutos escutaram o ruído de passos,
gente correndo no jardim, vozes abafadas, e voltaram a esconder-
se. Então, alguém gritou:
— Mais-velhos! Mais-velhos! Maninhos, onde estão vocês?!…
Abel suspirou, aliviado:
— É a nossa gente.
Dois soldados aguardavam no quintal. Tinham vindo desde a
casa de Jonas Savimbi, trazendo a informação de que o brigadeiro
Amílcar Katokessa os mandara chamar. Voltaram correndo, saltando
muros, para desespero de Chitunda.
O brigadeiro Katokessa, chefe da guarnição da casa de Savimbi,
disse-lhes que conseguira evacuar o engenheiro Salupeto Pena e o
general Ben-Ben, numa coluna com dois Unimogs1 de proteção, um
a abrir e outro a fechar. Não sabia, contudo, se a coluna tivera
sucesso e deixara Luanda para trás:
— Se vocês acham que estão seguros, onde quer que se tenham
escondido antes, regressem. Se preferirem, organizo uma segunda
coluna para vos levar até Caxito. O mesmo esquema, um Unimog à
frente e outro atrás, e dois carros, com vocês e com os guarda-
costas. A última possibilidade é tentarmos furar o cerco a pé. Nesse
caso irei com a minha tropa, disparando, lutando até à última bala…
Abel sacudiu a cabeça, cético:
— Coluna de carros?! Não. Vamos morrer. É melhor
regressarmos…
Jeremias Chitunda, contudo, só pensava em abandonar Luanda:
— Se os outros conseguiram sair, nós também conseguimos…
Abel tentou demovê-lo:
— Mais-velho, eles foram, sim, mas não sabemos se conseguiram
sair vivos da cidade. Além disso, levaram o Mercedes blindado do
velho Jonas. Como vamos no fim, iremos enfrentar agora mais
resistência. Estaremos muitíssimo mais desprotegidos…
— Não importa, temos de arriscar! Luanda é uma armadilha!
Poucos dias antes do início dos confrontos, Maria Victória, a
esposa de Abel, escapara para o Huambo, acompanhada pelos dois
filhos do casal. Nessa noite, ao reentrar em casa, Abel encontrou em
cima da cama um colete à prova de balas, que comprara, anos atrás,
em Nova Iorque. Junto do colete estava um bilhete com uma
mensagem escrita pela mão de Maria Victória: «Pelos teus filhos,
usa isto.»
Enquanto Jeremias Chitunda discutia com Katokessa, Abel deu
um salto a sua casa, contígua à de Savimbi, vestiu o colete, guardou
um maço de notas de 100 dólares no bolso, e regressou. Disse aos
dois homens:
— Pensei melhor. Se o plano é sair da cidade, nesse caso prefiro
ir com a tropa, a pé, tentando furar o bloqueio a tiro.
Jeremias Chitunda olhou-o, desesperado:
— Vai tu então a pé. Eu sigo no carro, na coluna.
Abel compreendeu que nunca o conseguiria demover:
— Muito bem, mais-velho, eu vou consigo. Mas pode ter a
certeza que isso é morte certa!
Chitunda não lhe prestou atenção. O brigadeiro Katokessa
mandou preparar os carros, e escolheu os soldados que os deveriam
proteger. Três pelotões, num total de setenta homens bem armados,
protegiam as instalações. Ficou decidido que Abel e o vice-
presidente seguiriam no primeiro carro, um Toyota Cressida, e os
guarda-costas num veículo idêntico, logo atrás deles, com um
Unimog protegendo a dianteira e outro fechando a coluna. A
despedida foi grave e tensa. Poucas horas antes tinham
acompanhado, através dos rádios portáteis Motorola, o dramático
linchamento de alguns dos dirigentes do movimento. Abel nunca
esqueceria em particular o testemunho, em tempo real, do velho
Eliseu Chimbili, seu primo, responsável pelos serviços administrativos
da UNITA em Luanda:
— Estão a cercar a minha casa. Alguém pode vir em meu
socorro?! O que devo fazer?
— Saia já e procure refúgio na casa de um vizinho!
— Não consigo! Não tenho mais tempo... Estão a saltar o muro!
— Saia! Saia!
— Estão a correr na minha direção. Estão a disparar… Ai, que
morro!… Estou a morrer!…
Abel e Jeremias instalaram-se atrás. À frente, ao lado do
motorista, sentou-se um jovem capitão, chefe da segurança do vice-
presidente. A coluna alcançou a rua sem problemas. Não se via
vivalma. Avançaram através da densa escuridão, com as luzes
apagadas, escutando, ao longe, o amplo eco das explosões.
Cruzaram o largo que hoje leva o nome do homem que tentou
mediar o diálogo entre o MPLA e a UNITA, o diplomata maliano
Alioune Blondin Beye, e, em menos de um minuto, irromperam no
meio de um inferno. Por entre o furioso crepitar das balas batendo
contra a carroçaria dos carros, rompendo vidros e metal, Abel
escutou a voz assustada de Jeremias Chitunda pedindo ao motorista
que acendesse os faróis.
— Nem pensar! — contestou o brigadeiro.
Os carros chocavam de frente contra pneus, troncos e todo o tipo
de obstáculos com que, nas últimas horas, as milícias haviam
bloqueado as estradas. O Unimog da frente conseguiu furar a
primeira barricada, seguido pelos restantes carros. Chitunda voltou a
gritar:
— Não se vê nada, homem. Ligue os faróis!
Habituado a cumprir ordens, o motorista obedeceu,
transformando o Cressida num alvo iluminado. O tiroteio aumentou.
No instante seguinte, o carro galgou o passeio e embateu
violentamente contra uma casa. Abel viu Jeremias Chitunda
debruçado sobre o assento da frente, inanimado. Sacudiu-o:
— Temos de sair, mais-velho…
Chitunda não respondeu. O antigo guerrilheiro conseguiu abrir a
porta do carro e saltou para o passeio. A intenção dele era correr até
encontrar um abrigo, uma parede, uma árvore, ou talvez um muro
que pudesse galgar. Para sua surpresa, tombou no chão,
desamparado. Não sentia nenhuma dor, nem medo, raiva, ou
qualquer outra emoção humana. Apenas um gelo terrível nas
pernas. Rastejou até à porta da casa mais próxima, abriu-a e entrou.
Um homem encarou-o, aterrorizado:
— Quem é você?
— Sou Abel Chivukuvuku, vosso filho. Estou ferido. Por favor,
deixem-me entrar…
Na sala, Abel percebeu a presença de mulheres e crianças, todos
eles estendidos no chão, tentando abrigar-se atrás da frágil mobília.
Estendeu-se ao lado deles. Decorridos breves minutos a porta voltou
a abrir-se e entrou, rastejando, o chefe da segurança de Jeremias
Chitunda. O jovem olhou em redor, sem uma palavra, como se
estivesse estudando a situação. Depois, sempre em silêncio, com a
mão firme, tirou a pistola do coldre, encostou-a à têmpora direita e
disparou.
Na sala, sucedeu-se um intenso instante de assombro, e logo a
família inteira irrompeu em altos choros e gritaria. Levantaram-se,
abriram a porta e fugiram para a noite, deixando Abel sozinho, ao
lado do cadáver do infeliz capitão.
«Agora sim, estou perdido», pensou o brigadeiro. Arrastou-se
penosamente até um dos quartos. Despiu a camisa e o colete à
prova de bala. Rasgou a camisa, e com o tecido improvisou garrotes,
tentando controlar a hemorragia em ambas as pernas. Finalmente,
abrigou-se debaixo da cama.
Uma violenta explosão estremeceu as paredes. Alguém lançara
uma granada para a sala. Ao estrondo sucedeu-se o brutal alarido
da turba, festejando o ataque:
— Morre, kwacha! Morre!
Uma voz forte, imperativa, sobrepôs-se às restantes:
— Não gastem mais granadas! Tragam gasolina. Vamos queimar
o gajo!
— Eu vou, chefe João Mulato, já estou a ir…
A escolha, pensou Abel, é entre morrer queimado ou morrer
fuzilado. Gritou:
— João Mulato! João Mulato! Não deitem fogo à casa. Eu sou
Abel Chivukuvuku!…
Silêncio. Os atacantes não imaginavam o tamanho do peixe que
lhes caíra na rede. Escutou-se então a mesma voz forte, agora um
pouco hesitante:
— És mesmo tu, Abel Chivukuvuku?!
— Sou eu mesmo…
— Pois então sai com as mãos no ar!
— Não consigo levantar-me. Fui atingido nas duas pernas.
Nova explosão. Abel teve a sensação de que aquela fora ainda
mais violenta do que a primeira. A granada devia ter caído muito
perto. A vozearia aumentou:
— Sai, filho da puta, kwacha de merda!
O antigo guerrilheiro enfureceu-se:
— Não lancem mais granadas, cabrões! Cobardes! Estou ferido e
desarmado…
— Sai agora! Sai com as mãos para cima ou deitamos fogo à
casa!
Abel arrastou-se até à sala. Apoiando-se a uma das paredes,
num esforço enorme, conseguiu colocar-se de pé. Então gritou:
— João Mulato, podem entrar! Já estou na sala, de pé!
Enquanto escutava o rápido tropel dos jovens milicianos,
lançando-se contra a porta, aos gritos e insultos — enquanto
esperava as balas, as pancadas, a cruel morte que viria —, Abel
Chivukuvuku viu-se a si próprio criança, no Dondi, escalando as
mangueiras e nespereiras da horta familiar; viu os meninos vestidos
de fato e gravata, na hora do culto, e voltou a experimentar a
emoção dos tempos em que, à beira do palco, escutava o seu irmão
a cantar com os Cadência 7, a melhor banda de rock do planalto
central de Angola, nos vertiginosos anos setenta.
Pelo menos morreria de pé. Ele, Abel Epalanga Chivukuvuku,
filho de Pedro Sanjango Chivukuvuku e de Margarida Chilombo
Chivukuvuku, descendente em linha direta do grande rei Ekuikui II,
que tem hoje uma estátua em bronze de seis metros de altura na
vila do Bailundo.
Ekuikui II não se envergonharia do neto.
1 Unimog é a designação de uma série de camiões para todo o tipo de terreno, fabricados
pela Mercedes-Benz. Devido à sua robustez, tem sido muito utilizado como veículo militar.
A linhagem dos homens-pássaros
1
APENAS TRÊS SEMANAS APÓS TER TOMADO POSSE COMO DEPUTADO, Abel
Chivukuvuku é de novo convocado para o Andulo, juntamente com
Isaías Samakuva e Aniceto Kapapelo. Jonas Savimbi recebe-os aos
três, em simultâneo. Conversam placidamente sobre a experiência
dos últimos dias e, depois, cada qual regressa aos respetivos
alojamentos. Ainda nessa noite, Abel apercebe-se de que Savimbi
mandara chamar uma segunda vez Samakuva e Kapapelo, para
conversas separadas. A ele, ignorara-o completamente.
Na manhã seguinte, os três homens retornam a Luanda. Na casa
onde vivia Isaías Samakuva os americanos tinham instalado um
sofisticado sistema de comunicações, de forma a que os dirigentes
da UNITA pudessem conversar com Jonas Savimbi sem serem
escutados pelos serviços secretos governamentais.
— Normalmente, o velho Jonas chamava os três: eu, o Kapapelo
e o Samakuva — recorda Abel. — Ele repetia sempre as mesmas
instruções a cada um de nós. Um dia chamou-nos e lá fomos. O
mais-velho Samakuva foi o primeiro a falar e percebi logo que
alguma coisa estava mal. Lembro-me do Samakuva muito tenso,
repetindo: «Desculpe, Dr. Savimbi, mas isso não é verdade!»
Finalmente, Isaías Samakuva desliga, visivelmente perturbado.
Pede então aos outros dois homens que se sentem com ele na sala.
Diz-lhes que Jonas Savimbi estivera a conversar com o presidente do
Gabão, Omar Bongo, o qual se deslocara a Luanda para assistir à
tomada de posse do GURN.
«Já perdeste todos aqueles teus homens», terá dito Bongo a
Savimbi. «Eles estão a fazer outro caminho.»
Segundo Samakuva, o líder da UNITA, muito nervoso, insistira
várias vezes na acusação de Bongo:
— Vocês estão a fazer outro caminho? Estão mesmo a fazer outro
caminho?!
Jonas Savimbi também teria dito a Samakuva que confiava nele,
mas não em Abel.
— Se o Abel fizer alguma coisa, por favor, você, Samakuva, fica
fora disso.
Abel Chivukuvuku escuta a narrativa de Samakuva, com os
nervos à flor da pele:
— Foi mesmo isso que o velho disse?
— Foi…
— Podes repetir?
Isaías Samakuva volta a repetir tudo o que Jonas Savimbi lhe
dissera.
— Está bem, se o caso é esse, então a desconfiança do velho em
relação a mim não vai passar nunca. E eu conheço os factos da vida.
Um dia destes acabarei assassinado. Comunique ao Dr. Savimbi que,
a partir de hoje, me demito de presidente do grupo parlamentar. Se
ele autoriza que eu continue como deputado, continuo. Se não,
demito-me como deputado. Se ele autoriza que continue como
membro da UNITA, continuo. Se não autoriza, nesse caso saio da
UNITA.
— Queres mesmo que comunique isso? — pergunta Samakuva,
assustado.
— Comunica!
Samakuva comunica. No dia seguinte, Jonas Savimbi manda um
avião para o levar até ao Andulo. Mal regressa, Samakuva procura
Abel:
— O Dr. Savimbi não aceita nenhuma das tuas posições.
Continuas presidente do grupo parlamentar. Continuas deputado e
membro da UNITA. Ele pediu-me que te entregasse vinte mil dólares.
Quer que tu vás até à África do Sul, descansar, desanuviar um
pouco. Faz isso. Depois, então, voltamos a conversar.
Nos meses seguintes, multiplicam-se as pressões para que Abel
se reúna, no Andulo, com o líder da UNITA.
— Veio o Sakala, o Correia Victor. Todos me tentaram convencer.
O general Vinama falou comigo, não aceitei. Familiares insistiram. Os
meus tios dispuseram-se a acompanhar-me na viagem: «Sobrinho,
vamos contigo, e voltamos contigo.» Recusei sempre.
O general António Dembo preside a uma reunião demorada na
sede da UNITA em São Paulo. Começam a falar às dez da manhã.
Sete horas mais tarde, Abel sente-se disposto a ceder e aceita viajar
para o Andulo. Então, quando saem para o corredor, e sem que
ninguém mais os ouça, Dembo trava-o por um braço enquanto lhe
diz, baixando a voz:
— Se eu estivesse no teu lugar, faria o que estás a fazer.
6
JONAS SAVIMBI FOI TRAÍDO PELAS BOTAS. Muitos dos seus oficiais
também o atraiçoaram, bem como velhos aliados, em particular os
dirigentes norte-americanos que, a partir de certa altura, passaram a
olhá-lo mais como um estorvo do que como um trunfo.
As botas, contudo, terão sido quem conduziu a 20.ª brigada das
FAA, comandada pelo brigadeiro Simão Carlitos Wala, até ao lugar
exato onde se escondia o Jaguar Negro dos Jagas.
Os pisteiros das FAA conheciam a impressão deixada na lama
pelas botas do líder da UNITA, fabricadas por uma empresa francesa
de calçado, e que só ele usava. Assim, durante quase uma semana,
foram seguindo o rasto de Jonas Savimbi. Encontraram-no, descalço,
a beber chá com mel, numa floresta às margens do rio Luio, no
sudeste da província do Moxico.
Eram 15 horas do dia 22 de fevereiro de 2002. As versões sobre
o que aconteceu a seguir variam. Há quem assegure que Jonas
Savimbi, de 67 anos, conseguiu alcançar uma arma e reagiu a tiro,
antes de ser abatido com sete balas. Outros afirmam que terá sido
morto pelas costas, estando desarmado, o que iria contra as leis da
guerra e o direito internacional.
Certo é que as balas que o mataram terão sido as últimas que se
dispararam durante a longuíssima guerra civil angolana, dando
razão, em larga medida, a todos aqueles que viam em Jonas Savimbi
o principal obstáculo à paz.
As imagens do corpo caído do velho dirigente nacionalista, com
as calças desapertadas e as cuecas à mostra, correram mundo,
prejudicando muito mais a reputação daqueles que o perseguiram e
mataram do que a do defunto. Muitos se recordaram, ao verem
Savimbi, do cadáver de Ernesto Che Guevara, também ele exposto
pelos seus assassinos de forma grosseira e desrespeitosa.
2
ANSTEE, Margaret Joan. Never learn to type. A Woman at the United Nations. John
Wiley & Sons Ltd., 2003.
BRIDGLAND, Fred. Jonas Savimbi. Uma chave para África. Perspectivas &
Realidades, 1988.
DU PREEZ, Max. Pale Native. Memories of a Renegade Reporter. Zebra Press, 2003.
FONTE, Dora. O Rapto. Com os Kwachas até à Jamba. Edições Húmus, 2013.
MANNALL, David. Battle on the Lomba 1987. The day a South African Armoured
Battalion Shattered Angola’s Last Mechanised Offensive. Helion & Company,
2015.
PUNA, Miguel Maria N’Zau. Mal Me Querem. A história de Angola na voz de quem a
fez. Um testemunho sem meias-palavras. Guerra & Paz, 2019.
WAALS, W.S. van der. Guerra e Paz: Portugal / Angola. 1961-1974. Casa das
Letras. 2011.