Vidas e Mortes de Abel Chivukuv - Jose Eduardo Agualusa

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José Eduardo Agualusa nasceu na cidade do Huambo, em Angola, a 13 de

dezembro de 1960. Estudou Agronomia e Silvicultura. Viveu em Lisboa, Luanda,


Rio de Janeiro e Berlim. É romancista, contista, cronista e autor de literatura para
crianças. Os seus romances têm sido distinguidos com os mais prestigiados
prémios literários, assim como os seus livros de contos e para crianças: o Grande
Prémio de Conto APE, por exemplo, ou o Grande Prémio de Literatura para
Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian. Na área do romance, foi galardoado
com o Grande Prémio de Literatura RTP (atribuído a Nação Crioula, em 1998), e
com o Independent Foreign Fiction Prize (por O Vendedor de Passados, de 2004);
Teoria Geral do Esquecimento recebeu o Prémio Fernando Namora, em 2013; foi
finalista do Man Booker Prize, em 2016; e vencedor do International Dublin
Literary Award (antigo IMPAC Dublin Award), em 2017. Mais recentemente, em
2022, José Eduardo Agualusa recebeu o Grande Prémio da Crónica e Dispersos
Literários da Associação Portuguesa de Escritores/Câmara Municipal de Loulé pelo
livro O Mais Belo Fim do Mundo. A sua obra está publicada na Quetzal e traduzida
em mais de trinta línguas.
Enquanto esperava as
balas, as pancadas, a cruel
morte que viria, Abel
Chivukuvuku viu-se a si
próprio criança, no Dondi,
escalando as mangueiras e
nespereiras da horta
familiar; viu os meninos
vestidos de fato e gravata,
na hora do culto, e voltou a
experimentar a emoção dos
tempos em que, à beira do
palco, escutava o seu irmão
a cantar com os Cadência 7,
a melhor banda de rock do
planalto central de Angola,
nos vertiginosos anos
setenta.
José Eduardo Agualusa
Título: Vidas e Mortes de Abel Chivukuvuku. Uma Biografia de Angola
Autor: José Eduardo Agualusa
1.ª edição em papel na Quetzal: outubro de 2023
Revisão e preparação: Margarida Filipe
Edição: Francisco José Viegas

Design da capa: Rui Rodrigues · Quetzal Editores


Imagem da capa: © Lia Ferreira
Produção: Teresa Reis Gomes

© 2023 José Eduardo Agualusa e Quetzal Editores


Por acordo com a Agência Literária Mertin, de que é proprietária Nicole Witt
(Literarische Agentur Mertin Inh. Nicole Witt e. K.), Frankfurt am Main, Alemanha
[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua Portuguesa, exceto Brasil,
reservados por Quetzal Editores]

Quetzal Editores é uma chancela da Bertrand Editora, Lda.

Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
quetzal@quetzaleditores.pt
Tel. 21 7626000

ISBN: 978-989-722-952-7
A segunda morte de Abel Epalanga Chivukuvuku
NO PRIMEIRO DIA DE NOVEMBRO DE 1992, DOMINGO, DIA DE TODOS-OS-
SANTOS, o noticiário das cinco da tarde da Radio France
Internationale, RFI, na sua emissão para África, anunciou a morte do
engenheiro Jeremias Kalandula Chitunda e do brigadeiro Abel
Epalanga Chivukuvuku, dois dos mais destacados dirigentes da
União Nacional para a Independência Total de Angola, UNITA.
Ao ouvir o noticiário, Abel não mostrou surpresa:
— Estamos mortos. Lá fora já se sabe que morremos. Estamos
então mortos para o mundo.
Jeremias Chitunda, de 50 anos, um homem baixo e encorpado,
de modos suaves e linguagem esmerada, não conseguiu esconder o
susto:
— Tu, que foste militar, já alguma vez enfrentaste uma situação
tão perigosa como aquela em que estamos agora?
O seu companheiro encolheu os ombros. Alto, ágil, com olhos
vivos e um rosto de traços perfeitos, Abel fazia grande sucesso entre
as mulheres, o que enfurecia os homens de Luanda. Dali a dez dias,
a 11 de novembro, completaria 35 cacimbos, data em que também
se festejariam os dezassete anos da independência de Angola.
— Sim, mais-velho, passei por muitas situações de risco. A
diferença é que numa operação militar temos normalmente um
ponto de recuo. Aqui, não há saída…
Os dois homens estavam escondidos numa vivenda, nas
proximidades do complexo residencial atribuído pelo governo a
Jonas Savimbi, em Luanda. Durante os últimos meses, mesmo
depois de o Jaguar Negro dos Jagas (um dos nomes de guerra que o
líder da UNITA gostava de utilizar, o que sempre me pareceu um
pouco estranho, dado o jaguar ser um animal nativo das américas)
ter abandonado a capital, as duas grandes casas do complexo
continuaram a funcionar como uma espécie de quartel-general do
seu movimento.
O Miramar, onde se erguia a propriedade, era então — e ainda é
—, um dos bairros nobres da cidade, ali se concentrando
embaixadas e residências do corpo diplomático, de ministros e
generais. Nos edifícios que receberam Jonas Savimbi, durante quase
um ano, funciona atualmente o Complexo Hoteleiro da Endiama,
CHE, local utilizado pela alta burguesia angolana como cenário de
faustosas festas de casamento.
Depois de analisarem a situação entre Salupeto Pena, Ben-Ben,
Jeremias e Abel, Jeremias optou por se retirar, manhã cedo, da casa
de Savimbi, receando que esta viesse a ser atacada por jovens
milicianos. Abel acompanhou-o. Para evitar as ruas, patrulhadas
pelas milícias, os dois homens optaram por saltar os muros,
atravessando os bem cuidados quintais e jardins das vivendas do
quarteirão. Jeremias Chitunda, muito aflito, corria em passinhos
curtos, suando abundan­­temente, enquanto segurava uma pasta
diplomática. Dava uma breve corrida, atirava a pasta para o quintal
vizinho, e depois Abel ajudava-o a galgar o muro. Para o vice-
presidente da UNITA, um engenheiro de minas formado nos EUA,
aquele era um exercício violento e inesperado. Finalmente,
encontraram uma porta aberta e entraram. Na altura julgaram que
fosse a residência do embaixador de França. Abel deixou o
engenheiro a repousar, sentado numa cadeira, e arriscou uma breve
incursão. Vasculhou a cozinha, procurando comida. Não encontrou
quase nada. Regressou, trazendo duas cervejas. Chitunda irritou-se:
— Estás a roubar? Tu, um dirigente da UNITA? Como te atreves?
O antigo guerrilheiro estendeu-lhe uma das garrafas:
— Calma, mais-velho. Seja como for, já entrámos em casa alheia.
Além disso, eu estava à procura de comida. Há quanto tempo não
comemos? Quem rouba comida porque tem fome não é criminoso.
Infelizmente, só encontrei cerveja…
— E tu agora bebes álcool? Não aprendeste nada na Missão do
Dondi?
— Nunca bebi cerveja. Mas se não for agora, será quando? Esta
é uma boa ocasião. Vá, beba uma comigo…
Jeremias Chitunda aceitou a garrafa. Ao longe ribombavam
explosões. Mais perto, escutava-se o pipocar de armas automáticas.
Desde a passada sexta-feira que Luanda estava em guerra aberta,
com os militantes e dirigentes do principal partido da oposição sendo
caçados, um a um, por efetivos da Polícia e do Exército. O pior que
lhes poderia acontecer era caírem nas mãos dos milhares de jovens
milicianos armados pelo governo que corriam pelas ruas da cidade,
aos gritos, com fitinhas de diversas cores amarradas à cabeça. Esse
adereço fez com que ficassem conhecidos como «fitinhas».
Abel, com o seu ouvido treinado por muitos anos de combate nas
matas de Angola, foi o primeiro a escutar as vozes:
— Vem aí alguém, é melhor nos escondermos…
Esconderam-se na casa de banho. Vários homens entraram na
arrecadação, conversando uns com os outros num idioma
impenetrável.
— Que língua é essa? — sussurrou Chitunda.
— Não sei. Nunca ouvi nada parecido. Certamente não são
angolanos, e isso é uma boa notícia — soprou Abel. — Vou aparecer.
— Não faças isso. É perigoso…
Demasiado tarde. Abel saiu, de mãos no ar, assustando os quatro
homens. Eram filipinos e montavam guarda à residência. Em inglês,
Abel explicou quem era. Lamentou ter entrado sem autorização e
pediu que o deixassem ficar escondido até a situação acalmar e tudo
se esclarecer. Os seguranças tinham vindo à procura de baterias. O
proprietário, diretor da Chevron, refugiara-se com a família numa
outra casa. Muitos moradores haviam optado por abandonar o
bairro, nos dias anteriores, com receio de confrontos, dada a
proximidade da vivenda de Savimbi. Entendiam a situação de Abel e
não viam problema em que continuasse escondido. Mal os filipinos
partiram, Chitunda saiu da casa de banho, num estado de extrema
agitação:
— Pronto! Esses aí vão nos denunciar. Daqui a pouco temos os
fitinhas na porta…
Logo anoiteceu. Passados minutos escutaram o ruído de passos,
gente correndo no jardim, vozes abafadas, e voltaram a esconder-
se. Então, alguém gritou:
— Mais-velhos! Mais-velhos! Maninhos, onde estão vocês?!…
Abel suspirou, aliviado:
— É a nossa gente.
Dois soldados aguardavam no quintal. Tinham vindo desde a
casa de Jonas Savimbi, trazendo a informação de que o brigadeiro
Amílcar Katokessa os mandara chamar. Voltaram correndo, saltando
muros, para desespero de Chitunda.
O brigadeiro Katokessa, chefe da guarnição da casa de Savimbi,
disse-lhes que conseguira evacuar o engenheiro Salupeto Pena e o
general Ben-Ben, numa coluna com dois Unimogs1 de proteção, um
a abrir e outro a fechar. Não sabia, contudo, se a coluna tivera
sucesso e deixara Luanda para trás:
— Se vocês acham que estão seguros, onde quer que se tenham
escondido antes, regressem. Se preferirem, organizo uma segunda
coluna para vos levar até Caxito. O mesmo esquema, um Unimog à
frente e outro atrás, e dois carros, com vocês e com os guarda-
costas. A última possibilidade é tentarmos furar o cerco a pé. Nesse
caso irei com a minha tropa, disparando, lutando até à última bala…
Abel sacudiu a cabeça, cético:
— Coluna de carros?! Não. Vamos morrer. É melhor
regressarmos…
Jeremias Chitunda, contudo, só pensava em abandonar Luanda:
— Se os outros conseguiram sair, nós também conseguimos…
Abel tentou demovê-lo:
— Mais-velho, eles foram, sim, mas não sabemos se conseguiram
sair vivos da cidade. Além disso, levaram o Mercedes blindado do
velho Jonas. Como vamos no fim, iremos enfrentar agora mais
resistência. Estaremos muitíssimo mais desprotegidos…
— Não importa, temos de arriscar! Luanda é uma armadilha!
Poucos dias antes do início dos confrontos, Maria Victória, a
esposa de Abel, escapara para o Huambo, acompanhada pelos dois
filhos do casal. Nessa noite, ao reentrar em casa, Abel encontrou em
cima da cama um colete à prova de balas, que comprara, anos atrás,
em Nova Iorque. Junto do colete estava um bilhete com uma
mensagem escrita pela mão de Maria Victória: «Pelos teus filhos,
usa isto.»
Enquanto Jeremias Chitunda discutia com Katokessa, Abel deu
um salto a sua casa, contígua à de Savimbi, vestiu o colete, guardou
um maço de notas de 100 dólares no bolso, e regressou. Disse aos
dois homens:
— Pensei melhor. Se o plano é sair da cidade, nesse caso prefiro
ir com a tropa, a pé, tentando furar o bloqueio a tiro.
Jeremias Chitunda olhou-o, desesperado:
— Vai tu então a pé. Eu sigo no carro, na coluna.
Abel compreendeu que nunca o conseguiria demover:
— Muito bem, mais-velho, eu vou consigo. Mas pode ter a
certeza que isso é morte certa!
Chitunda não lhe prestou atenção. O brigadeiro Katokessa
mandou preparar os carros, e escolheu os soldados que os deveriam
proteger. Três pelotões, num total de setenta homens bem armados,
protegiam as instalações. Ficou decidido que Abel e o vice-
presidente seguiriam no primeiro carro, um Toyota Cressida, e os
guarda-costas num veículo idêntico, logo atrás deles, com um
Unimog protegendo a dianteira e outro fechando a coluna. A
despedida foi grave e tensa. Poucas horas antes tinham
acompanhado, através dos rádios portáteis Motorola, o dramático
linchamento de alguns dos dirigentes do movimento. Abel nunca
esqueceria em particular o testemunho, em tempo real, do velho
Eliseu Chimbili, seu primo, responsável pelos serviços administrativos
da UNITA em Luanda:
— Estão a cercar a minha casa. Alguém pode vir em meu
socorro?! O que devo fazer?
— Saia já e procure refúgio na casa de um vizinho!
— Não consigo! Não tenho mais tempo... Estão a saltar o muro!
— Saia! Saia!
— Estão a correr na minha direção. Estão a disparar… Ai, que
morro!… Estou a morrer!…
Abel e Jeremias instalaram-se atrás. À frente, ao lado do
motorista, sentou-se um jovem capitão, chefe da segurança do vice-
presidente. A coluna alcançou a rua sem problemas. Não se via
vivalma. Avançaram através da densa escuridão, com as luzes
apagadas, escutando, ao longe, o amplo eco das explosões.
Cruzaram o largo que hoje leva o nome do homem que tentou
mediar o diálogo entre o MPLA e a UNITA, o di­­plomata maliano
Alioune Blondin Beye, e, em menos de um minuto, irromperam no
meio de um inferno. Por entre o furioso crepitar das balas batendo
contra a carroçaria dos carros, rompendo vidros e metal, Abel
escutou a voz assustada de Jeremias Chitunda pedindo ao motorista
que acendesse os faróis.
— Nem pensar! — contestou o brigadeiro.
Os carros chocavam de frente contra pneus, troncos e todo o tipo
de obstáculos com que, nas últimas horas, as milícias haviam
bloqueado as estradas. O Unimog da frente conseguiu furar a
primeira barricada, seguido pelos restantes carros. Chitunda voltou a
gritar:
— Não se vê nada, homem. Ligue os faróis!
Habituado a cumprir ordens, o motorista obedeceu,
transformando o Cressida num alvo iluminado. O tiroteio aumentou.
No instante seguinte, o carro galgou o passeio e embateu
violentamente contra uma casa. Abel viu Jeremias Chitunda
debruçado sobre o assento da frente, inanimado. Sacudiu-o:
— Temos de sair, mais-velho…
Chitunda não respondeu. O antigo guerrilheiro conseguiu abrir a
porta do carro e saltou para o passeio. A intenção dele era correr até
encontrar um abrigo, uma parede, uma árvore, ou talvez um muro
que pudesse galgar. Para sua surpresa, tombou no chão,
desamparado. Não sentia nenhuma dor, nem medo, raiva, ou
qualquer outra emoção humana. Apenas um gelo terrível nas
pernas. Rastejou até à porta da casa mais próxima, abriu-a e entrou.
Um homem encarou-o, aterrorizado:
— Quem é você?
— Sou Abel Chivukuvuku, vosso filho. Estou ferido. Por favor,
deixem-me entrar…
Na sala, Abel percebeu a presença de mulheres e crianças, todos
eles estendidos no chão, tentando abrigar-se atrás da frágil mobília.
Estendeu-se ao lado deles. Decorridos breves minutos a porta voltou
a abrir-se e entrou, rastejando, o chefe da segurança de Jeremias
Chitunda. O jovem olhou em redor, sem uma palavra, como se
estivesse estudando a situação. Depois, sempre em silêncio, com a
mão firme, tirou a pistola do coldre, encostou-a à têmpora direita e
disparou.
Na sala, sucedeu-se um intenso instante de assombro, e logo a
família inteira irrompeu em altos choros e gritaria. Levantaram-se,
abriram a porta e fugiram para a noite, deixando Abel sozinho, ao
lado do cadáver do infeliz capitão.
«Agora sim, estou perdido», pensou o brigadeiro. Arrastou-se
penosamente até um dos quartos. Despiu a camisa e o colete à
prova de bala. Rasgou a camisa, e com o tecido improvisou garrotes,
tentando controlar a hemorragia em ambas as pernas. Finalmente,
abrigou-se debaixo da cama.
Uma violenta explosão estremeceu as paredes. Alguém lançara
uma granada para a sala. Ao estrondo sucedeu-se o brutal alarido
da turba, festejando o ataque:
— Morre, kwacha! Morre!
Uma voz forte, imperativa, sobrepôs-se às restantes:
— Não gastem mais granadas! Tragam gasolina. Vamos queimar
o gajo!
— Eu vou, chefe João Mulato, já estou a ir…
A escolha, pensou Abel, é entre morrer queimado ou morrer
fuzilado. Gritou:
— João Mulato! João Mulato! Não deitem fogo à casa. Eu sou
Abel Chivukuvuku!…
Silêncio. Os atacantes não imaginavam o tamanho do peixe que
lhes caíra na rede. Escutou-se então a mesma voz forte, agora um
pouco hesitante:
— És mesmo tu, Abel Chivukuvuku?!
— Sou eu mesmo…
— Pois então sai com as mãos no ar!
— Não consigo levantar-me. Fui atingido nas duas pernas.
Nova explosão. Abel teve a sensação de que aquela fora ainda
mais violenta do que a primeira. A granada devia ter caído muito
perto. A vozearia aumentou:
— Sai, filho da puta, kwacha de merda!
O antigo guerrilheiro enfureceu-se:
— Não lancem mais granadas, cabrões! Cobardes! Estou ferido e
desarmado…
— Sai agora! Sai com as mãos para cima ou deitamos fogo à
casa!
Abel arrastou-se até à sala. Apoiando-se a uma das paredes,
num esforço enorme, conseguiu colocar-se de pé. Então gritou:
— João Mulato, podem entrar! Já estou na sala, de pé!
Enquanto escutava o rápido tropel dos jovens milicianos,
lançando-se contra a porta, aos gritos e insultos — enquanto
esperava as balas, as pancadas, a cruel morte que viria —, Abel
Chivukuvuku viu-se a si próprio criança, no Dondi, escalando as
mangueiras e nespereiras da horta familiar; viu os meninos vestidos
de fato e gravata, na hora do culto, e voltou a experimentar a
emoção dos tempos em que, à beira do palco, escutava o seu irmão
a cantar com os Cadência 7, a melhor banda de rock do planalto
central de Angola, nos vertiginosos anos setenta.
Pelo menos morreria de pé. Ele, Abel Epalanga Chivukuvuku,
filho de Pedro Sanjango Chivukuvuku e de Margarida Chilombo
Chivukuvuku, descendente em linha direta do grande rei Ekuikui II,
que tem hoje uma estátua em bronze de seis metros de altura na
vila do Bailundo.
Ekuikui II não se envergonharia do neto.

1 Unimog é a designação de uma série de camiões para todo o tipo de terreno, fabricados
pela Mercedes-Benz. Devido à sua robustez, tem sido muito utilizado como veículo militar.
A linhagem dos homens-pássaros
1

NA MANHÃ DE 29 DE MAIO DE 2023 DESLOQUEI-ME À OMBALA DO


BAILUNDO, para visitar o atual rei, Tchongolola Tchongonga (nome
escolhido por ele, e que significa Grande Águia Congregadora). O
rei, empossado em 2021, tinha então 38 anos.
Não obstante a juventude, Tchongolola distingue-se pelo sentido
de responsabilidade, uma sólida vocação diplomática, um humor
refinado e um profundo conhecimento da história e das tradições do
seu povo. Recebeu-me num enorme jango, à frente dos seus trinta e
sete somas, ou sobas, cada um deles com uma competência
específica.
Segundo Tchongolola, as primeiras pessoas a instalarem-se no
Bailundo, por volta do século XII, erigiram as suas habitações
naquele que é hoje o monte sagrado de Halavala.
Deixemos que seja o próprio Tchongolola a contar o mito da
formação do Reino do Bailundo:
«Por essa altura havia nesta nossa região inúmeros animais
selvagens. Viver no topo do Halavala dava aos primeiros habitantes
uma vantagem estratégica. Essas popu­­lações viviam da pesca e da
caça. A caça demorada era praticada pelos jovens, servindo-se de
arcos e flechas e de pedras aguçadas. Os jovens iam caçar,
enquanto as mulheres se dedicavam à agricultura.
Os nossos antepassados eram doutores em oralidade. Eles não
sabiam ler livros. Mas liam o mundo. Eles acreditavam que para viver
não era preciso muito. Viviam bem com alguns pequenos
instrumentos.
Ontem como hoje, as pessoas migravam, procurando melhores
condições de vida. Foi assim que uma família de cinco pessoas saiu
da região de Seles, no Quanza-Sul. Vinham com uma manada muito
grande de gado. Ao saírem do Seles, numa mata, encontraram uma
colmeia. Ora, uma colmeia, para quem sabe ler a geografia dos
locais, significa que, ali próximo, deve existir algum povoado.
A família decidiu então deter-se. Esperaram quarenta dias, até
surgir alguém que veio retirar o mel. Perguntaram-lhe se havia
alguma aldeia próxima. O homem explicou-lhes que a aldeia estava
muito perto. Lá foram eles. Encontraram uma família, pediram para
se fixarem ali, e lá ficaram.
No seio daquela família de migrantes havia um jovem chamado
Katiavala. Katiavala possuía um canhangulo. Ca­­ça­v­ a com aquela
arma. O pai, contudo, disse-lhe que não podia matar todos os
animais que via, pois eles eram sobretudo criadores de gado. Além
disso, estavam naquela terra como convidados. Então, Katiavala
afiou um pau e, de noite, foi até ao curral onde dormiam as vacas
do pai, e espetou o pau no ânus de uma delas, até lhe rebentar as
tripas. De manhã, muito cedo, os pastores deram conta de que uma
das cabeças estava doente. Algumas horas depois a vaca morreu.
Passado um mês, Katiavala matou outra; e depois outra. Até que o
pai de Katiavala disse: “Assim não pode ser, temos de sair daqui
porque senão acabamos por perder o gado todo de uma doença que
não conhecemos.” Acontece que um outro parente vira Katiavala a
matar as vacas e revelou o seu segredo. Furioso, o pai de Katiavala
expulsou o filho.
Katiavala andou, andou, até ver fumo erguer-se no céu, e então
soube que ali havia pessoas. Dirigiu-se a esse lugar, na Montanha
Halavala. Encontrou a entrada de um sambo, e ali ficou até surgir
uma moça. A moça disse-lhe que ia buscar água. Ele apresentou-se:
“Sou um caçador, um grande caçador, e gostaria de permutar a
minha carne pelos vossos produtos.” A moça disse: “Posso transmitir
a sua proposta, mas você não pode entrar no sambo, aqui, em
Halavala.”
O jovem persistiu. No dia seguinte pediu de novo para subir. A
moça implorou-lhe que aguardasse alguns dias pelos irmãos e pelos
primos que tinham saído para fazer caça demorada, mas o jovem
insistiu, voltando a oferecer-lhe carne. Isto repetiu-se nas manhãs
seguintes, até que, por fim, a moça se rendeu aos encantos do
caçador e lhe entregou tudo. Revelou-lhe todos os seus segredos e
os da ombala. Deixou-o subir.
Katiavala galgou a montanha. Lá em cima só encontrou crianças
e mais-velhos, porque os jovens estavam na caça demorada. Saudou
toda a gente: “Boa tarde!” Os mais-velhos responderam: “Boa-
tarde!”
Katiavala olhou a paisagem e pensou: “Este lugar tem de ser
meu.”
Sentou-se a limpar o seu canhangulo. Neste lugar, aqui, naquela
época, as pessoas não conheciam armas de fogo. Só estavam a
pensar que era uma lenha. Até alguns diziam: “Esse moço não tem
juízo nenhum, anda por aí abraçado a um pedaço de lenho, a limpar
um lenho como se fosse algo importante.”
Então, de repente, Katiavala mirou numa árvore com o seu
canhangulo, disparou, ouviu-se um forte estrondo e ficou um buraco
no tronco. Os mais-velhos fugiram. Os coxos tentaram escapar
rastejando.
Alguns mais-velhos ficaram muito irritados e começaram a dizer:
“O genro que a nossa filha trouxe nos faltou ao respeito.” Isto
porque, segundo os nossos costumes, ao lado dos mais-velhos não
se pode fazer barulho. É tudo na base do silêncio.
Então, viram o buraco na árvore e ficaram muito assustados.
Katiavala disse-lhes: “Mais-velhos, não fiquem assus­­tados. Não
quero fazer mal a ninguém. Só quero organizar esta ombala. Só
quero ser o vosso chefe.”
Os mais-velhos olharam para ele, a pensar: “Como é que esse,
que ainda agora chegou, quer ser o nosso chefe?” Mas depois
olharam bem para a árvore e viram aquele buraco e acharam melhor
aceitá-lo como chefe. A arma é mesmo um grande poder.
A mensagem foi passando: “Lá, na Montanha Halavala, tem um
homem com um lenho, que faz um grande barulho e destruição.”
Aos que chegavam à montanha, Katiavala dizia: “Eu vou ser o
vosso chefe”.
Quando os jovens chegaram da caça prolongada encontraram
aquela situação. Katiavala enfrentou-os a todos, bem pausado, com
o seu canhangulo nos braços:
— São vocês os jovens que têm a missão de fazer caça?
Os jovens responderam que sim.
— Então sentem-se. Eu chamo-me Katiavala e vou ser o vosso
chefe. Mas para isso, preciso ser entronizado segundo um certo
número de regras.
Katiavala organizou então uma grande cerimónia, e foi
entronizado chefe.»
Katiavala Bwila, nome que significa «soberano dos povos que
caminham», em alusão ao mito da sua longa viagem, foi o primeiro
Soma Inene, ou soba-grande, sendo sucedido por seu filho, Jahulo I.
Vieram depois Somandalu, Tchingui I, Tchingui II, Ekuikui I, Numa I,
Hundungulu I, Tchissende I Jungulu, Ngundji, Chivukuvuku Tchama
Tchongonga, Utondossi, Bunji, Bongue, Chissende, Vassovava,
Katyavala Bwila II, Ekongo Liohombo, Ekuikui II, Numa II, Moma,
Kangovi, Hundungulu II, Kalandula, até chegarmos a Mutu-ya-
Kevela, em 1902, o último rei do Bailundo independente.
2

O INÍCIO DO SÉCULO XIX MARCOU A CHEGADA DOS PRIMEIROS COLONOS


PORTUGUESES ao planalto central de Angola. Eram quase todos muito
pobres, rudes e analfabetos. Ganhavam a vida organizando longas
quibucas (caravanas) que saíam do Bailundo para Luanda e
Benguela arrastando escravos e carregando cera de abelha, urzela,
goma copal, borracha e marfim, com destino aos portos europeus e
americanos; regressavam com sal, panos, espelhos, aguardente,
pólvora e armas de fogo. Este comércio enriquecia não apenas os
intermediários portugueses, ao longo de todo o percurso, mas
também os reis do Huambo, do Bié e do Bailundo, que logo
perceberam a importância do mesmo e a ele se associaram.
Muitos anos após a abolição do tráfico de pessoas escravizadas, e
do fim legal da escravatura no Brasil e em todos os territórios sob
domínio da bandeira das quinas, ainda havia notícia de comerciantes
portugueses que adquiriam escravos por um barril de aguardente,
no Bailundo, e os revendiam por três cabeças de gado aos povos do
Humbe, no extremo sul de Angola.
O inglês Verney Lovett Cameron, oficial da Marinha britânica e
grande viajante, passou pelo Bailundo em 1875, mostrando-se
extremamente impressionado com a beleza do território: «Nada
pode ser mais adorável do que esta cena fascinante, este vislumbre
do Paraíso», escreveu, enquanto se deliciava com um prato de pirão,
acompanhado por gafanhotos secos. «Nem toda a riqueza do
imaginário da palavra, nem o melhor pintor, com génio quase
sobrenatural, poderiam, com caneta ou lápis, fazer plena justiça ao
país do Bailundo. Em primeiro plano, desenham-se vastas clareiras
na floresta, ladeadas por colinas coroadas por bosques de grandes
árvores, de aparência inglesa; aldeias abrigadas, com telhados de
colmo; o verde refrescante das colheitas jovens, contrastando com o
vermelho-vivo do solo recém-arado. Os riachos deslizam, brilhando à
luz do sol. Ao longe, montanhas de variadas formas gradualmente
desaparecem, até se fundirem com o azul do céu. Lá em cima,
flutuam nuvens brancas e felpudas. Em torno, escuto o zumbido das
abelhas, o balido das cabras, o canto dos galos, quebrando a
quietude do ar.» (Across Africa, 1877)
3

OS COLONOS PORTUGUESES CHEGAVAM SOZINHOS, EM CARROS DE BOIS,


alguns degredados por roubo, contrabando de tabaco, violação ou
vadiagem; outros, por motivos políticos. Havia ainda os aventureiros
e os desesperados, fugidos à miséria das suas aldeias, no Norte de
Portugal, onde se morria de fome e de frio, e que desembarcavam
em Angola perseguindo a árvore das patacas. Erguiam casas de pau
a pique, barro e cobertura de colmo, que lhes serviam de habitação,
de loja e de armazém, e que pouco se distinguiam das habitações
tradicionais de maior porte. A maioria amancebava-se com jovens
camponesas, tão ou mais desvalidas do que eles, e fazia filhos
mulatos que, ao crescerem, ou escapavam para as velhas cidades do
litoral, ou permaneciam na região, prosseguindo e ampliando o
negócio dos progenitores.
Mais tarde, chegaram os soldados, delimitaram-se terrenos,
construíram-se fortes e prisões, e então, sim, começaram os
confrontos entre as autoridades portuguesas e os potentados locais.
Chivukuvuku Tchama Tchongonga tinha uma forma rápida e
eficaz de fugir aos colonos: transformava-se em abutre (hokohoko) e
voava para longe. Com o tempo, ele e a família apuraram aquele
extraordinário talento, conseguindo tomar a forma de muitas outras
aves. Por isso, os portugueses nunca os capturaram.
Ekuikui II ascendeu ao trono em 1876. Durante o seu reinado,
que se prolongou até 1890, chegaram ao Bailundo os primeiros
missionários protestantes, de nacionalidade canadiana e norte-
americana. A Missão do Chilume, criada em 1881, ergueu-se com a
anuência e a colaboração ativa de Ekuikui II, que se identificava com
muitos dos princípios cristãos, como o respeito pelo próximo, e a
interdição de matar e roubar. Além disso, partilhava com os missio­­‐
nários protestantes anglófonos a aversão ao comércio e consumo de
aguardente, e um desprezo, mais ou menos explícito, pelos colonos
portugueses.
Os missionários protestantes defendiam um modelo de
evangelização e educação dos africanos que era, na época, muito
mais progressista do que o da Igreja Católica. Tão progressista,
aliás, que não hesitava em afrontar e colocar em causa o projeto
colonial português. Recordemos, por exemplo, o discurso de Henry
Neipp, a 5 de outubro de 1914, ao inaugurar a Missão do Dondi:
«Primeiro, a Igreja não se tornará verdadeiramente indígena até
que seja sustentada e controlada pelos afri­­canos. Segundo, o
conhecimento médico-científico, só se tornará geralmente difundido
ou massificado entre as comunidades nativas, quando os doutores
nativos, com a competência assegurada, possam livre e aptamente
exercer a sua arte. Terceiro, a literatura, do mesmo modo, nunca
tocará a profundeza da alma do povo, até que os próprios africanos
sejam capazes de produzir trabalhos de merecido valor. Para
realização destes fins a Missão do Dondi é dedicada, de modo a
possibilitar a santificação da vida do nativo em toda a sua
plenitude.»
Ao contrário das escolas portuguesas, públicas e privadas,
incluindo aquelas administradas pela Igreja Católica, as missões
protestantes não proibiam os seus estudantes de falar as línguas
nativas; pelo contrário, os próprios missionários se esforçavam por
aprender essas línguas. Não por acaso, as primeiras gramáticas e
dicionários de umbundo, e de outros idiomas africanos de Angola,
são da autoria de missionários protestantes.
Alexandre Malheiro, em Chronicas do Bihé (Lisboa, Li­­vraria
Ferreira, 1903), dá testemunho do empenho dos missionários
protestantes em aprender as línguas locais, e do êxito do seu
trabalho: «É no interior destas casas (as missões protestantes) que,
aos domingos, se reúne todo o gentio das suas proximidades, para
assistir às prédicas e orações realizadas pelos missionários, que,
tendo-se previamente dedicado ao estudo da língua do país,
conseguem produzir longos discursos, no mais clássico umbundo, de
que tiram os melhores resultados. (…) Não é difícil encontrar um ou
outro preto das proximidades de Chissamba, Camundonge ou
Sacanjimba escrevendo na sua própria língua com uma ortografia
inglesada, constando-me que alguns falam também muito
regularmente o inglês.»
Alexandre de Serpa Pinto, em Diário de África. Como atravessei
África, do Atlântico ao Índico (Viagem de Benguela à Contracosta
Através de Regiões Desconhecidas), surpreende-se com o talento
comercial das populações do planalto central de Angola: «Muitos
pretos conheço eu que negoceiam com um crédito de 4 e 5 contos
de réis, e alguns com mais, como o preto Chaquingunde, que foi
escravo de Silva Porto, que, du­­rante a minha permanência no Bié,
chegou do sertão, onde tinha negociado pela sua conta uma fartura
de 14 contos de réis! Não é difícil no Bié encontrar um branco
português, escapado dos presídios da costa, secretário de um preto
comerciante rico.»
4

A ENORME ESTÁTUA DE EKUIKUI II, COLOCADA NA PRAÇA PRINCIPAL DO


BAILUNDO, em 2010, teve por base uma fotografia do rei, feita por
um dos missionários que fundou a Missão do Chilume. Representa
um homem alto e muito direito, apoiado numa bengala (um dos
símbolos do seu poder), vestido com um casaco de gola redonda, e
um pano comprido, amarrado à cintura, numa combinação
harmoniosa e surpreendentemente contemporânea. Ekuikui II faria
grande sucesso desfilando, nos dias de hoje, numa passagem de
modelos.
A corte do Reino do Bailundo surpreendeu os missionários
canadianos, e surpreende ainda todos os investiga­­dores e curiosos,
pelo extraordinário número de cargos e funções. Assim, kaley é o
nome dado ao secretário real, que acompanha o monarca e organiza
a sua agenda. Ao epalanga, um cargo que passa de pai para filho,
ou sobrinho, compete escolher o substituto do rei, após a morte
deste, bem como aconselhá-lo. O kapitango tem como função
organizar os tribunais e assegurar a proteção física da ombala. O
muekalia vigia e protege as mulheres do rei, ao mesmo tempo que
zela para que a relação entre as mesmas seja sempre harmoniosa. O
kapingala administra o reino na ausência do soba. O mukuto tem a
responsabilidade de velar o cadáver do rei. Henjengo, o mestre dos
batuques, seleciona os melhores batucadores, tendo em atenção a
natureza das festas, cabendo-lhe escolher também os ritmos e
tempos apropriados. O nunda vela pelos akokotos, os crânios dos
soberanos falecidos, cuidadosamente guardados em cofres, e estes
em oratórios sagrados. O chiwale tem à sua responsabilidade o
guarda-roupa real. O muetchalo carrega a cadeira do soba nas suas
digressões. Katumua é o correio, que leva mensagens do rei a outros
potentados, e traz a resposta destes, opinando além disso sobre
questões diplomáticas. O lumbungululo é o responsável pela
iluminação da ombala real. Ukuepango é o porteiro real: o rei só
transpõe uma porta depois que o ukuepango a abre. Lumbo é o
responsável pela manutenção das vedações e das portas da ombala.
Também as esposas do rei obedecem a uma rígida hierarquia,
tendo cada uma a sua função muito específica: inikulo, a rainha, é
normalmente a primeira mulher, e a mais velha, embora se aceitem
exceções. Nos tempos do caparandanda1, teria de ser forçosamente
uma antiga escrava, ou filha de escravos. Na ausência do soberano,
está autorizada a resolver um certo número de makas. É a única das
esposas que pode sentar-se ao lado do rei. Chipembe é a segunda
esposa na hierarquia, não podendo ser filha ou neta de escravos.
Namakama, a «mãe do leito», é a conselheira das esposas mais
jovens. Atua como intermediária entre o rei e as restantes esposas
deste. Dumbila é a guardiã da chamada «pedra do refúgio», a pedra
onde se sentam todos aqueles que se sentem ameaçados ou em
dificuldade. É ela que recebe e acarinha as esposas que se sentam
nessa pedra.
Há vários outros cargos, embora, na atualidade, nem todos
estejam ocupados. Nas últimas décadas muitos caíram em desuso.
Viajantes europeus que, na época, visitaram o Reino do Bailundo
manifestaram também alguma surpresa ao acharem-se diante de um
sistema político que, não sendo uma democracia constitucional,
dispunha no entanto de muitos mecanismos de controlo do poder do
Soma Inene. Henrique Mitchel de Paiva Couceiro, no seu Relatório
de Viagem entre Bailundo e as Terras de Mucusso é muito claro
quanto a isto:
«Equiqui (Ekuikui II), soba do Bailundo, é respeitado e temido
pelos povos limítrofes, em consequência do valor das grandes
massas armadas que pode pôr e frequentes vezes põe em campo.
Exerce nos seus estados um poder que se não pode chamar
absoluto, porque é sujeito a várias restrições. Pode mandar cortar
cabeças, envenenar, tirar olhos ou mutilar de qualquer forma os
súbditos que lhe desagradam. Resolve as indakas, isto é, tem voto
decisivo na administração da justiça, depois de ouvidas as partes. É
chefe supremo das forças; e, enfim, ordena a paz ou a guerra. Mas
se, sem prévia decisão pública, é por sua ordem executado um
súbdito seu, está sujeito a que um parente, ou indivíduo por
qualquer forma relacionado com esse súbdito, lhe pergunte em
público as razões do facto, e lhe exija o pagamento dessa vida. Se a
sua sentença numa indaka não concorda com a opinião de qualquer
sekulo (conselheiro), tem este a faculdade de se pronunciar contra,
e o poder de a fazer revogar, se acaso a sua voz representa a
opinião pública e é por ela apoiada. Se ordena a paz ou a guerra, é
de acordo com a voz do povo, de contrário achar-se-á só. Enfim, se
de qualquer forma desagrada às massas pode ser destronado:
começam, nas reuniões, os sekulos a faltar-lhe com o bater de
palmas e o “acuco”, espécie de “apoiado”, com que, de ordinário,
saúdam as suas palavras; faltam-lhe às reuniões, mesmo quando
convocados; e, no entretanto, vai-se na sombra resolvendo a
substituição. E os quatro sekulos principais, (chamados “donos das
terras”), consultadas as correntes de opinião, es­­colhem o sucessor.
Finalmente, um dia desaparece da ombala onde sempre reside, o
muenekaria (muekalia), presidente dos “donos da terra”. Nesse dia
consumou-se o facto, o soba está destituído, e tem por dever
suicidar-se.»
As missões receberam como educandos os filhos da complexa
aristocracia do Reino do Bailundo. Os mesmos foram sendo
registados com um nome próprio, quase sempre retirado da Bíblia —
Abel, Samuel, Jonas, Ezequiel, Ananias, etc. —, e um apelido ligado
à função do progenitor na corte do rei. Por exemplo, Abel Epalanga.
A educação protestante moldou, para o bem e para o mal, a
identidade e o pensamento dessas novas gerações. Podemos dizer
que existe hoje um conjunto de valores co­­muns às famílias do
planalto central, como o culto ao trabalho e à palavra escrita, bem
como um arreigado puritanismo e conservadorismo de costumes.

1 Expressão angolana utilizada para designar tempos antigos. A expressão recorda um


terrível salteador, jovem alto e atlético, chamado Caparandanda, filho do soba Culembe, o
qual, no início do século XX, aterrorizava as quibucas que passavam pela região de
Quissange, emboscando-as e assaltando-as. Por fim, o próprio Culembe organizou uma
expedição para capturar o filho, e os muitos homens que o acompanhavam, expedição essa
que ficou conhecida como a Guerra do Caparandanda.
5

APÓS A MORTE DE EKUIKUI II, E À MEDIDA QUE AS AUTORIDADES


PORTUGUESAS se esforçavam por ocupar efetivamente o planalto
central, e por controlar as lucrativas rotas das quibucas, foram-se
multiplicando os conflitos.
O mais grave destes — a revolta do Bailundo, ou guerra luso-
ovimbundo — estalou na virada do século XIX para o século XX,
tendo por pretexto um desentendimento trivial entre um importante
conselheiro do então rei do Bailundo, chamado Mutu-ya-Kevela, e
um comerciante português, por causa do preço de meia dúzia de
barris de aguardente. Esta terá sido a gota de água, num contexto
mais amplo de grande descontentamento, devido à queda do preço
da borracha nos mercados mundiais. Logo o grito de guerra, «Morte
aos portugueses!», corria de ombala em ombala.
Em 1902, Mutu-ya-Kevela assumiu o trono do Bailun­­do, aliando-
se ao rei do Huambo, Samacaca Samba yo Londungo, grande
guerreiro e estratego, também famoso por dominar as artes
mágicas.
Os dois juntos mobilizaram dez mil guerreiros, contra algumas
centenas de militares portugueses e de colonos bóeres, apoiados por
tropas indígenas.
Mutu-ya-Kevela começou por lançar uma série de ataques tendo
por alvo casas comerciais e postos militares portugueses, arrasando
tudo, e acorrentando e escravizando os sobreviventes.
Francisco Xavier Cabral de Moncada, que governou Angola entre
1900 e 1903, conta no seu livro A Campanha do Bailundo em 1902:
«Mutu-á-Quebera, que tem partido do Queve com três mil homens,
arrasa alambiques, plantações, casas, fazendas. O que pode servir-
lhe rouba, guarda e consome. O que não pode utilizar destrói, e
como um temporal assolador, levando consigo a ruína e o
extermínio, chega ao Tchiumbo, onde deixa em destroços a casa
comercial de Xavier & Gouveia. Dali, com o seu efetivo mais do que
duplicado, parte, procura apoderar-se da casa do valoroso João
Pires, que se fortificara, e oferece ao inimigo que chega, no
antegosto da vitória, do saque e do incêndio, a heroica resistência
que o salvou e aos seus poucos auxiliares, nos temíveis ataques de 9
e 16 de junho.»
Alguns dos brancos portugueses escravizados por Mutu-ya-
Kevela, homens e mulheres, seriam comprados e libertados, meses
mais tarde, por um rico comerciante de borracha chamado António
Raimundo Cosme, um angolano negro, Malanjino, que além de
português, francês e inglês, falava umbundo fluentemente, conhecia
as leis e os costumes da nação ovimbundo e mantinha laços de
amizade e parentesco com as autoridades tradicionais.
Em criança, ouvi velhos colonos contarem inúmeras histórias de
Samacaca. Dizia-se que os vendavais lhe obedeciam, assim como as
serpentes, e que era capaz de se tornar invisível aos olhos dos
inimigos. Em algum momento perdeu as artes mágicas. Foi
aprisionado em 1905, e deportado para a Guiné-Bissau, onde terá
falecido. Até hoje existe um pano, do vestuário tradicional, que tem
o seu nome. Os panos com os quais as mulheres se cobrem
costumavam ser lançados todos os anos em padrões diferentes,
ficando com o nome de personalidades ou de acontecimentos que
marcaram essa época. A samacaca é um pano estampado em
vermelho, preto e amarelo, cores que, por coincidência, são hoje as
da bandeira angolana.
Há um postal do início do século XX que mostra Samacaca preso,
entre dois soldados brancos, e um soldado negro. Os brancos
parecem muito baixos ao lado de Samacaca, que tem a cabeça
descoberta e um rosto de traços fortes e está descalço, vestido com
uma camisa e um pano atado à cintura. O soldado negro, quase tão
alto quanto Samacaca, segura uma espingarda equipada com uma
comprida e aguda baioneta. Samacaca é o único que olha para a
câmara, num meio sorriso irónico, como se olhasse para o futuro.
Existem pelo menos duas versões sobre a morte de Mutu-ya-
Kevela:
Os mais-velhos, no Bailundo, contam que, embora ferido, Mutu-
ya-Kevela não morreu em combate. As tropas portuguesas
lançaram-no vivo num caldeirão de água a ferver. Para grande
surpresa dos brancos, Mutu-ya-Kevela saltou do caldeirão mais
vigoroso do que nunca, rindo alto, e insultando o tenente Pais
Brandão, pois o guerreiro ovimbundo era como a abóbora grelada
(omuto), a qual, por mais que a fervam, nunca chega a cozer.
O relatório do tenente Albano Augusto Pais Brandão assegura
que o rei do Bailundo foi morto em combate, eram 8h20 do dia 3 de
agosto de 1902.
O tenente português confirma o heroísmo do último rei do
Bailundo independente: «Ficou um grupo de gentios com o chefe
principal da revolta, Mutu Aquebera, tentando um supremo esforço,
tentativa frustrada porque é visado a menos de cem metros pelo
soldado n.º 34 da 1ª Companhia do extinto Batalhão de Caçadores
n.º 3, Mateus Bartolomeu da Costa, que, com a máxima paz de
espírito, lhe despedaçou o osso frontal com uma bala.»
Pais Brandão ordenou que decapitassem o cadáver e que lhe
cortassem a perna direita, cujo pé tinha alguns dedos defeituosos,
não para «dar largas a ódios ou exercer represálias», como fez
questão de afirmar no seu relatório, mas para proceder ao
reconhecimento do cadáver. A favor de Pais Brandão é justo
reconhecer que a decapitação dos cadáveres de inimigos famosos
foi, durante séculos, uma prática generalizada em todo o mundo.
Afinal, era mais fácil transportar uma cabeça do que um cadáver
inteiro. A popularização da fotografia acabou com tal prática.
Os meninos do Dondi
1

ABEL EPALANGA CHIVUKUVUKU NASCEU A 11 DE NOVEMBRO DE 1957, numa


aldeia chamada Luvemba. O pai, Pedro Sanjango Chivukuvuku,
nascido a 23 de novembro de 1925, era originário do Mungu, e a
mãe, Margarida Chilombo Chivukuvuku, de Chinjamba. Todas estas
localidades se situam muito próximas umas das outras, no município
do Bailundo, coração da nação ovimbundo, a quase dois mil metros
de altura, no planalto central de Angola.
As noites costumam ser frias no Bailundo, o céu é de um azul
puríssimo, a terra escura e fértil, e chove muito, o que explica o
verde exuberante, a abundância de fruta, milho e legumes, e
também o interesse dos colonos portugueses pela região.
O avô paterno de Abel, do qual este herdou o nome, era
catequista, tendo recebido a missão de evangelizar a Luvemba e
cercanias. O pequeno Abel só permaneceu na aldeia natal durante
dois anos porque o pai, Pedro Sanjango, foi transferido para a
Missão Evangélica do Dondi, no Catchiungo, como professor, e levou
consigo os três filhos mais velhos — Samuel, Helena e o próprio
Abel. A mãe continuou na Luvemba, com os caçulas. Só se juntou ao
marido três anos mais tarde, já Abel soletrava as primeiras letras,
numa pequena escola, administrada pelo mestre Valeriano Junjuvili.
No início dos anos 1960, viviam na Missão do Dondi vários
missionários canadianos e norte-americanos. O excelente hospital da
Missão era chefiado por George Burgess, cirurgião e missionário
canadiano, que passou vinte e três anos da sua vida em Angola,
abandonando o país apenas em 1977. Abel recorda ainda outros
figuras relevantes da Missão, como a reverenda Etta Snow,
Margareth Newman, ou a Dra. Kay. Havia também missionários
portugueses, mas eram os anglófonos quem comandava a Missão.
No corpo principal da Missão erguiam-se a igreja, o internato
masculino, os refeitórios, a escola técnica, além das residências dos
missionários. Um pouco mais distante ficava o Seminário Emmanuel
e a Missão Evangélica do Lutamo. A uns 3 quilómetros, recatado e
resguardado, escondia-se o internato feminino e as escolas das
meninas.
As famílias angolanas provenientes da aristocracia do Bailundo,
como os Chivukuvuku, os Epalanga, os Sukuakueches ou os
Muekalia, conviviam na Missão do Dondi com outras vindas do
Norte, e de língua quimbundo, como a família do atual bispo da
Igreja Metodista, Emílio de Carvalho, natural de Luanda. Havia ainda
muitas famílias originárias do Bié, como os Nunda, os Tchingufo, os
Balaka ou os Sikato; e havia as famílias da própria região: os
Dachala, os Chindondo, os Vinama, os Satchiambo, os Mussili, os
Catata ou os Junjuvili.
Pedro Sanjango Chivukuvuku, a quem os alunos deram a alcunha
de Dupla, lecionava Estudos Bíblicos, sendo também responsável
pela biblioteca da Missão e pelo internato masculino. Curiosamente,
os pais de Abel preferiram que os filhos estudassem na escola
pública da vila da Bela Vista (atual Catchiungo), talvez para evitarem
conflitos de interesse. Abel e os irmãos caminhavam todos os dias 7
quilómetros até à Escola Primária N.º 35 — e outros tantos no
regresso. Na escola da Bela Vista, todos os professores eram
portugueses. Os meninos estudavam lado a lado com as meninas.
Além disso havia, segundo Abel, uma certa harmonia racial.
Aos sábados, Pedro e a esposa trocavam a Bíblia pela enxada e
transformavam-se em agricultores. Todos os filhos participavam nos
trabalhos de campo, o que faziam, de resto, com grande alegria.
— Nós, as crianças, escolhíamos as nossas árvores — lembra
Abel. — Conhecíamos as nespereiras que tinham as nêsperas mais
doces. À mesa, éramos dez. Antes da refeição, a oração. Naquela
época fomos praticamente vegetarianos. Depois da refeição servia-
se café, que todos nós bebíamos. O nosso pai era um indivíduo
disciplinador, rigoroso ao extremo. Rigoroso na formação dos filhos,
rigoroso em relação às obrigações da Igreja e rigoroso no trabalho.
A mãe, essa não, a mãe era muito mais doce.
Os Chivukuvuku produziam milho, batata, legumes, fruta, que
consumiam e vendiam para fora. Na época das colheitas, Pedro
Sanjango recrutava alguns dos seus estudantes para ajudarem a
família. Vinham camiões do Huambo recolher a produção excedente,
e voltavam sempre carregados.
Aos domingos, na hora do culto, os rapazes, vestidos de fato e
gravata e alinhados como militares, entravam na igreja cantando
hinos religiosos ao som do órgão tocado pelo professor Rubem
Sicato. Entretanto, surgiam as meninas, vindas do internato
feminino, do outro lado do rio, também elas fardadas. Aquele era um
dos raros momentos em que os rapazes conseguiam ver as moças.
Aos fins de semana aconteciam ainda competições desportivas,
opondo equipas de basquete e de futebol de diferentes missões.
Mais raramente, os missionários organizavam sessões de cinema.
2

AS AUTORIDADES PORTUGUESAS TINHAM CONHECIMENTO DA SIMPATIA com


que os missionários norte-americanos e canadianos encaravam os
movimentos de libertação africanos. Ao mesmo tempo, essas
Missões contavam com o apoio, explícito ou implícito, do governo
norte-americano, o que impedia os portugueses de tomar posições
mais duras.
Ainda assim, volta e meia irrompiam na Missão dois ou três
agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, PIDE, a
temida polícia política portuguesa. A PIDE nunca tocou nos
missionários norte-americanos. Chegou, contudo, a prender alguns
professores angolanos, como o pastor Jessé Chiula Chipenda, o
primeiro negro a ser nomeado secretário-geral da Igreja Evangélica
e Congregacional de Angola (IECA). Jessé Chipenda era filho do soba
da aldeia de Lomanda. O pai — que teve dezasseis mulheres e mais
de cinquenta filhos e enriqueceu organizando quibucas para o litoral,
trocando escravos, cera e marfim por aguardente e armas de fogo —
opôs-se inicialmente à conversão do filho, embora mais tarde o
tivesse ajudado a converter toda a aldeia natal. Jessé foi preso em
1967, acusado de ligações aos movimentos independentistas, vindo
a falecer poucos anos mais tarde no infame Campo de Concentração
do Tarrafal, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde. Um dos seus filhos,
Daniel Chipenda, viria a distinguir-se, primeiro enquanto futebolista,
em Portugal, e depois como guerrilheiro do MPLA, antes de se
transformar num dos seus mais notórios dissidentes.
Ainda em 1967, alguns meses após a prisão de Jessé Chipenda,
os agentes da PIDE surgiram a meio da noite com galões de gasolina,
e, diante da indignação dos missionários e da perplexidade e terror
dos estudantes, atearam fogo ao edifício onde funcionava a
tipografia.
3

O DESTINO RESERVADO AOS ESTUDANTES DA MISSÃO DO DONDI que


concluíssem o ensino primário era, regra geral, o Liceu do Huambo.
Quase sempre, ficavam alojados no Lar Académico, no Bairro
Académico, perto do liceu, que, tal como a Missão, era gerido com
extremo rigor por missionários canadianos e norte-americanos.
A cidade do Huambo foi fundada em 1912 pelo general Norton de
Matos, no quilómetro 423 do Caminho de Ferro de Benguela, CFB,
um empreendimento épico, levado a cabo pelo engenheiro britânico
Robert Williams (a mando de Cecil Rhodes), e que estava então na
sua fase final de execução. A cidade tomou o nome do Reino do
Huambo, que ali existiu até ao final da guerra luso-ovimbundo. Em
1928, o então governador, Vicente Ferreira, alterou o nome da
cidade para Nova Lisboa, o que muito irritou Norton de Matos. Além
disso, fez publicar no boletim oficial que a cidade seria a partir dessa
data a capital de Angola. Na lei, Nova Lisboa foi a capital de Angola
até 1950. Na prática, nunca o foi. Na grande festa que assinalou a
fundação da cidade, a animação musical esteve a cargo da orquestra
de Luís Sambo, músico e ervanário originário de Cabinda, que tinha
na altura 38 anos, e viria a ser uma figura mítica em todo o
território.
Abel chegou ao Huambo, então Nova Lisboa, em 1968, na
companhia de dois amigos que se tornariam, mais tarde, figuras
relevantes das Forças Armadas para a Libertação de Angola, FALA, o
aparelho militar da UNITA: Peregrino Isidro Wambu Chindondo e
Artur Santos Pereira (Vinama).
Em Nova Lisboa, Abel reencontrou o irmão mais velho, Samuel, o
qual se transformara numa figura muito popular na cidade,
sobretudo após se tornar teclista de uma banda de rock, os
Cadência 7, liderada pelo vocalista Nelson Santos.
No Liceu de Nova Lisboa, Samuel Chivukuvuku era muito popular,
quer entre os alunos, quer entre os professores. O jovem dirigia o
jornal académico. Os colegas gostavam dele, porque contagiava a
todos com a sua alegria; os professores admiravam-no pela
inteligência, a cultura e o português erudito, de ressonâncias
camilianas, com o qual confundia os colegas.
Samuel foi aluno de um professor de Língua Portuguesa, José
Fernandes Duarte, por alcunha o Pele Vermelha ou Pelinhas. Certa
ocasião, o Pele Vermelha pediu a Samuel que se levantasse e lesse
um ensaio que o impressionara muito positivamente. Samuel leu o
texto, com uma dicção perfeita, diante da perplexidade dos colegas,
quase todos de ascendência portuguesa, e do ar divertido do
professor.
— Muito bem! — felicitou-o o Pele Vermelha. — Agora traduza
isso tudo em português corrente, porque receio que os seus colegas,
que dominam mal a própria língua materna, não tenham
compreendido quase nada.
Samuel estava alojado no Lar Académico. Contudo, Pedro
Sanjango decidiu que Abel e Helena partilhariam uma casa com duas
primas, no Bairro de Cacilhas, ao lado do Campo de Futebol do
Mambroa. No primeiro dia em que compareceu às aulas, na Escola
Preparatória Sousa Gentil, Abel surpreendeu-se ao descobrir que já
todos os professores conheciam o seu nome — era a discreta
diplomacia de Samuel a funcionar.
O rock angolano (também chamado yéyé) vivia um mo­­men­­to
alto. Em Luanda, brilhavam os Heavy Band, de Fernando Girão; os
Black Stars, de Gegé Belo; os Windies, do baterista Beto Silva; os
Five Kings, de Mello Xavier; Os Incógnitos, Os Kríptons ou Os
Brucutus, que interpre­­tavam temas dos Beatles, Bee Gees, Led
Zeppelin, Black Sabbath ou Santana, além de originais, em inglês,
português, quimbundo e umbundo. Em Benguela, distinguiam-se os
Apolo XI, por onde passaram duas lendas da música popular urbana
de Angola, Filipe Mukenga e José Agostinho. No Huambo,
pontificavam Os Rebeldes, de Fausto Bordalo Dias, que viria, alguns
anos mais tarde, a afirmar-se como um dos mais notáveis
cantautores portugueses. Waldemar Bastos, então em início de
carreira, também vivia no Huambo.
Eram bandas formadas por jovens brancos, negros e mestiços,
mas que tocavam para plateias predominantemente de origem
portuguesa. Entre os raros vocalistas negros a triunfar no pop/rock
angolano destacam-se os nomes de Vum Vum (Manuel Rosário das
Neves), da banda Os Eletrónicos, e Eduardo Nascimento, da banda
Os Rocks, o qual se tornou ainda mais famoso depois de ser
escolhido para representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção,
em 1967.
A pequena burguesia negra e mestiça das velhas cidades do
litoral, como Luanda e Benguela, ao rock preferia o semba, o
merengue, e outros ritmos angolanos e afro-latinos. O gosto pelo
rock, em Angola, nessa época, indiciava não só uma certa
irreverência juvenil, como a pertença a uma classe social um pouco
mais elevada. Um jovem negro a tocar órgão numa banda de rock,
em Nova Lisboa, chamava a atenção:
— Ver um estudante negro a tocar órgão numa banda constituída
maioritariamente por brancos, aquilo representava muito para nós —
lembra Artur Vinama, hoje general das Forças Armadas Angolanas.
— Tanto mais que o Cadência 7 ia tocar nas festas portuguesas.
Tocava muito nas festas de São João.
Sempre que os Cadência 7 se deslocavam à Bela Vista, Samuel
convidava toda a família. O velho Pedro Sanjango não escondia o
orgulho pelo filho. A banda tocava alguns temas originais, e outros
de Percy Sledge, Jimmy Hendrix, Ottis Redding ou Santana.
Certa noite, Samuel saiu para tocar com a banda, bebeu um
pouco além da conta e regressou de madrugada ao Lar Académico.
O álcool era, para os missionários protestantes, uma espécie de
Satanás engarrafado. Não havia a menor tolerância relativamente
aos estudantes que chegassem cheirando a vinho ou a cerveja.
Assim, o jovem foi imediatamente expulso. Dias depois, dois agentes
da PIDE apareceram no lar, para saber o que acontecera. A
missionária canadiana que os recebeu, sem dominar totalmente os
ardis da língua portuguesa, terá dito aos agentes que Samuel era
um «bandido».
Ali estava um jovem negro, teclista de uma banda de yéyé e filho
de um professor de uma Missão protestante. Quando a missionária
disse «bandido», querendo dizer «malandro» ou «boémio», o que os
agentes da polícia do pensamento escutaram foi — «terrorista».
Assim, levaram-no preso. Professores e colegas logo se mobilizaram
para o soltar. Provavelmente, a PIDE surpreendeu-se e assustou-se
com a popularidade de Samuel Chivukuvuku entre a elite branca da
cidade, ou talvez tivessem percebido o equívoco. O certo é que o
libertaram escassos dias depois.
Pedro Sanjango viu na expulsão de Samuel uma oportunidade
para reunir todos os filhos, alugando uma casa no Bairro Bom Pastor.
Isso fez com que Abel passasse a conviver ainda mais de perto com
o irmão mais velho, que logo o introduziu no mundo da música.
4

QUANDO NA MANHÃ DE 25 DE ABRIL DE 1974 começaram a chegar às


cidades angolanas notícias da revolução em Portugal, as primeiras
reações foram de incredulidade. Os colonos portugueses ficaram
assustados. Entre os angolanos, pelo contrário, o sentimento
predominante foi o regozijo. Nos meses seguintes dominou a
euforia. Nunca se organizaram tantas festas como nessa altura.
Mesmo após as primeiras escaramuças, mesmo depois que os
portugueses, aterrorizados, começaram a abandonar o país, mesmo
nesses dias ansiosos, a juventude continuou a dançar.
— À medida que os portugueses iam abandonando o país, iam
também entregando as casas, carros e outros bens a pessoas das
suas relações — lembra Abel. — No nosso caso, meu e dos meus
irmãos, que vivíamos no Bom Pastor, um senhor português, amigo
da família, ofereceu-nos a casa dele no Bairro Académico. A nossa
vida mudou para melhor, muito rapidamente. A nossa, e a de muitos
outros.
No Huambo, em 1975, a UNITA contava com forte apoio popular.
Os guerrilheiros e dirigentes do movimento provinham, na sua larga
maioria, de famílias do planalto central. Como tantos outros
angolanos de etnia ovimbundo, Abel Chivukuvuku escolheu a UNITA,
não por questões ideológicas, mas de parentesco — praticamente
toda a sua família simpatizava com o movimento do Galo Negro, e
alguns eram altos dirigentes do mesmo.
O MPLA tinha do seu lado, no Huambo, um grupo de intelectuais,
quase todos de origem europeia, que não falavam umbundo e
conheciam mal o universo que se estendia para além do betão e do
asfalto. Para a UPA/FNLA, um parti­­do criado para defender os
interesses da nação bacongo, e que nos primeiros anos após a sua
fundação não escondia a ambição de restaurar o antigo e muito
poderoso Reino do Congo, foi ainda mais difícil afirmar-se na cidade
e na região.
A chegada de Jonas Savimbi ao Huambo, na companhia do
sorridente secretário-geral do partido, o cabindês Miguel N’Zau Puna,
na manhã do dia 28 de janeiro de 1975, arrastou uma multidão
festiva, avaliada em mais de trezentas mil pessoas, até ao pequeno
aeroporto da cidade. O comício que se seguiu confirmou os dotes
oratórios de Savimbi, capaz de transitar, com igual desenvoltura,
entre o português e o um­­bundo, e a sua capacidade de seduzir
plateias muito diversas.
— Nós todos aderimos à organização juvenil da UNITA — recorda
o general Artur Vinama. — A tendência era os jovens irem para as
bases da UNITA, que estavam no Leste, no Moxico. Contudo, os
manos que foram e depois voltaram, isto em 1974, como o meu
primo, Valdemar Pires Chindondo, que tinha sido oficial nas tropas
portuguesas, todos eles nos desaconselharam a ir para as matas.
«Vocês fiquem aqui a estudar», disseram-nos. Alguns dos nossos
amigos e colegas foram para as matas e, quando voltaram, vinham
arrogantes, entravam nas nossas festas e roubavam as nossas
namoradas.
A 31 de janeiro de 1975, Abel Chivukuvuku foi nomeado por Elias
Salupeto Pena como representante da juventude do partido na
tomada de posse do governo de transição, em Luanda. Salupeto
Pena, filho de Judite Pena, a irmã mais velha de Jonas Savimbi, e,
portanto, o seu legítimo herdeiro segundo a tradição ovimbundo, era
então o secretário-geral da Juventude Revolucionária de Angola,
JURA, o braço juvenil da UNITA. Viria a morrer em novembro de 1992,
após sofrer terríveis torturas, naquela mesma noite de fúria em que
Abel caiu ferido numa rua de Luanda.
A visita a Luanda representou um marco importante na vida do
jovem Abel: pela primeira vez entrou num avião, pela primeira vez
viu o mar. A delegação ficou alojada num pequeno hotel, na
Mutamba. Os jovens assistiram à tomada de posse do novo governo,
e a seguir, ainda vestidos com a sua melhor roupa, foram passear
até à Ilha do Cabo. As moças da JURA, que não tinham trazido fatos
de banho, lançaram-se à água com os seus vestidos de domingo. Os
rapazes tiraram as calças e mergulharam em cuecas, diante do olhar
espantado e trocista dos luandenses.
Abel regressou ao Huambo, deslumbrado com a beleza das
moças da capital. Poucos dias depois, Salupeto Pena propôs-lhe que
formasse um agrupamento musical, oferecendo-lhe, em nome da
JURA, toda a aparelhagem sonora e os instrumentos necessários. O
nome da banda denunciava a sua natureza e objetivos: 13 de
março, data da fundação da UNITA, na pequena vila do Muangai, na
província do Moxico. A banda era composta por Abel Chivukuvuku,
viola-baixo; o seu primo Abelinho Chivukuvuku, ao piano; Peregrino
Wambu, viola-ritmo; Artur Savuango, viola-solo, e Nino Catumbela,
cunhado de Samuel Chivukuvuku, na bateria.
A criação do grupo foi uma tentativa, relativamente bem-
sucedida, de responder ao sucesso do agrupamento Kissanguela,
ligado à juventude do MPLA, que vinha acompanhando os principais
comícios de Agostinho Neto.
Em Angola inaugurou-se por esta altura um novo género musical,
infelizmente já quase esquecido: a música romântica-revolucionária.
Santocas, o principal representante de tal corrente, era capaz de
transformar qualquer verso, por mais áspero, por mais duro ou
insosso, em puro mel e lágrimas. Ouçam-no cantando «Valódia», um
dos seus grandes clássicos: «Valódia, Valódia, Valódia tombou / em
defesa do povo angolano / Valódia, Valódia, Valódia tombou, / nas
mãos dos imperialistas / que pretendem impor-nos o
neocolonialismo. / Povo angolano, todo bem vigilante / que no
neocolonialismo a repressão é pior! / A miséria é um martírio, / a
pobreza também / e o neocolonialismo não tem cor.»
Os 13 de março atuaram durante alguns meses no Huambo, Bié
e Bela Vista, interpretando composições originais, mas também de
Jimmy Hendrix, Santana e de outras grandes estrelas anglo-
saxónicas.
Quando não estavam a tocar, ou a organizar comícios e outras
atividades partidárias, os elementos da banda continuavam a
frequentar as aulas no Liceu do Huambo.
A situação foi-se degradando à medida que se aproximava a data
prevista para a independência, 11 de novembro. As escaramuças
entre tropas dos três movimentos tornaram-se cada vez mais
comuns nas ruas e praças da cidade. Milicianos brancos ligados à
FNLA, muitos deles antigos comandos da tropa portuguesa,
despertavam os moradores a altas horas da madrugada, brandindo
armas e gritando ameaças, com o propósito de confiscar jipes e
outros veículos todo-o-terreno. Alguns aproveitavam para confiscar
também armamento, relógios, joias e demais valores.
Balas tracejantes riscavam as noites. Rixas simples, por causa de
uma discussão política, ou do roubo de uma bicicleta, terminavam
frequentemente em fuzilamentos e linchamentos, sem que a Polícia
tivesse coragem de intervir. Finalmente, os últimos agentes das
forças da ordem desapareceram, juntamente com todas as restantes
autoridades do Estado colonial.
Militares, militantes e simpatizantes do MPLA foram expulsos do
Huambo, ao mesmo tempo que os guerrilheiros da UNITA e da FNLA
eram escorraçados a tiro de Luanda.
Em setembro, segundo afirma o jornalista sul-africano Max du
Preez no seu livro Pale Native, Peter Botha deu luz verde para a
Operação Savana, que previa a invasão de Angola por tropas
regulares do Exército sul-africano, em conjunto com guerrilheiros da
UNITA e da FNLA e grupos de Flechas, pisteiros de etnia Khoi-San que
tinham servido no Exército português. Nesse mesmo dia, o
comandante Kaas van der Waals chegou a Silva Porto, atual Kuito,
como elemento de ligação entre o regime do apartheid e Jonas
Savimbi, ao qual foi dado o nome de código de Spyker («unha», em
afrikaans, mas também o termo, em calão, para o ato sexual).
Waals recorda o encontro com Savimbi no seu livro, Guerra e
Paz: Portugal / Angola (1961-1974): «Em setembro de 1975, o
então diretor-geral de operações da SADF (Forças Armadas Sul-
Africanas) pediu-me opinião sobre Angola. (…) Propuseram-me que
participasse diretamente, com a opção de dar apoio à FNLA ou à
UNITA. Informei então o general Viljoen, sem qualquer rebuço, que
não estava disponível para trabalhar com a FNLA, que apenas
dispunha de apoio minoritário e que, segundo a minha opinião,
estava a ser mal dirigida. No dia seguinte recebi ordens para
contactar a UNITA, de Jonas Savimbi, a fim de o aconselhar, treinar
duas brigadas na guerra convencional, e desencadear uma operação
tão breve quanto possível, para parar o avanço do MPLA sobre Nova
Lisboa (Huambo). Este centro importante teria de ser mantido,
custasse o que custasse, até à independência. Eu e a minha equipa,
escolhida a dedo, teríamos de estar fora do país aquando do dia da
independência, marcado para 11 de novembro de 1975. Não se
perdeu tempo e a 23 de setembro de 1975 realizou-se o primeiro
encontro com Savimbi, no seu quartel-general, em Silva Porto
(Cuíto), no centro de Angola. O líder da UNITA ficou espantado ao ver
que eu falava português e que conhecia bem Angola.»
Na noite de 11 de novembro, Abel deslocou-se ao Estádio da
Mambroa, onde Jonas Savimbi proclamou a Independência.
Agostinho Neto fez o mesmo em Luanda, com a cidade cercada por
tropas zairenses, guerrilheiros da FNLA e mercenários portugueses,
ingleses e norte-americanos. Holden Roberto escolheu como palco
para idêntica cerimónia a pequena vila do Ambriz, no Norte de
Angola, com pouco mais de 15 mil habitantes.
A 8 de fevereiro de 1976, as Forças Armadas Populares para a
Libertação de Angola, FAPLA, entraram no Huambo, com o apoio de
tropas cubanas. Milhares de moradores, com maior ou menor ligação
à UNITA, fugiram da cidade, em carros e caminhões atulhados de
móveis e outros bens. Muitos mais escaparam a pé, enquanto se
ouviam gritos: «Os cubanos vêm aí! Os cubanos vêm aí!»
Abel Chivukuvuku juntou-se à multidão em fuga, em direção a
casa dos pais, na Bela Vista. O que mais o preocupava era deixar os
instrumentos musicais para trás:
— Tinha a certeza de que em poucos dias a guerra acabaria, e
que logo estaríamos de volta. Infelizmente, não foi assim.
A fase romântica da guerra
1

PERMANECEMOS ALGUNS DIAS EM CASA DOS MEUS PAIS, eu e o meu primo


Abelinho, o pianista do agrupamento 13 de março. Na altura, o meu
irmão mais velho, o Samuel, já era capitão da UNITA e fora colocado
em Kinshasa, como coordenador da logística geral do movimento,
com base na capital zairense e em estreita ligação com as
autoridades americanas e francesas. Samuel voava regularmente
para o interior de Angola, nos aviões que traziam equipamento
militar.
Decidimos então ir até ao Bié, eu e o Abelinho, esperar o mano
Samuel. Achámos que seria possível apanhar boleia no avião dele.
Contudo, nunca apareceu. Fomos a Menongue esperar por ele. Não
veio.
Mais ou menos por essa altura o então secretário-geral da UNITA,
Miguel N’Zau Puna, discursou num cinema, em Menongue, insistindo
que o tempo das cidades tinha terminado, e que iria começar o
tempo das matas: «Quem está preparado deve ir para as matas!»,
disse. «Quem não se sente preparado, esses que regressem para as
suas aldeias, para as suas famílias.»
Formaram-se três grupos: uns decidiram partir para as matas.
Esse grupo era constituído sobretudo por jovens que tinham
militares na família, e famílias agrupadas; outros optaram por partir
para o exílio, na Namíbia; finalmente, houve muitos que escolheram
regressar às respetivas aldeias.
Nós tínhamos 7 anos, éramos miúdos, decidimos regressar.
Juntámo-nos à família do mais-velho Ribeiro Chiteculo, já falecido, e
fomos à boleia no camião deles, de regresso ao Huambo. Já não
dava para ir pelas estradas asfaltadas porque os cubanos estavam a
caminho. Passámos por Mumbué, entrámos pelas matas, fomos até
Umpulo e em Umpulo atravessamos até chegar no Sambo. A família
da esposa do meu irmão Samuel estava lá.
Ali ficámos, eu, o Abelinho e o Nino Catumbela, cunhado do
Samuel e baterista dos 13 de março. Descansámos quase um mês,
até que o meu pai enviou alguém para nos ir buscar. E lá fomos, a
pé, até à Missão do Dondi, a uns 60 quilómetros de distância.
No Dondi reencontrei amigos: o Vinama, o Wambu e outros. E
ficámos. O Samuel continuava em Kinshasa. Os irmãos mais velhos
dos meus amigos, também militares, já tinham ido para a mata. Nos
arredores da Vila da Bela Vista, onde fundaram a base de Canhali,
estavam os mais-velhos Pires Chindondo, Renato Campos Mateus e
Alberto Joaquim Vinama, o chama­­do Chendovava, entre muitos
outros; eram a elite dos militares da UNITA.
Em determinada altura, Chendovava mandou buscar o irmão
dele, o Artur Vinama. Após uma semana, o Artur decidiu reunir os
amigos. Veio buscar-nos. Lembro-me que foi num sábado. Juntámo-
nos todos: eu, o Artur Vinama, o Jardo Muekalia, o Arcádio
Epalanga, o Chingufo, e alguns outros meninos. A discussão era se
devíamos ou não partir para as matas. Decidi logo: «Eu vou!» Os
outros concordaram. Contudo, logo no dia seguinte, o Jardo e o
Chingufo comunicaram que as respetivas famílias não os queriam
deixar partir. Felizmente, os meus pais concordaram.
Em abril de 1976 veio um oficial à nossa procura: era o capitão
Kalacata, antigo militar da tropa portuguesa, que, já depois da
revolução de abril em Portugal, recebera treinamento na Tanzânia.
Partimos com ele, a pé, até Cachilengue, a aldeia onde nasceu o
escritor José Sousa Jamba, e ali dormimos em casa dos pais da
Odete Baca Joaquim. No dia seguinte prosseguimos a marcha com
destino a Chinhama. A meio do caminho escutámos o ruído de um
motor e vimos surgir um jipe com dois cubanos. Era demasiado
tarde para fugir. O capitão Kalakata ia armado com uma pistola.
Rápida e disfarçadamente, atirou a arma para o meio do capim. Nós
estávamos muito assustados. Os cubanos, contudo, pareciam ainda
mais aterrorizados do que nós. Revistaram-nos, sem grande zelo, a
medo, enquanto nos explicavam que tinham recebido ordens para
patrulhar a estrada. Vinham de uma unidade na Chinhama, não
muito longe. Ficaram com algum receio porque éramos três.
Perguntaram-nos o que fazíamos ali e dissemos que íamos ver a
família. Finalmente, deixaram-nos ir.
— Vamos prosseguir pela estrada. — ordenou o capitão Kalakata.
— Mas se aparecer mais algum carro entramos logo pela mata.
Decorridos alguns minutos voltámos a ouvir o ruído de motores.
Dessa vez eram vários carros. Escondemo-nos na mata e a partir
dessa altura largámos a correr através do capim, e só parámos na
Missão da Camama, onde fomos acolhidos pelo padre Damião.
Ficámos uma semana na Missão da Camama, aguardando uma
patrulha da base. Vinham sempre patrulhas. O contacto era feito
através de estafetas. A sabedoria dos antigos guerrilheiros ajudou-
nos imenso nesses primeiros anos.
Após uma semana chegou uma patrulha que nos levou para a
base do Canhali, na comuna da Chinhama, chefiada pelo Waldemar
Pires Chindondo, que era o Chefe do Estado-Maior.
Começou então, para nós, os meninos do Dondi, a fase
romântica da guerra.
2

NOS PRIMEIROS DIAS, OS JOVENS APRENDIZES DE GUERRILHEIRO


aprenderam a construir a própria habitação — uma casa tradicional,
de pau a pique e barro, com cobertura de colmo.
A base fervilhava de soldados, a maioria sem qualquer
experiência militar. Entre os oficiais, contudo, destacavam-se vários
que haviam servido no exército colonial. Regra geral, eram
combatentes muito mais bem preparados do que aqueles que
haviam estado do lado da guerrilha durante a guerra de libertação.
Os novos recrutas receberam armas e começaram a treinar. Em
maio, foram enviados pela primeira vez numa missão, para a área do
Sambo. O objetivo consistia em emboscar uma coluna das FAPLA.
Permaneceram na região, acampados, comendo apenas batata-doce,
mas, como não tivessem visto sinal algum das forças inimigas,
acabaram por regressar sem terem disparado um único tiro.
Nas semanas seguintes, foi constituída uma companhia
integrando a maioria dos jovens ligados à Missão do Dondi, tendo
como comandante o irmão de Artur Vinama, o ca­­pitão Alberto
Joaquim Vinama (Chendovava), homem de ex­tra­­ordinária coragem e
ferocidade, que viria a falecer no dia 10 de outubro de 1986, não em
combate, como todos vaticinavam, mas vítima de um estranho
acidente de viação. Numa guerrilha constituída sobretudo por jovens
camponeses, analfabetos ou semianalfabetos, a companhia do
capitão Chendovava destacava-se, vindo a ser conhecida como a
«companhia dos intelectuais».
Mal a companhia foi constituída, receberam instruções de Jonas
Savimbi para que se juntassem à direção do movimento, no Leste do
país. Contudo, ao chegarem ao Umpulo, na província do Bié, foram
informados de que as FAPLA, juntamente com tropas cubanas e
congolesas, haviam dado início a uma forte ofensiva no Leste, num
esforço para eliminar o líder dos rebeldes.
A companhia era tão intelectualizada, lembra Abel, que a decisão
de retornar à origem, permanecer na região ou prosseguir para
leste, foi tomada através do voto, de mão no ar. A maioria escolheu
permanecer no Bié. Dirigiram-se então para a base central da
Terceira Região, comandada pelo major Eugénio Antonino Ngolo
(Manuvakola), que os recebeu com alegria.
Uma tarde saíram em patrulha. Ao passarem junto a um pequeno
quimbo, deram com um cabrito amarrado. Os rapazes olharam para
o pobre bicho, imaginando-o bem assado e temperado. Há várias
semanas que não comiam carne. Nem sequer foi necessário votar.
Um deles agarrou no animal e regressaram à base. A única questão
que os inquietava era como entrar, carregando o saque, sem que
ninguém desse por nada. Um dos guerrilheiros, Roberto Muehombo,
também natural do Dondi, lembrou-se então de colocar o cabrito nas
costas, vestindo o casaco sobre o mesmo. Todos os outros
concordaram, às gargalhadas: Roberto parecia um pouco corcunda,
mas, à luz hesitante do crepúsculo, talvez ninguém reparasse.
Infelizmente, esqueceram-se de cobrir os pés do cabrito, de forma
que foram descobertos e denunciados. Sabendo que seriam
castigados na manhã seguinte, optaram por devorar o cabrito nessa
mesma noite, acompanhando a carne com «funge de arroz», dado
que não dispunham de farinha de milho, nem tão pouco de bombó.
Na manhã seguinte, na formatura, enfrentaram um tenente, mais
divertido do que furioso:
— Deviam apanhar porrada, todos vocês. Mas não me sinto à
vontade para bater em intelectuais. Assim, vão passar os próximos
dias a cavar buracos para fazer retretes.
Poucos dias após este episódio, ou seja, algumas dezenas de
retretes mais tarde, a base foi atacada pelas forças governamentais,
com o apoio de tropas cubanas, e teve de ser abandonada. A
companhia de Abel recebeu a missão de proteger o major
Manuvakola. Contudo, a facilidade da tarefa desagradava ao capitão
Chendovava, o qual ansiava por ação. Abel e os restantes
guerrilheiros também. Finalmente, conseguiram ser substituídos por
uma outra companhia, sendo remetidos para a frente de combate,
na Chipeta, província do Bié. Ali participaram em dezenas de embos­­‐
cadas.
Em determinada altura, Chendovava decidiu enviar Abel
Chivukuvuku e Peregrino Wambu a um famoso curandeiro, radicado
na região de Chiuca, no município de Catabola, Bié, para que este
lhes blindasse os corpos:
— Ficámos lá uma semana, recebendo uma série de tratamentos
tradicionais, entre ervas, banhos e outros — recor­d ­ a Abel. — Para
alguns desses tratamentos foi necessário extrair sangue do nosso
corpo. Ainda guardamos as marcas. Naquele tempo acreditávamos
naquilo. Produzia um efeito psicológico terrível. O que nos
garantiram é que depois dos tratamentos, nenhuma bala conseguiria
furar-nos a pele. Machadada também não produziria dano algum. Se
estivéssemos quase a ser capturados, só teríamos de tirar um
pauzinho do bolso e de o mastigar enquanto rodopiávamos em torno
de uma árvore, e com isso desapareceríamos, ficaríamos
completamente invisíveis.
O kimbanda preveniu os dois homens que teriam de seguir à
risca um complexo conjunto de instruções. Caso fossem atingidos
por uma bala, e esta entrasse no corpo, isso significaria que haviam
violado alguma das muitas regras impostas durante o tratamento.
Por exemplo, nunca poderiam olhar para trás. Também estavam
proibidos de namorar com a mulher de um amigo, etc.. Havia
inúmeros etcéteras, incluindo muitos tabus alimentares.
Sempre que partiam em missão de combate, o capitão
Chendovava colocava um dos homens blindados à sua direi­­ta e o
outro à sua esquerda — e assim avançavam.
Certo dia, em julho de 1976, estando Abel e os companheiros a
descansar na base, jogando cartas enquanto discutiam o futuro —
todos eles achavam que a guerra terminaria em breve —, sofreram
um violento ataque das forças governamentais.
Naquela manhã tinham saído dois pelotões em missão de
patrulhamento. Num deles, comandado pelo alferes Sete Estrelas,
seguia um jovem soldado, Alírio Njolela Lena Gomes, o Big Jó, que
viria a ser um dos mais notáveis ca­­bos de guerra do movimento
rebelde. Este pelotão entrou inadvertidamente num quimbo já
ocupado pelas FAPLA. O soba recebeu os guerrilheiros com o rosto
impassível, não demonstrando nem receio, nem hostilidade. Assim
que viu uma oportunidade, contudo, ordenou a um garoto que fosse
alertar as tropas do governo. Sete Estrelas, que compreendia a
língua local, apercebeu-se da armadilha, e fugiu para o mato com os
restantes guerrilheiros. Big Jó, porém, permaneceu sentado
tranquilamente, diante do soba, até escutar o ladrar furioso de cães.
Então, ergueu-se de um salto, mas já nada podia fazer. Estava
cercado por cães e soldados armados. Preso e conduzido para
interrogatório, surpreendeu os oficiais das FAPLA com a qualidade do
seu português, e a revelação de que vivera em Portugal e na Suíça,
com os pais, antes de retornar a Angola. Os militares do governo
não esperavam encontrar naquele fim do mundo um simples soldado
da UNITA tão instruído, bem-falante e viajado.
Entre ameaças de tortura e morte, e promessas de amnistia, Big
Jó concordou em indicar a base. Seguiu então alguns passos à
frente dos militares, fingindo estar conformado com a sua condição.
Porém, assim que se encontrou no meio da chana, entre o capim-
elefante, desatou a correr, enquanto gritava, para alertar os
companheiros.
A regra entre os guerrilheiros era ter sempre uma mochila
pronta, com o essencial para a sobrevivência no mato. Ao escutarem
os tiros e os gritos, o capitão Chendovava, Abel e restantes
guerrilheiros colocaram as mochilas às costas e escaparam. O
capitão Chendovava, porém, fazendo justiça à fama de bravura que,
por essa altura, já o precedia, decide contra-atacar. Passaram o resto
do dia no encalço dos soldados governamentais. Cai a noite quando
encontram a base inimiga. Dormem por turnos, em sobressalto, com
os nervos à flor da pele. Madrugada, muito cedo, o tenente
Sinhelele, sem sequer prevenir o capitão, dispara um lança-granadas
contra as FAPLA. Começa assim um pesado fogo de artilharia, de
parte a parte. O capitão Chendovava, tendo Abel à sua direita e
Peregrino Wambu à sua esquerda, os dois absolutamente convictos
da invulnerabilidade que o quimbanda da Chiuca lhes assegurara,
persistem perigosos minutos na mesma posição, sob fogo cerrado,
enquanto o resto do grupo recua em grande desordem.
Talvez por ação do feitiço, talvez porque os soldados
governamentais tivessem instruções precisas para os capturar vivos,
o certo é que nenhuma bala os alcança. Finalmente, convencidos de
que não lhes resta alternativa, fogem a toda a velocidade, sempre
com o inimigo no encalço. Enquanto corre, ouvindo o zumbido das
balas e as violentas pancadas do próprio coração, Abel vê ao seu
lado o tenente Junjuvili:
— Soldado, carregue a minha arma! — grita Junjuvili, quase sem
fôlego.
O jovem ignora a ordem superior:
— Oh, tenente! Eu também estou a levar a minha! Carregue o
senhor a sua!
Ao fim de alguns minutos, já completamente exaustos, percebem
que os militares das FAPLA abandonaram a perseguição. Passam
vários dias num jogo de rastreamento, seguindo indicações que Big
Jó gravara com faca nos troncos de árvores — setas e outros sinais
—, até o conseguirem encontrar. Juntos, seguem então para uma
nova base do movimento.
Nos primeiros dias de dezembro de 1976 chegam instruções de
Jonas Savimbi. O líder da UNITA pretende que a «companhia dos
intelectuais» o encontre na base de Malengue, uns 200 quilómetros
a sul da cidade do Kuito, capital da província do Bié. Lá chegados,
Abel consegue, finalmente, abraçar o irmão mais velho, Samuel
Chivukuvuku.
3

ENQUANTO ABEL CHIVUKUVUKU SE FAZIA SOLDADO, JONAS SAVIMBI


MARCHAVA PARA OESTE através das matas profundas de Angola, a
partir da pequena cidade de Lumbala Nguimbo — que na época
colonial teve o nome de Gago Coutinho —, a escassos 70
quilómetros da Zâmbia.
A 13 de março, organizou-se uma parada no campo de futebol da
cidade, para comemorar o décimo aniversário da fundação do
partido. Às dez horas da manhã, logo após um curto discurso de
Savimbi, três caças Mig-21 irromperam das nuvens, derrubando a
ponte sobre o rio Luanguinga. Retornaram pouco depois,
bombardeando o pequeno aeroporto da cidade e destruindo, na
pista, um avião zairense, que aterrara poucas horas antes carregado
de armas e munições. Os guerrilheiros conseguiram, num golpe de
sorte, atingir um dos caças, que se despenhou na fronteira com a
Zâmbia. Ao anoitecer, os dois Mig-21 remanescentes voltaram a
atacar a cidade.
Dois meses antes, os serviços secretos franceses, SDECE, numa
operação conjunta com a CIA, tinham enviado para Lumbala
Nguimbo vinte e cinco mercenários franceses, comandados pelo
lendário Bob Denard, com o objetivo de dar formação aos
inexperientes soldados da UNITA. Os mercenários, a quem a CIA
pagou 450 mil dólares, desistiram da missão logo depois dos
bombardeamentos (L’Empire qui ne veut pas mourir: une histoire de
la Françafrique, de vários autores franceses e africanos, Éditions du
Seuil, 2021). Bob Denard terá tentado convencer Jonas Savimbi a
fugir, juntamente com o grupo, exilando-se num qualquer país
africano — mas este recusou. Os mercenários partiram num camião,
na noite de 13 de março, com destino a uma pequena pista de terra
batida, numa minúscula localidade, Ninda, 75 quilómetros a sul de
Lumbala Nguimbo, onde os esperava um avião da Força Aérea da
África do Sul.
Na madrugada do dia seguinte, quatro milhares de pessoas,
soldado e civis, incluindo centenas de mulheres e crianças,
abandonaram Lumbala Nguimbo. Jonas Savimbi foi dispersando os
soldados, à medida que a caminhada progredia. Um grupo marchou
para norte, com a missão de paralisar o Caminho de Ferro de
Benguela; um outro, comandado por Smart Chata, na época com a
patente de coronel, seguiu em direção ao Muié, na intenção de ali
criar uma base militar. A coluna que acompanhava o líder da UNITA,
composta por cerca de seiscentos guerrilheiros, avançou
penosamente ao longo de uma infinita planície coberta de
espinheiros e pequenos arbustos.
— Não tinham comida, nem água — recorda o general Vinama.
— Começavam a andar às três da madrugada para descansar um
pouco por volta da meia-noite. Quem lhes conseguia comida eram
as mulheres do presidente Savimbi. Havia uns frutos vermelhos que
precisavam de ser fervidos, por forma a anular o veneno que
continham. Durante dias comeram apenas esses frutos, juntamente
com cogumelos e mel silvestre.
Seguiram-se meses terríveis, durante os quais, em diversas
ocasiões, Jonas Savimbi escapou por um triz aos ataques de
helicópteros e ao cerco das tropas governamentais.
A longa marcha terminou a 28 de agosto de 1976, quando o líder
da UNITA alcançou a base do Cuelei, após ter percorrido quase 3 mil
quilómetros a pé. Do grupo inicial, restavam setenta e nove pessoas,
entre as quais nove mulheres.
Jonas Savimbi depressa compreendeu que a UNITA só se
conseguiria reorganizar e fortalecer a partir do Sul do país, se
contasse com o apoio de quem ocupava o poder na África do Sul.
Naquela época, o regime do apartheid governava também a atual
Namíbia, território que fazia fronteira com Angola sob o nome de
Sudoeste Africano.
No seu livro de memórias, Mal Me Querem, Miguel N’Zau Puna
afirma que a decisão de pedir apoio às autori­­dades sul-africanas foi
tomada após acalorados debates, nos quais participaram todos os
dirigentes do movimento. Decidiu-se, primeiro, que um pequeno
grupo de guerrilheiros, chefiado por Samuel Chiwale, cruzaria a
fronteira, na Faixa de Caprivi, para conversações com os bóeres.
Contudo, alguns dirigentes argumentaram que apenas Jonas Savimbi
conseguiria convencer os sul-africanos. Ficou então acordado que a
delegação seria constituída por Savimbi, N’Zau Puna, Samuel
Chiwale, Almerindo Jaka Jamba e António Dembo, entre outras
figuras cimeiras do movimento.
Foram enviados dois jovens guerrilheiros, Epalanga e Vituzi, com
a missão de alertar a polícia de fronteira da chegada da delegação. A
pouca água que levavam esgotou-se no primeiro dia. Prosseguiram a
marcha, através da anhara seca e desgrenhada, cada vez mais
fracos. A língua colada aos lábios, como um pedaço morto de
cortiça, não os deixava trocar palavras. Já mal eram capazes de se
manter em pé, quando uma cabra do mato se ergueu, como um
prodígio, acima do capim. Vituzi conseguiu abatê-la com um tiro
certeiro, cortou-lhe o pescoço e sorveu-lhe o sangue quente,
dividindo o resto com o companheiro. Tendo recuperado as forças, lá
cruzaram a fronteira.
Jonas Savimbi e os restantes companheiros chegaram, dias
depois, também eles muito debilitados. Os militares sul-africanos
conduziram o grupo até um vasto capinzal, não muito longe da linha
de fronteira, pisoteado por búfalos e elefantes. Ali ficaram o dia
inteiro, cheios de fome, sede e inquietação. Ao entardecer surgiu um
helicóptero que os acolheu, para os abandonar, meia hora depois,
num terreno aberto, junto a uma lagoa. Nessa noite dormiram ali
mesmo, estendidos na lama seca, a céu aberto. Despertaram na
manhã seguinte, com o ruído de outro helicóptero. O militar que
saltou do aparelho, com os braços abertos e um sorriso no rosto, era
conhecido de todos: Philip du Preez, coronel das Forças de Defesa
Sul-Africanas, SADF, que nos últimos meses tinha servido de ligação
entre as forças da UNITA e da FNLA e o regime do apartheid.
O coronel du Preez ficaria conhecido entre os militantes da UNITA
por Papá Três. Ajudou a formar o Batalhão 32, que viria a ser mais
conhecido com o nome de Batalhão Búfalo, composto por antigos
guerrilheiros da FNLA, além de soldados portugueses e angolanos
que tinham combatido no exército colonial. Papa 3 viria a ser
também um dos principais responsáveis, enquanto representante
das autoridades sul-africanas, pelo tráfico de marfim proveniente
das áreas controladas pela UNITA.
Naquela manhã, depois de cumprimentar cada um dos dirigentes
da UNITA, o coronel du Preez ordenou aos seus soldados que
montassem uma enorme tenda. Lá dentro, numa mesa larga, deixou
pão com chouriço e queijo, cervejas e refrigerantes. Explicou a
Savimbi que precisava visitar algumas bases militares junto à
fronteira, mas que voltaria ao entardecer, e que, nessa altura,
poderiam conversar com mais tranquilidade. A seguir, subiu para o
helicóptero e foi-se embora.
— Vamos comer! — sugeriu um dos dirigentes, mal o aparelho
ergueu voo.
— Não toquem na comida! — gritou Savimbi. — Esses brancos
são racistas. Não nos disseram que comêssemos, então não vamos
comer. É melhor esperarmos.
Esperaram. Decorridas largas horas o coronel sul-africano
regressou, entrou na tenda com os seus homens, e todos eles
comeram e beberam, sem se lembrarem dos angolanos que os
aguardavam lá fora.
Jonas Savimbi e os seus homens tiveram de esperar ainda
algumas horas antes de, finalmente, conseguirem matar a fome. Só
então houve tempo para discutir o que os levara a todos até àquele
fim do mundo. O coronel du Preez começou por sugerir que os
guerrilheiros da UNITA se juntassem ao recém-formado Batalhão 32,
o que Savimbi recusou, indignado. A UNITA era um movimento de
libertação angolano. Não seria nunca um simples instrumento de
guerra nas mãos dos bóeres. Du Preez duvidou da tenacidade e da
firmeza dos guerrilheiros angolanos:
— Vocês estão mesmo dispostos a enfrentar sozinhos as tropas
cubanas? Têm coragem para isso?
— Sim, temos! — assegurou Savimbi, firmemente. — Precisamos
de vocês, nesta fase, para que nos forneçam material de guerra. É
só o que queremos. E vocês precisam de nós para conter o avanço
do comunismo junto às vossas fronteiras.
O coronel pareceu convencido. Prometeu falar nessa mesma
noite com os seus superiores. Despediu-se e voltou a subir para o
helicóptero. Nos dias seguintes os guerrilheiros receberam centenas
de quilos em armas, munições, fardamento e mantimentos. A
questão agora era como carregar todo aquele material para as bases
da UNITA, no outro lado da fronteira. Alguém sugeriu que se
utilizassem burros, animal muito comum em todo o Sul de Angola e
no Norte da Namíbia, onde é criado desde há largas gerações por
pastores nómadas — cuvales, himbas, muílas e outros. A ideia foi
recebida com gargalhadas. Contudo, depressa todos concluíram que
poderia ser a melhor solução, pois cada burro consegue carregar
entre 30 a 50 quilos, resistindo bem ao calor e à sede. Vieram os
burros. Logo surgiu outro problema: nenhum daqueles homens sabia
como dispor e amarrar as trouxas no dorso dos animais, de forma
que estas caíam constantemente, atrasando a marcha. Contudo, lá
foram. A chegada do grupo à base do Cuelei foi recebida com
cânticos e danças. Contra todas as expectativas, o Galo Negro
renascia das cinzas e em poucos meses estaria mais forte do que
nunca.
4

NO DIA 2 DE DEZEMBRO DE 1975, o presidente norte-americano Henry


Ford viajou até Pequim, para um encontro com Mao Tsé-Tung. Ford
levou consigo o seu poderoso secretário de Estado, Henry Kissinger.
A reunião contou também com a participação de Deng Xiaoping, na
época vice-primeiro-ministro da República Popular da China. A
determinada altura, os quatro homens falaram de Angola, numa
conversa reveladora do bizarro jogo diplomático que permitiu à
UNITA vir a ser apoiada, ao mesmo tempo, pelos Estados Unidos da
América, pela República Popular da China e pela República da África
do Sul.

Presidente Ford (dirigindo-se ao presidente chinês): Tenho a


certeza de que o senhor está tão preocupado quanto nós com a
atuação da União Soviética no oceano Índico e, claro, também com
os seus esforços na África Ocidental. Falo aqui, é claro, de Angola,
onde estamos tomando medidas diretas para impedir que a URSS
consiga erguer uma fortaleza.
Presidente Mao: Receio que vocês não possuam meios para
evitar isso. Nem nós…
Presidente Ford: Acho que nós dois poderíamos fazer melhor,
senhor Presidente.
Presidente Mao: Eu sou a favor de expulsar a União Soviética…
Presidente Ford: Se nós dois fizermos um bom esforço,
conseguiremos isso.
Presidente Mao: Através do Congo-Kinshasa, Zaire.
Vice-primeiro-ministro Deng Xiaoping (falando em chinês com o
presidente Mao): Um fator que complica tudo, neste caso, é a África
do Sul. O envolvimento da África do Sul… Isso ofendeu toda a África
Negra. Isso complica toda a questão…
Presidente Ford: Mas os sul-africanos estão lutando para impedir
que a União Soviética se expanda, e achamos isso admirável.
Estamos enviando muito dinheiro através da Zâmbia e do Zaire.
Acreditamos que se houver uma ação ampla da nossa parte, da
parte da República Popular da China e de outros, consegui­­remos
impedir que a União Soviética construa uma base naval importante e
controle recursos substanciais em Angola. Além disso, opomo-nos
violentamente à participação de Cuba. Eles agora têm cinco a seis
mil soldados em Angola. Achamos que isso não é uma coisa nada
saudável…
Vice-primeiro-ministro Deng Xiaoping (num tom trocista): O
senhor quer dizer que admira a África do Sul?
Presidente Ford: Não. Mas eles tomaram uma posição forte
contra a União Soviética. E eles estão fazendo isso totalmente por
conta própria, sem qualquer estímulo dos Estados Unidos… A África
do Sul é contra o MPLA!…
Presidente Mao: Essa é uma questão que precisa de ser melhor
estudada.
Presidente Ford: O tempo urge…
Presidente Mao: Julgo que o MPLA não terá sucesso…
Presidente Ford: Esperemos que não…
Secretário Kissinger: Se as outras duas forças tiverem disciplina
suficiente e pudermos dar-lhes equipamento, conseguiremos impedir
que o MPLA seja bem-sucedido. A FNLA e a UNITA precisam de
formação de quem entende de guerrilha. Podemos dar-lhes o
equipamento, caso outros aceitem treiná-los.
Presidente Mao: Nós apoiámos a UNITA, no passado, através da
Tanzânia, mas a Tanzânia mantém certas coisas que precisam de ser
aprovadas antes… Talvez agora devêssemos trabalhar através do
Zaire.
Secretário Kissinger: Sim, sim, através do Zaire. E o lado chinês
talvez pudesse usar a sua influência com Mo­­çambique. Teria um
significado moral em África se Moçambique não apoiasse o grupo
soviético, o MPLA…
Presidente Ford: Mas, sabe, Moçambique apoia o MPLA!
Provavelmente seria difícil…
Vice-primeiro-ministro Deng Xiaoping: Impossível!
Secretário Kissinger: Eu sei. Creio que eles não sabem muito bem
o que estão fazendo, porque também admiram a China…
Presidente Mao: Podemos tentar…
Secretário Kissinger: Acho que Moçambique não entende a
questão em Angola. Eles precisam de conselhos, e ouvem mais a
China do que a nós.
Presidente Mao: Sim... Podemos tentar…
Vice-primeiro-ministro Deng Xiaoping: Podemos tentar, mas não
sei se conseguiremos alguma coisa…
Secretário Kissinger: Isso é verdade.
Presidente Mao: O Zaire é provavelmente mais confiável.
Secretário Kissinger: O Zaire deve ser uma base para uma
assistência ativa. Não podemos obter ajuda de Moçambique, mas
talvez eles fiquem de fora. Não podemos obter ajuda de
Moçambique, mas talvez, pelo menos, eles permaneçam neutros.
Presidente Mao: Podemos tentar…
Presidente Ford: Repito: o tempo urge! Porque as outras duas
forças precisam de encorajamento. Eles estavam indo bem até
recentemente. Há um impasse no momento. Seria trágico se o MPLA
triunfasse depois dos esforços que têm sido feitos por nós, por vocês
e por outros.
Presidente Mao: Isso é algo difícil de prever…
Presidente Ford: Posso revelar que em relação a Angola, pouco
antes de deixar Washington, aprovei mais trinta e cinco milhões de
dólares para ajudar a UNITA e a FNLA. Esta é uma indicação sólida do
quanto estamos dispostos a fazer para enfrentar o desafio da União
Soviética e derrotar o MPLA.
5

EM DEZEMBRO DE 1976, QUANDO ABEL E OS SEUS COMPANHEIROS DA


«COMPANHIA DOS INTELECTUAIS» chegam à base de Malengue, já
Jonas Savimbi recuperara da longa caminhada e, com o apoio do
regime do apartheid, da China e dos Estados Unidos da América,
estava inteiramente concentrado em reagrupar e reorganizar o que
restava do movimento.
Os jovens guerrilheiros passam os primeiros dois dias muito
ansiosos, acampados a poucos quilómetros da base, na expectativa
de encontrar o seu líder. Ao terceiro dia recebem ordem de
formatura. Permanecem longas horas num silêncio nervoso,
carregando aos ombros o pesado fulgor do Sol, até que escutam um
ruído distante, que cresce e se agiganta, como uma manada de
elefantes em movimento. E eis que surge Jonas Savimbi à frente de
um grupo de oficiais: Samuel Chiwale, Miguel N’Zau Puna, Tito
Chingunji, Altino Sapalalo (Bock) e outros.
Savimbi aparta-se do grupo — uma figura sólida, podero­­sa —, e
inspeciona a companhia, detendo-se alguns segundos diante de
cada um dos jovens soldados. Finalmente, dá-lhes as costas e dirige-
se aos oficiais:
— Maninhos, agora que vi estes jovens e a coragem e
determinação deles, agora sim, estou convencido: daqui a dez anos
começaremos a formar um exército! Dentro de quinze a vinte anos a
revolução triunfará!
Os jovens recebem as palavras de Savimbi como um balde de
água fria! Então, a vitória só chegaria dali a vinte anos? Afinal, não
iam voltar às cidades a tempo de passar o Natal com a família?
Nessa mesma tarde chegam outros oficiais, que leem aos
soldados um conjunto de despachos. Chendovava é promovido a
major, tendo como comandantes adjuntos os capitães Bock e Tito
Chingunji. São informados, além disso, que a companhia fora
requisitada para fazer a segurança da direção.
A companhia passa a ser constituída por três pelotões.
Diariamente, um pelotão faz o cordão interno, vigiando as casas dos
oficiais; o segundo, faz o cordão médio, ou seja, protege o bairro. E
o terceiro fica responsável pelo cordão externo — o patrulhamento à
distância. As companhias revezam-se a cada semana.
Todas as tardes, Jonas Savimbi sai de casa para dois dedos de
conversa, na varanda, com os soldados responsáveis pela sua
segurança. Leva-lhes uma Coca-Cola e vai colocando perguntas,
estudando-os e avaliando-os, sem que eles se apercebam das suas
intenções. Isto prolonga-se por três meses. Finalmente, Savimbi
dissolve a companhia, decidindo ele mesmo o destino de cada
soldado: um grupo parte para uma base secreta, no Rundu,
Sudoeste Africano, território então ilegalmente ocupado pela África
do Sul, com o objetivo de adquirir formação em explosivos,
comunicações e outras disciplinas militares. Um segundo grupo, o
mais afortunado, recebe como missão prosseguir os estudos em
países africanos e europeus.
A Abel, juntamente com Jardo Muekalia e Aniceto Cavala, calha o
Sudoeste Africano. Jardo e Aniceto são amigos muito próximos,
como recorda o primeiro em Angola, a Segunda Revolução.
Memórias da Luta pela Democracia (Sextante Editora, 2010): «No
Huambo fiz-me amigo do Aniceto Cavala, um jovem inteligente,
cómico, reto, e, sobretudo, muito justo, que veio a morrer de
doença, em 1979, na base do Luenge. Durante os anos em que
vivemos juntos, nunca o vi zangado ou desanimado. Na adversidade,
era altivo e encontrava sempre uma forma de fazer rir os próximos.
Aos fins de semana, viajávamos juntos de comboio, do Huambo ao
Cachiungo, algumas vezes sem dinheiro e andando às fintas com o
cobrador.»
Os três vão para o Rundu fazer formação em controlo de tráfego
aéreo.
Operação Cabinda e a primeira morte
de Abel Epalanga Chivukuvuku
1

NA BASE DO RUNDU, OS JOVENS GUERRILHEIROS DA UNITA SÃO RECEBIDOS


POR INSTRUTORES militares sul-africanos, todos brancos, e quase
todos de origem bóer. Naquela época, assegura Abel, ninguém no
seio da UNITA contestava a ligação entre um movimento que se
afirmava defensor da negritude e da africanidade e o regime de
supremacia branca, na África do Sul:
— Acabáramos de sair do sistema colonial português, onde
vivíamos ao lado dos brancos portugueses — recorda Abel. — Na
Namíbia, na base do Rundu, não tínhamos interação com a
população negra. Praticamente só tínhamos contacto com os
instrutores. Não nos apercebíamos de que alguma coisa estivesse
errada. Para falar com franqueza, nem sequer tínhamos consciência
do que fosse o apartheid.
Artur Vinama confirma a visão de Abel:
— Os nossos instrutores não demonstravam nenhum preconceito
racial. A relação connosco era numa base de respeito. Não havia
menosprezo.
Antes de saírem de Angola, o próprio Jonas Savimbi instruía os
jovens no sentido de não permitirem qualquer tipo de humilhação.
Artur Vinama lembra-se de angolanos que estabeleceram sólidas
relações de amizade com instrutores bóeres. Contudo, também se
lembra de alguns abusos, que resultaram em conflitos e agressões
de parte a parte. Quando isso acontecia, os instrutores eram, regra
geral, imediatamente afastados.
Em abril de 1977, concluída a formação no Rundu, Abel foi
colocado no aeroporto da Mupupa, junto à fronteira com o então
Sudoeste Africano. O trabalho consistia em coordenar a aterragem e
a descolagem dos aviões que vinham de Kinshasa e da Namíbia.
Contudo, não fica por lá muito tempo. Jonas Savimbi convoca-o para
a base de Luatuta, onde ele próprio se encontra. Ali completa uma
formação em comunicações.
Por essa altura, instala-se uma bizarra agitação ideo­­lógica no
movimento. Uma delegação da UNITA, chefiada por Valdemar Pires
Chindondo, Chefe do Estado-Maior, e Jorge Ornelas Isaac
Sangumba, secretário dos Negócios Estrangeiros, vai à China em
visita oficial. O jovem Tito Chingungi, incluído na delegação,
regressa a Angola muito entusiasmado com a Revolução Cultural,
ainda que esta, após a morte de Mao Tsé-Tung, poucos meses antes,
a 9 de setembro de 1976, começasse já a ser contestada pelos
próprios dirigentes chineses. Nas semanas seguintes, Tito dá uma
série de palestras defendendo uma Teoria do Pensamento Mestre e a
Teoria do Apuramento da Direção, segundo a qual apenas Jonas
Savimbi era o líder incontes­­tável e poderia deter o património do
pensamento no interior do partido.
O general Peregrino Isidro Wambu Chindondo lembra-se destas
discussões e de como, na sequência das mesmas, vários militantes
do movimento foram assassinados:
— Desta viagem, que ocorre numa altura de profundas ofensivas
militares contra as regiões da UNITA, em especial à zona onde se
estava a criar a base da Jamba, resulta o regresso de uma comitiva
que traz consigo a perceção de que havia alguns desvios ideológicos
no seio da UNITA, sobretudo por causa da aliança com a África do
Sul. Ora, é designado este movimento o Pensamento Mestre, com
base na experiência da Revolução Chinesa. Quando esta delegação
regressa, por terceiras pessoas, por conhecimento, por amizade, por
conexões, desenvolve teorias que vão especialmente no sentido de
que era preciso corrigir isso no seio da UNITA. E, como era de
esperar, houve reações. Eu próprio fazia parte da liderança da
juventude, embora sendo militar, já dirigindo os Serviços de
Inteligência Militar, SIM, e apercebi-me de que alguma coisa não
estava bem. No meio desta situação, o Tito Chingunji procurou-me
em casa, e falou-me desta tese. Bom, nós tínhamos várias
diferenças de opinião nesse aspeto. É que havia uma parte da
juventude que trabalhava no estrangeiro e outra parte que dava o
seu duríssimo contributo no interior do país. E isto criava
naturalmente uma dificuldade de entendimento de teses que não
viessem da direção do partido que estava no interior do país, e creio
que é aqui o que pode ser entendido como uma liderança
messiânica. E não foi, não foi entendida, e houve mortes nisso, no
seio da juventude. Lembro-me do meu companheiro Jordão
Mukinda, que foi meu colega na condução dos Serviços de
Inteligência Militar, era chefe de gabinete; lembro-me de outros
quadros em várias atividades no partido que pereceram por causa
desta passagem de uma teoria à prática, a qual não foi recebida
com felicidade.
Na época, as insígnias da UNITA ainda ostentavam as palavras
Socialismo, Negritude, Democracia e Não-Alinhamento. Mesmo
recebendo apoio dos EUA e do regime racista da África do Sul, Jonas
Savimbi continuava a defender uma revolução socialista, com um
perfil próximo ao da revolução chinesa. Não obstante, o radicalismo
do jovem Tito Chingungi incomodava os dirigentes mais moderados.
Por essa altura, durante um congresso de comunicações, na base
do Luatuta, em que estava presente Jonas Savimbi, a UNITA sofre um
forte ataque das forças governamentais:
— O MPLA lançou uma grande ofensiva, com o apoio de tropas
cubanas, nigerianas e do Congo Brazzaville, e também de
conselheiros soviéticos. — recorda-se Alcides Sakala. — Fomos
atacados pela Força Aérea, com helicópteros. Propus que nos
organizássemos em três colunas, duas maiores, de diversão, e outra
menor, com não mais de cinquenta guerrilheiros, onde seguiram o
Dr. Savimbi e o então soldado Abel.
A estratégia dá resultado. As forças do governo partem em
perseguição dos grupos maiores, acabando Savimbi por ser
resgatado por um helicóptero sul-africano, que o leva depois para o
Sudoeste Africano. Muitos guerrilheiros e militantes da UNITA são
capturados no decurso desta operação.
Abel Chivukuvuku passa a trabalhar nas comunicações, ao
serviço de Samuel Chiwale. A rapidez com que recebe e descodifica
em simultâneo as mensagens espanta toda a gente:
— Os outros operadores diziam, «O Abel tem feitiço!» — lembra
Artur Vinama.
Jonas Savimbi depressa se inteira das qualidades do jovem
prodígio, passando a disputá-lo com Samuel Chiwale. Este tenta
resistir:
— Se queres o Abel, então leva também todo o equipamento…
Naturalmente, Savimbi acabou levando Abel. O então
comandante das comunicações, general Andrade Santos, era um
homem silencioso, discreto, mas muito eficiente. Entre os seus
subordinados estavam figuras que, mais tarde, alcançariam amplo
destaque no movimento. O líder da UNITA sabia disso:
— As comunicações são o meu viveiro de quadros — costumava
dizer Jonas Savimbi.
Naquela época — os anos de reestruturação da UNITA —, a
principal base do movimento, a Base Delta, ficava do outro lado da
fronteira, em território do Sudoeste Africano. Contudo, a base da
Jamba, que depois se tornaria conhecida no mundo todo, ganhando
uma dimensão mítica, já estava em construção.
Nesse período, durante uma ausência de Jonas Savimbi por três
meses no exterior, foi indicado Eugénio Manuvakola como presidente
interino — e Abel como seu secretário particular, até ao regresso do
mais-velho. Até que, em 1979, foi enviado para Kinshasa.
2

EM 1979, O GENERAL ANTÓNIO DEMBO CHEFIAVA A NUMEROSA DELEGAÇÃO


DA UNITA em Kinshasa, tendo ao seu lado, como chefe das
comunicações, Amílcar José Mateus, também conhecido como Aníbal
Kandeias ou Kilé. A frenética, corrupta e caótica capital zairense
funcionava como base de trânsito para as comunicações. Abel
desembarcou em Kin­­shasa com a missão de aprimorar a qualidade
de comunicação entre as representações no exterior e Jonas
Savimbi.
Logo no ano seguinte, 1980, Kilé é transferido para Marrocos,
como representante da UNITA, e Abel assume a responsabilidade das
comunicações:
— Em Kinshasa, naquela época, tínhamos pelo menos dez casas
— lembra Abel. — Havia a parte administrativa, diplomática, das
igrejas e das comunicações. Era um grupo muito numeroso. Nos
meses seguintes, transformei o modelo das comunicações. Passámos
tudo para código Morse. Treinámos todo o pessoal no sistema de
codificação e descodificação.
Em 1981, Savimbi visitou Kinshasa, reunindo-se com o presidente
Mobutu Sese Seko. O líder da UNITA pretendia convencer Mobutu a
permitir a passagem de tropas das FALA, que chegariam ao aeroporto
de Kinshasa provenientes da Jamba, prosseguindo depois, por
estrada, até à fronteira com Cabinda, em cujas florestas se
infiltrariam.
Mobutu recusa, enfático. Para ele, Cabinda constitui território
zairense ilegalmente ocupado por Angola. Savimbi compreende que
não serve de nada contestar a versão zairense da História. Baixa a
cabeça e cala-se. Alguns meses depois, contudo, convoca Abel para
uma reunião numa base do movimento, chamada Ponto 30, perto de
Licua.
— Achas possível colocar tropas em Cabinda?
Abel não hesita:
— Com certeza, mais-velho! Encontrarei uma solução…
— De que precisas?
— Dinheiro…
Savimbi entrega-lhe 300 mil dólares. Abel começa por comprar
algumas vivendas no bairro mais distinto de Kin­­shasa, o Binza IPN,
onde residiam vários ministros zairenses, in­­cluindo o primeiro-
ministro, Léon Kendo wa Dondo, filho de um judeu polaco e de uma
ruandesa tutsi.
Nos meses seguintes, Abel percorre escolas e universidades, de
Kinshasa a Moanda, passando por Matadi e Boma, à procura de
jovens cabindenses que manifestassem interesse em combater em
Cabinda, nas fileiras das FALA. Um desses jovens é Raul Manuel
Danda, que, muitos anos mais tarde, viria a ser vice-presidente do
partido e diretor do seu grupo parlamentar. Todos esses jovens são
enviados para a Jamba, onde recebem treinamento militar.
Ao mesmo tempo, Abel aproxima-se das diferentes fações dos
independentistas cabindenses que, desde há anos, combatiam na
densa e húmida floresta do Maiombe contra as forças do governo
angolano. Conversa com Abel Xavier Lubota, então o presidente da
Frente de Libertação do Enclave de Cabinda, FLEC; encontra-se com
Rank Frank, fundador do mesmo movimento e, já nas florestas do
enclave, com Henrique N’zita Tiago, presidente das Forças Armadas
de Cabinda. Pouco a pouco, a UNITA transforma-se no principal
abastecedor de produtos alimentares e medicamentos para os
guerrilheiros independentistas. Sempre que um chefe da FLEC caísse
doente ou fosse ferido era secretamente transportado para Kinshasa,
sendo alojado numa das casas do Galo Negro. N’zita Tiago viaja por
essa altura para a Jamba, onde permanece por dois meses,
estreitando os laços com Jonas Savimbi e traçando estratégias de
combate contra o inimigo comum.
Abel requer e obtém mais recursos para montar a operação. Cria
uma empresa de transportes. Compra três camiões. Vindo de
Lusaka, na Zâmbia, chega um hábil marceneiro, contratado para
criar fundos falsos nas carroçarias dos veículos. Abel adquire ainda
vários edifícios e armazéns ao longo da fronteira entre o Zaire e
Angola. Ali funcionariam as supostas lojas da sua suposta empresa
de compra e venda de produtos alimentares.
3

FOI EM 1983, A 8 DE FEVEREIRO, ENQUANTO ORGANIZAVA A OPERAÇÃO


CABINDA, que Abel Chivukuvuku morreu pela primeira vez. Jonas
Savimbi chamara-o para discutir pormenores da operação. No
aeroporto, em Kinshasa, espera-o um Vickers Viscount, pequeno
avião de turbo-hélice, que não possui grande autonomia de voo.
Abel conhece os dois pilotos, angolanos brancos, radicados em
Portugal, que a UNITA mandava chamar sempre que os seus serviços
fossem necessários.
Os voos realizavam-se a baixa altitude, para iludir os radares,
seguindo rotas pouco frequentadas e evitando so­brevoar centros
urbanos. Além disso, não era possível contar com o apoio dos
serviços em terra. As viagens exigiam pilotos experientes, com
grande domínio da arte da navegação e um sólido espírito de
aventura (ou, se preferirem, um grão de loucura na asa).
A figura elegante e jovial da coronel Ana Isabel, na época a
esposa preferida de Jonas Savimbi, destacava-se entre os
passageiros — para além do enfermeiro Morais Dachala, de Palmira
Fernandes (esposa do general Dembo) e da mulher do general Jorge
Laurindo Boavida. Na comitiva seguia também um sobrinho de Abel,
Jobito Chimbili. Naquele dia, o destino era uma pista de terra batida,
no Licua, junto à fronteira com a Zâmbia, onde Jonas Savimbi
aguardava Ana Isabel.
Abel, então com o posto de major, ganhara o hábito de vestir a
farda — um camuflado comprado em Kinshasa, distinto daqueles
utilizados geralmente pelos guerrilheiros das FALA — mal entrasse no
avião. No Zaire, no dia a dia, trajava à civil, mas, dentro do avião,
que considerava já território angolano, assumia a sua condição de
militar. Nesse dia, foi o que fez, antes de ocupar a cadeira que lhe
fora reservada.
Em determinada altura, o copiloto anunciou que teriam de
abastecer o avião em pleno voo. Não era invulgar, atendendo à
escassa autonomia daquele tipo de aparelhos, e os pilotos vinham
preparados para essa eventualidade. Colocaram um tubo no
depósito e abasteceram o avião. Voaram mais meia hora. Então o
piloto chamou Abel à cabine:
— Mano Abel, por favor não comente nada com os restantes
passageiros, mas temos um problema muito grave…
— Que problema?
— Estamos perdidos…
— Perdidos?
— Sim, não conseguimos encontrar a pista do Licua, andamos às
voltas, e o combustível está a chegar ao fim…
— E agora?
— Agora vamos cair…
— O que posso fazer?
— Nada. Sente-se e reze.
Abel regressou ao seu lugar. Os restantes passageiros, alheios à
tragédia que o destino lhes preparava, dormitavam, liam ou
conversavam placidamente uns com os outros. Na retina do jovem
major passaram imagens da família, dos amigos, dos
acontecimentos mais marcantes da sua breve vida. Fechou os olhos,
sentindo pousar-lhe sobre os ombros uma imensa paz. Ainda assim,
resistia a aceitar a ideia de que dali a instantes estaria morto.
Levantou-se e foi falar de novo com os pilotos:
— Não é possível aterrar numa clareira?
O copiloto encolheu os ombros, desesperado:
— Voamos aos círculos faz tempo, procurando uma estrada, uma
clareira, algum espaço liso e desimpedido. Infelizmente, estamos a
perder altitude. Pode ajudar-me a despejar toda a carga
inflamável?…
Foram os dois. Abriram a porta do avião e lançaram para o
exterior tudo aquilo que lhes pareceu suscetível de explodir ou
provocar um eventual incêndio. A seguir, Abel informou Jobito:
— Prepara-te, sobrinho, vamos morrer…
Disse isto sem convicção. No íntimo, continuava a acreditar num
qualquer milagre. Então, escutou-se um fragor terrível, Abel sentiu o
corpo, preso ao assento pelo cinto de segurança, ser atirado para a
frente, enquanto o aparelho se quebrava em duas partes. Nos
primeiros instantes, o jovem tenente foi incapaz de distinguir o que
quer que fosse, por entre o fumo, a poeira, a densa e rumorosa
confusão. À sua volta escutava gritos, gemidos, pedidos de socorro.
Por fim, viu que havia ainda pessoas no que restara do avião, presas
às respetivas cadeiras. Viu também corpos debatendo-se na água
escura, e pensou que fossem camponeses, atingidos por destroços
do avião. Na verdade, eram os restantes passageiros, que seguiam
mais atrás, na outra metade do avião, que haviam sido projetados e
caído no rio.
Abel desenganchou o cinto, e saltou para a água. Levou alguns
segundos a organizar o pensamento. Finalmente, compreendeu que
haviam caído nos pântanos do rio Cuando. A água parada — a mão
de Deus e dos ancestrais — amortecera o impacto. Ninguém morreu,
embora alguns dos passageiros tivessem sofrido ferimentos graves.
Também o piloto e o copiloto escaparam com vida. O segundo
quebrou uma das pernas ao saltar. Abel e Jobito não sofreram um
único arranhão.
Carregam os feridos para uma clareira. Abel decide procurar
ajuda, acompanhado por Jobito, e um outro militar que também
escapara ileso.
Entretanto, Jonas Savimbi continua à espera deles no Licua.
Primeiro, telefona para Kinshasa: «O avião foi?» Respondem que
sim, que o avião partira. Manda saber se algum aparelho aterrara na
Namíbia ou na Zâmbia. Nada. Dá ordens para que escutem os
noticiários das emissoras angolanas. Nenhuma notícia. Pouco a
pouco, começam a surgir relatos de camponeses, que afirmam ter
visto passar uma aeronave, e insistem que o mesmo desapareceu de
repente nos céus imóveis da savana. Savimbi opta então por
regressar à Jamba.
Abel, Jobito e o terceiro militar conseguem atravessar os
pântanos. Encontram alguns camponeses, que aceitam levá-los até
uma base da UNITA, não muito distante. Três horas mais tarde,
quando alcançam a base, já a maior parte dos guerrilheiros escapou
para as matas, depois de terem escutado o motor do avião,
convencidos de que as FAPLA preparavam um ataque em larga
escala.
Alguns oficiais, ainda no jango, discutem o que fazer, quando
veem surgir Abel Chivukuvuku, vestido com um uniforme zairense.
Erguem-se, de um salto, assustadíssimos, e fogem para o capim. O
jovem major, corre atrás deles, gritando: «Somos da UNITA! Somos
da UNITA!»
Capturam dois dos oficiais que estavam mais próximos, e lá
conseguem explicar quem são:
— Sou o major Abel Chivukuvuku. O nosso avião caiu.
Os guerrilheiros dizem-lhe que ali não há rádio — só no Rivungo,
a dois dias de distância. Abel pede alimentos — batata-doce,
mandioca — que possam consumir pelo caminho. Alguns soldados
vão até uma lavra próxima e regressam carregados de mantimentos.
O major e companheiros caminham em rápidas passadas, quase
sem se deterem para descansar, todo o resto do dia, e também
durante a noite. Chegam ao destino, exaustos, 24 horas depois de
terem partido. Na Vila do Rivungo, contudo, também não encontram
comunicações. Dizem-lhes que precisam prosseguir a rota durante
outras seis horas.
O jovem major recusa-se a continuar. Dá instruções a um
guerrilheiro para que faça o resto do percurso, alerte Jonas Savimbi
e traga o rádio. O guerrilheiro cumpre a missão com sucesso, exceto
no que diz respeito ao teor da mensagem. O que ele diz a Savimbi é
que o avião caiu, matando todos os passageiros, menos
Chivukuvuku. O terrível equívoco só se esclarece quando o próprio
major fala com Savimbi. Os sul-africanos enviam então um
helicóptero, que sai do Sudoeste Africano, passa pela Jamba para
recolher o general Altino Sapalalo (Bock) e segue até ao Rivungo.
Abel sobe para o helicóptero e, durante dois dias, procuram os
destroços do avião. Finalmente, os sobreviventes são resgatados e
evacuados para a Jamba.
— Chegado na Jamba, fiquei mais ou menos um mês a trabalhar
na Operação Cabinda, juntamente com o presidente Savimbi —
recorda Abel. — Ao fim desse tempo o velho Jonas disse-me que era
altura de regressar a Kinshasa: «Vem aí um avião para te levar a
Kinshasa. Não está muito bom, mas terás de voltar nesse.» Olhei-o,
horrorizado: «Eu, que já caí, metem-me de novo num avião, e ainda
por cima num avião que não está bom?»
Em 1985, Abel Chivukuvuku sobrevive a um segundo acidente
aéreo:
— Tínhamos de voar para o Licua, com o general Dembo. O
avião tentou descolar, mas os pilotos detetaram uma avaria e
decidiram regressar ao hangar. O mais sensato teria sido desistir da
viagem, até se apurar com precisão o estado do aparelho. Na
opinião dos técnicos, contudo, a avaria era pequena e poderia ser
reparada em poucos minutos. Aguardámos ali mesmo, no aeroporto,
enquanto eles trabalhavam. Quando acharam que estava tudo bem,
subimos outra vez para o avião. Fez-se a descolagem, o avião
ergueu-se uns cem metros, alguma coisa falhou e caímos
desamparados sobre o casario. Uma confusão. Nenhum de nós se
feriu com gravidade e, felizmente, as casas atingidas estavam vazias.
A partir dessa data, Abel Chivukuvuku nunca mais aceitou viajar
de avião com a mulher e filhos: Abel segue num primeiro voo, com
um dos filhos; Maria Victória vai num segundo, com o outro filho.
4

REGRESSADO A KINSHASA, ABEL CONTINUA A TRABALHAR NA OPERAÇÃO


CABINDA. Cria uma suposta congregação religiosa, católica, dirigida
por Ruth Beatriz Jamba, mãe do filósofo Almerindo Jaka Jamba e do
escritor José Sousa Jamba. Todas as senhoras e moças ligadas ao
movimento do Galo Negro são convidadas a integrar a nova
congregação, incluindo Maria Victória, então namorada e futura
esposa de Abel.
Numa das vivendas compradas pela UNITA em Kinshasa passa a
funcionar uma oficina dedicada à produção de todo o tipo de
documentos falsos, desde passaportes a diplomas académicos. A
oficina, operada por legítimos burocratas do governo zairense, muito
bem pagos pelos rebeldes angolanos, recorria a papelada e carimbos
igualmente legítimos, o que conferia absoluta autenticidade aos
documentos ali produzidos.
Não obstante a envergadura da operação, as autoridades
zairenses nunca desconfiaram de nada.
Durante aqueles anos Abel consegue convencer muitos militantes
da FLEC a juntarem-se à UNITA, entre eles Luís Mambo Café, irmão de
Maria Mambo Café (Tchyina), uma das fundadoras da Organização
da Mulher Angolana (OMA), tendo ocupado altos cargos no governo
angolano, até se transformar numa próspera empresária, a partir do
ano 2000, vindo a ser uma das pessoas mais ricas do país. Luís
Mambo Café chegou a alcançar o posto de capitão, nas fileiras das
FALA. Mais tarde, retornou à FLEC.
O armamento trazido da Jamba ou do Licua era guardado em
enormes bunkers, nas luxuosas vivendas que a UNITA comprara em
Kinshasa:
— Sempre que viesse um avião da Jamba ou do Licua para
Kinshasa, assim que aterrasse, tinha de passar pela inspeção dos
serviços de segurança zairenses — recorda Abel. — Nesse dia, eu
convidava os responsáveis dos serviços secretos para um almoço:
«Vamos primeiro almoçar, a inspeção fica para mais tarde», dizia-
lhes. E, enquanto almoçávamos, vai uma cerveja, vai outra, vai uma
terceira e uma quarta, os nossos camiões iam descarregando o
armamento. Mal recebesse a informação de que os camiões estavam
carregados, eu entregava dez mil dólares a cada um dos agentes. Só
então íamos todos juntos fazer a inspeção. Nessa altura, é claro, não
havia mais nada no avião, para além de mantimentos e de outros
objetos sem importância.
Todo o armamento era depois transportado, nos fundos falsos
dos camiões, para os armazéns que a UNITA adquirira, ao longo da
fronteira com Angola. Sobre os fundos falsos, colocavam-se sacos
com sal, açúcar, feijão, peixe ou fruta. Nos postos de controlo
bastava entregar um saco de mercadoria aos polícias, e a viagem
continuava. Os camiões chegavam, noite fechada, às casas da
Muanda. Os guerrilheiros descarregavam a mercadoria, tiravam todo
o taipal, e finalmente as armas, que eram escondidas nos bunkers.
A última fase da operação consistia em transferir os comandos,
da Jamba para Kinshasa e dali para as florestas de Cabinda. Os
guerrilheiros foram chegando em pequenos grupos e alojados em
camaratas secretas, nas belas vivendas do Bairro de Binza. Nunca
saíam para a rua. À chegada, todos eles recebiam documentos falsos
— bilhetes de identidade, registos escolares, as cartas do coro da
igreja, entre outros. A UNITA chegou a ter quase trezentos comandos
na capital zairense, distribuídos por diferentes casas.
Jonas Savimbi estava tão preocupado com a fase final da
operação que enviou Tito Chingunji para a supervisionar. A
congregação religiosa, chefiada por Ruth Jamba, tratou de obter
todas as autorizações necessárias para um retiro na vila da Muanda,
na foz do rio Congo, em frente à cidade angolana do Soyo, antiga
Santo António do Zaire. No dia aprazado, de manhã muito cedo, lá
foram as madres e as noviças, incluindo Maria Victória, com os
comandos disfarçados de coristas, distribuídos por vários camiões.
Abel Chivukuvuku viaja de jipe, umas vezes ultrapassando a
coluna, outras deixando-se ficar para trás, como se não tivesse
ligação alguma com a mesma. Em Boma, a antiga capital do Estado
Livre do Congo, que foi propriedade privada de Leopoldo II da
Bélgica e cenário de terríveis atrocidades, acontece um percalço: no
controlo militar, a tropa zairense pede que o grupo dê boleia a cinco
soldados. Disfarçadamente, evitando ser vista, Dona Ruth sai do
camião em que seguia e vai ter com Abel, pedindo-lhe instruções.
— Levem os soldados — diz Abel. — Prossigam com
naturalidade, falem em lingala entre vocês e cantem os vossos
cânticos.
À cautela, e porque naquela época, no Zaire, tudo se comprava e
vendia, incluindo o silêncio, Abel entrega algum dinheiro a Dona
Ruth, para que esta o distribua pelos soldados. Estes chegam ao seu
destino, um pouco antes de Muanda, sem fazerem perguntas nem
levantarem questões.
Mal os camiões se detêm junto às casas do movimento, na
Muanda, já de noite, os jovens comandos correm a equipar-se.
Colocam as mochilas às costas, carregam RPG-7, outros lança-
morteiros e demais material de guerra, e rapidamente se infiltram na
mata, a caminho de Cabinda. O grupo ficou às ordens dos oficiais da
FLEC que a UNITA recrutara, criando depois as suas próprias bases.
Jonas Savimbi enviou mais duas equipas, vindas da Jamba, para
controlar a operação. Uma delas liderada por Miguel N’Zau Puna, o
qual entrou no Zaire com um passaporte falso, que o dava como
professor universitário, e a segunda tendo à frente Altino Sapalalo
(Bock). Ambos teceram grandes elogios a Abel Chivukuvuku e à
forma como arquitetara e concretizara toda a operação.
A 3 de maio de 1986, Abel casa-se com a namorada de há longos
anos, Maria Victória, durante a visita de Miguel N’Zau Puna.
Abel conheceu as irmãs mais velhas da esposa na cidade do
Huambo, nos últimos anos da época colonial, porque uma delas
namorava com o empresário dos Cadência 7, Mestre Videira. Em
1976, as irmãs fogem para a Zâmbia. Mais tarde, Maria Victória
muda-se para Kinshasa, acompanhando as irmãs e várias outras
famílias, de entre as quais a mãe de Jonas Savimbi, a avó Mbundu.
É lá que Abel a reencontra, e começam a namorar — ele tinha 21
anos, Maria Victória tinha 14.
Nem sempre a pior queda
resulta de um desastre aéreo
A 21 DE MAIO DE 1985, AS INSTALAÇÕES PETROLÍFERAS DE MALONGO, EM
CABINDA, foram atacadas por um comando sul-africano, chefiado
pelo capitão Wynand du Toit. A operação, com o nome de código
Argon, correu mal — dois comandos foram mortos e Wynand du
Toit, ferido no braço esquerdo, acabou capturado e exibido na
televisão angolana como um troféu de guerra. O governo sul-
africano alegou que o comando tinha como missão atacar uma base
da SWAPO em Cabinda. O governo angolano assegurou que o
objetivo era destruir cinco tanques de armazenamento de petróleo,
devendo o ataque ser atribuído à UNITA. O próprio du Toit confirmou,
em diversas entrevistas, muitos anos mais tarde, que o grupo levava
fardamento idêntico ao dos guerrilheiros do Galo Negro, bem como
panfletos do movimento. Essa operação decorreu em simultâneo
com outra operação das forças da UNITA em Cabinda sob o comando
do então tenente-coronel Antero — que também não teve sucesso.
Wynand du Toit foi promovido a major enquanto ainda estava
preso em Angola. A sua libertação, em setembro de 1987, resultou
de uma troca de prisioneiros, mediada pelo Governo de Paris. Du
Toit foi libertado em troca de cento e trinta e três prisioneiros das
FAPLA detidos na Jamba, além de um militante anti-apartheid
holandês, Klaas de Jong, que se refugiara na embaixada holandesa
em Pretória, e de Pierre-André Alberini, um cidadão francês detido
no bantustão do Ciskey, também por atividades contra o regime de
supremacia branca.
Jonas Savimbi estava tão confiante relativamente ao sucesso da
operação que mandou preparar um comunicado festejando o
mesmo. Ao saber do desastre, furioso, telefona a Abel, ordenando
que este o vá visitar à Jamba.
Mal desembarca na principal base do movimento rebelde, Abel
percebe a tensão e o medo. Aguarda durante toda a semana,
alojado numa pequena casa, no Bairro das Comunicações, que
alguém lhe traga instruções de Savimbi. Nada. Uma segunda
semana decorre, num silêncio feroz. Na terceira dizem-lhe que o
Mais-Velho se encontrará com ele na Rotunda Pequena, um
cruzamento não muito longe da residência do líder. O jovem oficial
estranha o lugar — era ali que os dirigentes mais importantes do
movimento esperavam por Savimbi sempre que ele chegasse de
viagem. Naquele dia há muita gente aguardando o líder. Jonas
Savimbi cumprimenta os dirigentes um por um. Finalmente
pergunta:
— E o Abel, onde está o Abel?
Abel dá um passo em frente:
— Estou aqui.
Savimbi lança-lhe um olhar severo:
— Maninho, temos problemas muito sérios em Kinshasa.
Durante aquelas duas semanas em que se passeara inutilmente
pela Jamba, cercado de desconfiança e de silêncio hostil, uma série
de episódios haviam-se enredado uns nos outros, uns acionando os
outros, até culminarem nos tais «problemas muito sérios». Tão
sérios que, inclusive, obscureciam o desastre de Malongo. Contudo,
nenhum dos colegas da secção das comunicações tivera coragem de
informar Abel. Tudo começara nas florestas de Cabinda:
— Cometemos um grave erro ao estruturar o comando das
tropas da UNITA em Cabinda — reconhece Abel. — Colocámos como
comandante um benguelense, o tenente-coronel Antero, quando
devíamos ter optado pelo capitão Café, natural do enclave. Os
cabindenses são muito orgulhosos. O capitão Café tolerou aquela
situação durante algum tempo, até que se cansou, fugiu, entregou-
se às forças armadas zairenses, e revelou todos os detalhes da
operação.
No relatório entregue ao presidente Mobutu, os Serviços de
Inteligência Militar zairenses sugerem que a UNITA estaria a organizar
um golpe de Estado para derrubar o regime do extravagante
marechal. Acrescentam, além disso, que o movimento do Galo Negro
ainda dispunha de muitos militares e armamento em Kinshasa.
Assustado e enfurecido, Mobutu Sese Seko manda prender todos os
kwachas, incluindo as mulheres, assaltando e interditando o acesso
às casas do movimento.
Três dias após aquele brevíssimo encontro com Savimbi, na
Rotunda Pequena, Abel é chamado para uma reunião na base de
Vila Nova. À hora aprazada um carro vem buscá-lo e leva-o para a
base. Deixam-no numa casa, com sala, quarto e casa de banho,
onde encontra todo o conforto de um bom hotel, incluindo um
frigobar com queijos, vinhos e whisky. Abel, que nessa época era
ainda totalmente abstémio, bebe um refrigerante, come os queijos e
aguarda. Por volta da meia-noite, alguém o vai buscar, conduzindo-o
até um amplo salão, com longas mesas de vidro, cadeirões
confortáveis, écrans nas paredes. Aguardam-no Jonas Savimbi, os
membros do bureau político e um grupo de generais.
O líder da UNITA discursa durante quase uma hora. Começa por
fazer uma análise detalhada da situação política internacional e das
implicações da mesma no contexto angolano. Finalmente, chega à
Operação Cabinda, que critica longa e asperamente. Abel ergue a
mão, pedindo a palavra, numa irritação que cresce a cada ataque.
Savimbi percebe a agitação do jovem oficial e interrompe o discurso:
— Garoto! Quem você pensa que é para falar antes dos mais-
velhos?
Miguel N’Zau Puna, que escrevera um relatório elogiando a
operação, também é admoestado com violência. Finalmente,
Savimbi cala-se, passando a palavra aos membros do bureau político
e aos generais. Todos eles atacam Abel, incluindo N’Zau Puna,
dizendo-se traídos e ludibriados pelo jovem oficial, que lhes terá
feito acreditar no sucesso da manobra militar.
— Fomos enganados — resume N’Zau Puna. — Afinal, esse
miúdo fez tudo errado…
Concluído o massacre, Jonas Savimbi volta-se para Abel:
— Agora, sim, o senhor pode falar…
— Agora não falo — diz Abel. — Agora já não quero falar!
— Fala!
— Não vale a pena. Não tenho nada para dizer…
A esta altura, N’Zau Puna levanta-se, indignado:
— Mais-Velho, este miúdo não pode nunca mais voltar para
Kinshasa. Se o deixamos voltar, tenho a certeza que ele foge dali
para Luanda…
Concluída a reunião, na qual apenas Ben-Ben defendeu Abel,
cada um retornou à casa onde fora alojado, apenas para arrumar as
malas e voltar à Jamba. No regresso à capital da guerrilha, Abel
viaja no mesmo carro de Tony da Costa Fernandes. O histórico
dirigente da UNITA (fundou o movimento em 1966, na Suíça,
juntamente com Jonas Savimbi) aconselha-o a tentar controlar os
seus sentimentos:
— Abel, por favor, não se comporte de forma tão agressiva com o
Velho. Você precisa ser mais humilde, caso contrário enfrentará
muitos problemas.
Abel procura defender-se das graves acusações de que fora
vítima no decurso da reunião. Tony da Costa Fernandes recusa-se a
escutá-lo. Naquela época, poucas pessoas na UNITA tinham coragem
de contrariar Jonas Savimbi. Costa Fernandes levaria ainda alguns
anos até o fazer, embora nunca frente a frente. Como veremos
adiante, as consequências desse rompimento seriam terríveis para
Jonas Savimbi.
Três dias após a reunião na base da Vila Nova, Abel é instruído a
apresentar-se em casa de Savimbi. Este recebe-o com
surpreendente amabilidade:
— Então, meu filho, como é que estás?
— Estou bem…
— Meu filho, vocês precisam aprender com este vosso pai. Temos
problemas muito sérios no Zaire. As relações com Mobutu estão
cortadas. A nossa tropa encontra-se encurralada em Cabinda e não
existem perspetivas de reconciliação. Então, faço-te uma pergunta:
na atual situação, achas que consegues abastecer as nossas tropas?
— Sim, consigo…
— Tens a certeza?
— Tenho a certeza absoluta, mais-velho. Consigo!
— O que precisas para isso?
— Preciso de um avião que me leve a Lubumbashi e de dinheiro
suficiente para comprar um camião.
Dias depois, Abel desembarca sozinho em Lubumbashi, antiga
Elizabethville, capital e maior cidade da província do Alto Catanga.
Lá chegado, adquire um camião e enche-o com alimentos,
medicamentos, sal, e outros pro­­dutos. Segue depois por estradas
secundárias, evitando os postos de controlo zairenses, até à
fronteira com Cabinda. Entrega os abastecimentos aos comandos,
abandona o camião, e apanha um autocarro que o deixa em
Kinshasa. Ali chegado, entra no primeiro quartel que encontra e
entrega-se às autoridades militares.
No Zaire, a descoberta de que a UNITA chegara a dispor de mais
de trezentos comandos, e de um imenso arsenal, tudo isso no bairro
mais elegante da capital, provocara uma guerra surda entre as
diferentes forças de segurança e de inteligência. Os serviços de
segurança militares defendiam que a UNITA tinha intenções de
organizar um golpe de Estado; os serviços civis de inteligência,
embora admitindo que houvera abuso de confiança e violação do
território zairense, garantiam a Mobutu que o movimento rebelde
angolano jamais pretendera interferir na situação política do país.
O marechal Mobutu, extremamente aborrecido e assustado, opta
por expulsar todos os militantes da UNITA. Dois aviões Hércules C-
130, provenientes da África do Sul, levam a comitiva para a Jamba.
Ao desembarcar, Abel descobre, surpreso, que Jonas Savimbi
mandara organizar um enorme comício para os receber. O ambiente
já não é de tensão, mas de festa. Os recém-chegados são recebidos
como heróis. Abel é promovido a tenente-coronel, sendo nomeado
chefe-adjunto dos Serviços de Inteligência Militar, às ordens de
Peregrino Isidro Wambu.
Naquela época, o poder de um dirigente, no campo dos
guerrilheiros, era aferido pelo número de Motorolas que possuía e
pelo grau de intimidade com o líder. A comuni­­cação entre Abel e
Savimbi passou a fazer-se diretamente. Contra as previsões
sombrias de muitos dos seus camaradas, Abel ressurgia das cinzas.
A batalha do Lomba
ABEL CHIVUKUVUKU IMPACIENTAVA-SE NA JAMBA. Irritava-o a pequena
intriga política, a inação, o desperdício de tempo. Pede então a
Jonas Savimbi que o deixe conhecer as frentes de combate. Passa
alguns dias na frente do rio Lomba, às ordens do general Renato
Campos. Assiste, mais tarde, à tomada do Munhango pelo brigadeiro
Chindombe. Visita a seguir a frente do Kanaje, no Moxico,
comandada pelo general Camalata Numa. Entretanto, recebe novas
instruções: para uma formação em inteligência militar em Starnberg,
uma pequena cidade alemã a poucos quilómetros de Munique.
Alguns dos seus instrutores tinham trabalhado antes no Ministério
para a Segurança do Estado Stasi, a temível polícia secreta da
Alemanha Oriental, e conheciam bem Angola e o MPLA. Os dias
passados em Starnberg podem ter ajudado Abel a compreender um
pouco melhor o modo de pensar e de agir do MPLA, algo que lhe será
útil, anos mais tarde.
— Naquela época, a inteligência militar da UNITA sabia tudo sobre
cada unidade das forças armadas do governo — recorda Abel. —
Conhecíamos os movimentos de cada unidade, quantos tanques e
quantos quilómetros se haviam deslocado e em que direção.
Conhecíamos cada movimento do general Ndalu ou do general
Higino Carneiro. Sabíamos que operações estavam a preparar. Por
um lado, porque controlávamos a comunicação interna do regime,
incluindo as comunicações do presidente José Eduardo dos Santos.
Havia também a comunicação aberta, quero dizer, escutávamos
todos os noticiários. Recorríamos ainda a agentes implantados e a
operações de reconhecimento. Também recolhíamos informações
sobre as nossas próprias unidades.
Todos os dias, por volta das 16 horas, Abel Chivukuvuku ou
Peregrino Wambu iam pessoalmente entregar um relatório a Jonas
Savimbi. O outro, o que não fosse ter com Savimbi, seguia até ao
Bairro Irmão Cordeiro, onde estava alojado David Bendler, o agente
local da CIA. Passavam então alguns minutos trocando informações.
A UNITA entregava os seus relatórios e a CIA, por seu lado, mostrava
imagens de satélites espiões. O movimento do Galo Negro estava
também obrigado a informar os americanos sobre a utilização das
chamadas «armas estratégicas» que estes lhes haviam fornecido,
concretamente os poderosos mísseis FIM-92 Stinger. Sempre que
houvesse o disparo de um míssil, as FALA comprometiam-se a trazer
o invólucro e todos os dados referentes ao disparo, às coordenadas
e ao resultado.
A UNITA também trocava regularmente informações com os
Serviços de Inteligência Militar sul-africanos. O representante da
UNITA na África do Sul era então Isaías Samakuva, que estava
baseado no Rundu, atual Namíbia, num local chamado Quadrado,
um pequeno quartel do movimento rebelde.
Em janeiro de 1987, já com o posto de tenente-coronel, Abel
pede de novo autorização para ir combater:
— Fui para o Lomba, com os sul-africanos. De noite, ajudávamos
a coordenar a artilharia. Tínhamos de sair do quartel, cruzar o rio, e
então subir às árvores para observar os tiros e informar os
artilheiros. Dávamos as coordenadas. Íamos sempre com um pelotão
de proteção. Os sul-africanos também utilizavam drones para fazer a
observação.
Algumas semanas depois, Abel é transferido para a principal
frente de batalha, sob o comando do general Arlindo Chenda Pena
(Ben-Ben), coadjuvado pelo general Demósthenes Amós Chilingutila
na confluência do rio Lomba com o Cuzumbia.
A 2 de outubro desse ano, Jonas Savimbi convoca Ben-Ben e o
general Demósthenes Amós Chilingutila para uma reunião em
Mavinga. Ficam a chefiar os comandos da UNITA os então brigadeiros
Seth e Tarzan — com Abel à frente dos Serviços de Inteligência.
Nesse mesmo dia intercetam comunicações do inimigo, através das
quais é possível perceber um clima de grande desmoralização entre
os homens da 47.ª Brigada das forças governamentais. Também os
militares cubanos parecem muito descontentes. As tropas sul-
africanas na região contam com um batalhão de blindados
mecanizados, o 61.º Mech, chefiado pelo capitão Kobus Smit (Bok).
Abel, responsável da inteligência militar, e o major Kanhualuku,
encarregado das comunicações, transmitem o relatório da
inteligência e interceção do estado lastimoso das forças da 47.ª
Brigada aos brigadeiros Seth e Tarzan.
Ato contínuo, estes reúnem-se com o capitão Kobus Smit (Bok) e
decidem inicar o ataque na madrugada do dia seguin­­te, mesmo sem
a presença de Ben-Ben e Chilingutila. Dá-se assim início à Operação
Modular, segundo os sul-africanos; Operação Lomba 87, segundo a
UNITA, ou Operação Saudemos Outubro, segundo as FAPLA.
Os combates começam às primeiras horas da manhã e
prolongam-se por todo o dia, com resultados terríveis para as FAPLA
e o contingente cubano.
Ao final do dia, os sul-africanos decidem que a batalha está
ganha e determinam um cessar-fogo. A essa altura, já a 47.ª
Brigada está em fuga aberta, tendo lançado vários tanques ao rio
para servirem de ponte. Uns tantos grupos ainda resistem.
Percebendo o desespero dos soldados governamentais e do
contingente cubano, evidente nas comuni­­cações intercetadas, Seth e
Tarzan decidem prosseguir a ofensiva, mesmo sem o apoio dos sul-
africanos. A batalha extingue-se ao crepúsculo, com a total
destruição da 47.ª Brigada.
Foi a primeira vez que a UNITA capturou mísseis SAM-8,
antiaéreos, de fabrico soviético. No terreno ficaram os cadáveres de
quase cinco mil soldados das FAPLA e de um número indeterminado
de cubanos, e os destroços de onze aviões de combate (dois dos
quais sul-africanos), nove helicópteros (todos das forças
governamentais) e noventa e sete tanques, três dos quais sul-
africanos. Os sul-africanos perderam ainda trinta e um soldados. Não
se conhece o número exato de vítimas do lado das FALA.1
Na manhã seguinte, Abel Chivukuvuku recebeu or­d ­ ens de Jonas
Savimbi, acompanhado por Artur Vinama e pelo major Camorteiro,
para se encaminhar para a retaguarda das forças do governo, na
nascente do rio Cuzumbia, acompanhando o 61.º Mech e alguns
batalhões das FALA, com o propósito de destruí-las, estando iminente
o seu recuo desordenado. A determinada altura, o carro de marca
Kaspir em que seguia aciona uma mina, mas, felizmente, ninguém
fica ferido.

1O roteiro da paz na região austral. O caso particular de Angola, 1987-1991, dissertação de


mestrado em Relações Internacionais e Estudos Europeus, de Artur Santos Vinama. Évora,
Universidade, 2015.
De como Jonas Savimbi acendeu a alta fogueira
que acabou por queimá-lo
EM DEZEMBRO DE 1988, ABEL CHIVUKUVUKU REGRESSOU À JAMBA,
convocado por Jonas Savimbi. O seu tempo como guerrilheiro
chegava ao fim; iniciava a partir dali um ciclo novo — o da
diplomacia.
Em Lisboa, a UNITA enfrentava uma inédita revolta de estudantes.
Naquela época, eu trabalhava na redação do semanário África, um
pequeno jornal dirigido à comunidade africana radicada em Portugal,
que tinha como diretor Leston Bandeira e como chefe de redação o
jornalista angolano João Van Dunem. O jornal era financiado, muito
discretamente, pelo governo de Cabo Verde, que ensaiava então os
primeiros passos em direção à democracia.
Certa tarde, em finais de abril, recebi uma chamada de um jovem
estudante ligado à UNITA, André Yamba Yamba. Conhecia-o bem.
André era uma figura muito ativa. Radicado em Coimbra, onde
estudava engenharia, deslocava-se frequentemente à capital
portuguesa para participar em atividades que envolvessem a
comunidade africana. Inteligentíssimo, corajoso e carismático,
chamava a atenção onde quer que fosse. Dizia-se que Jonas Savimbi
tinha especial simpatia por ele.
— Vou deixar a UNITA — disse-me.
A revelação apanhou-me de surpresa. Até àquela data, a UNITA
parecia ser um movimento coeso, sólido, fortemente unido em torno
da figura do seu líder. Apanhei um comboio na Estação de Santa
Apolónia e fui ter com Yamba Yamba a Coimbra. Encontrei-o na
companhia de um outro estudante, Almerindo Canjungo. Achei os
dois muito agitados. Yamba Yamba disse-me que Canjungo crescera
na Jamba, de onde saíra para estudar em Portugal.
— Conta-lhe o que nos contaste a nós! — insistiu Yamba Yamba.
Canjungo contou que, cinco anos antes, a 7 de setembro de
1983, assistira a um grande comício, na Jamba, durante o qual
Jonas Savimbi mandara queimar várias mulheres — e duas crianças
—, acusadas de feitiçaria. A história era de tal forma brutal que me
recusei a acreditar nela. Então, Yamba Yamba mostrou-me
fotocópias de um cader­­no, escrito à mão, que afirmava ter subtraído
a um outro estudante, supostamente ligado à segurança interna do
movimento: José Pedro Kachiungo. No caderno, um diário pessoal,
Kachiungo descrevia todo o processo que culminou no assassinato
público das mulheres, desde a contratação de um caçador de
feiticeiros, chamado Mariano, até à convocação e realização da
parada, que ficaria conhecida como «o Setembro Vermelho».
No regresso a Lisboa, ainda incrédulo e estarrecido com tudo o
que escutara, fui ter com João Van Dunem, mostrando-lhe as cópias
do presumível diário de José Pedro Kachiungo. O meu chefe de
redação vivera momentos terríveis, enquanto preso político, em
Angola, apenas por ser irmão de José Van Dunem, o qual, em 1977,
fora acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado contra
Agostinho Neto. Conhecia muito bem a crueldade da espécie
humana. Também ele, contudo, duvidou da veracidade do episódio.
Explicou-me que o jornal não poderia publicar a história sem antes
conversarmos os dois com o representante da UNITA em Portugal,
Alcides Sakala. No dia seguinte encontramo-nos os três à mesa de
um restaurante. Sakala recebeu-nos com a habitual afabilidade.
Escutou-nos com muita atenção, e no final apenas comentou:
«África é assim mesmo. Essas coisas acontecem.»
Muitos anos mais tarde, um dos fundadores da UNITA, Samuel
Chiwale, tentaria explicar os motivos do crime: «Havia bruxas que
prejudicavam os nossos doentes, os nossos mutilados, vindos das
frentes de combate para serem tratados nos nossos hospitais. As
bruxas passavam a noite ali, e então foram presas. Tivemos a
explicação do Dr. Savimbi e não havia outra solução senão fazermos
aquilo que fizemos, queimar as bruxas. Eram doze ou treze que
foram queimadas nesse dia.»
Foram dezanove mulheres e duas crianças, segundo o detalhado
e estarrecedor testemunho da advogada Florbela Catarino Malaquias
(Bela Malaquias) num livro que publicou em 2020, Heroínas da
Dignidade.
«Savimbi estava à volta da fogueira a comandar as operações»,
escreve Bela Malaquias no seu livro.

«Os militares trataram de cumprir a ordem de atirar ao fogo


as mulheres que tinham sido chamadas e condenadas. Os
seguranças pessoais de Savimbi hesitaram ao arrastar Judith, já
atada de pés e mãos, para a fogueira.
— Estão com medo? — gritou Savimbi.
Os homens provaram que não. Pegaram nela e atiraram-na
para o centro da fogueira. Victória suplicou por clemência, mas
os boinas vermelhas pegaram nela para executar a sentença.
— Não, senhor presidente, eu não sou bruxa. Por favor, tenho
a minha criança. Ajude-me, não quero ir para a fogueira com a
minha criança.
De nada valeu. Os guardas cumpriram as ordens.
— Quem recebe a minha criança? — gritava, en­quanto a
arrastavam em direção à fogueira.
Era uma mulher corpulenta. Debatia-se nas mãos dos
guardas, sem deixar cair o bebé, de cerca de seis meses, que
segurava com uma das mãos. Atiraram-na para o meio das
chamas. Mas o instinto maternal de proteger o filho fê-la emergir
do meio das chamas, de onde saiu a correr, no último impulso de
vida, em direção a Savimbi. As roupas já tinham sido consumidas
pelo fogo. Estava completamente nua. Sem a pele. Com o bebé
le­­van­­tado acima da cabeça:
— Senhor presidente, o meu filho!»

O jornalista Rui Ramos, que na época trabalhava no semanário


Expresso, um dos mais importantes jornais portugueses, interessou-
se pela história e pela situação dramática em que viviam André
Yamba Yamba e Almerindo Canjungo. Foi ele quem contactou a
Amnistia Internacional. Decorridas poucas semanas os dois jovens
estudantes conseguiram refúgio na Suécia, onde ainda hoje residem.
O Expresso, contudo, recusou-se a noticiar o caso. Benjamim
Formigo, chefe da secção internacional, acusou-nos aos gritos, a
mim e a Rui Ramos, de sermos agentes da Segurança de Estado.
Anos mais tarde encontrei-o em Luanda, trabalhando para o governo
angolano. O Jornal África publicou uma ampla reportagem que,
incrivelmente, não teve quase nenhuma repercussão.
Quando Abel Chivukuvuku desembarcou em Lisboa, Yamba
Yamba e Almerindo Canjungo já estavam em Estocolmo,
recomeçando a vida. O ambiente era ainda de alguma tensão, até
porque outros jovens se tinham entretanto juntado aos primeiros na
contestação a Jonas Savimbi, com destaque para Dinho Chingungi e
o escritor José Sousa Jamba. Este último publicaria em 1990 o seu
primeiro romance, Patriotas, largamente autobiográfico e no qual
refere o pavoroso assassinato das dezanove senhoras e das duas
crianças. Na edição portuguesa, publicada apenas um ano depois,
Sousa Jamba retirou o polémico capítulo.
A autocensura de Sousa Jamba, muito contestada, é
representativa do relativo sucesso dos diplomatas da UNITA, entre os
quais Abel Chivukuvuku, no processo de silenciamento e contenção
de danos de todo o caso.
Contudo, a «queima das bruxas» e a consequente revolta dos
estudantes, provocaram um incêndio no interior do movimento do
Galo Negro, que foi crescendo, em silêncio abafado, até explodir e
devorar tudo. Uma das consequências foi a de expor, internamente,
um movimento de contestação protagonizado por dois homens
excecionais: Tito Chingunji e Wilson dos Santos. Em novembro de
1988, na ressaca da revolta dos estudantes, Jonas Savimbi convocou
uma importante reunião, na Jamba, durante a qual denunciou os
supostos planos dos dois homens para tomar o poder.
No seu livro, Angola, a Segunda Revolução, Jardo Muekalia
recorda esta reunião, afirmando que no decorrer da mesma Tito
Chingunji e Wilson dos Santos foram acusados de «organizar uma
rede conspirativa no interior do país, para a qual aliciaram jovens e
estudantes do Partido, através da transmissão de informações falsas
com o objetivo de denegrir a imagem do presidente e suscitar
divisões no seio do Partido, criando um clima propício para o golpe
(de Estado); segundo: de coordenar ações desta rede com um plano
global concertado com o MPLA e com apoio de outras personalidades
estrangeiras, com quem mantinham reuniões no exterior do país, à
revelia da direção do Partido; terceiro: de inspirarem artigos na
imprensa internacional, que apontavam Tito como líder alternativo,
melhor posicionado para dirigir o Partido no processo de
negociações com o MPLA.»
As acusações de que Tito estaria a colaborar com o governo
angolano assentam num episódio concreto. Em determinada altura,
Savimbi autorizara-o a estabelecer contactos, em Berlim, com
Agostinho Mendes de Carvalho (conhecido enquanto escritor pelo
pseudónimo de Uanhenga Xitu), personalidade histórica do MPLA,
visto como um grande diplomata e conciliador. Nessa reunião, Tito
deveria ter sido acompanhado por Alicerces Mango; ao invés disso,
levou consigo Jardo Muekalia, tendo este percebido que aquele não
havia sido o primeiro encontro de Tito com o antigo ministro da
Saúde de Agostinho Neto.
Durante a época em que viveu em Kinshasa, Abel Chivukuvuku
recebeu por diversas vezes a visita de Tito Chingunji, que também
foi padrinho de casamento de Maria Victória (enquanto Lukamba
Gato apadrinhava Abel). Criou com ele uma relação de profunda
amizade. À medida que o cerco se fechava em torno de Tito e de
Wilson, também a ira de Savimbi se ia alargando a todo o vasto
círculo familiar e de amizades dos dois homens. Lukamba Gato, por
exemplo, foi acusado de ter facilitado encontros românticos, em
Paris, entre Tito e Ana Isabel, sua antiga namorada, e a esposa
preferida de Jonas Savimbi.
Voltemos às recordações de Muekalia: «Depois da assinatura dos
Acordos de Bicesse, a 31 de maio de 1991, deslocou-se à Jamba
uma delegação de assistentes de congressistas, que se avistou com
Tito em meados de junho de 1991. O representante americano, na
Jamba, também se avistou com Tito em meados de julho pela última
vez. Criara-se um consenso geral em Washington segundo o qual
Tito já não corria perigo, pois o país tinha entrado numa nova era da
sua história. Apesar deste consenso, ainda em agosto de 1991, o
líder da Angola Task Force na Câmara dos Representantes, o
congressista Dave McCurdy, que era também membro da comissão
de informações, enviou um pedido de encontro com Tito, em
Luanda, onde estaria no dia 6 de janeiro de 1992. Tito não
apareceu, mas veio ao seu encontro o vice-presidente Chitunda, que
justificou a sua ausência por motivo de trabalho. McCurdy não ficou
convencido. Os americanos queriam manter esta pressão elevando o
nível de oficiais que iam pedindo encontros com Tito, o que foi
aumentando também as suspeitas da direção. Quando, em março de
1992, Tony da Costa Fernandes e Miguel Nzau Puna revelaram a
morte de Tito, Wilson dos Santos e suas famílias, fiquei — como
muitos dos meus colegas — surpreendido e, para ser honesto,
profundamente magoado.»
A amizade com Tito custou a Abel um exílio fastidioso em
Londres, onde, durante alguns meses, no papel de representante-
adjunto, pouco mais fez do que tratar de questões burocráticas.
Jonas Savimbi, porém, precisava dele mais do que nunca.
Percebendo ter chegado o momento de negociar com Luanda, Jonas
Savimbi envia instruções a Chivukuvuku para que o represente numa
ronda por vários estados africanos.
— O velho Jonas fez uma coisa extraordinária — lembra Abel. —
Enviou-me uma série de folhas em branco assinadas por ele, para
serem escritas após orientação e revisão por parte do Dr. Savimbi, e
para que as entregasse a alguns presidentes africanos.
Abel começa por visitar, em Londres, um dos amigos mais
influentes (e mais bizarros e controversos) do dirigente do Galo
Negro: Tiny Rowland. Nascido em 1917, em Calcutá, na Índia, filho
de um comerciante alemão e de uma senhora anglo-holandesa,
Roland Walter Fuhrhop foi-se inventando e reinventando várias
vezes ao longo da vida, até se transformar no diretor-executivo da
Lonrho, poderosa empresa de exploração mineira. No decurso de
décadas, como homem forte da Lonrho, e também como
proprietário de alguns dos principais títulos da imprensa britânica,
Tiny Rowland (nome que adotou de um tio, para parecer mais
inglês) criou uma densa rede de amizades, especialmente entre as
lideranças africanas. Consta que trabalhou também para os serviços
secretos britânicos, o MI6, fornecendo preciosas informações sobre
muitos dos seus poderosos amigos.
Rowland não só se dispôs a telefonar para os chefes de Estado
que Savimbi pretendia contactar, como colocou as estruturas
regionais da Lonrho ao serviço de Abel Chivukuvuku durante a sua
jornada. No Quénia, Abel foi acolhido pelo filho do presidente Arap
Moi, John Arap Moi, o qual representava a Lonrho no país. Só depois
pôde conversar em privado com o presidente. Arap Moi leu
atentamente a carta de Savimbi. Então, explodiu:
— Essa história de o Savimbi estar a falar de democracia,
democracia, democracia! Que democracia?! Isso não tem nada a ver
com África e com os nossos valores e tradições. Vocês estão a
importar modelos ocidentais.
Prosseguiu no mesmo tom por mais alguns minutos. Chivukuvuku
aguardou que ele serenasse. Argumentou então que Savimbi não
pretendia impor ao Quénia, ou a outros países africanos, um modelo
democrático. Defendia apenas que em Angola, para resolver a
guerra civil, esse modelo lhe parecia o mais adequado.
Arap Moi fingiu compreender:
— Tudo bem. Depois de amanhã pode voltar que eu lhe entrego
a minha resposta para Savimbi.
Abel regressou ao seu hotel e dali a dois dias, conforme o
combinado, John Mark Moi levou-o ao palácio. O presidente Arap
Moi entregou-lhe então dois envelopes, um com a carta para
Savimbi e outro com dinheiro. Já no carro, de regresso ao hotel,
John Mark pede para ver o envelope com dinheiro.
— Dá-me lá algum.
— Se queres, tira tu. Tira o que quiseres — diz Abel, estendendo-
lhe o envelope.
No Zimbabwe, Robert Mugabe recusa-se a recebê-lo. Abel só
consegue falar com o ministro do Interior. Em Moçambique, contudo,
Abel Chivukuvuku é muito bem acolhido pelo então presidente
Joaquim Chissano, que o escuta com atenção e promete falar com
José Eduardo dos Santos, no sentido de o convencer a encetar
negociações de paz.
A partir de Maputo, Abel toma um avião para a África do Sul, e
de lá voa para a Jamba. É informado, ao desembarcar, que Jonas
Savimbi está prestes a viajar para Marrocos. Abel é encaminhado
para junto do velho Jonas e seguem juntos no mesmo carro até ao
aeroporto. Durante esse trajeto, Abel informa-o resumidamente
sobre o resultado dos encontros — e recebe instruções para estar
em Abidjan dentro de 48 horas.
Abel teve apenas tempo de abraçar a mulher e de conhecer o
primeiro filho, Pedro, que nascera poucos dias antes, a 2 de agosto.
Horas depois, estava de novo a voar. As 48 horas seguintes
passaram-nas entre aviões e aeroportos, Joanesburgo-Lisboa-
Londres-Paris-Abidjan.
No início de setembro de 1987, uma delegação da UNITA deveria
ter-se reunido na capital da Costa do Marfim com o vice-ministro das
Relações Exteriores cubano, Óscar Oramas. Savimbi pretendia
discutir a retirada do contingente cubano em Angola, estimado em
cerca de cinquenta mil soldados.
Em sinal de boa vontade, o líder da UNITA aceitou libertar dois
pilotos cubanos capturados após o derrube de um avião no Leste de
Angola, um ano antes. Numa declaração à imprensa, o líder da UNITA
afirmou que, com a libertação do capitão Ramon Quesada Aguillar e
do tenente-coronel Manuel Rojas Garcia, vice-comandante da força
aérea cubana em Angola, pretendia mostrar a Fidel Castro e ao povo
cubano a verdadeira face da UNITA, um movimento de «guerrilheiros
justos e revolucionários». Pediu ainda a Rojas que contasse a Fidel
Castro a forma como havia sido tratado enquanto esteve preso em
Angola.
Rojas fez mais do que isso: escreveu um livro, Resistir y
Perseverar, no qual relembra os meses em que foi prisioneiro dos
guerrilheiros angolanos. Segundo ele, o encontro em Abidjan, em
que, pela primeira vez, a UNITA poderia ter negociado face a face
com dirigentes cubanos, falhou devido à teimosia do presidente
marfinês, Félix Houphouët-Boigny: «O presidente Boigny opôs-se a
negociações diretas, dizendo que tudo o que a UNITA pretendesse
dizer aos cubanos teria de ser através dele, o que N’Zau Puna, à
frente da delegação angolana, recusou.»

Ainda em 1988, Abel é transferido para os escritórios da UNITA


em Washington, ficando às ordens de Domingos Jardo Muekalia,
que, embora um pouco mais jovem, já era um diplomata experiente
e muito respeitado.
— Tínhamos uma equipa fantástica — recorda Abel. — Além do
Jardo, trabalhavam na delegação o Marcos Samondo, o Horácio
Junjuvili, o Figueiredo Paulo e o Jaime Vila-Santa. Tínhamos
contratado, pagando alguns milhões de dólares por ano, uma das
mais influentes empresas de lobbying político dos Estados Unidos: a
Black, Manafort, Stone & Kelly. O Black, Charlie Black, ainda hoje é
meu amigo, estou sempre com ele quando vou a Washington. É
também um velho amigo do Donald Trump, com quem, aliás,
partilha negócios. O Paul Manafort foi diretor de campanha do
Trump e está agora na cadeia, cumprindo pena por fuga aos
impostos e fraude fiscal. O Stone, igualmente amigo do Trump,
também está na cadeia. O Kelly, esse, era democrata. Nós, graças a
eles, tínhamos uma enorme influência em Washington. Sempre que
o Dr. Savimbi ia a Washington, e foi algumas vezes, chefiando
delegações enormes, a cidade quase parava. Tínhamos acesso à
Casa Branca, ao Pentágono, ao Senado, ao Congresso, à CIA, a toda
a parte. Era fantástico.
No início de 1989, os regimes totalitários no Leste da Europa
começam a estremecer e a ruir. Após uma breve passagem pelas
Nações Unidas, apadrinhado pelos EUA e pela Costa do Marfim, com
um estatuto semelhante ao de observador, Abel Chivukuvuku pede a
Jonas Savimbi que o autorize a visitar alguns dos países de Leste,
em transição para a democracia. Com exceção da embaixada da
URSS, que se recusou a estabelecer qualquer contacto com a
represen­tação da UNITA, os outros países mostraram-se recetivos.
Abel visita a Polónia, a RDA e a Checoslováquia, integrando uma
delegação chefiada por Paulo Lukamba Gato e que contava ainda
com a inteligência e a gentileza de um dos mais notáveis diplomatas
do movimento do Galo Negro: Almerindo Jaka Jamba.
O mundo assemelha-se a um fruto amadurecido, abrindo-se à
democracia. É o início do fim da Guerra Fria. Em Angola, os
dirigentes do MPLA compreendem que precisam adaptar-se aos
novos tempos, ou serão destruídos no processo.
No coração do inimigo
AS NEGOCIAÇÕES DE PAZ, EM BICESSE, NO ESTORIL, entre o governo
angolano e a UNITA, com mediação das autoridades portuguesas,
tiveram início em abril de 1990. Um ano depois, foi assinado um
documento — os Acordos de Bicesse — determinando um cessar-
fogo monitorado por uma Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM),
constituída por representantes das duas partes em conflito e da ONU,
e por observadores portugueses, americanos e da União Soviética.
Abel Chivukuvuku assiste, a 31 de maio de 1991, à cerimónia da
assinatura dos acordos. Quando esta termina, Jonas Savimbi vai ter
com ele:
— Meu filho, prepara as malas. Vais mudar-te para Luanda…
Abel viaja para Nova Iorque a fim de buscar a esposa Victória e o
filho Pedro — e daí seguem até à Jamba. Ali, um Lockheed C-130
Hercules, um avião grande, mas preparado para pousar em pistas
pequenas, e por isso muito utilizado em cenários de guerra, leva-o,
bem como a toda a delegação da UNITA, até à capital de Angola.
— A despedida da Jamba foi muito emocionante — recorda Abel.
— Houve uma grande festa. E à chegada fomos surpreendidos com
uma extraordinária receção. O Horácio Junjuvili, que estava em
Lisboa, organizou a partir de lá uma manifestação de boas-vindas.
Junjuvili contou com a cooperação do segundo comandante-geral
da Polícia, Adão da Silva, que ajudou a montar a estrutura da UNITA
e a trazer o material de propaganda. A UNITA recebeu também o
apoio de um pequeno grupo de empresários angolanos muito bem-
sucedidos, como Faustino Amões, que mantinham relações antigas
com o movimento.
Elias Salupeto Pena, chefe da representação da UNITA na CCPM,
ficou à frente dessa primeira equipa do movimento a instalar-se no
coração do inimigo. O número dois da delegação era Abel
Chivukuvuku. A seguir, vinha o advogado Victorino Hossi, e depois o
general Augusto Domingos Lutock Liahuka (Wiyo). No C-130 viajam
também Demósthenes Amós Chilingutila, o general Adriano
Makevela Mackenzie, o general Zacarias Mundombe, além de outros
oficiais e dois pelotões de comandos encarregados de proteger a
delegação.
No desembarque, os comandos isolam o aparelho, impedindo
que o mesmo seja revistado, o que irrita, e com toda a justiça, as
autoridades governamentais. O general José Maria, que aguarda a
delegação enquanto representante do governo, consegue a custo
serenar os ânimos.
— É verdade que chegámos a Luanda com excesso de força e de
arrogância — reconhece Abel. — Ao desembarcarmos, os comandos
quase tomaram o aeroporto. Descemos, e fomos recebidos pela
delegação do governo. Alguns funcionários tentaram verificar o que
trazíamos a bordo, mas não os deixámos ver nada.
A delegação ficou instalada no Hotel Turismo, despertando
enorme curiosidade em Luanda. Durante dias, era habitual reunir-se
uma pequena multidão junto à porta do hotel. Uns vinham para
felicitar os homens da mata. Outros à procura de trabalho ou em
busca de familiares que a guerra separara. Certa manhã um jovem
comando, que nunca antes estivera numa grande cidade, muito
menos num hotel daquela dimensão, atravessou com estrondo a
larga porta de vidro que dava para a rua, quebrando-a, para gáudio
dos mirones, lá fora, que reagiram rindo e aplaudindo. O rapaz,
embora confuso, sacudiu os cacos do cabelo, fez uma pequena
vénia, e voltou a entrar.
Na época, persistia em Luanda um forte preconceito contra os
naturais do planalto central e, de forma mais genérica, contra os
guerrilheiros rebeldes, vistos como brutos e incivilizados.
«Bailundo», «bailundino», ou «matuense», eram então termos
pejorativos, muito utilizados pela burguesia crioula de Luanda para
humilhar os ovimbundos.
Em maio de 1985, num momento de ócio, em Kinshasa, Abel
escreveu um poema no qual reflete sobre este entranhado
preconceito: «Bailundo… / Não sei o que pensas que isso quer dizer
quando assim me chamas. / Bailundo sou eu, / clamo que sou eu, /
para que todos saibam, / para que todos oiçam / e olhem para mim
/ quando na rua ando / saído da cubata de pau-a-pique no bairro /
com a minha cara de bailundo. // Bailundo sou eu. / Meu sangue
assim o diz. / Meu nome assim o diz. // Agrada-me que assim me
chames. / Soa-me ao ouvido / a identidade que me liga à terra (…)»
Para muitos luandenses, intoxicados pela longa propaganda
governamental contra a UNITA, foi uma surpresa descobrirem
pessoas como Abel Chivukuvuku, afáveis e cultas, com um vasto
conhecimento do mundo, e tão à vontade nos grandes salões de
Londres, Washington ou Nova Iorque quanto nos mais desvalidos
musseques da capital.
Salupeto Pena concluíra há poucos meses um mestrado em Paris.
Victorino Hossi vivera demorados anos em Lisboa, onde estudou,
como bolseiro da Conferência Episcopal Alemã e depois da Fundação
Calouste Gulbenkian, tendo a seguir trabalhado num dos mais
prestigiados escritórios de advocacia da capital portuguesa. Os
generais Demósthenes, Wyio e Mackenzie tinham participado em
Washington em ações de formação sobre a arte de negociar. Nas
primeiras reuniões da CCPM, a delegação da UNITA distinguia-se pelo
visual: todos os seus elementos, militares e políticos, usavam
gravata e vestiam fatos de bom corte. Naquela época, os políticos do
MPLA ainda se sentiam mais à vontade nas guayaberas cubanas, com
as quais tinham atravessado todo o período socialista, enquanto os
generais das FAPLA apareciam quase sempre fardados.
Na ressaca do socialismo, Angola era um país confuso,
melancólico e esfarrapado. Nas ruas de Luanda não se via uma única
montra. A maioria dos elegantes edifícios da época colonial
apresentava-se em péssimo estado de conservação, com as paredes
descascadas, e as caixas dos elevadores transformadas em lixeiras
verticais.
Os representantes da UNITA davam nas vistas, fazendo-se
transportar em carros americanos e utilizando modernos
equipamentos de comunicação. A maioria, contudo, vivia com medo
e desconfiança, num espírito de cerco. Todos os dias pousava no
aeroporto de Luanda um C-130, vindo da Jamba, carregado de
mantimentos. Trazia não apenas comida, mas também água mineral
sul-africana.
Durante os primeiros dias, a delegação fazia as suas refeições no
Hotel Turismo. O pavor de serem envenenados, porém, era tal, que
Jonas Savimbi deu instruções para a criação de um restaurante
financiado e totalmente controlado pelo movimento.
Victorino Hossi distinguia-se dos restantes membros da
delegação pela desenvoltura com que circulava por toda a cidade.
Antes de partir para Lisboa, Hossi já vivera em Luanda. Homem
afável, gentil, grande leitor, criara na capital angolana uma larga e
sólida rede de amizades.
Segundo Abel, Victorino Hossi, que era «um grande boémio»,
terá contribuído muito para a sua integração e aceitação na
sociedade luandense. Victorino desvaloriza este lado boémio:
— Eu já tinha certa intimidade com Luanda porque, quando saí
do Seminário, aos 22 anos, fixei-me na capital. Quando regressei,
em 1991, conhecia toda a gente. A maior parte dos membros da
delegação da UNITA que vieram connosco tinha uma vasta
experiência do mundo. Agora, não conheciam Luanda, isso não. E
estavam muito desconfiados, com muitas ansiedades e receios. Já
eu, sentia-me em casa. Limitei-me a apresentar Abel a alguns
amigos e conhecidos.
Lopo do Nascimento, um dos mais experientes e respeitados
quadros do MPLA, chefiou as duas primeiras negociações da CCPM
pelo lado do governo.
Salupeto Pena era o chefe da delegação do Galo Negro. Nas
reuniões seguintes, o governo preferiu fazer-se representar pelo
general António dos Santos França (Ndalu). Chivukuvuku assumiu o
papel de porta-voz da UNITA, tendo como parceiro, do lado do
governo, primeiro Venâncio de Moura, de seguida André Passi e,
finalmente, Fernando da Piedade Dias dos Santos (Nandó).
Aquela foi uma fase de estruturação e organização, de forma a
facilitar a entrada de outros dirigentes, alargando a influência da
UNITA na capital. Com a vinda de Jonas Savimbi para Luanda, Abel
continuou como chefe-adjunto da CCPM, acumulando essa
responsabilidade com o cargo de secretário provincial da UNITA em
Luanda.
Jonas Savimbi pede a Ben-Ben, Abel e Salupeto para que se
esforcem por desenvolver relações de amizade com os respetivos
parceiros na CCPM: Arlindo Chenda Pena (Ben-Ben) com Higino
Carneiro; Salupeto Pena com o general N’Dalu e Abel com Nandó. O
objetivo era lançar pontes entre dirigentes de um lado e do outro,
no caso de, durante uma crise, ser necessário encetar um diálogo
urgente. Ben-Ben conseguiu criar alguma proximidade com Higino
Carneiro. Salupeto falha redondamente a missão, talvez devido à
natureza particularmente reservada do general Ndalu. Abel e Nandó,
esses, ficam amigos. São amigos até hoje.
— Quando chegámos a Luanda, a 16 de junho de 1991, a minha
esposa estava na Jamba, grávida. O meu segundo filho, Mário
Ferreira Chivukuvuku, nasceu entretanto. Aqui em Luanda, a minha
chegada levantou muita euforia nas meninas e nas senhoras
solteiras. O velho Jonas ficou preocupado, achando que eu podia me
desencaminhar e, assim, determinou que a minha mulher viesse
para Luanda para me proteger. Na época eu vivia no mesmo quarto
com o general Mackenzie. Éramos muito amigos, muito próximos. Eu
disse, tudo bem, se a minha esposa vem, então a esposa do
Mackenzie também vem. Pode até ficar como minha secretária na
estrutura da província de Luanda. Então vieram. Na altura
estávamos todos no Hotel Turismo.
Em outubro de 1991, Abel é chamado a casa de Jonas Savimbi,
no Miramar. Sem se alterar, mantendo um tom afável, o Jaguar
Negro dos Jagas, que estava acompanhado de Salupeto Pena,
acusa-o de estar em conversações com Daniel Chipenda, lendário
guerrilheiro do MPLA, o qual, após romper com Agostinho Neto pouco
antes da independência, juntando-se à FNLA, retornara às fileiras do
partido dos camaradas.
Ao insinuar que Abel estaria em vias de se passar para o lado do
adversário, Jonas Savimbi expressava um receio que manifestaria
várias vezes, ao longo dos anos. O acusado, contudo, mantém-se
calmo e Salupeto Pena defende-o. Explica que sim, que tem visto
Chipenda, pois este é seu tio. Apenas isso. Jonas Savimbi, sempre
desconfiado, retira-o da CCPM, mandando vir de Paris, para o
substituir, Paulo Lukamba Gato. Destitui-o também do cargo de
secretário provincial de Luanda, substituindo-o pelo luandense
Honório Van Dunem.
Mais ou menos por esta altura, a diplomacia norte-­americana
começa a manifestar sérias preocupações com a situação de Tito
Chingunji, que, segundo informações de diversas fontes, estaria
detido na Jamba em condições muito duras. Uma delegação de
congressistas americanos, de visita a Luanda, exige avistar-se com
Tito. Jonas Savimbi, que se encontrava numa digressão por vários
países africanos, pede a Abel e a Jeremias Chitunda que
tranquilizem os ameri­canos.
— A verdade é que nós acreditávamos que o Tito estivesse na
Jamba, livre, a trabalhar — relembra Abel. — Nessa altura, nenhum
de nós tinha a menor noção de que o Tito pudesse estar preso. Com
problemas, sim. Mas problemas todos nós havíamos enfrentado,
dentro do partido, nas diversas etapas da vida. Fomos então ter com
os americanos. Perguntaram-nos: «Onde está o Tito?»
Respondemos que o Tito estava a cumprir o trabalho dele.
Refilámos: «Vocês, americanos, não têm nada que saber onde ele
está.» E a delegação foi-se embora.
Ainda em 1991, na última semana de novembro, Luanda recebe
mais uma visita de políticos norte-americanos, no caso, senadores, e
também esse grupo pede para conversar com Tito. Novamente, cabe
a Abel sossegar os americanos.
— Pela primeira vez, dou-me conta de que o velho Jonas
manifestava um certo desconforto sempre que se falava sobre o Tito
— diz Abel. — Entrámos em 1992, e eu ainda continuava sem
funções. Em meados de janeiro, fomos convocados para uma
reunião na Jamba. Recebemos instruções para que seguíssemos em
duas delegações separadas. O velho Puna, o Jaka Jamba e o
Manuvakola tinham feito uma digressão para Cabinda. Chegados a
Luanda, fizeram um relatório. Então, o Dr. Savimbi pediu que o Puna
seguisse à frente, num primeiro avião, porque precisava acertar com
ele a estratégia do partido para o ano de 1992. E nós seguiríamos
num segundo avião, um aparelho grande, um C-130. Já no
aeroporto, preparados para embarcar, percebemos que o velho Puna
não estava. Estranhámos: «Oh! Mas o velho Puna não aparece?»
N’Zau Puna nunca apareceu. Nessa altura já estava em Lisboa,
na companhia da mulher e filhos, numa operação que contou com o
discreto apoio do regime angolano. Tony da Costa Fernandes, que
estava em Londres em tratamento médico, juntou-se a ele poucos
dias mais tarde. Na capital portuguesa, Puna e Costa Fernandes
anunciaram o assassinato, na Jamba, a 5 de julho de 1991, de Tito
Chingunji e Wilson dos Santos, acusando Jonas Savimbi de ter sido o
mandante dos crimes. Os dois homens terão sido mortos à
catanada. A esposa de Tito, Raquel — sobrinha de Jonas Savimbi —
foi espancada até à morte, juntamente com os três filhos do casal.
Os dois mais novos, os gémeos Katimba e Jonatão, eram ainda
bebés de colo. Também a esposa e os quatro filhos de Wilson foram
assassinados.
Abel lembra-se muito bem daqueles dias:
— Quando constatámos que N’Zau Puna não viria, decidimos
esperar em Luanda. Até que o velho Jonas nos ordenou que
fôssemos, mesmo sem o Puna, e sem sabermos ao certo o que
havia acontecido. Naturalmente, nessa altura já nos tínhamos
apercebido de que alguma coisa estava errada. Partimos para a
reunião para a Vila Nova, que, é claro, não tratou de estratégia
nenhuma. Ficámos ali, a tentar gerir a crise. Na maior parte do
tempo, o velho Jonas, o vice-presidente Chitunda e o Jorge Valentim
permaneciam colados aos aparelhos de rádio, escutando as notícias.
Terminou a reunião e a maioria dos dirigentes regressou a Luanda.
Eu fiquei.
Segundo o general Vinama, que mantinha uma relação de grande
proximidade com Wilson dos Santos, a quem tratava como a um
irmão, os desentendimentos entre Tito e Savimbi tiveram como
origem questões religiosas, e não políticas. Enquanto vivia nos
Estados Unidos, Tito ligara-se a uma igreja evangélica afro-
americana. Regressou a Angola alardeando possuir poderes
mágicos, simulando milagres, e esforçando-se por evangelizar e
batizar o maior número possível de pessoas.
Católico fervoroso, Wilson dos Santos recusou-se a aderir à igreja
de Tito. Contudo, era casado com uma irmã do antigo protegido de
Savimbi, e muito amigo deste. Essa proximidade arruinou-o.
— O que irritou mais o Savimbi foi o lado obscurantista, essa
seita a que o Tito se ligou — assegura o general Vinama. — Muita
gente, na Jamba, estava a ser arrastada para essa igreja e aquilo
irritava o Savimbi.
A questão religiosa poderá ter contribuído para a queda de Tito
Chingungi. Numa entrevista ao jornalista português José Manuel
Barata-Feyo, em abril de 1992, N’Zau Puna confirmou esta versão,
admitindo também (ainda que com muitas reticências) ter presidido
ao tribunal de fantasia que condenou Tito.
O antigo representante da UNITA em Washington foi ainda
acusado de ser amante de Ana Isabel, uma das várias esposas de
Savimbi, e a única com quem o líder da UNITA se deixou fotografar
durante algumas das viagens que fez a Portugal e a outros países
ocidentais.
A facilidade com que Tito Chingunji circulava através dos
corredores do poder, em Washington, era certamente aquilo que
mais preocupava Jonas Savimbi. Alguns dirigentes americanos, tanto
republicanos quanto democratas, próximos da UNITA, não escondiam
o desejo de colocar Tito no lugar de Savimbi, que consideravam um
homem perigoso, mentalmente instável e ideologicamente pouco
confiável. O próprio Tito começou a ver-se como uma alternativa
credível; ingenuamente, terá confiado esse desejo a pessoas
próximas.
Durante a reunião na Vila Nova, no decurso do escândalo
provocado pelos dissidentes e após reunião familiar dos patriarcas
Chivukuvukus e Penas, Jonas Savimbi nomeia Abel para o lugar de
secretário das Relações Exteriores, até então ocupado por Tony da
Costa Fernandes. É já com essa nova função que o jovem dirigente
regressa à capital angolana. Ao mesmo tempo, passa a integrar o
Bureau Político da UNITA, que, naquela época, era composto por
apenas doze pessoas, e para o qual Abel sugere a Savimbi (que
aceitou) a inclusão de Victorino Hossi.
A reabilitação de Abel, agora com novas e importantes funções,
implicou a sua mudança do Hotel Turismo, onde viveu largos meses,
para uma luxuosa vivenda no Bairro do Miramar, a 100 metros da
atribuída a Jonas Savimbi.
—- Na minha perceção, o destino de Angola jogou-se nesse
período. Na sequência da crise do Tito, americanos e europeus
decidiram abandonar o velho Jonas. Mas nós não nos apercebemos
disso e continuámos o trabalho normal. A partir de meados de 1992,
o velho Jonas, Salupeto e eu tivemos uma série de conversas sobre
o futuro governo, sobre cuja composição discutimos muito. Nessa
altura percebi que havia uma dualidade hierárquica. De acordo com
a hierarquia oficial o número um era o velho Jonas, o número dois
era o vice-presidente Jeremias Chitunda e o número três era o
secretário-geral Alicerces Mango. No entanto, para as questões mais
importantes, a equipa era composta com o velho Jonas enquanto
número um, o Salupeto como número dois e eu como número três.
O velho Jonas dizia sempre: o Abel vai ser o ministro dos Negócios
Estrangeiros e o Dembo, o ministro da Defesa. Ele não queria o
Jeremias Chitunda como primeiro-ministro, porque o via como
demasiado próximo dos americanos, ficando reservado para
presidente da Assembleia Nacional. A determinada altura, o próprio
Jonas sugeriu o nome do Victorino para ocupar esse lugar. O grande
problema do Victorino, na minha opinião, era não estar casado, não
ter família. Para mim, esse era um grave obstáculo, porque, não
estando casado, Victorino não poderia conhecer a vida das famílias
angolanas. Fui falando com o Victorino para ver se ele se
organizava, se casava, mas sem sucesso. Então, o velho Jonas
decidiu fazer um teste ao Victorino. Pediu-lhe que escrevesse um
programa de um governo da UNITA. Demos-lhe um tempo para isso.
Quando lemos o programa apanhámos todos um grande susto,
porque era quase de ultradireita… Quase. Aquilo levou o velho Jonas
aos arames.
Victorino Hossi recorda-se muito bem do episódio:
— Não era um programa de extrema-direita, não senhor. Era de
centro-direita, porque eu sempre fui uma pessoa de centro-direita.
Mas eles não gostaram nada. Convocaram-me para uma reunião na
casa do Savimbi. Primeiro, não me deixaram sequer entrar pela
porta principal. Mandaram-me entrar pela porta da cozinha, pela
porta dos fundos. Encontrei reunida toda a direção política e militar
da UNITA e uma cadeira pequena, colocada diante deles, que me era
destinada. Estava o Dr. Savimbi no meio, ladeado pelo Chitunda e
pelo Dembo. Estava o Salupeto, o Abel, o Alicerces Mango, o Ben-
Ben. Enfim, toda a gente importante. Além de militares e membros
do Comité Central.
Abel confirma:
— Fizemos um verdadeiro julgamento ao Victorino. Lembro-me
do Dr. Savimbi aos gritos: «Você não sabe quem nós somos?!»
— Eu sabia ao que ia — recorda Victorino. — O Salupeto e o Abel
já me tinham avisado que o Dr. Savimbi estava zangado comigo
porque eu tinha feito um programa muito à direita. Eu sabia o que o
Dr. Savimbi pensava, mas acreditava piamente que a melhor forma
de resolver os problemas de Angola naquele momento era com um
programa mais à direita.
A posição política de Jonas Savimbi, e dos principais dirigentes da
UNITA, ao longo dos anos, ainda hoje é motivo de intensa
controvérsia. Na opinião do general Vinama, a maioria dos dirigentes
da UNITA começou por defender posições de esquerda, em particular
Jonas Savimbi.
Victorino Hossi concorda:
— O velho Jonas era claramente de esquerda, mas de uma
esquerda responsável.
Abel Chivukuvuku reforça esta tese:
— Jonas Savimbi era um homem de esquerda, que devido a uma
série de circunstâncias históricas foi forçado a estabelecer acordos e
amizades com forças de direita.
— A conjuntura obrigou a isso — acrescenta o general Vinama.
— A UNITA era uma força de esquerda, condicionada pelos seus
aliados. Os militantes que tiveram formação política sabiam que
éramos um partido de esquerda, condicionado pelas alianças. Então,
nós não dizíamos que éramos de esquerda. A fórmula elaborada pelo
Dr. Savimbi era a seguinte: para criar riqueza vamos recorrer ao
pensamento da direita; para distribuir essa riqueza vamos utilizar os
métodos da esquerda.
Pouco a pouco, a UNITA deixou cair todas as referências à
negritude. A defesa do socialismo, contudo, só desaparece em 2003,
já depois da morte de Savimbi.
Após ser repreendido por Jonas Savimbi, que foi apoiado por
toda a direção da UNITA, Victorino Hossi refez o seu projeto de
governo, desta vez assessorado por Jeremias Chitunda. Um projeto
um pouco mais à esquerda.
As primeiras eleições
1

AS PRIMEIRAS ELEIÇÕES GERAIS EM ANGOLA ACONTECERAM A 29 E 30 DE


SETEMBRO DE 1992, com o objetivo de eleger não só os deputados à
Assembleia Nacional, mas também o presidente da República.
A grande questão com que a UNITA se confrontou, logo no início
do ano, foi como financiar uma campanha eleitoral que se previa
extremamente aguerrida. Naquela época, o governo norte-
americano recusava-se a entregar dinheiro vivo ao movimento do
Galo Negro. Os americanos ofereciam meios, como carros,
motorizadas, material eletrónico ou computadores. Mostravam-se
disponíveis também para adquirir instalações. Uma equipa da UNITA
identificava as propriedades do interesse do movimento, vinha
alguém do governo americano para avaliar as mesmas e, caso
houvesse acordo com os proprietários, concluía-se o negócio. Tudo
isto sem que os dirigentes da UNITA vissem a cor do dinheiro.
— Então, o Dr, Savimbi fez um arranjo com os franceses — revela
Abel. — Em fevereiro de 1992, convocou-me para o Huambo.
Explicou-me que eu teria de ir buscar uma delegação francesa a
Libreville, no Gabão, composta por responsáveis do governo francês
e quadros da Elf Aquitaine.
Na época, a UNITA dispunha de um único avião, pequeno e sem
autonomia suficiente para alcançar Libreville. A alternativa seria
fazer escala em Kinshasa, para abastecer e prosseguir viagem.
Nessa altura, contudo, já o regime de Mobutu, cada dia mais
isolado, se começara a desagregar. Insurreições explodiam um
pouco por todo o país.
Jonas Savimbi envia uma mensagem a Mobutu dizendo-lhe que
tem urgência em conversar com ele, ao vivo, frente a frente, e
perguntando-lhe se consegue assegurar a segurança do aeroporto
de Kinshasa. O ditador zairense diz-lhe que sim. Abel embarca no
pequeno avião, acompanhado apenas por um oficial do gabinete de
Jonas Savimbi, Jojó Chitende. No aeroporto de Kinshasa aguarda-os
uma an­siosa delegação governamental, constituída pelo ministro dos
Negócios Estrangeiros e pelo ministro do Interior. Os dirigentes
zairenses mostram-se surpreendidos (e um pouco aborrecidos) ao
aperceberem-se de que Savimbi não está no avião.
Na sala do protocolo, Abel Chivukuvuku mantém o logro,
garantindo que sim, que Jonas Savimbi pretende visitar Mobutu Sese
Seko. Porém, tem de ter a certeza de que o aeroporto não oferece
riscos. O jovem brigadeiro acrescenta que precisa viajar até
Libreville, por causa de um outro assunto, mas que retornará
imediatamente a Kinshasa, e que então, se estiver tudo em ordem,
prosseguirá viagem para trazer Savimbi.
Graças a este ardil, Abel consegue trazer a delegação francesa
até à cidade do Huambo. Após rápidas negociações, a UNITA assina
um acordo com os representantes do governo francês e da Elf
Aquitaine, que era ainda uma empresa estatal; foi privatizada em
1996, antes de ser absorvida pela Total SA.
A assinatura de Jonas Savimbi não surge nos papéis. O dirigente
do Galo Negro nunca assinava nada que, mais tarde, o pudesse
comprometer. Quem assina o acordo são o vice-presidente da UNITA,
Jeremias Chitunda, e o secretário-geral, Alicerces Mango.
No acordo em causa, os franceses comprometem-se a apoiar a
campanha eleitoral da UNITA com 50 milhões de dólares.
Em abril de 1992, o Comité Central e o Bureau Político da UNITA
nomearam Abel Chivukuvuku como mandatário da candidatura de
Jonas Savimbi e, em simultâneo, mandatário da lista da UNITA à
Assembleia Nacional. Abel assumiu também a direção da campanha
eleitoral em Luanda, juntamente com Lukamba Gato:
— Passei a organizar as caravanas nos municípios. Todos os dias
percorríamos diversos municípios com caravanas, levando cantores
conhecidos.
Um dos maiores comícios daqueles dias intensos aconteceu no
Kilamba Kiaxi, tendo contado com a presença do cantor Sam
Mangwana, muito popular no país. O programa previa a inauguração
de uma clínica de bairro e a entrega de uma cisterna à população.
Savimbi discursou para a enorme multidão. Findo o discurso, Abel
sugeriu que fossem todos a pé até à clínica, a 2 quilómetros de
distância. Contudo, não se lembrou de alertar previamente a
segurança do presidente da UNITA. Quando finalmente encontra o
brigadeiro Katokessa, já Savimbi mergulhara entre a turba. O
brigadeiro ficou zangado:
— Como é que não me avisaste antes?! Eu teria colocado
comandos ao longo do percurso.
Todos querem saudar Savimbi. Abel está aterrorizado. O cortejo
avança lentamente, até alcançar a clínica.
— Pensei: estou lixado, a minha vida acabou — conta Abel. —
Mas lá conseguimos andar os dois quilómetros, chegando à clínica
sem maiores sobressaltos. O velho Jonas inaugurou a clínica. Correu
tudo bem. Quando terminou aquilo, após algumas horas, recebi
instruções para ir a casa do velho Jonas, no Miramar. Entrei em
pânico e preparei-me para o pior.
Contudo, Savimbi recebeu-o exultante:
— Meu filho, foi muito bom! Temos de fazer aquilo mais vezes!
Dizendo isto, deu-lhe um forte abraço — e um envelope com
dinheiro.
2

A ESMAGADORA MAIORIA DOS ELEITORES CADASTRADOS COMPARECEU ÀS


URNAS — mais de 90 por cento! —, num ambiente de serena
civilidade e maturidade, que impressionou todos os observadores,
quer nacionais, quer internacionais.
Concorreram às eleições legislativas dezassete partidos políticos e
uma coligação. As eleições presidenciais foram disputadas por doze
candidatos, um dos quais, Mfulupimga Nlando Víctor, desistiu da
corrida já com os boletins de voto impressos e distribuídos.
Mfulupimga, um homem carismático e corajoso, de opiniões fortes,
muito polémicas, viria a ser assassinado a tiro de arma automática,
a 2 de julho de 2004. Os seus assassinos nunca foram encontrados.
José Eduardo dos Santos, alcançou 1 953 335 votos (49,57 por
cento). Já o líder da UNITA, Jonas Savimbi, ficou em segundo lugar,
com 1 579 98 votos (40,07 por cento).
Nas eleições para a Assembleia Nacional, o MPLA saiu vitorioso,
obtendo mais votos do que José Eduardo dos Santos, 2 124 126
votos (53,7 por cento) e conquistando 129 assentos parlamentares.
A UNITA conseguiu 1 347 636 votos (34,1 por cento), número
correspondente a 70 assentos.
Jonas Savimbi abandonou Luanda no dia 3 de outubro,
alegadamente após receber informações sobre a preparação de um
atentado contra a sua pessoa, refugiando-se no Huambo. Poucos
dias depois, Abel Chivukuvuku vai ter com ele, in­­tegrado numa
delegação que incluía representantes de diversos partidos políticos
da oposição, entre os quais Mfulupimga Nlando Víctor, Isidoro Kiala e
Alberto Neto, além de Simão Cacete, que fora o candidato às
presidenciais pela Aliança Democrática, pequena coligação de
intelectuais progressistas.
Não obstante a comunidade internacional ter reconhecido as
eleições como livres e justas, Simão Cacete manifesta-se convicto de
que terá havido fraude:
— Ainda hoje estou convencido de que houve fraude, sobretudo
devido à enorme diferença entre os votos expressos, ou seja, votos
nulos, brancos e válidos, para as legislativas, e os votos expressos
para as presidenciais. Recordo-me que os eleitores entravam nas
assembleias de voto e eram-lhes entregues dois boletins. Havia,
além disso, duas urnas, de cores diferentes, uma para depositar os
votos nas legislativas, e outra destinada aos votos nas presidenciais.
Era um processo simples e prático. Assim, não consigo encontrar
nenhuma explicação sensata para uma diferença tão grande.
Certamente, ninguém levou boletins para casa. Não faz sentido.
Cacete lembra-se de ter conversado com Savimbi, no Huambo,
em duas ocasiões diferentes. O líder do Galo Negro queixou-se de
estar a ser muito pressionado pela comunidade internacional para
aceitar os resultados. No final do encontro, os representantes dos
partidos políticos assinaram um documento, rejeitando esses
mesmos resultados.
A pedido de Savimbi, Abel permaneceu mais alguns dias no
Huambo, debatendo a situação política e eventuais saídas para a
crise. Regressado a Luanda, participou numa reunião, no edifício da
antiga Assembleia Nacional, organizada pela Comissão Nacional
Eleitoral (CNE). No decurso deste encontro produziu uma afirmação
que até hoje o persegue — a de que a UNITA iria «somalizar
Angola», aludindo à desagregação da Somália após a queda do
regime ditatorial, pró-soviético, de Siad Barre, no ano anterior.
— Eu quis fazer um alerta — esclarece Abel. — Dois dias antes
desse famoso discurso estive com uma delegação de congressistas
norte-americanos. Entretanto, antes de virem para Angola, esses
mesmos congressistas tinham passado pela Somália e contaram-nos
a sua experiência em Mogadíscio. Ali, reuniram-se num extremo da
cidade com um dos presidentes e, terminada essa reunião, esse
presidente deu-lhes escolta até um determinado ponto, e de lá o
segundo presidente foi buscá-los com uma outra escolta. Era esse o
quadro mental que eu tinha quando cheguei à referida reunião e
disse: «É preciso cuidado para não somalizarmos Angola». Isso foi
muito mal interpretado, como uma intenção, um programa. Na
minha cabeça era apenas uma chamada de atenção.
Abel participa numa série de reuniões com membros do governo,
no âmbito da Comissão Conjunta Político Militar (CCPM). Jeremias
Chitunda coordenava os trabalhos, quase sempre num ambiente de
grande nervosismo, que refletia a situação nas ruas.
— Todos os dias recebíamos avisos de que o governo estava a
armar a população nos bairros — afirma Abel. — Não sei se por
ingenuidade, ou se por excesso de confiança, não levámos esses
avisos muito a sério. Pagámos caro por esse excesso de confiança.
Por um lado, confiávamos na nossa angolanidade comum, não
queríamos acreditar que, sendo todos angolanos, o MPLA estivesse a
preparar um massacre. Por outro lado, confiávamos na comunidade
internacional. Nunca acreditámos que a comunidade internacional
permitisse um massacre, à vista de todos, na capital do país.
Abel também reconhece que, em diversas ocasiões, as forças do
Galo Negro cometeram abusos e desmandos:
— Por exemplo, nós tínhamos a casa do velho Jonas no Miramar.
Os comandos estabeleceram um perímetro de segurança nessa área,
dificultando o trânsito do pessoal diplomático que vivia ali. Há que
reconhecer isso. Houve também uma série de pequenos incidentes.
Lembro-me de um episódio, em Cassenda, quando as nossas forças
agrediram jovens que iam a sair de uma discoteca. Agora, a história
de que a UNITA tentou dar um golpe de Estado, isso é uma falácia
total. A UNITA não tinha força para isso, e nem teve tal intenção.
Nunca.
O general Wambu também concorda que a UNITA nem sempre
terá sabido controlar os seus militantes e militares e gerir os
conflitos emergentes:
— Em 1992, nós não conseguimos travar a subida de tom
emocional de parte a parte. Não conseguimos travar, porque o
ambiente que se vivia na Comissão Conjunta Político-Militar, apesar
de ter sido muito bom, não se conseguia espelhar nas outras regiões
do país. Luanda era privilegiada em relação ao contributo da
Comissão Conjunta, mas as outras províncias, as restantes dezassete
províncias, não tiveram a possibilidade desta representação. Assim,
foi difícil travar alguns excessos. Em Luanda, só a presença de
membros da Comissão Conjunta conseguia fazer isso.
Primeiro, paióis de armamento explodiram próximo ao aeroporto
da capital. A seguir, uma viatura da UNITA, que circulava do interior
da cidade, foi atingida a tiros, tendo morrido um jovem da família
Dachala.
O general Wambu recorda-se igualmente de um episódio
envolvendo um indivíduo que seguia de mota, na zona residencial
onde estava o presidente Jonas Savimbi, no Miramar. O homem foi
intercetado pela guarda pessoal do líder da UNITA, o que resultou em
altercações e tiroteio.
Uma violenta troca de tiros entre soldados da UNITA e do
governo, estando ambos os grupos entrincheirados em barricadas
erguidas junto ao aeroporto, levou ao início dos combates. Os
confrontos estenderam-se depois para a região onde o general
Wambu se encontrava com outros negociadores do processo de paz,
no Hotel Turismo.
No dia 31 outubro, Wambu Isidro Peregrino estava prostrado, a
arder em febre, com uma grave crise de paludismo. Não obstante,
manteve-se sempre em contacto com outros membros da Comissão
Conjunta Político-Militar, em particular com o general N’Dalu:
— Já havia combates na cidade. Os combates continuaram no
local onde nos encontrávamos. Tínhamos outras forças a proteger os
dirigentes no Hotel Trópico e próximo do Kinaxixi. Tínhamos quadros
protegidos na zona da Marimba, Cacuaco. Tínhamos unidades no
Miramar e na Maianga, onde está ainda a sede da UNITA, e tínhamos
na zona do Serpa Pinto, Maianga, o secretariado provincial da UNITA,
e depois tínhamos o Secretariado Nacional, na zona junto da CEAST
(Conferência Episcopal de Angola e São Tomé), mais próximo do São
Paulo. Na parte mais distante, Viana, havia uma guarnição também
das tropas da UNITA, na zona do Morro Bento. Estávamos com estes
sítios sob controlo da UNITA, mas, ao mesmo tempo, eram alvos
diretos das forças governamentais. No dia 31, por volta das 22
horas, o general N’Dalu comunicou-me que era intenção da parte do
governo parar com os combates e perguntou-me qual seria a
possibilidade de impedir que os grupos da UNITA saíssem da cidade.
Nessa altura, o Abel Chivukuvuku e o vice-presidente da UNITA, o
engenheiro Jeremias Calandula Chitunda, e outros, encontravam-se
no Miramar. O secretário-geral, Alicerces Mango, o Dr. Carlos
Morgado e o general Paulo Lukamba Gato encontravam-se na sede
provincial do partido, portanto na zona da Maianga. Conseguiríamos
comunicar com os locais onde se encontravam os dirigentes da
UNITA, pedindo-lhes para que se não movimentassem, porque a
situação tinha escapado do controlo das forças governamentais, e
havia muitos civis armados nas ruas? Esta era a questão.
Wambu consegue transmitir a Alicerces Adolosi Mango, que era,
na época, o secretário-geral do movimento, a solicitação do general
N’Dalu. Mango pede tempo para reunir os generais que estavam
com ele, em particular o general Fernando Sambimbi (Begin), de
forma que estes transmitissem a mensagem à cadeia de comando.
Entretanto, os combates prosseguem, ataques e contra-ataques,
cada vez mais ferozes. Os soldados da UNITA estão em clara
desvantagem, quer porque não conhecem bem a cidade, quer
porque não contam com o apoio das populações locais, quer porque
não estão habituados ao combate urbano.
Já perto da meia-noite, Mango contacta Wambu, dizendo que
não conseguira convencer o general Fernando Begin e os restantes
oficiais. Todos eles achavam que, caso se rendessem, seriam mortos
pelas forças do governo. Preferiam tentar sair da cidade.
Wambu insiste com Mango, sem sucesso. Vencido e exausto,
transmite ao general N’Dalu a resposta do secretário-geral do
partido:
— Quando amanheceu, no dia 1 de novembro, a situação era
absolutamente complicada, e isto arrastou-se até ao dia 2. Nesta
abordagem com o general N’Dalu, entre o dia 2 e o dia 3, chegou-se
à conclusão de que nada justificava que se continuasse nesse
ambiente de combates, até porque eles tinham surgido do
descontrolo da situação, um trabalho que devia ter sido da Comissão
Conjunta Político-Militar. Havia imensos cadáveres pela cidade, as
poucas entidades que conseguiam circular eram militares da parte
do governo. Havia baixas militares e civis. Era necessário tomar-se
uma medida para se travar isso. Foi em coordenação com o general
N’Dalu que se decidiu que o polo onde se encontravam os dirigentes
da UNITA que podiam fazer alguma diferença era o Hotel Turismo. A
partir daí, organizámo-nos para que outros quadros fossem também
recolhidos. O atual comissário Sequeira foi indicado para aproximar-
se do Hotel Turismo e, em coordenação com o general N’Dalu, eu
desci do Hotel Turismo num ambiente de intensa animosidade, e fui
levado com o meu guarda-costas ao Ministério da Defesa, onde
encontrei o general França N’Dalu, e a partir dali foram dirigidas
todas as ações no sentido de irmos parando os vários combates que
ainda decorriam. Um dos momentos mais vibrantes foi quando o
general França N’Dalu perguntou entre os generais que ali estavam,
todos já com a farda das Forças Armadas Angolanas (FAA), quem se
predispunha em ir até ao polo do Hotel Trópico para pararmos com
os combates. Eu predispus-me, com o general Zé Pedro, da parte
das ex-FAPLA, e fomos até lá falar com o nosso Junjunvili, o falecido
Jorge Laurindo Boavida, e conseguimos parar esse foco. Depois
seguiram-se outras ações, já em coordenação direta com o
presidente da República, para que o ambiente voltasse à
normalidade. Nisto incluo a ida de uma delegação com o próprio
general N’Dalu, eu e o general Andrade para a embaixada britânica,
que ainda tinha comunicação com a direção da UNITA, e explicámos
a situação que tinha ocorrido. Nessa altura, já tínhamos tido
oportunidade de ir à clínica da Elf, onde estavam recolhidos os
corpos de dirigentes da UNITA: o vice-presidente Jeremias Calandula
Chitunda, o engenheiro Elias Salupeto. Talvez estivesse também o
corpo do mais-velho Isaías Chimbili. Não sei. O que se seguiu fui o
esforço de recolha dos sobreviventes da UNITA, quer na zona das
cadeias de São Paulo, Viana, etc., bem como aqueles que estavam
escondidos em várias localidades e, portanto, a mensagem foi
passada para se dirigirem ao atual quartel general do Exército.
No Hotel Trópico, onde, na prática, funcionava o quartel-general
do movimento, pois ali estavam alojados os seus principais
dirigentes, havia apenas seis armas, pertencentes aos guarda-costas
de Jorge Valentim, de Almerindo Jaka Jamba e de Norberto de
Castro.

Após aceso debate, os militantes da UNITA no Hotel Trópico


dcidiram bloquear o elevador. Cada um dos seis guarda-costas ficou
a proteger um andar, até ao terraço. Não foi disparado um único tiro
a partir do edifício. Isso desorientou um pouco as forças atacantes,
que esperavam grande agressividade e poder de fogo por parte dos
sitiados.
Já no Hotel Turismo aconteceram trocas de tiros, após os
militantes e soldados da UNITA, alojados no edifício, terem dominado
e sequestrado alguns soldados anti-motim.
A 31 de outubro de 1992 estava prevista uma reunião da cúpula
da UNITA, em Luanda, para alcançar um en­­tendimento com as forças
do governo. Havia ainda quem defendesse a convocação de
manifestações em repúdio à suposta fraude eleitoral.
Abel estava na sede provincial do movimento, no Largo Serpa
Pinto, juntamente com Alicerces Mango, Paulo Lukamba Gato e o
médico Carlos Morgado. Ainda nessa tarde, enquanto a tensão
cresce, decide retornar à sua residência no Miramar, porque era uma
área que se encontrava dentro do perímetro protegido da casa de
Savimbi.
— Começámos a receber notícias de pequenas escaramuças.
Quase sempre por iniciativa do governo. A nossa filosofia era
defender-nos onde nos atacassem. Entretanto, continuávamos a
conversar com responsáveis do lado do governo. O Ben-Ben a falar
com o Higino. O Salupeto a falar com o Ndalu: «Vamos lá parar com
isso.» Mas o outro lado estava a cumprir uma agenda, e não
queriam nem podiam parar. A essa altura já estavam a puxar os
tanques da Funda para virem para a cidade.
Ben-Ben e Salupeto Pena, que estavam na residência de Savimbi,
insistem para que Abel e Jeremias Chitunda se juntem a eles.
Permaneceram ali todo o dia de sábado, ouvindo, através dos
Motorolas, os relatos dos ataques.
3

NA NOITE DE SÁBADO, O SECRETÁRIO DE ESTADO NORTE-AMERICANO


HERMAN COHEN ligou para Jeremias Chitunda. Disse-lhe que tinha
conversado com o presidente José Eduardo dos Santos e que este
autorizara o trânsito seguro para os dirigentes da UNITA em Luanda.
As Nações Unidas estavam naquele preciso momento a estudar uma
forma para recolher esses dirigentes e retirá-los de Luanda sãos e
salvos.
Depois de uma análise da situação, ouvindo as restantes
opiniões, Jeremias Chitunda quis saber o que aconteceria aos
militares e militantes anónimos do movimento. Cohen ficou em
silêncio. Na opinião de Chitunda, seria preferível batalhar por um
cessar-fogo em Luanda. O secretário de Estado norte-americano
ouviu e concordou:
— Muito bem, se essa é a vossa posição vou comunicá-la ao
presidente José Eduardo dos Santos.
Mais tarde, Cohen voltou a ligar, dizendo que não conseguia falar
com o presidente da República. Nessa noite, na casa de Jonas
Savimbi, no Miramar, ninguém dormiu. Abel e os restantes dirigentes
da UNITA atravessaram a noite, tentando acompanhar os
acontecimentos através dos sistemas de comunicação interna.
Domingo, dia 1 de novembro, por volta das 11 horas, Jeremias
Chitunda toma a decisão de procurar abrigo numa embaixada de um
qualquer país ocidental. Abel oferece-se para o acompanhar. E assim
vão saltando de quintal em quintal, até encontrarem uma residência
vazia, na qual se abrigam.
A segunda morte de Abel Chivukuvuku,
segundo o seu matador — e a imprevisível
ressurreição
JOSÉ CLEMENTE TEIXEIRA, NASCIDO EM 1961, NO BAIRRO DO
SAMBIZANGA, em Luanda, foi, naquela noite terrível de 1 para 2 de
novembro quem comandou as milícias responsáveis pelo assassinato
de Salupeto Pena e Jeremias Chitunda.
O Sambizanga, bairro histórico da capital angolana, ao qual os
seus habitantes chamam carinhosamente Sambila, viu nascer
diversas figuras importantes do nacionalismo angolano, entre as
quais o presidente José Eduardo dos Santos. Ali, no Sambila, muita
gente conhece José Clemente Teixeira, mas não pelo nome de
batismo. Conhecem-no como Zé Mulato.
Zé Mulato — e não João Mulato, como Abel jura ter escutado —,
era ainda muito jovem quando o temporal da independência o atirou
para a guerra. Combateu primeiro ao lado dos guerrilheiros da
UNITA, depois dos da FNLA, até se juntar finalmente ao MPLA,
integrando as FAPLA, em 1975. Só foi desmobilizado em 1992, pouco
antes das eleições.
Afirma lembrar-se muito bem daquela noite:
— No bairro estávamos todos armados. As entidades superiores
deram-nos armas. Armamento de guerra. AK, PKM, tudo isso. Além
de material de comunicação.
Zé Mulato e os seus homens começaram por erguer barricadas,
«para impedir que os homens da UNITA fugissem para o Kikolo, e de
lá voltassem para as matas».
Na memória de Zé Mulato, ao contrário daquilo que se recorda
Abel Chivukuvuku, já o dia clareava quando surgiram os carros
trazendo Abel, Jeremias Chitunda e a respetiva escolta:
— Foi de madrugada. Deviam ser cinco da manhã. Nós alvejámos
o primeiro carro, e depois aquele onde seguia o Abel e o Jeremias
Chitunda. Eu estava à frente de um grupo de vinte homens. Nem
todos tinham tido experiência militar. O carro embateu contra uma
botija e parou. O Abel saiu do carro, e rastejou até uma casa de
madeira. Assim que ele entra eu pulo o muro para o quintal. Logo a
seguir o dono da casa passa por mim aos gritos: «Ele está lá dentro!
Ele está lá dentro!»
Zé Mulato irrompe na casa, uma arma em cada mão, e depara-se
com Abel, estendido por terra, na sala, sangrando muito de ambas
as pernas:
— Estávamos ali os dois, só eu e ele.
No exterior a multidão ululava, em êxtase:
— Mata! Mata!
Zé Mulato dirige-se ao ferido:
— Vês como a guerra não é boa?!
Trocam palavras amargas. Segundo Abel, Zé Mulato também lhe
bateu. Este nega. Finalmente, o antigo militar agarra o dirigente da
UNITA pelo ombro, ajudando-o a levantar-se:
— Se tentar me desarmar, mato-o já!
A seguir abre a porta e sai para a rua, sendo imediatamente
cercado pelos fitinhas, e por dezenas de populares exaltados.
Enfrenta-os a todos:
— Ninguém toca no senhor Abel!
Zé Mulato larga Abel no passeio, dá instruções a alguns dos
fitinhas para que protejam o dirigente da UNITA, e regressa a correr
para junto das barricadas:
— Apareceram mais Unimogs e tive de ir lá travar as viaturas.
Ninguém podia sair vivo. E ninguém saiu! O único que sobreviveu foi
o senhor Abel. Muitos se zangaram comigo por não o ter morto. Mas
ele estava desarmado, e eu não podia matar um homem desarmado.
Alguns populares puxam Abel pelos pés. Espancam-no.
— Esse Abel é muito vaidoso! — diz um dos agressores. — As
miúdas gostam do gajo. Tem mesmo é de levar porrada!
Surgem dois polícias, que tentam afastar os agressores, fazendo
disparos para o ar. Nessa altura, aparece um outro sujeito, que Abel
nunca conseguiu identificar. Avança contra os populares em altos
brados:
— O que se passa aqui?!
— Chefe, apanhámos o bandido do Chivukuvuku!
— Mato quem voltar a tocar no meu primo malanjino, Abel
Chivukuvuku!
Alguém tenta contrariar o homem:
— Abel não é malanjino, chefe, é bailundo!
— Claro que é malanjino! Você por acaso já ouviu um bailundo a
falar português como ele fala?! Com tanta elegância?! Quem voltar a
tocar no meu primo morre hoje mesmo!
Ninguém mais se atreve a molestar Abel. Carregam-no em braços
até à esquadra do Sambizanga. O oficial mais graduado assusta-se
com a visita:
— O Abel Chivukuvuku aqui?! Temos de tomar medidas…
O oficial esvazia a esquadra. Entrega um rádio de comunicação a
um dos polícias, que fica no exterior, encarregado de impedir que os
populares se aproximem do edifício. Depois aconselha Abel a
afastar-se da porta:
— Ó Abel, estás aí deitado, junto à porta. A porta é de madeira,
se alguém dispara, és atingido de novo e aí morres mesmo... Vem
para aqui que é mais seguro.
— Fui atingido nas pernas. Não me consigo mover…
— Não consegues o quê, meu cabrão?! Vocês nos traíram!
Estávamos a contar com vocês, da UNITA, para mudar o país, e vocês
nos traíram. Chegaram a Luanda com toda a arrogância e assim
estragaram tudo.
Abel dá-lhe razão:
— É verdade, foi assim mesmo…
O oficial prossegue, numa fúria crescente:
— Chegam aqui a Luanda e começam a insultar a Polícia! A
insultar a Polícia, porra! E nós, que contávamos com vocês! Você nos
traíram!
Compreendendo que não pode contar com o apoio do oficial,
Abel rola o corpo até alcançar a parede de alvenaria. Escuta o
comandante, comunicando aos superiores a sua presença ali. Após
receber instruções, o homem prossegue o discurso, zurzindo o
dirigente da UNITA pela postura do seu partido durante o pleito
eleitoral. Insiste na enorme frustração que muitos luandenses
sentiram, ao perceberem que, afinal, não podiam contar com Jonas
Savimbi para afastar o MPLA do poder.
Entretanto, Abel esvai-se em sangue. Por volta da meia-noite
escutam-se sirenes. O polícia, no exterior da esquadra, comunica
através do rádio:
— Chegou a coluna para levar o senhor Abel!
— Quem dirige a coluna? — quer saber o chefe da esquadra.
O nome não coincide, de forma que o oficial se recusa a abrir a
porta. Volta-se para o ferido:
— Estás a ver, Abel? Estes tipos intercetaram as comunicações,
sabem que estás aqui, e vieram buscar-te. Se eu tivesse aberto
aquela porta, entravam agora mesmo e matavam-te!
Poucos minutos depois, escutam o pesado ruído de tanques que
se aproximam. O polícia no exterior liga, avisando que o general
Carlos Rodrigues Coelho da Cruz (Faísca), está na porta. Faísca
entra. Diz que veio buscar Abel Chivukuvuku. O oficial nega-se a
entregar-lhe o prisioneiro, afirmando que só pode fazer isso com a
autorização dos seus superiores. O general exalta-se. É Abel quem
interrompe a discussão:
— Por favor, general, deixe lá o miúdo cumprir as normas!…
O oficial consegue finalmente ligar aos seus superiores. Só então
acede em deixar sair Abel. O general Faísca ergue o ferido e leva-o
até um dos tanques. Oferece-lhe uma Coca-Cola. A coluna parte,
voltando a deter-se próximo ao Cemitério do Alto das Cruzes.
— Os tanques ainda têm de lutar — explica o general Faísca a
um exangue e exausto Abel Chivukuvuku. — Não posso desviar uma
coluna inteira de tanques, numa altura destas, apenas para te
servirem de escolta. Vou ceder-te um tanque, comandado por um
capitão, que te deixará no Hospital Militar. Assim que chegares, pede
que chamem o coronel Sousa, e ele irá zelar pela tua segurança.
O tanque, com Abel, recomeçou a sua marcha, desta vez sem a
proteção dos restantes. Ao passarem pelo Bairro do Maculussu, no
centro da cidade, foram vítimas de uma emboscada. Dois dos
soldados responsáveis pela escolta que, sem necessidade alguma,
haviam subido para a carroceria do tanque, são atingidos por fogo
inimigo, morrendo ali mesmo. O tanque consegue furar o bloqueio.
Enfurecidos, os restantes soldados voltam-se contra Abel,
descarregando nele todo o seu ódio e frustração.
Finalmente, chegam ao Hospital Militar. O ferido, que a essa
altura estava quase inconsciente, é entregue a uma equipa médica
chefiada pelo Dr. João Baptista Cirilo de Sá. Os médicos observam-
lhe as pernas. Dizem-lhe que tem ossos quebrados e alguns
músculos com lesões graves. Contudo, as artérias não haviam sido
atingidas.
Contrariando as expectativas do próprio Abel, os mé­­dicos
asseguram-lhe que em alguns meses recuperará por completo os
movimentos dos membros inferiores.
— Eu achava que morreria antes de chegar à mesa de operações.
Achava que, no mínimo, os médicos cubanos me cortariam as
pernas. Quando me garantiram que voltaria a andar não fiquei muito
convencido. Levaram-me para o bloco operatório, deram-me uma
anestesia, e apaguei.
Na manhã seguinte, ao acordar, enquanto ia recuperando a
consciência, voltou a reviver a tentativa de fuga, o intenso tiroteio, o
momento da captura e os espancamentos. Sentada, muito direita,
ao lado da cama, uma jovem enfermeira mestiça estudava todos os
seus movimentos.
— Ainda bem que o senhor acordou — disse-lhe a enfermeira. —
Preciso sair. Estou no hospital desde sábado, e não sei o que se
passa na minha casa. Deixei lá os meus filhos. Fiquei aqui sentada, a
vigiá-lo, porque alguns dos meus colegas ameaçaram matá-lo.
Abel lembrou-se do que lhe dissera o general Faísca e então pede
à enfermeira:
— Por favor, antes de ir embora procure o coronel Sousa. Diga-
lhe que estou aqui. Diga-lhe que preciso de proteção, pois há
pessoas que me querem matar. Depois, quando sair, antes de voltar
para sua casa, passe pelo Hotel Presidente e suba até ao vigésimo
sexto andar. Peça para falar com o senhor Jeffrey Millington, da
representação americana. Diga-lhe que não morri. Diga-lhe que me
venha ver, aqui, ao Hospital Militar.
Em menos de dez minutos, Abel Chivukuvuku recebia a visita do
coronel Sousa. Este tranquilizou-o, assegurando-lhe que nenhum
enfermeiro ou médico angolano estava autorizado a entrar naquele
quarto. Apenas os médicos cubanos tinham livre acesso. Horas
depois, chegaram dois elementos da segurança, enviados pelo então
coronel Miala (mais tarde vice-ministro do Interior e atualmente
chefe dos Serviços de Segurança Interna), que a partir desse dia se
instalaram no quarto.
Ainda nessa tarde, estava Abel adormecido, coberto apenas por
um lençol, quando, sem ninguém o ter prevenido, uma equipa da
TPA, entra no quarto e o começa a filmar. Atrás da equipa da TPA,
surgiram os embaixadores de Portugal, da Rússia e do Reino Unido,
juntamente com o representante americano Jeffrey Milington, além
de Margaret Anstee, o general Ndalu, o general João de Matos, o
general Miala, Venâncio de Moura e Fernando Dias dos Santos
(Nandó).
— O que é que te aconteceu? — pergunta Ndalu.
— Está a perguntar-me, a mim, o que é que aconteceu?! Vocês é
que devem saber o que aconteceu…
— Certo… E tu, como estás?
— Estou assim, como me vê…
Após algumas palavras de circunstância, Abel pede a todos que
se retirem por alguns minutos, com exceção de Margaret Anstee. A
sós com a representante especial das Nações Unidas, pergunta-lhe
se sabe qual o estatuto de que gozava naquele momento:
— O que sou eu? Um prisioneiro?!
Anstee não consegue esconder a perplexidade e a inquietação:
— Quem pode responder a essa pergunta é o governo
angolano…
— O governo é que sabe?
— O governo é que sabe. Essa questão não diz respeito às
Nações Unidas…
Abel pede a Margaret Anstee que vá então chamar as restantes
visitas. Conversam todos amenamente. Um a um, vão-se retirando,
até restar apenas Nandó, que era, na época, vice-ministro do
Interior.
— Agora que todos se foram, posso saber qual o meu estatuto?
— pergunta Abel.
Nandó, um homem alto e forte, famoso pelo bom humor, reage
com uma larga gargalhada:
— O teu estatuto?! O teu estatuto é o de doente!
— Apenas isso?
— Sim, apenas isso. Neste momento és um homem a precisar de
cuidados médicos.
Abel confessa que viveu nas últimas horas momentos muitíssimo
assustadores. Ficaria menos inquieto se alguém da sua família
pudesse estar ali, cuidando dele, e assegurando-lhe alimentação e
bebida.
Nandó recorda-se de ter reparado, ao entrar no quarto, numa
série de tigelas, com comida, colocadas junto à janela.
— Não estás a comer? — pergunta a Abel.
— Não. Tenho medo de que a comida esteja envenenada.
Nandó ri-se:
— Não te preocupes. Vais comer bem…
— Vou comer bem? E de onde virá essa comida?
— Da minha casa.
— Agradeço muito, desde que isso não implique nenhum tipo de
dívida política. É preciso que fique bem claro que nunca irei apoiar o
MPLA. Mas se me estás a oferecer comida, confecionada em tua casa,
enquanto meu amigo, então, sim, aceito.
Nandó volta a rir-se:
— Estás aí deitado, ferido com gravidade, e ainda refilas?
— Não quero é criar expectativas desnecessárias. Mas tudo bem,
como amigo, aceito.
A partir desse dia, Nandó colocou um funcionário da sua inteira
confiança ao serviço de Abel. Uma das atribuições desse funcionário,
o senhor Piedade, consistia em ir buscar as refeições a casa do vice-
ministro do Interior e entregá-las ao hospital.
— Durante mais de dois meses comi mesmo muito bem. A
esposa de Nandó, que orientava as refeições, caprichava na
confeção e na diversidade. Sábado e domingo sempre tinha um bom
funje ou uma excelente feijoada. Não me podia queixar.
Segundo Nandó, Abel prometeu que, assim que tudo serenasse,
iria com a família a casa dele para lhe agradecer:
— E assim que conseguiu trazer a família para Luanda, ele foi
realmente a minha casa agradecer, o que me deixou muito
sensibilizado — recorda Nandó.
Quinze dias após ser hospitalizado, Abel recebe a visita de Jeffrey
Davidow, sub-secretário de Estado-adjunto dos EUA para África.
Davidow, que tinha sido até 1990 embaixador dos Estados Unidos na
Zâmbia, veio acompanhado por alguns membros do governo
angolano, entre os quais Higino Carneiro e Venâncio de Moura. Após
alguns minutos de animada conversa, Jeff pede para ficar a sós com
o enfermo.
— Recebi instruções do presidente Bush para te levar comigo
para os EUA. Queres ir?
— Com certeza. Se for possível, leva-me já hoje.
— Hoje não será possível. Antes de abandonar Angola ainda
tenciono ir ao Huambo, conversar com o Dr. Jonas Savimbi. O que
queres que lhe diga? Estás do lado dele?
— Diz-lhe que estou do lado dele.
— Muito bem. Agora preciso saber, com toda a franqueza, se
estás a ser bem tratado ou não…
— Não posso avaliar de um ponto de vista médico, mas acredito
que sim. Acho que, atendendo às condições disponíveis aqui, a
equipa de médicos está a fazer o melhor possível.
Jeff Davidow entregou-lhe uma carta de Jardo Muekalia,
despediu-se e foi-se embora. Decorridos alguns dias, Abel recebeu a
visita de Higino Carneiro. O general 4X4, como também é conhecido,
sentou-se ao lado da cama do dirigente da UNITA, esforçando-se por
parecer afável:
— O Jeffrey Davidow queria levar-te para a América. Nós
achamos que isso não faz sentido nenhum. Estás na tua terra, és
angolano, não há motivo para te ires embora. Portanto, ficas aqui!
Abel permaneceu no Hospital Militar de 2 de novembro até
meados de dezembro. Uma semana antes do Natal, Nandó surgiu de
surpresa:
— Abel, estamos a criar condições de vivência aceitáveis para
todos os militantes da UNITA que permanecem sob custódia do
governo. Portanto, vamos levar-te para uma residência, onde ficarás,
até tudo acalmar e se clarificar.
— Vou para uma residência, eu?! E onde estão os outros?
— Os outros todos estão no Ministério da Defesa, mas já temos o
programa de ir tirando as pessoas do Ministério da Defesa para
diferentes instalações…
— Tudo bem, sendo assim levem-me primeiro para o Ministério
da Defesa, e à medida que forem tirando as pessoas eu também
saio com os outros.
— Se nós já estamos a tirar os outros para que queres tu ir para
lá?
— Quero ficar com os meus companheiros.
— Tudo bem. Vamos fazer como tu queres. Mas, nesse caso,
serás o último a sair.
Victorino Hossi abandonou as instalações do Ministério da
Defesa, onde também esteve retido, pouco antes de Abel chegar.
— Saí no dia 18 de dezembro — recorda Victorino. — Dias antes
tinha estado em Luanda o presidente português, Ramalho Eanes. Sei
que ele pressionou o José Eduardo dos Santos. Até me trouxe alguns
livros. Então, negociei com o governo a minha saída. Disse-lhes que
só sairia se aqueles que haviam sido capturados comigo também
fossem libertados. Assim, saí eu, saiu o Norberto de Castro e saiu o
José Abelheira. Voltámos para o apartamento do Kinaxixi, onde
tínhamos sido presos. Durante alguns meses ficámos mais ou menos
em regime de residência vigiada, com dois polícias à porta. Todas as
terças e quintas vinham buscar-me para ser interrogado, no
Laboratório Central de Criminalística de Luanda, no Bairro Popular,
entre as 22 horas e a meia-noite.
Abel recorda-se muito bem do pequeno apartamento, com sala,
quarto e casa de banho, para onde o levaram, no Ministério da
Defesa. Havia um refeitório comum. Os prisioneiros passavam o dia
conversando uns com os outros, lendo e descansando.
— A determinada altura, sugeriram que participássemos numa
conferência de imprensa, denunciando o Dr. Savimbi. Quem trouxe o
texto foi o general Geraldo Sachipendo Nunda. Lemos o texto e não
concordámos. Fizemos então o nosso próprio texto, sem informar
ninguém do governo. Entretanto, deixámos que organizassem a
conferência de imprensa. Decidimos que seria eu a falar, pois era o
mais velho. Lembro-me que estava a imprensa toda, incluindo
jornalistas independentes, como o Reginaldo Silva. De súbito, o
governo apercebe-se de que estamos a ler um texto que não é o
deles, e encerram o evento. Diga-se, em abono da verdade, que
nenhum de nós sofreu represálias. O nosso texto passou, e aquilo
ficou por ali mesmo.
Numa certa tarde, sem nenhum sinal ou aviso, surge no
complexo do Ministério do Interior um homem misterioso, o qual,
aproximando-se de Abel, lhe entrega um grosso envelope.
— Estou a vir das matas — segreda o homem. — O general
Dembo mandou-me aqui, da parte do Dr. Jonas Savimbi. Vim para
saber como é que vocês estão, as vossas condições de vida, para
poder informar, e entretanto o velho Dembo pediu-me para te
entregar estes dez mil dólares.
No dia seguinte, Abel recebe a informação de que João de Matos,
Chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas Angolanas, o
quer ver. Um carro vai buscá-lo. O dirigente da UNITA entra de
muletas no gabinete do mítico general, o qual o recebe com um
abraço forte e sincero.
— Como estás, meu irmão? Recebemos a informação de que o
general Dembo e o Dr. Savimbi irão tentar contactar-te. Recomendo
vivamente que não fales com ninguém enviado por eles. Já estás
metido num enorme sarilho. Se te envolves nisso, a situação ficará
ainda mais feia para o teu lado.
Abel encara o general:
— Como posso envolver-me no que quer que seja sem que vocês
saibam?! Estou retido, contra minha vontade, no Ministério da
Defesa. Se alguém entrar lá dentro, se alguém falar comigo,
certamente que será do vosso conhecimento! Em todo o caso, tomo
boa nota dos seus conselhos e agradeço a preocupação.
No dia seguinte é convocado por Nandó. A conversa repete-se:
— Sabemos que em breve alguém tentará falar contigo. Fica
quieto. Não te metas em novos sarilhos!
— Estou retido, e vigiado. Como é que alguém pode entrar no
Ministério sem que vocês saibam?
— A nossa filosofia agora mudou — explica Nandó. — Sabemos
que a UNITA conseguiu criar redes em Luanda. O que tentamos fazer
é infiltrar as redes, não as desmantelamos, não prendemos
ninguém. Deixamos que vocês se organizem. O que fazemos é
neutralizar os efeitos. Porque se desmantelarmos uma rede, a UNITA
monta outra logo a seguir. Então não vale a pena, dá muito trabalho.
— Estou aqui, estou nas vossas mãos, vocês é que sabem.
Em janeiro de 1993, o MPLA decide que todos os deputados
eleitos pela UNITA, e que estavam sob custódia do governo, deveriam
tomar posse. Abel Chivukuvuku recusa-se a ocupar o seu lugar, com
o pretexto de que estaria ainda a recuperar dos ferimentos. Os
restantes vão.
Todos os dias uma carrinha ia ter ao Ministério da Defesa,
levando os seis deputados presos para as instalações da Assembleia
Nacional. Entre eles estava Carlos Morgado, o antigo médico pessoal
de Jonas Savimbi, licenciado pela Universidade do Porto, e filho de
colonos portugueses, que foi escolhido para liderar o grupo
parlamentar. Morgado também fora ferido durante os confrontos, em
novembro de 1992, embora sem a mesma gravidade de Abel.
Os deputados presos ocupavam os seus lugares no parlamento,
vigiados por agentes da Polícia, que se sentavam atrás deles. No
final das sessões retornavam ao Ministério da Defesa.
Odete Chilala chega ao extremo de queimar uma das pernas com
água a ferver, de forma a não ocupar o cadeirão que lhe fora
reservado na Assembleia Nacional. Teve menos sorte que Abel, pois
assim que o ferimento sarou foi forçada a acompanhar os restantes
colegas.
Em dezembro de 1993, mais de um ano após ter sido capturado,
Abel deixa finalmente o Ministério da Defesa, indo viver para o Hotel
Tivoli:
— Deixavam-me circular por Luanda. Como o Victorino tinha um
pouco mais de liberdade, passou ele a utilizar a viatura de marca
Volkswagen Passat que me foi então oferecida pelo meu parente
António Mosquito. O Victorino apanhava-me ao meio-dia e íamos
almoçar no apartamento dele. Depois, à tardinha, voltava a apanhar-
me e, com as minhas duas senhas, jantávamos, ora no restaurante
do Tivoli, ora no Barracuda, na Ilha de Luanda.
Durante todo esse tempo, Victória, a esposa de Abel, viveu na
Jamba e na cidade do Huambo junto do cunhado Américo e sua
irmã. Esta, Cândida Gato, era uma das esposas de Jonas Savimbi, de
forma que Victória gozava de um estatuto especial, tendo acesso a
melhor alimentação.
A 20 de novembro de 1994, o governo angolano participou em
Lusaka, na Zâmbia, na assinatura de um protocolo de paz com a
UNITA. Abel recebeu um convite das Nações Unidas para assistir ao
ato. Juntou-se, assim, à delegação do governo, que incluía outros
elementos da UNITA sob custódia. Ao contrário dos restantes, porém,
Abel decidiu abandonar o grupo, mal o avião aterrou na capital
zambiana. O general Pedro Sebastião ainda o tentou demover:
— Por favor, Abel, não faça isso. Viemos juntos, vamos regressar
juntos a Luanda. Afinal, a paz está a chegar. Não faça isso…
Abel foi deixar a mala no hotel onde estavam alojados os seus
companheiros do Galo Negro. Compareceu à cerimónia, sim, mas já
integrado na delegação da UNITA, logo atrás do brigadeiro António
Urbano Chassanha e de Eugénio Manuvakola.
Nessa noite, no seu quarto do hotel, Abel recebe um telefonema
de Jonas Savimbi. O líder da UNITA quer saber como ele se encontra.
Acertam encontrar-se no Bailundo.
Assinado o Protocolo de Lusaka — através do qual a UNITA se
obrigava a proceder à desmobilização das suas tropas e o governo
se comprometia a integrá-las nas FAA —, a delegação dos
guerrilheiros voou para Kinshasa, onde Abel se encontra com a sua
irmã Namby Dachala, e de lá para o Andulo. A partir do Andulo
seguiram para o Bailundo em veículos militares. Um pouco antes de
alcançarem o seu destino final detiveram-se numa mata, onde se
encontrava a família de Manuvakola. Isaías Samakuva também se
encontrava lá, na companhia do general Tchata. Ambos insistem
com Abel para refletir muito naquilo que iria dizer a Jonas Savimbi.
— Tu, que estiveste em Luanda todo este tempo, é que nos
podes informar se é mesmo possível fazer a paz com aquela gente,
ou não.
Ao chegar ao Bailundo, Abel não encontra a esposa, que, após a
tomada do Huambo pelas forças governamentais, se refugiara no
Negage.
O jovem brigadeiro apercebe-se da desconfiança com que todos
o encaram. Tecem-se, em redor do seu nome, as mais desvairadas
intrigas e suposições. Para alguns, o MPLA sujeitara-o, em Luanda, a
uma lavagem cerebral. Outros insinuam que conta com apoio
americano para derrubar Jonas Savimbi.
No dia 31 de dezembro de 1994, Savimbi entra no Bailundo.
Nesse mesmo dia, recebe um grupo de dirigentes do seu partido, na
sala de reuniões do pequeno Hotel Girassol. Abel recorda-se de que
além dele próprio estavam presentes Alcides Sakala e Lukamba
Gato. O líder da UNITA, sem nunca referir nomes, lança um ataque
cerrado aos elementos do partido que se deixaram seduzir pelas
luzes de Luanda:
— E agora vêm para aqui?! Porque não ficaram lá, na capital?
Nessa noite, um grupo de jornalistas franceses entrevista o líder
do Galo Negro. Após a entrevista decidem fazer uma sessão de
fotos. Só então Jonas Savimbi se dirige diretamente a Abel:
— Abel, venha aqui, para a fotografia. Junte-se aos bons!
Abel hesita. Alcides reforça o convite de Savimbi:
— Venha lá, maninho!
Abel posa para as fotos, com a nítida consciência de que iria
enfrentar dias muito difíceis. Assim foi.
Um exílio interior,
seguido de nova ressurreição política
EM FEVEREIRO DE 1995, DE 7 A 11 DESSE MÊS, a UNITA organizou no
Bailundo o seu VIII Congresso, para estudar a implementação do
Protocolo de Lusaka. Discutiu-se também o aquartelamento,
desarmamento e desmobilização das FALA e a entrega do território
administrado pela UNITA à administração central do Estado.
No decurso do evento, Abel Chivukuvuku foi demitido das
funções de secretário para as Relações Exteriores. Eugénio
Manuvakola, que havia assinado o protocolo, em nome do
movimento, não só se viu afastado do cargo de secretário-geral,
como foi preso. Contra ele pesava a acusação de ter assinado o
protocolo sem o aval de Savimbi. Poucos minutos antes da
formalidade das assinaturas, Eugénio Manuvakola terá recebido
instruções do presidente da UNITA para não ratificar o documento e
abandonar Lusaka — o que não fez. Então, foi acusado de ser um
agente do MPLA.
Victória chegara com os filhos, poucos dias antes:
— Quando o Abel chegou ao Bailundo eu estava na província do
Uíge — recorda-se Victória. — Tinha fugido do Huambo, porque as
forças do MPLA estavam prestes a tomar a cidade. Fomos com a
Judite Bandua, mulher do general Dembo. Ela colocou-me a mim e
aos dois filhos na carroçaria de um camião, e levou-nos até à
província do Uíge, onde estava o general Dembo. Essa senhora,
Judite Bandua, era tia do Abel. Fomos nesse camião, debaixo da
chuva, debaixo do sol. Ficámos por lá, no Uíge, um tempo. Após dois
meses disseram-nos que o Abel estava no Bailundo. Foi por nós que
ele voltou. Estava muito preocupado com a família. Então, o Dr.
Savimbi mandou um helicóptero buscar-nos ao Negaje, e voltámos
para o Bailundo. Primeiro ficámos num pequeno hotel. Depois
conseguimos encontrar uma casa pequena, arranjámos a casa e
fomos para lá.
Muitas pessoas apostavam que Abel seria preso na manhã
seguinte.
O brigadeiro passa essa noite em claro, limpando a sua arma, e
refletindo no que faria se o tentassem prender:
— A minha intenção, quando amanheceu, era reagir a tiro,
disparar contra quem me viesse prender. Sabia que me matariam,
mas não me queria entregar.
Passaram as horas, o Sol nasceu e voltou a desaparecer e não
surgiu ninguém.
— A meu favor jogou o quadro cultural. Nós estávamos no
Bailundo, e eu sou do Bailundo. O então rei do Bailundo, Ekuikui III,
era meu tio. Todos os sobas das aldeias em volta eram meus
familiares. O velho Jonas, pelo contrário, não é do Bailundo.
Suponho que ele terá pesado bem tudo isso e optou por não
prender um filho da terra, um filho da casa da família real.
Abel decide não sair de casa. Ficaria em prisão domiciliar
voluntária.
— Fechado em casa, sem receber ninguém, sem falar com os
generais, não me podiam acusar de ter um plano para afastar o
velho Savimbi.
Assim fez. Não saía, nem sequer para ir à varanda. A família
acordava cedo. Victória fazia o pequeno-almoço e comiam. Depois,
Abel dava aulas aos filhos. Ao fim da manhã descansavam um
pouco, almoçavam, e a seguir o brigadeiro voltava a dar aulas às
duas crianças. Durante meses ninguém os visitou, com a exceção de
familiares muito próximos, que vinham entregar comida, e de
Victorino Hossi.
O advogado ia frequentemente ao Bailundo, de avião, a partir de
Luanda, como convidado de Jonas Savimbi. As reuniões com o
dirigente da UNITA aconteciam sempre entre a meia-noite e as cinco
e meia da manhã:
— Umas vezes viajava com o Samakuva, outras ia sozinho —
conta Victorino. — Como ficava numa casa de trânsito levava sempre
uma caixa térmica com mimos para os meus amigos. Normalmente,
almoçava em casa do Abel. A mulher dele, a Toya, cozinha muito
bem. Passava o dia na conversa. Às 18 horas ia descansar, dormia
um pouco, e por volta da meia-noite alguém me apanhava para as
reuniões com o Savimbi. Às 7h30 regressava a Luanda no avião da
SAL. No início, não tinha a noção de que o Abel estava tão
ostracizado. Nunca ninguém me perguntou nada. Nunca ninguém
me tentou demover.
Certa manhã, alguém bateu à porta da casa da família
Chivukuvuku, dizendo que o general Gato, que ocupava então o
posto de secretário-geral do movimento rebelde, pretendia falar com
Abel. Este vestiu-se e foi à procura de Lukamba Gato.
— Maninho, estamos preocupados consigo — disse-lhe Gato. —
Você está há meses sem sair de casa.
— Naturalmente. Não tenho nenhuma função a cumprir. Vou
andar como um maluco a passear de rua em rua? Hoje o senhor
chamou-me e eu vim. Se precisarem de mim sabem onde me
encontrar.
— Certo. Certo… O presidente entende que devias assumir a
função de secretário do Plano. Alguém que cria ideias… Capaz de
pensar no futuro do movimento…
Abel compreende que os dirigentes da UNITA querem testar o seu
estado psicológico e emocional. Regressa a casa, e retorna à rotina.
Um mês mais tarde é o brigadeiro Calulo quem lhe bate à porta,
com um envelope:
— Estão aqui dez mil dólares, maninho. O presidente está
preocupado com o sustento da sua família, então mandou isso, o
mano Abel por favor faça uma nota a dizer que recebeu.
Abel agradece, escreve a nota, e acrescenta que no Bailundo
nunca passaria fome, pois ali toda a gente é da sua família, e todos
o ajudam.
Nesse mesmo dia, ao entardecer, surge um dos sobrinhos de
Abel, Jobito Chimbili, funcionário do gabinete de Savimbi, com a
informação de que o presidente pretendia vê-lo:
— Fica atento!
Por volta da meia-noite, um oficial bate à porta da casa de Abel,
pedindo-lhe que o acompanhe. Antes, sugere que o brigadeiro mude
de casaco — um casaco de napa, preto —, porque Savimbi tinha
vestido um idêntico. Abel troca o casaco por uma balalaica e
acompanha o oficial. Encontra Jonas Savimbi na companhia do
secretário-geral do partido, Paulo Lukamba Gato.
— Pedimos desculpas por tudo o que aconteceu — diz Savimbi,
enquanto lhe estende a mão. — Nós recebemos muitas informações
contraditórias, não sabíamos o que estava acontecendo, e por isso
nos comportámos assim, mas achamos que foi errado. Queria que
nos contasses como foi a estadia em Luanda. Vamos trabalhar
juntos.
Abel não procura esconder a irritação. Argumenta que se
pretendessem informações sobre Luanda deveriam ter conversado
com ele meses antes. Sugere que para saberem o que se passa na
capital conversem com os militantes que lá vivem, como Victorino
Hossi. Por outro lado, reconhece a legitimidade de alguma suspeição
por parte da direção do partido, atendendo aos confusos eventos de
que fora protagonista. Defende, contudo, que a direção da UNITA
deveria ter lidado com a situação de forma mais inteligente,
aparentando normalidade, e vigiando-o até encontrarem alguma
prova que o ligasse ao regime. Então, sim, poderiam prendê-lo.
— Agora estou magoado, e já não serei a mesma pessoa. Sofri
muito em Luanda, resisti, e chegado aqui ainda tive de enfrentar
todo este ambiente de desconfiança. Não esperem que seja a
mesma pessoa que era quando cheguei. Não sou!
Savimbi encolhe os ombros:
— Tudo bem, compreendo. A partir de agora ficas a trabalhar
diretamente comigo.
A partir dessa data, Abel passa a acompanhar Jonas Savimbi
numa série de viagens relevantes. Assim, está ao lado do dirigente
da UNITA, no dia 6 de maio de 1995, quando este se reúne com o
presidente José Eduardo dos Santos, em Lusaka. No decurso da
cimeira, Jonas Savimbi reconhe­­ce José Eduardo dos Santos como
presidente legítimo de Angola. Por outro lado, José Eduardo aceita a
atribuição de um «estatuto especial», ao dirigente do maior partido
da oposição. O estatuto especial chegou a ser elaborado, sendo a
seguir aprovado na Assembleia Nacional — mas nunca foi aplicado.
Concluída a cimeira, viajam os dois para Kinshasa, no avião
presidencial de Mobuto. Jonas Savimbi pretende seguir do aeroporto
de Kinshasa diretamente para o Bailundo. Para isso, seria necessário
mudar para um outro avião, um pequeno Beechcraft, que o governo
zairense colocara à disposição do movimento.
Ainda é muito cedo, o Sol emergiu há instantes e, no aeroporto,
só se encontra um piloto. O diretor do aeroporto recomenda que não
voem. Seria necessária também a presença de um copiloto.
Deveriam aguardar até que fosse possível completar a equipa.
Jonas Savimbi está com pressa, inquieto e irritado. Uma e outra
vez insiste com o diretor. Quer partir imediatamente.
— Temos piloto? Então vamos!
Já em pleno ar, voando sobre território angolano, o piloto
zairense apercebe-se de que, diante deles, se desenrola uma
formidável tempestade. Sem o copiloto, que o poderia ajudar a fazer
a correção da rota, prefere enfrentar a turbulência a arriscar perder-
se em território inimigo.
—- Foi terrível! — lembra Abel. — Quando entrámos na
tempestade aquilo foi horrível, horrível, horrível! Muita turbulência!
Mas não a turbulência normal. No avião, além de mim e do velho
Jonas, viajavam o Jorge Valentim, o Sakala, o Marcial Dachala e dois
guarda-costas. Todos nós perdemos o controle e desatámos a gritar.
Altos gritos. Alguns gritando em umbundo. Até o piloto zairense
gritava, de cabeça perdida, em francês e em lingala.
A única pessoa que manteve a serenidade durante todo o
episódio foi Jonas Savimbi. Enquanto os restantes passageiros
gritavam e esbracejavam, o líder da UNITA esforçava-se por acalmar
e orientar o piloto:
— Calme-toi, mon frère, calme-toi…
Sucedem-se minutos de absoluto pânico, e depois um vasto e
sólido silêncio, até o avião aterrar no Bailundo. Já em segurança, na
pista do improvisado aeroporto da capital da nação ovimbundo,
Jonas Savimbi convida o grupo a acompanhá-lo a casa. Vão.
Sentam-se na sala, ainda atordoados pelos últimos acontecimentos.
— Meus amigos, só não morremos hoje porque um de nós tem
uma missão importante a cumprir — assegura Savimbi. — Ou sou
eu. Ou é o Valentim, e apanhámos boleia. Ou é o Dachala ou o Abel.
O que passámos juntos não aconteceu por acaso. O avião deveria
ter-se despedaçado. Mas não, aqui estamos. Um de nós tem ainda
uma missão a cumprir.
Uma outra viagem que Abel não esquece — nem poderia
esquecer — foi a que os levou até à Cidade do Cabo, para um
encontro com Nelson Mandela, que, um ano antes, fora empossado
presidente da nova África do Sul.
O encontro aconteceu no dia 17 de maio de 1995. A delegação
da UNITA foi recebida no aeroporto pelo então embaixador angolano
na África do Sul, Kito Rodrigues.
O abraço entre Nelson Mandela e Jonas Savimbi confundiu muita
gente, em África e no mundo, atendendo às estreitas ligações entre
a UNITA e o regime do apartheid. Esse foi o primeiro abraço entre os
dois, no parlamento sul-africano em Capetown; mais tarde, meses
depois, voltariam a encontrar-se de forma ainda mais simbólica na
aldeia natal de Mandela, Qunu, na província do Cabo Oriental.
— Fomos apenas eu e o velho Jonas — recorda Abel. — Do lado
dos sul-africanos foram o Mandela e o Thabo Mbeki.
Segundo Abel, Nelson Mandela recebeu Savimbi como um herói,
por ter intercedido pela sua libertação junto dos governantes
brancos, na era do apartheid.
— Durante o tempo em que estive preso os membros do governo
disseram-me que tu, Savimbi, insististe várias vezes na minha
libertação — terá dito Mandela, enquanto abraçava o líder da UNITA.
— Por isso eu queria te conhecer. Uns diziam que eras um agente do
apartheid. Já eles, os do apartheid, diziam que tu lutaste para me
libertar. Hoje estou feliz. Eu aqui já não faço política, sou mais um
símbolo. Para falar de questões políticas, tratem com o Thabo Mbeki.
Mas se quiseres ir comigo ver as meninas bonitas do Soweto, então
avisa-me.
No dia seguinte, Savimbi e Chivukuvuku reuniram-se com Thabo
Mbeki, então vice-presidente do ANC. O futuro presidente sul-
africano conhecia bem Angola, pois, durante o regime do apartheid,
esteve alguns anos exilado no país. Consta, aliás, que terá estado
preso, a mando do seu próprio partido, episódio que o jornalista
Rafael Marques recordou num famoso artigo, «O batôn da ditadura»,
que, no ano 2000, provocou a ira do regime angolano:
«Já alguém teve coragem de expor as sevícias por que o homem
(Thabo Mbeki) passou na Estrada de Catete, quando lá foi detido em
companhia de compatriotas seus, no ano de 1983? Já alguém teve a
coragem de assumir que Thabo Mbeki foi forçado a assinar um
documento em que tinha de assumir um inexistente atentado contra
Oliver Tambo? Tudo porque em 1983, 70 estudantes universitários
sul-africanos, que se haviam juntado à causa do ANC, foram fuzilados
no município do Cacuso, Malanje, por se terem recusado a combater
a UNITA. Segundo informações dignas de apreço, os mesmos
contavam receber treino aqui para lutar contra o apartheid e não
para se envolver numa guerra civil alheia. Consta que Thabo Mbeki
juntou a sua voz à dos outros membros do ANC que repudiaram o
ato. E, cadeia com eles! Nesse mesmo ano, 26 outros membros do
ANC, de um grupo de 40 detidos na Estrada de Catete, foram
fuzilados.»
Tendo em conta a mágoa e profunda desconfiança que Thabo
Mbeki alimentava contra o MPLA, é de supor que tenha contribuído
para o surpreendente abraço entre Jonas Savimbi e Nelson Mandela.
Naquele segundo encontro, Savimbi começou por recordar a má
experiência de Mbeki em Angola, realçando que, como o dirigente
sul-africano conhecia muito bem o MPLA, era mais fácil falar com ele.
Depois retirou-se, deixando Abel a sós com o futuro presidente da
África do Sul.
Em 24 de setembro desse mesmo ano, 1995, Jonas Savimbi
reune-se pela segunda vez com o presidente José Eduardo dos
Santos, em Franceville, no Gabão, sob a mediação do presidente
Omar Bongo. Surpreendentemente, Savimbi e dos Santos escolhem
conversar a sós. Sempre que é necessário esclarecer algum
pormenor, Savimbi chama Abel, enquanto dos Santos recorre ao
jurista Carlos Maria Feijó, chefe da Casa Civil do presidente da
República. Os generais João de Matos e Ben-Ben também participam
de alguns destes encontros, debatendo questões do âmbito militar.
Em Franceville, naquele segundo encontro, José Eduardo dos
Santos propõe que se crie o cargo de vice-presidente, de forma a
acomodar Jonas Savimbi. As competências desse novo cargo levam
a longas discussões.
— O presidente José Eduardo comunicou também ao velho Jonas
que tinha algumas dificuldades de tesouraria, e como a UNITA
controlava o território diamantífero gostaria que lhe dessem uma
área, para resolver o problema — recorda Abel. — Savimbi
concordou. Criou-se então uma equipa, tendo do lado do governo o
general Higino Carneiro e do lado da UNITA o general Bock, que
depois foram para as Lundas e libertaram a zona do Luó. A UNITA
retirou toda a sua tropa, todo o seu pessoal, e o governo trouxe a
polícia e restante estrutura.
Já em Luanda, Abel é informado de que o Bureau Político
chumbara a ideia de colocar Jonas Savimbi na vice-presidência. O
MPLA defendia que, nesse caso, deveriam existir dois vice-
presidentes, de forma a impedir que, na ausência do presidente José
Eduardo dos Santos, o líder da UNITA ficasse como presidente. Os
membros do Bureau Político do MPLA receavam que, aproveitando-se
dessa situação, Savimbi fosse tentado a alcançar o poder total
através de um golpe de Estado.
O líder da UNITA recebe a má notícia com tranquilidade.
Provavelmente, já a esperava.
Durante os meses seguintes multiplicam-se os incidentes
envolvendo as guerrilhas da UNITA e forças governamentais.
Contrariando o disposto no Protocolo de Lusaka, as FAA contam na
altura com cerca de 500 mercenários da Executive Outcomes (EO).
Por fim, após muita pressão por parte dos EUA, o governo angolano
concorda em rescindir o contrato com a EO, embora muitos dos
mercenários da companhia se mantenham no país, agora ao serviço
de empresas de segurança privadas, sobretudo nas áreas
diamantíferas.
Nos primeiros dias de março de 1996 acontece uma terceira
cimeira, em Libreville. Jonas Savimbi e José Eduardo dos Santos
discutem a extensão da administração do Estado para as áreas
ocupadas pelos guerrilheiros rebeldes. Discutem também a criação
de duas vice-presidências. O Jaguar Negro dos Jagas quer definir as
competências de cada uma: propõe que a vice-presidência do MPLA
tenha como foco as questões políticas; já a vice-presidência da UNITA
deveria colaborar com o presidente nas económicas e sociais. A
proposta é que França Van Dunem, antigo primeiro-ministro, ocupe
a vice-presidência, do lado do MPLA.
Terminado o encontro, a delegação da UNITA viaja de Libreville
para Abidjan, na Costa do Marfim, e de lá para Lomé, a capital do
Togo. Em Lomé, Jonas Savimbi reúne-se com o presidente do país,
Gnassingbé Eyadéma.
Nessa noite, realiza-se um faustoso jantar no palácio
presidencial. Findo o jantar, Jonas Savimbi pede que todos se
retirem, com exceção de Abel. Quer conversar com ele.
— Abel, o que vamos beber? — pergunta Savimbi, quando os
dois se acham a sós.
— Prefiro um bom vinho tinto…
— Tudo bem, eu vou antes beber um vinho branco.
Chegam os vinhos. Cada um experimenta o seu. Finalmente,
Jonas Savimbi pousa o copo e, encarando o jovem brigadeiro com
aberta hostilidade, dispara à queima-roupa:
— Vou ser direto, Abel. Eu tenho um grande, grande problema…
— Qual é esse problema, mais-velho?
— Esse problema és tu! Tu queres me derrubar! Queres o meu
lugar!
O álcool aquece Savimbi. À medida que bebe vai-se tornando
cada vez mais feroz e agressivo. Esvazia copo após copo. Pede então
a Abel que procure o seu chefe de gabinete, o general Elias da Costa
Pedro (Calias), para que este providencie uma nova garrafa de vinho
branco. O brigadeiro levanta-se e, contrariando as instruções de
Savimbi, ordena a Calias que regresse ao hotel com a equipa.
Deveriam arrumar as imbambas e seguir sem demora para o
aeroporto. Ele iria tentar iludir Savimbi, dizendo-lhe que o vinho
acabara, e que a equipa negocial já estava aguardando por eles no
aeroporto.
Ao vê-lo regressar de mãos vazias, Jonas Savimbi ex­­plode, num
súbito ataque de fúria:
— Eu sabia! Agora até já dás ordens aos meus homens!
Trocam argumentos e recriminações. Savimbi manda chamar
uma das esposas, Sandra Kalufele, que lhe traz, do quarto, outra
garrafa de vinho. Queixa-se aos seus conselheiros:
— Aqui o grande problema é o Abel, que quer ser o vosso
próximo presidente!…
Amanhece, e os dois homens ainda discutem. Savimbi insistindo
na ideia de que Chivukuvuku o pretende substituir, e este negando
uma e outra vez, com incansável veemência.
Abel não tem sequer tempo de ir ao hotel arrumar a mala. O
general Vinama e Jardo Muekalia tratam disso. Já no avião, Jonas
Savimbi pede-lhe que permaneça na sua cabina. Quer que
esqueçam todas as desavenças, em particular, as amargas palavras
trocadas no decurso daquela tempestuosa noite.
— Vamos apagar tudo o que se passou nas últimas horas —
propõe, num tom conciliador. — Quando chegarmos a Brazzaville,
nós prosseguiremos viagem para Angola, mas tu vais para França.
Vou entregar-te uma carta para o presidente de França e depois vais
a Espanha, entregar uma outra carta ao José Maria Aznar. Segues a
seguir para Lisboa, onde me representarás, na cerimónia de tomada
de posse do Jorge Sampaio.
Assim foi. A 9 de março de 1996, Abel Chivukuvuku comparece à
cerimónia de tomada de posse do presidente português, Jorge
Sampaio, eleito em janeiro desse ano para o seu primeiro mandato.
Em Lisboa, o brigadeiro encontra-se com a delegação do governo
angolano, chefiada pelo presidente José Eduardo dos Santos, que,
muito amável, o convida para um jantar na embaixada. Abel
comparece ao jantar, acompanhado por Rui Oliveira, na época porta-
voz do movimento rebelde na capital portuguesa. Abel tem então
oportunidade para trocar algumas palavras de circunstância com
José Eduardo dos Santos.
Abel Chivukuvuku recorda também as várias viagens que fez a
Gbadolite, no norte do Zaire, atual República Democrática do Congo,
para visitar Mobutu Sese Seko, o corrupto e extravagante presidente
zairense. O palácio de Mobutu ficava no topo de uma montanha.
Sempre que eram aguardadas visitas, o ditador zairense dava ordens
para que ligassem todas as luzes, e o palácio, piscinas e jardins
adjacentes resplandeciam, como joias suspensas na noite. Hoje em
dia está tudo em ruínas.
Mal as visitas se sentavam, Mobutu gritava:
— Champanhe ou gengibre?
A segunda pergunta era sempre a mesma:
— Onde está o Ministro das Minas?!
Isto porque Jonas Savimbi tinha por hábito presentear Mobutu
com diamantes. O designado Ministro das Minas era o general
Kalias.
— Se Mobutu percebia que o general Kalias não integrava a
delegação, ficava aborrecido — recorda Abel. — Nessa altura ele já
pouco governava.
Aos domingos, a delegação da UNITA assistia às cerimónias
religiosas. O presidente zairense gostava de conduzir ele mesmo o
seu Mercedes com o velho Jonas ao seu lado. No banco traseiro
seguiam habitualmente as suas duas esposas, Bobi e Kasia, irmãs
gémeas, que viriam a acompanhar o ditador no seu exílio, e
usufruem até aos dias de hoje uma existência luxuosa, entre Faro
(Portugal), onde possuem propriedades, Paris, Bruxelas e Rabat.
Na opinião de Abel Chivukuvuku, a relação de Jonas Savimbi com
o presidente Nelson Mandela foi de integral admiração e
reconhecimento mútuos. Com o sucessor de Mandela, Thabo Mbeki,
Jonas Savimbi gostava de debater o destino do continente. Mbeki,
embora mais retraído que Mandela, mostrava interesse pelas
opiniões de Savimbi.
Félix Houphouët-Boigny, o mítico Papa Houphouët, presidente da
Costa do Marfim entre 1960 e 1993, era quase trinta anos mais
velho que Jonas Savimbi, e tratava-o como um pai trata o filho.
Savimbi respeitava-o e escutava-o. Abel recorda:
— Em várias ocasiões, o presidente Boigny levou o velho Jonas a
visitar a capela-mausoléu na sua residência em Yamoussoukro, onde
estavam depositados os corpos de pessoas da família já falecidas,
além de haver lugares reservados para os que ainda estavam vivos,
incluindo o próprio Boigny, com a gravação da data de nascimento,
faltando apenas a data de falecimento. Por razões acidentais, o
velho Jonas não conseguiu estar presente nas cerimónias fúnebres
do presidente Houphouët. Na primeira ocasião em que visitou a
Costa do Marfim após o falecimento do presidente, o velho Jonas,
acompanhado do presidente Henri Konan Bédié visitou o mausoléu
e, pela primeira vez na minha vida, vi-o desmaiar. Ali, diante da
tumba de Houphouët, o que de­­monstrou a profunda relação que os
unia.
Gnassingbé Eyadéma, que foi presidente do Togo de 1967 até à
sua morte, em 2005, tinha com Savimbi uma relação fraternal, de
profunda cumplicidade. Outro importante dirigente africano com
quem Jonas Savimbi estabeleceu uma relação de amizade, que se foi
estreitando ao longo dos anos, foi o rei Hassan II, de Marrocos.
Partilhavam, segundo Abel, muitos interesses intelectuais e uma
idêntica visão estratégica do mundo.
Já a relação do líder da UNITA com o ditador zairense, Mobutu
Sese Seko, obedecia simplesmente a interesses recíprocos. Não
havia nenhum tipo de conexão, nem ideológica nem intelectual,
entre os dois homens. No início, Mobutu aceitou receber Jonas
Savimbi para agradar aos americanos. Na fase final, só lhe
interessavam os proveitos materiais que poderia obter com aquela
aliança.
O rei Hassan II terá sido uma das personalidades a convencer
Savimbi de que o mecanismo dos dois vice-presidentes era uma
armadilha política, sobretudo por não definir as competências exatas
de cada função. No fim de contas, todas as competências seriam
sempre do presidente, e caberia a este delegar. Abel participou na
reunião com Hassan II e lembra-se de como o monarca ficou
desagradado com o arranjo:
— Tudo bem, vais ser o segundo vice-presidente. Mas vais fazer
o quê? Quais as tuas competências? Em que consiste o teu trabalho?
Hassan II riu-se, desdenhoso, enquanto Jonas Savimbi lhe
explicava que seria o presidente José Eduardo dos Santos a definir
as competências. Sem que fossem definidas com muita precisão
quais os poderes e as áreas de atuação do cargo, aquela não lhe
parecia de todo uma proposta sensata.
Os conselhos de Hassan II levaram o líder da UNITA a rejeitar
tudo quanto até então havia acordado com o governo angolano, nos
dois encontros realizados no Gabão.
Jonas Savimbi convocou um congresso extraordinário do
movimento, o III, que se realizou no Bailundo, entre 20 e 27 de
agosto de 1996. Após aceso debate, opondo moderados a radicais,
ou «pacifistas» a «belicistas», uma esmagadora maioria de
militantes acabou acatando os desejos do seu líder, e, ainda que
reafirmando «o engajamento do partido na implantação do Protocolo
de Lusaka», deitaram-no alegremente ao lixo.
O testamento de Jonas Savimbi
1

A 11 DE NOVEMBRO DE 1996, DIA EM QUE COMPLETOU 39 ANOS, Abel


Chivukuvuku estava no Bailundo. Logo de manhã Cândida Ferreira,
irmã mais velha de Victória e uma das esposas de Savimbi, avisou-o
para não sair de casa. O brigadeiro pensou que talvez Savimbi o
viesse visitar. Contudo, as horas passaram, o dia chegou ao fim, e
não apareceu ninguém.
Por volta das oito da noite, vêm dizer-lhe que se prepare para
uma festa, nas instalações do secretariado-geral. Abel e Victória
encontram uma mesa montada para quatro pessoas. Sentam-se.
Jonas Savimbi chega logo a seguir com Sandra Kalufele, uma das
suas esposas. Parece feliz ao ver a surpresa de Abel. Na hora dos
discursos, dirige-se à multidão que, no exterior, comia, bebia e
dançava:
— Mandei fazer esta festa, embora já não esteja habituado a
festas, para testemunhar a minha reconciliação com o Abel.
Desconfiei dele durante longo tempo. Mas após muitos meses
viajando juntos cheguei à seguinte conclusão: ou Abel é muito
inteligente e está a disfarçar o plano dele, ou então não tem plano
nenhum, e as minhas desconfianças são totalmente infundadas.
Abel, por favor, diz-nos alguma coisa…
Abel levanta-se, pouco à vontade:
— Dr. Savimbi, eu não posso falar em minha defesa, as minhas
palavras não valem nada. Apenas peço para que observem os meus
atos e depois os avaliem.
A cerimónia assinalou formalmente a reconciliação entre os dois
homens.
2

SEMANAS DEPOIS, ABEL ACOMPANHOU ISAÍAS SAMAKUVA E CE­LESTINO


KAPAPELO numa viagem de Luanda para o Andu­­lo. Aguardavam por
eles, na pequena cidade do planalto central, os generais Ben-Ben e
Bock, além de outros dirigentes, todos visivelmente nervosos.
Seguindo instruções, dirigem-se todos para a casa do vice-
presidente da UNITA, António Dembo. Por volta da meia-noite entra o
brigadeiro Delfim Kalulu Inácio, guarda-costas de Savimbi, trazendo
na mão alguns papéis. Com uma expressão séria, Kalulu informa os
presentes que Jonas Savimbi está com uma grave crise de arritmia
cardíaca, e receia morrer no decurso dessa mesma noite. Assim, diz-
lhes, redigiu um testamento. Entrega os papéis a Dembo e pede-lhe
que os leia.
Abel recorda-se de que o documento era composto por uma
primeira parte, na qual Jonas Savimbi definia a liderança temporária
do movimento, após a sua morte: António Dembo deveria substituí-
lo na presidência, passando Lukamba Gato para a vice-presidência.
Abel ficaria como secretário-geral e Samakuva como tesoureiro.
Chegava ao ponto de recomendar: «Façam o que fizerem, não
matem o Dembo. Quando as condições estiverem reunidas
organizem um congresso e elejam então o dirigente que quiserem.»
Um segundo capítulo dizia respeito a questões financeiras. Nele,
Savimbi explicava que possuía uma reserva em diamantes brutos,
equivalente a 125 milhões de dólares. Tinha ainda um cash flow em
notas, no valor de 25 milhões de dólares. Caso o dólar
desvalorizasse, deveriam entregar os diamantes a intermediários
libaneses ou israelitas e estes trariam mais dólares.
Explicava ainda não ter dinheiro em nenhuma conta pessoal no
exterior. Havia, sim, 5 milhões de dólares à guarda do presidente da
Costa do Marfim, Henri Konan Bédié, e outros 5 milhões de dólares à
guarda do rei de Marrocos, Hassan II.
Finalmente, Jonas Savimbi assegurava não possuir ele próprio
propriedade alguma, exceto a chamada Casa Branca, no Huambo,
que lhe fora oferecida por amigos portugueses. Essa seria a única
propriedade em nome dele.
Um terceiro capítulo era dedicado à família. Neste capítulo, Jonas
Savimbi enumerava todas as suas esposas, exigindo que a direção
as tratasse de forma idêntica, não obstante reconhecer o estatuto
especial de Catarina Ululi, a «Mãe Catarina», como era conhecida
por toda a gente, na UNITA.
— Nunca soube se Jonas Savimbi realmente esteve prestes a
morrer, ou se aquilo era alguma espécie de armadilha — diz Abel. —
O certo é que felizmente não morreu naquela noite. Nem nas
seguintes.
3

NOS ÚLTIMOS DIAS DE 1996, ABEL CHIVUKUVUKU E ISAÍAS SAMAKUVA são


novamente convocados para o Andulo pelo líder da UNITA.
Encontram-no sentado na sua biblioteca, a ler, aparentando uma
invulgar alegria e bom humor. Durante largos minutos Savimbi
mostra-lhes a biblioteca, e vai conversando sobre livros e a história
do continente.
— Quando Savimbi queria — lembra Abel —, podia ser um
homem verdadeiramente encantador.
A determinada altura, Jonas Savimbi liga para Paris, para falar
com os filhos. Passa o telefone a Abel, num gesto de grande
intimidade:
— Fala com os miúdos, Abel! Fala com eles!
Subitamente, levanta-se. Quer passear:
— Vamos dar uma volta, a pé, até à casa da minha esposa
Catarina.
Seguem todos, Abel de braço dado com Jonas Savimbi, o qual,
sempre gentil, sempre amável, mostra interesse pela vida e pelas
opiniões do jovem brigadeiro. Entram, e sentam-se na sala. O velho
líder pede a Kalulu que traga cervejas (não consome nenhuma
bebida que não venha da sua própria casa), e bebem, enquanto
discorrem sobre trivialidades. Então, de repente, Savimbi aponta o
dedo ao peito de Abel e dispara:
— O Samakuva é um agente dos ingleses na UNITA. Só que o
Samakuva não quer o meu lugar. Já tu, és um agente dos
americanos e, ao contrário do Samakuva, queres o meu lugar! Tu
queres o meu lugar, sim, queres o meu lugar!
Como sempre acontecia, a bebida torna-o mais loquaz, mais
agressivo, mais furioso. Fala durante largos minutos, diante do
silêncio aterrorizado de Mãe Catarina, de Samakuva e dos
seguranças de Savimbi. Quando finalmente se cala, já Abel, que
também bebera para além do razoável, está com os nervos eriçados
e o verbo solto:
— Este é o pior dia da minha vida — diz, tentando controlar o
tom de voz. — Eu achava que eras um génio, mas afinal de génio
não tens nada. Porque se tivesses um bocadinho de inteligência já
terias percebido, analisando a minha carreira, que eu nunca poderia
ser teu adversário. Talvez não tenhas reparado, porque desde que
entrei na UNITA, em 1976, quase todas as minhas funções têm sido
de adjunto de alguém. Fui, nas comunicações, adjunto do Mecre. Saí
do interior de Angola, fui para Kinshasa, adjunto do Kilé. Foi preciso
o Kilé ser transferido para eu assumir maiores responsabilidades. Saí
de lá, de Kinshasa, expulso pelo presidente Mobutu, e fui para a
Jamba como adjunto do general Wambu. Depois, o senhor tirou-me
da Jamba para Lisboa, como adjunto do Sakala. Saí de Lisboa para
Londres, adjunto do Samakuva. Tiraste-me de Londres e me
mandaste para Washington, adjunto do Jardo. Tiraste-me de lá para
Nova Iorque, fiquei chefe, mas sob tutela do Jardo. Fui para Luanda
como adjunto do Salupeto…
Jonas Savimbi não responde, estudando-o, com o rosto fechado,
enquanto ele fala. Na sala, estão todos hirtos e mudos, como
estátuas. Os guarda-costas de Jonas Savimbi trocam olhares
ansiosos, depois miram o chefe, esperando um sinal para caírem
sobre Abel e o arrastarem dali. O brigadeiro, porém, continua a falar,
numa excitação crescente.
— Foi preciso o Tony da Costa Fernandes fugir, para eu assumir o
cargo de secretário dos Negócios Estrangeiros. Eu até poderia ter
ficado frustrado. Contudo, percebi que numa equipa é preciso contar
com as qualidades de todos. Mas eu é que quero lhe derrubar? A
você, que tem tropas, guarda-costas, polícias?!
Jonas Savimbi atira a cabeça para trás, como se tivesse
adormecido, e começa a ressonar. Abel prossegue, enfático:
— Hei de provar-te que enquanto estiveres em vida não vou
querer o teu lugar.
Solta esta última afirmação e cala-se, exausto. Durante um
terrível instante, ninguém se atreve a dizer nada. Finalmente, Mãe
Catarina, quase em prantos, sacode o marido:
— Por favor, deixa-os ir embora, marido, deixa-os ir embora…
Savimbi desperta, ou finge despertar. Volta-se, então, para Isaías
Samakuva:
— E tu, o que tens tu a dizer?
Samakuva, aflito, tenta justificar-se, negando trabalhar para os
ingleses. Savimbi interrompe-o:
— Eu ouvi muito bem o que o Abel disse, já no fim, que
enquanto eu estiver vivo, posso contar com a lealdade dele… Então,
quero propor um pacto ao Abel: prova-me a tua lealdade, e eu
provo-te que sou teu amigo.
4

NA SEQUÊNCIA DA TUMULTUOSA CONVERSA COM JONAS SAVIMBI, e do


imprevisto acordo de paz entre os dois homens, Abel Chivukuvuku é
nomeado presidente do grupo parlamentar da UNITA. Em discussões
posteriores, Savimbi e os restantes dirigentes do movimento
escolhem quem deverá integrar o futuro Governo de Unidade e
Reconciliação Nacional (GURN).
— Para o GURN escolhemos militantes de primeira linha — diz
Abel. — Para o parlamento, nem tanto.
Jonas Savimbi quer que as famílias dos dirigentes selecionados
para o GURN e daqueles que estarão como deputados no parlamento
permaneçam nas áreas controladas pelo movimento rebelde. Abel,
contudo, decide contrariar estas regras e levar a família consigo para
Luanda. Assim, vai ter com o general Vinama e pede-lhe que
informe Jonas Savimbi desta decisão. Vinama roga-lhe que desista
de tal ideia:
— Por favor, Abel, não faça isso…
— Não estou a pedir um conselho. Estou a dizer que comunique
a minha decisão ao Dr. Savimbi…
Alguns dias mais tarde, o general Vinama diz-lhe que Savimbi
não respondeu à demanda, e que, na sua opinião, Abel não deveria
insistir. O brigadeiro encolhe os ombros. No dia previsto para a
viagem, pede a Victória que arrume as malas. Já com o avião da
Unavem (Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola)
pousado na pista, solicita a Savimbi uma audiência em privado.
— Sozinho mesmo, ou o Gato pode ouvir? — pergunta Savimbi.
— Não tenho problema que o Gato ouça…
— Diz então…
— Não sei se o general Vinama já lhe comunicou, mas eu tomei a
decisão de levar a minha família para Luanda…
Jonas Savimbi recebe a notícia sem demonstrar o menor sinal de
surpresa ou irritação:
—Tudo bem, Abel, leva a mulher e os filhos, não há problema.
Deixa-me só dar-te algum dinheiro para que possas sustentá-los…
Assim, Abel regressa a Luanda com a esposa e os dois filhos
pequenos, instalando-se todos numa suite do Hotel Presidente.
Pedro Chivukuvuku, o filho mais velho de Abel e de Victória,
lembra-se bem daqueles dias:
— Eu e o meu irmão dividíamos um quarto. Íamos ao colégio,
voltávamos e ficávamos no quarto a estudar ou a ver bonecos.
Também comíamos no hotel.
A suite era paga pelo governo angolano, que se comprometera a
devolver as casas e apartamentos confiscados aos dirigentes da
UNITA após os dramáticos acontecimentos de 1992 — o que nunca
chegou a acontecer. Meses mais tarde, Abel e a esposa comprariam
uma vivenda, em Luanda, financiada por Valentim Amões, na qual
residem até aos dias de hoje.
No dia 7 de abril de 1997, os deputados da UNITA tomam lugar no
parlamento. Quatro dias depois, o GURN é empossado — na presença
do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan — integrando
elementos de todos os partidos com representação parlamentar:
MPLA, UNITA, PRS, PLD, PDP-ANA, PRD e PAJOCA.
Muitos dos governantes dos partidos minoritários que integraram
o GURN recordaram aquela época, em diversas entrevistas, uma
década mais tarde, queixando-se de se te­­rem sentido discriminados,
vigiados e impedidos de desempenhar cabalmente as respetivas
funções.
Outros, porém, mostraram-se menos pessimistas. Victorino Hossi,
por exemplo, que foi ministro do Comércio, indicado pela UNITA, tem
uma visão diferente:
«O que eu retenho da minha passagem pelo GURN, em primeiro
lugar, foi a boa intenção de criarmos um governo de unidade e de
reconciliação nacional, que servisse de esteio para aquilo que era o
desejo de todos os angolanos, que servisse de exemplo de
reconciliação, e que fizesse com que as populações todas se
sentissem verdadeiramente representadas num todo.» As
declarações de Victorino datam de abril de 2007, numa entrevista à
Rádio Voz da América (VOA). Além disso, afirma, nunca ninguém
dificultou o seu trabalho: «Tive oportunidade de mostrar um
trabalho que era necessário fazer. Identifiquei eu mesmo o que era
prioritário e, independentemente da situação em que vivíamos, tive
poderes e autoridade para exercer o meu mandato sem limitações.
Creio que foi bom ter dado o contributo que dei à reconciliação
nacional. Pessoalmente, acho que foi interessante, foi uma
experiência bonita e única, conheci mais gente, tanto da UNITA como
do MPLA e, por conseguinte, foi uma experiência gratificante.»
5

APENAS TRÊS SEMANAS APÓS TER TOMADO POSSE COMO DEPUTADO, Abel
Chivukuvuku é de novo convocado para o Andulo, juntamente com
Isaías Samakuva e Aniceto Kapapelo. Jonas Savimbi recebe-os aos
três, em simultâneo. Conversam placidamente sobre a experiência
dos últimos dias e, depois, cada qual regressa aos respetivos
alojamentos. Ainda nessa noite, Abel apercebe-se de que Savimbi
mandara chamar uma segunda vez Samakuva e Kapapelo, para
conversas separadas. A ele, ignorara-o completamente.
Na manhã seguinte, os três homens retornam a Luanda. Na casa
onde vivia Isaías Samakuva os americanos tinham instalado um
sofisticado sistema de comunicações, de forma a que os dirigentes
da UNITA pudessem conversar com Jonas Savimbi sem serem
escutados pelos serviços secretos governamentais.
— Normalmente, o velho Jonas chamava os três: eu, o Kapapelo
e o Samakuva — recorda Abel. — Ele repetia sempre as mesmas
instruções a cada um de nós. Um dia chamou-nos e lá fomos. O
mais-velho Samakuva foi o primeiro a falar e percebi logo que
alguma coisa estava mal. Lembro-me do Samakuva muito tenso,
repetindo: «Desculpe, Dr. Savimbi, mas isso não é verdade!»
Finalmente, Isaías Samakuva desliga, visivelmente perturbado.
Pede então aos outros dois homens que se sentem com ele na sala.
Diz-lhes que Jonas Savimbi estivera a conversar com o presidente do
Gabão, Omar Bongo, o qual se deslocara a Luanda para assistir à
tomada de posse do GURN.
«Já perdeste todos aqueles teus homens», terá dito Bongo a
Savimbi. «Eles estão a fazer outro caminho.»
Segundo Samakuva, o líder da UNITA, muito nervoso, insistira
várias vezes na acusação de Bongo:
— Vocês estão a fazer outro caminho? Estão mesmo a fazer outro
caminho?!
Jonas Savimbi também teria dito a Samakuva que confiava nele,
mas não em Abel.
— Se o Abel fizer alguma coisa, por favor, você, Samakuva, fica
fora disso.
Abel Chivukuvuku escuta a narrativa de Samakuva, com os
nervos à flor da pele:
— Foi mesmo isso que o velho disse?
— Foi…
— Podes repetir?
Isaías Samakuva volta a repetir tudo o que Jonas Savimbi lhe
dissera.
— Está bem, se o caso é esse, então a desconfiança do velho em
relação a mim não vai passar nunca. E eu conhe­­ço os factos da vida.
Um dia destes acabarei assassinado. Comunique ao Dr. Savimbi que,
a partir de hoje, me demito de presidente do grupo parlamentar. Se
ele autoriza que eu continue como deputado, continuo. Se não,
demito-me como deputado. Se ele autoriza que continue como
membro da UNITA, continuo. Se não autoriza, nesse caso saio da
UNITA.
— Queres mesmo que comunique isso? — pergunta Samakuva,
assustado.
— Comunica!
Samakuva comunica. No dia seguinte, Jonas Savimbi manda um
avião para o levar até ao Andulo. Mal regressa, Samakuva procura
Abel:
— O Dr. Savimbi não aceita nenhuma das tuas posições.
Continuas presidente do grupo parlamentar. Continuas deputado e
membro da UNITA. Ele pediu-me que te entregasse vinte mil dólares.
Quer que tu vás até à África do Sul, descansar, desanuviar um
pouco. Faz isso. Depois, então, voltamos a conversar.
Nos meses seguintes, multiplicam-se as pressões para que Abel
se reúna, no Andulo, com o líder da UNITA.
— Veio o Sakala, o Correia Victor. Todos me tentaram convencer.
O general Vinama falou comigo, não aceitei. Fa­­miliares insistiram. Os
meus tios dispuseram-se a acompanhar-me na viagem: «Sobrinho,
vamos contigo, e voltamos contigo.» Recusei sempre.
O general António Dembo preside a uma reunião demorada na
sede da UNITA em São Paulo. Começam a falar às dez da manhã.
Sete horas mais tarde, Abel sente-se disposto a ceder e aceita viajar
para o Andulo. Então, quando saem para o corredor, e sem que
ninguém mais os ouça, Dembo trava-o por um braço enquanto lhe
diz, baixando a voz:
— Se eu estivesse no teu lugar, faria o que estás a fazer.
6

POUCO A POUCO, CRESCE A CONVICÇÃO, DENTRO E FORA DO MOVIMENTO,


de que Abel Chivukuvuku está em processo de rutura irreversível
com Jonas Savimbi. Em consequência, o líder do grupo parlamentar
da UNITA vai perdendo autoridade no interior do seu próprio partido,
tanto mais que muitos deputados se deslocam ao Andulo, vez por
outra, para conversarem com o Jaguar Negro dos Jagas. O grupo
divide-se: uns apoiam Abel, outros colocam-se abertamente contra
ele.
A 26 de junho de 1998 cai um avião ao largo da Costa do Marfim.
Mais uma vez, a queda de uma aeronave irá mudar a vida de Abel
Chivukuvuku. Neste caso, contudo, Abel não seguia dentro do avião,
e essa queda terá consequências graves para a vida de milhões de
angolanos. Dentro do aparelho estava um académico, político e
diplomata ma­­liano de 59 anos, Alioune Blondin Beye, muito popular
em Angola, pois era, desde junho de 1993, o representante especial
do secretário-geral das Nações Unidas no país.
As delicadíssimas engrenagens do processo de paz, já tão
danificadas nos últimos meses, quebram-se de vez. Em agosto,
cansado, e descrente de tudo, Abel decide tirar umas longas férias
com a família. Seriam as suas primeiras férias, desde os tempos de
estudante, no Huambo. Reserva quartos em três hotéis, em Lisboa,
Paris e Londres. A partida estava prevista para a noite de 28 de
agosto, por pura coincidência, a data de aniversário natalício do
presidente José Eduardo dos Santos.
Nessa tarde, o líder da bancada parlamentar da UNITA recebe
convite para jantar no palácio, com o presidente da República. Como
o jantar estava marcado para as 20 horas, e o avião só levantaria
voo perto da meia-noite, Abel pede a um dos seus funcionários que
despache as malas e adiante o check-in.
Está a vestir-se para o jantar, quando recebe uma chamada do
funcionário que enviara ao aeroporto. O homem parece confuso,
após ser confrontado com uma situação inacreditável:
— Mano Abel, não fiz o check-in porque o mano Abel está
interdito de sair do país.
A notícia enfurece Abel. Por um lado, o presidente José Eduardo
dos Santos convida-o para a festa de aniversário; por outro proíbe-o
de sair do país. Abel desiste de ir à festa e, no dia seguinte, mal
amanhece, bate à porta da residência do ministro do Interior,
Fernando da Piedade Dias dos Santos.
— Então, vocês proíbem-me de sair do país?
Nandó esforça-se por acalmar o amigo:
— Abel, fica só calmo. Vamos tratar de tudo.
— Não! Se não querem que eu saia, não saio mais. Fico mesmo
aqui.
Nos dias seguintes compreende os motivos por que o haviam
impedido de sair. Os estrategas do MPLA estavam então muito
ocupados a criar a chamada UNITA Renovada e, conhecedores das
divergências entre Savimbi e Abel, acreditavam que o conseguiriam
convencer a aderir ao movimento.
A participação do MPLA na criação da UNITA Renovada foi
confirmada pelo general Higino Carneiro numa entrevista ao
programa Café da Manhã, da Rádio Luanda Antena Comercial (Rádio
LAC), a 7 de fevereiro de 2023:
«Eu próprio estive envolvido nisso. A intenção era isolar o
Savimbi. Optaram pelo Jorge Valentim, que depois também se sentiu
amedrontado, e acabou por ser o Eugénio Manuvakola a dirigir o
movimento.»
Abel Chivukuvuku reconhece ter sido muito pressionado para
integrar o falso partido. Personalidades ligadas ao regime angolano
pressionaram Abel para que integrasse a UNITA Renovada. Primeiro,
com promessas, depois com ameaças. O líder do grupo parlamentar
da UNITA resistiu a todas as pressões:
— Alguns colegas, como o general Demósthenes Chilingutila e o
general Jerónimo Ngongo, que depois viriam a ocupar lugares de
direção na tal UNITA Renovada, foram ter comigo. Nessa ocasião eu
estava no Hotel Presidente, onde residia, com o engenheiro Mines
Tadeu. Muitos deles, generais. Explicaram-me que precisavam
encontrar saídas senão iríamos morrer todos. Eles achavam que a
guerra iria regressar, e que seria pior do que em 1992. Disse-lhes
que aquela análise estava errada. Em 1992, nós entrámos armados
nas cidades, estávamos todos armados, e o governo tinha alguma
legitimidade para agir contra homens armados. Agora não. Agora,
até estamos no parlamento. Estamos no governo! Não acredito e
não participo nisso.
Também Isaías Samakuva o procura, muito inquieto:
— Abel, com isso da UNITA Renovada, se não alinharmos seremos
os alvos principais. É melhor sairmos do país…
— Com você é fácil, porque o senhor tem a sua família em
Londres — contesta Abel. — Mas a minha mulher e filhos estão aqui,
comigo. Além disso não conseguimos sair. Estamos interditos de
viajar.
Nessa época, Abel e a família ainda viviam no Hotel Presidente. A
vivenda que haviam comprado estava em obras. Apesar disso,
sentindo-se vulneráveis no hotel, decidem mudar-se para a casa em
setembro de 1998.
No dia 2 de outubro, Victória diz ao marido que vai sair no carro
dele:
— Foi de manhã muito cedo. Decidi ir comprar peixe aos
pescadores da Ilha. Peixe fresco. Chamei o motorista… Naquela
noite já havíamos notado algo estranho. O Abel era deputado e tinha
direito a ter um polícia ao seu serviço, mas, nessa noite, esse polícia
não apareceu. Estava o motorista, e eu no banco ao lado. Eles
devem ter pensado que o Abel iria no banco de trás, como de
costume. Quando íamos a sair, vi, do outro lado da estrada, um
senhor com um Motorola. Achei um pouco estranho... Fiquei
desconfiada. Instantes depois surgiu um carro na direção contrária.
Imagino que o homem do Motorola estivesse ali, diante da nossa
casa, para informar a hora em que o nosso carro saísse. Dispararam
seis ou sete tiros contra nós, com uma arma com silenciador. O que
ouvimos foi apenas uns estalidos, como se o motorista estivesse a
pisar cacos de garrafa. Foi quando um outro guarda, de um dos
vizinhos, nos fez sinal para parar. Parámos. «O vosso carro está todo
furado!», gritou o guarda.
Victória lembra-se de ter ido acordar o marido. Chamaram a
Polícia, Abel ligou a alguns amigos e, minutos depois, a casa enche-
se de gente, entre embaixadores, membros do governo e políticos
da oposição. A embaixadora de Israel insistiu para que Victória e os
dois meninos passassem o dia na casa dela. Só regressam ao
anoitecer.
Abel está convencido de que o atentado foi organizado pelos
serviços secretos angolanos:
— Os serviços de segurança tinham estudado a minha rotina,
sabiam que eu costumava sair com o carro da garagem, com o
motorista e o segurança ao lado dele. Eu viajava sempre atrás.
Então puseram alguém de sentinela, junto da nossa casa, e
colocaram um segundo carro, com atiradores, um pouco mais à
frente. E dispararam para o lugar onde era suposto que eu me
encontrasse. Todas as balas atingiram o assento de trás.
O dirigente da UNITA convoca jornalistas e membros do corpo
diplomático para denunciar o atentado. Especialistas americanos
consultados pelo movimento do Galo Negro asseguram que a
tentativa de assassinato foi obra de profissionais competentes.
Disparar a partir de um carro em movimento para um outro veículo
também em movimento, atingindo o alvo, é um desafio que só
atiradores muito experientes e bem treinados conseguem levar a
cabo. Além disso, teriam sido utilizadas armas com silenciadores.
Com o apoio da embaixada de um país europeu, que prefere não
nomear, Abel Chivukuvuku obtém passaportes falsos para a mulher e
os dois filhos menores. Depois embarca-os num voo com destino à
África do Sul. Mal o avião abandona o espaço aéreo angolano, liga
para Nandó:
— Meu amigo, a minha esposa e as crianças foram-se embora.
Partiram.
— Partiram?! Essa agora, mas partiram como?
— Só quero te dizer que já partiram!
Em entrevista que me concedeu, na manhã do dia 22 de maio de
2023, em Luanda, Nandó assegurou-me que os serviços secretos do
governo angolano não tiveram rigorosamente nada a ver com o
atentado. Lembrou, porém, que naquela época Abel Chivukuvuku
tinha muitos inimigos na capital do país, tanto do lado do MPLA
quanto do lado da UNITA.
A partir da África do Sul, Victória seguiu com os filhos para
Lisboa. Na capital portuguesa aguardava-os a irmã de Victória,
Cândida Gato, uma das esposas de Jonas Savimbi. Dois meses mais
tarde, em dezembro desse ano, Abel Chivukuvuku junta-se à família.
Do Andulo, Jonas Savimbi envia uma mensagem a Abel, pedindo-
lhe que não regresse a Luanda. O antigo presidente português,
Mário Soares, que sempre dedicou grande atenção a Angola, roga-
lhe o mesmo, insistindo para que permaneça em Portugal. Abel,
porém, não pretende ficar na antiga metrópole. Voa de Lisboa para a
África do Sul e, decorridos alguns dias, está de novo em Luanda.
A situação, entretanto, agudiza-se. Em janeiro de 1999 são
detidos cinco deputados da UNITA, cujo único crime fora recusarem-
se a alinhar no projeto da Renovada. Daniel Domingos e Carlos
Kalitas são presos no dia 9. Onze dias depois é a vez de Carlos Tiago
Candanda, Manuel Savihemba e João Vicente Vihemba. Note-se que
no momento da sua prisão, Savihemba estava doente, acamado e
tomando soro, na sua residência. Horácio Junjuvili, que fora
representante adjunto da UNITA na CCPM, é mantido sob vigilância
policial num quarto de hotel.
Epílogo
1

JONAS SAVIMBI FOI TRAÍDO PELAS BOTAS. Muitos dos seus oficiais
também o atraiçoaram, bem como velhos aliados, em particular os
dirigentes norte-americanos que, a partir de certa altura, passaram a
olhá-lo mais como um estorvo do que como um trunfo.
As botas, contudo, terão sido quem conduziu a 20.ª brigada das
FAA, comandada pelo brigadeiro Simão Carlitos Wala, até ao lugar
exato onde se escondia o Jaguar Negro dos Jagas.
Os pisteiros das FAA conheciam a impressão deixada na lama
pelas botas do líder da UNITA, fabricadas por uma empresa francesa
de calçado, e que só ele usava. Assim, durante quase uma semana,
foram seguindo o rasto de Jonas Savimbi. Encontraram-no, descalço,
a beber chá com mel, numa floresta às margens do rio Luio, no
sudeste da província do Moxico.
Eram 15 horas do dia 22 de fevereiro de 2002. As versões sobre
o que aconteceu a seguir variam. Há quem assegure que Jonas
Savimbi, de 67 anos, conseguiu alcançar uma arma e reagiu a tiro,
antes de ser abatido com sete balas. Outros afirmam que terá sido
morto pelas costas, estando desarmado, o que iria contra as leis da
guerra e o direito internacional.
Certo é que as balas que o mataram terão sido as últimas que se
dispararam durante a longuíssima guerra civil angolana, dando
razão, em larga medida, a todos aqueles que viam em Jonas Savimbi
o principal obstáculo à paz.
As imagens do corpo caído do velho dirigente nacionalista, com
as calças desapertadas e as cuecas à mostra, correram mundo,
prejudicando muito mais a reputação daqueles que o perseguiram e
mataram do que a do defunto. Muitos se recordaram, ao verem
Savimbi, do cadáver de Ernesto Che Guevara, também ele exposto
pelos seus assassinos de forma grosseira e desrespeitosa.
2

ABEL CHIVUKUVUKU RESUME EM POUCAS PALAVRAS OS MESES QUE SE


SEGUIRAM ao assassinato de Jonas Savimbi:
— Veio a Comissão de Gestão da UNITA, com o Paulo Lukamba
Gato. Durante algum tempo manteve-se a cisão entre a UNITA e a
UNITA Renovada. Mas o Gato conseguiu juntar todos e abrir a UNITA à
democracia. Nós, na cidade, apoiámos o Samakuva, porque
achámos que o Gato estava psicologicamente debilitado. Além disso,
também nos parecia politicamente mais frágil…
Victorino Hossi concorda com Abel:
— Infelizmente, o Paulo Lukamba Gato não foi um grande
secretário-geral. Criou muitas inimizades e conflitos. Ainda por cima,
havia-se transformado numa espécie de porta-voz do radicalismo
contra o presidente José Eduardo dos Santos. Concluímos que o
Gato não seria melhor interlocutor naquela fase. Acreditávamos que
o Samakuva seria apenas transitório. Naquela época era minha
opinião que o próximo líder deveria ser o Abel.
Isaías Samakuva monta a sua equipa. Finalmente, procura Abel:
— O que queres fazer no partido?
Abel pensa um pouco:
— Quero ser o secretário para os Assuntos Eleitorais e
Constitucionais.
Nenhum partido possuía um cargo equivalente. Assim, o pedido
surpreende Samakuva:
— O que é isso?
— A minha função seria preparar o partido para as próximas
eleições.
No entendimento de Abel, a derrota militar desestabilizara
profundamente toda a estrutura partidária. Era necessário reavivar
os espíritos:
— Iniciei então uma série de conferências regionais.
Conseguimos realizar essas conferências em doze províncias, onde ia
acompanhado por vários dirigentes da UNITA, como Jaka Jamba,
Carlos Fontoura, Adalberto Costa Júnior, Franco Marcolino, Horácio
Jinjuvili, Dina Jamba, Silvestre Samy e outros. Creio que esse era o
programa mais dinâmico que o partido tinha na altura. Mais tarde,
por influência dos americanos, e graças ao seu financiamento,
criámos um outro programa, de formação em planeamento
estratégico. Ficámos dezoito meses nessa formação, que incluiu a
maioria dos dirigentes da UNITA, incluindo o então secretário-geral,
Mário Vasco Vatuva.
O movimento do Galo Negro tem dificuldades em adaptar-se aos
novos tempos. Rumores asseguram que os americanos pretendem
formar uma liderança alternativa — e, uma vez mais, surge o nome
de Abel. Irritado com as pressões, Abel demite-se de todos os
cargos.
O MPLA vence as eleições de 2008, com 81,76 por cento dos
votos emitidos. A UNITA, com apenas 10,36 por cento, contesta os
resultados, bem como todo o processo eleitoral, marcado por
inúmeras falhas. Observadores da União Europeia reclamam
igualmente da desorganização generalizada. No fim, contudo, a
oposição termina aceitando a estrondosa vitória do MPLA.
Abel Chivukuvuku não está entre os poucos deputados eleitos
pela UNITA. Os humilhantes resultados obtidos pelo movimento do
Galo Negro contribuem para o fortalecimento de correntes
contestatárias no seu interior. São muitos os militantes que procuram
Abel em busca de alternativas:
— Já não somos nada na UNITA. Vamos ficar assim?
O escritor Agostinho Mendes de Carvalho, figura histórica do
movimento nacionalista, muito respeitado quer dentro do seu
partido, o MPLA, quer pela sociedade civil em geral, procura
aproximar-se de Abel Chivukuvuku. O velho nacionalista, que se
tornou conhecido na literatura angolana com o pseudónimo de
Uanhenga Xitu, era um dos raros militantes do MPLA que se atrevia a
enfrentar José Eduardo dos Santos, de quem fora, nos remotos anos
1980, ministro da Saúde. Ao longo de vários almoços, Mendes de
Carvalho insiste com Abel para desafiar o presidente José Eduardo
dos Santos.
Na opinião do político e escritor, a criação de um forte movimento
opositor, poderia contribuir para regenerar o partido no poder,
enfrentar o vício da corrupção e fortalecer a democracia. Em
determinada altura, Mendes de Carvalho sugere a Abel que procure
o seu filho, o almirante André Mendes de Carvalho (Miau), que,
como o pai, vinha manifestando vigoroso descontentamento com a
acelerada degradação ética e moral do seu próprio partido.
— Levei cerca de um ano até tomar uma decisão — recorda Abel.
— Em dezembro de 2011 fiz um retiro no Mussulo na companhia do
meu amigo e ex-comandante da TAAG Adolfo Esteves, do engenheiro
Mines Tadeu e Victorino Hossi. Passei lá as festas. Uma das minhas
condições era a necessidade de recursos. Um dos meus sobrinhos,
um empresário muito bem-sucedido, garantiu-me que doaria até
dois milhões de dólares para o processo. Compreendi que chegara a
hora. No início de 2012 montei uma equipa que estruturou o
processo de formação de uma coligação de pequenos partidos, a
CASA-CE. Reuni-me com várias individualidades, de janeiro até março,
na minha quinta do Benfica. Finalmente, decidi abandonar a UNITA.
3

A CONVERGÊNCIA AMPLA DE SALVAÇÃO DE ANGOLA (CASA-CE), fundada a


3 de abril de 2012, começou por ser uma aliança entre quatro
pequenos partidos, tendo Abel Chivukuvuku como presidente.
A 31 de agosto de 2012 realizaram-se novas eleições em Angola,
e o MPLA voltou a ganhar, desta vez com 71,8 por cento dos votos. A
UNITA ficou em segundo lugar, com 18,7 por cento, e a CASA-CE, em
terceiro, com 6,0 por cento — e 8 deputados. O almirante Miau foi
nomeado presidente da bancada parlamentar do novo movimento
político.
Nas eleições seguintes, a 23 de agosto de 2017, o MPLA ganhou
com 61,5 por cento. A UNITA ficou em segundo lugar, com 26,7 por
cento, e a CASA-CE em terceiro, com 9,49 por cento e 16 deputados.
Em fevereiro de 2019 Abel Chivukuvuku foi afastado da liderança
da CASA-CE, sendo substituído por Miau. Chivukuvuku, que tomou
conhecimento da decisão através de notícias surgidas na imprensa
angolana, contestou a decisão, afirmando que a mesma não teria
«respaldo legal».
O antigo dirigente da UNITA optou então por criar um novo
partido, o PRA-JA Servir Angola, o qual, contudo, nunca conseguiu
reconhecimento oficial. Assim, em 2022, Abel decide concorrer às
eleições, marcadas para 22 de agosto, integrado na UNITA,
juntamente com outros companheiros do nunca legalizado PRA-JA
Servir Angola e dirigentes do Bloco Democrático, BD. Forma-se, pois,
uma coligação não oficial — dado que a legislação eleitoral angolana
não aceita coligações — entre a UNITA, o PRA-JA Servir Angola e o
Bloco Democrático.
Pela primeira vez na história da democracia angolana, os
principais partidos da oposição surgem unidos. O MPLA, pelo
contrário, apresenta-se dividido e fragilizado. João Lourenço, que
substituíra José Eduardo dos Santos em 2017, enfrenta vários
movimentos de contestação à sua liderança, o principal dos quais
envolvendo figuras (ainda) leais ao antigo presidente. Nessa altura,
Lourenço também já perdera o ímpeto renovador dos primeiros
meses do seu mandato, quando conseguiu seduzir uma larga parcela
da sociedade civil, com um discurso voltado para a reconciliação e
para o combate contra a elite corrupta.
A morte de José Eduardo dos Santos, a 8 de julho, em Barcelona,
torna ainda mais evidentes as divisões entre eduardistas e
lourencistas. Uma das filhas de José Eduardo dos Santos, a antiga
deputada Welwitschea dos Santos, chega mesmo a apelar ao voto
na UNITA.
A campanha eleitoral é intensa, particularmente em Luanda,
cidade gigantesca, frenética, habitada por uma vasta maioria de
jovens, sem memória dos tempos da guerra, e muito mais
reivindicativos e politicamente conscientes do que as gerações
precedentes.
Abel Chivukuvuku, candidato à vice-presidência da República,
distingue-se nos comícios da UNITA, com as suas canções em
umbundo, e os seus discursos vibrantes, nos quais denuncia as
fragilidades do governo e as fraturas no seio do partido no poder, ao
mesmo tempo que apela à união em torno de Adalberto da Costa
Júnior, o novo presidente da UNITA:
— Somos todos uma só equipa! — reafirma num desses
discursos. — Desta vez será a alternância! Foram quarenta e seis
anos de mentiras, de promessas não cumpridas. Foram quarenta e
seis anos de hipocrisia. Há menos de dois meses ainda diziam que o
antigo presidente era um marimbondo. Agora já choram, dizendo
que, afinal, era um homem bom. No dia 24 vamos demonstrar-lhes
que somos gente de bem. Vamos ganhar e eles continuarão a viver
como angolanos de primeira categoria, o que nos negaram durante
quarenta e seis anos.
Três dias após as eleições, e sem que a Comissão Nacional
Eleitoral (CNE) divulgue os resultados definitivos, o Movimento Cívico
Mudei, uma iniciativa do músico e ativista Luaty Beirão, dá conta da
sua contagem paralela, com menos de 100 mil votos contabilizados
num total de onze províncias, segundo a qual a UNITA teria ganho as
eleições, com 55 por cento dos votos, seguindo-se o MPLA, com 41
por cento. Os resultados oficiais, divulgados dias mais tarde,
contradizem o movimento de Luaty, que, aliás, nunca foi capaz de
concluir a sua contagem.
Estes resultados surpreendem a direção da UNITA, que, com base
em sondagens internas, e nas enormes multidões que haviam
comparecido aos seus principais comícios, acreditava numa vitória
expressiva: o MPLA alcança nova maioria absoluta, agora com 51,17
por cento dos votos. A UNITA, com 43,95 por cento, fica em segundo
lugar, muito distante de todos os restantes partidos, nenhum dos
quais, incluindo a CASA-CE, consegue mais do que 1 por cento.
Mas a UNITA vence em Luanda, com 62,25 por cento. É uma
vitória extraordinária, tendo em atenção que na capital se concentra
quase um terço de toda a população angolana. Além disso, Luanda
foi sempre o principal bastião do MPLA.
O movimento do Galo Negro contesta os resultados oficiais.
Contudo, nem a UNITA nem nenhum outro organismo ou instituição
consegue demonstrar a existência de fraude em larga escala. Os
deputados eleitos pelo MPLA e pelos partidos da oposição, num total
de 220, tomam posse a 16 de setembro. Entre eles, Abel Epalanga
Chivukuvuku.
A história de Abel Chivukuvuku não termina aqui. Como tantas
outras vezes, está apenas a recomeçar.
Agradecimentos

Este livro nasceu de um conjunto de entrevistas a Abel Epalanga


Chivukuvuku, realizadas ao longo de três anos. Agradeço-lhe pela
paciência, e sobretudo pela extraordinária franqueza e desassombro.
Estou muito grato a Maria Victória Chivukuvuku e a Pedro
Chivukuvuku. Muitos amigos me apoiaram neste projeto. Entre eles,
destaco o deputado Américo Chivukuvuku, o irmão de Abel, que me
acompanhou ao Huambo e ao Bailundo, onde visitámos o rei
Tchongolola Tchongonga, ao qual também agradeço, bem como a
todos os elementos da sua corte.
Agradeço também a Fernando da Piedade Dias dos Santos
(Nandó), Alcides Sakala, general Peregrino Wambu, general Artur
Vinama, Victorino Hossi, Simão Cacete, José Clemente Teixeira, e a
todas as restantes pessoas que aceitaram conversar comigo.
Agradeço ainda a Sérgio Guerra e a Alessandra Silveira, que, em
diversas ocasiões, me acolheram na sua casa, em Talatona, e me
deram todas as condições para que eu pudesse levar a cabo o meu
trabalho.
Breve bibliografia

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