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Da Contemporaneidade em Flavio de Carvalho Ana Maria Maia
Da Contemporaneidade em Flavio de Carvalho Ana Maria Maia
São Paulo
2012
FACULDADE SANTA MARCELINA
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM ARTES
(MESTRADO ACADÊMICO)
São Paulo
2012
2
Dissertação apresentada perante a seguinte banca examinadora:
__________________________________
__________________________________
__________________________________
3
Agradecimentos
À Capes, por ter-me concedido uma bolsa de pesquisa.
A minha orientadora, Lisette Lagnado, pela acolhida e pelo rigor.
4
Sumário
Resumo ……………………………………………………………………………... 10
Abstract …………………………………………………………………………….. 10
Introdução …………………………………………………………………………... 11
5
- MAM 60, Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris
3.2 Correspondências latino-americanas …………………………………..……… 122
6
Lista de Imagens
7
Imagem 20 - Entrada da mostra retrospectiva do MAM, com Projeto para o viaduto
do Chá, de 1934. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
Imagem 21 - Entrada de 100 anos de um revolucionário romântico, 1999. Fonte:
Denise Mattar.
Imagem 22 – Primeira sala da mostra 100 anos... Fonte: Arquivo Denise Mattar.
Imagem 23 - Detalhe da expografia que cita a montagem da primeira individual de
Flávio de Carvalho. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 24 - Réplica do cenário de Bailado Dorinha Costa com máscaras do Bailado
do Deus Morto ao fundo. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 25 – Totem de Flávio de Carvalho lançando o New Look, detalhe do cenário
do Bailado Dorinha Costa e cronologia ao fundo. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 26 - Mostra Desenho das ideias, 7a Bienal do Mercosul. Fonte: Fundação
Bienal do Mercosul.
Imagem 27 - Sala dedicada a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Fonte:
Fundação Bienal do Mercosul.
Imagem 28 - Série Trágica na área climatizada da 29a Bienal de São Paulo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 29 - Documentação da Experiência n° 2. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.
Imagem 30 – Registro da performance Divisor, de Lygia Pape, projetado ao fundo.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 31 - Fotografias da Experiência n°4 e Retrato de Sérgio Buarque de Holanda
ao fundo. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 32 - Cacique de Ramos, de Carlos Vergara. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.
Imagem 33 - Encenação da peça Bailado do Deus morto na 29a Bienal de São Paulo.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 34 - Imagem 33 - Abaporu na montagem final de Da Antropofagia a Brasília,
no MAB. Fonte: Arquivo do Museu de Arte Brasileira - Faap.
Imagem 35 - Imagem do New Look ao fundo da sala, por trás da maquete de Brasília.
Fonte: Arquivo do MAB - Faap.
Imagem 36 - Desvios de la deriva. Fonte: Flickr Museu Nacional Centro de Arte
Reina Sofia.
Imagem 37 - Mobiliário de Desvios de la deriva e lousas de aula da Escuela de
Valparaíso ao fundo. Fonte: Flickr MNCARS.
Imagem 38 – Em primeiro plano, o New Look instalado com o dispositivo criado por
Dominique Gonzalez-Foerster. Fonte: Flickr MNCARS.
8
Imagem 39 - Desenho e foto da Experiência n°3. Fonte: Pablo Leon de la Barra.
Imagem 40 - Perspectiva sobre a baía do Rio, Le Corbusier. Fonte: Pablo Leon de la
Barra.
Imagem 41 - Vitrine com cadernos de Juan Borchers. Fonte: Flickr MNCARS.
Imagem 42 - Morfologia, de Roberto Matta. Fonte: Pablo Leon de la Barra.
Imagem 43 - Documentação da Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.
Imagem 44 - Fotos de Brasília, A verdade andava nua e Experiência nº3. Fonte:
MAM-SP.
Imagem 45 - Rua Direita, de Claudia Andujar. Fonte: MAM-SP.
Imagem 46 - Videoclip e figurino de Ney Matogrosso. Fonte: MAM-SP.
9
Resumo
Abstract
The aim of this research is to review a bibliography of academic thesis and a history
of exhibitions that refer to Flávio de Carvalho creating original interpretations for his
production. What are the main "versions" of the artist narrated by critics, curators and
contemporary art history? Among a larger group of initiatives, the essay chose to
review academic thesis by Luiz Carlos Daher (1979) and Rui Moreira Leite (1987 -
1994) and curatorships by this last researcher (with Walter Zanini, at 17th São Paulo
Biennial, 1983 and alone, at MAM-SP, 2010), Denise Mattar (CCBB, 1999), Jorge
Schwartz (MAB, 2002), Luiz Camillo Osório and Annateresa Fabris (Oca, 2008),
Victoria Noorthoorn (7th
Bienal
do
Mercosul, 2009), Lisette Lagnado (Museu
Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2010), Inti Guerrero (MAM-SP, 2010) and
Agnaldo Farias and Moacir dos Anjos (29th Bienal de São Paulo, 2010). Their texts
and architectural statements about a body of work chronologically circumscribed in
modernity provide a basis for an observation of how the interpretive act can establish
other conceptual time frames for the work of art.
10
Introdução: Sobre os diferentes “Flávios de Carvalho” da história da arte
contemporânea brasileira
1
Estes e outros apelidos são listados por J. Toledo na introdução do livro O comedor de
emoções.
11
concedidas à imprensa e aos setores de documentação das instituições que sediaram
as mostras. As dissertações e teses escolhidas, por sua característica textual, mantêm-
se integralmente acessíveis para uma investigação posterior ao seu período de
realização. Já as curadorias de exposições, uma vez encerrado seu tempo de visitação,
demandam uma articulação de enunciados e vestígios do processo de concepção da
mesma, a ponto de se poder reconstruir o que o projeto conseguiu alcançar.
Vale mencionar que, das nove mostras reunidas neste trabalho, pude visitar
presencialmente apenas quatro. Vale também pontuar meu envolvimento profissional
com uma delas, a 29a Bienal de São Paulo, da qual fui assistente curatorial. Esta
experiência demandou um afastamento temporário das atividades acadêmicas, mas
gerou oportunidades de reflexão e conhecimento que certamente beneficiaram meu
percurso de pesquisa. Uma delas foi a ida ao Centro de Documentação Alexandre
Eulálio, na Universidade de Campinas, detentora de um vasto arquivo de livros,
jornais, fotografias e datiloscritos que pertenceram a Flávio de Carvalho.
2
Em “As tarefas do curador”, publicado na seção Em Obras da Revista Trópico.
(http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2974,1.shl) (visualizado em 17/12/11).
3
No texto introdutório do livro Histórias de Canibalismos, editado a partir do Núcleo
Histórico da 24a. Bienal de São Paulo, da qual o autor foi curador-geral. (Cf. HERKENHOFF,
1998, p. 23)
4
Cf. FERGUSON, GREENBERG, NAINE, 1996, p. 2.
12
dissertação perpassa o advento das curadorias, desde os anos 19805, e a formação de
um repertório para uma história de exposições ainda pouco teorizada no contexto
brasileiro.
Em 1985, para ocasião da 18a Bienal de São Paulo, este ideário fundamenta a
inclusão do artista na exposição coletiva Expressionismo no Brasil: heranças e
afinidades, que inicialmente seria curada pelo autor e, devido à sua morte, neste
mesmo ano, passa a ser assinada por Stela Teixeira de Barros e Ivo Mesquita.
5
Este é o marco inicial da história da curadoria no Brasil e também da cronologia de
exposições abordadas na dissertação. Em 1981, Walter Zanini apresenta-se como curador da
16a Bienal de São Paulo, inaugurando o uso do termo no país. Em 1983, ele e Rui Moreira
Leite curam a Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17a edição do evento.
13
Outro aspecto da trajetória do artista que ganha relevância na interpretação do
autor é a interdisciplinaridade. O Flávio de Carvalho definido por Rui Moreira Leite
tem “qualidade multímoda”, ganha contornos de um “artista total”6 e é apresentado
em sua segunda curadoria, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2010,
segundo uma premissa de convívio entre obras de diferentes linguagens.
6
O termo “artista total” aparece no título do livro (Flávio de Carvalho – artista total) publicado por
Rui Moreira Leite em 2008, pela Editora Senac.
14
Esta dissertação identifica um panorama de interpretações que enunciam o
artista como “expressionista”, “arquiteto midiático”, “artista total”, “revolucionário
romântico”, “homem nu”, “artista-arquiteto”, dentre outros. Ao valer-se de sua atitude
participativa mas sempre “inatural” em relação ao seu tempo, e observar como ela
motiva atos de aproximação e leitura como os aqui elencados, cujas iniciativas
distanciam-se em décadas da biografia do artista, o trabalho vislumbra a adequação de
Flávio de Carvalho ao que Giorgio Agamben define como “contemporâneo”: aquele
que estabelece “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao
mesmo tempo, dele toma distâncias”7.
15
O faz por entender que as considerações sobre esta trajetória aparecerão
oportunamente ao longo do texto, conforme sejam abordados os trabalhos teóricos e
curatoriais que as tematizam e que são aqui analisados. Desta maneira, esta
dissertação opta por vincular o assunto narrado a uma reflexão sobre as estruturas de
narração. Ressalta o lugar do autor e observa conteúdo, contexto e método
indissociadamente no processo de escrita histórica.
16
CAPÍTULO 1
17
1.1 Arquitetura e Expressionismo: da vanguarda européia ao “todos fazem, eu
não faço”
9
O autor foi docente do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto entre
maio de 1972 e dezembro de 1985. A dissertação apresentada em 1979 baseia-se em pesquisa
de Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP).
10
O Prof. Dr. Nestor Goulart Reis Filho leciona na FAU-USP, no departamento de História e
Teoria da Urbanização, do Urbanismo e da Arquitetura.
18
anímicas do espaço social. A defesa desta agenda o faz divergir de um racionalismo
funcionalista que predomina na arquitetura oficial brasileira das próximas décadas.
11
Brazil Builds: Architecture New and Old é um projeto de 1942, composto por exposição e
livro, com curadoria de Philip Goodwin, no MoMA. Com o intuito de divulgar a produção
arquitetônica brasileira, principalmente a que desponta no país após a concepção e o início da
construção do edifício do Ministério da Educação e da Saúde (1936 – 1945), no Rio de
Janeiro, o projeto reúne trabalhos de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy,
Rino Levi, Vilanova Artigas, dentre outros. Após a exibição em Nova York, Brazil Builds
itinerou, entre 1943 e 1945, para Londres e várias cidades da América do Norte e do Brasil.
12
Podemos tomar como marco inicial do trabalho dessa geração a encomenda do projeto do
Ministério da Educação e Saúde (MES) do Rio de Janeiro, pelo governador Gustavo
Capanema, para Lúcio Costa. O arquiteto conta com a consultoria de Le Corbusier e convoca
um grupo de ex-alunos da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), que dirigira entre 1930 e
1931, dentre eles Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e
Oscar Niemeyer. A construção do edifício começa em 1937, chega a um primeiro acabamento
em 1942 (quando é fotografada para o projeto Brazil Builds) e é inagurado pelo presidente
Getúlio Vargas em 1945.
13
O Prof. Dr. Abílio Guerra, da FAU Mackenzie, no artigo “História da arquitetura brasileira:
pesquisas monográficas e trabalhos panorâmicos“, apresentado no I Encontro Nacional da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, no Palácio
Gustavo Copanema, Rio de Janeiro, entre 29 de jovembro e 3 de dezembro de 2010, lista
trabalhos acadêmicos realizados sobre os exponentes da arquitetura moderna brasileira:
“Oscar Niemeyer (VALLE, 2000; CASTOR, 2004; QUEIROZ, 2007), Affonso Eduardo
Reidy (KAMITA, 1994; CENIQUEL, 1996), Vilanova Artigas (BUZZAR, 1996; THOMAZ,
1997; CORREA, 1998; SUZUKI, 2000; IRIGOYEN DE TOUCEDA, 2000; COTRIM,
2008), Rino Levi (ANELLI, 1990; MACHADO, 1992; ANELLI, 1995; GONSALES, 2000;
ARANHA, 2003; VILLELA, 2003), Oswaldo Bratke (CAMARGO, 2000)13, Lucio Costa
(MARTINS, 1987; GUERRA, 2002; CARRILHO, 2003; RIBEIRO, 2005) e Roberto Burle
Marx (OLIVEIRA, 1998; DOURADO, 2000)” (GUERRA, 2010, p. 4-5).
19
No entanto, no mesmo ano em que Daher finaliza a dissertação, é publicado o
primeiro livro de cunho historiográfico14, Arquitetura brasileira, de Carlos Lemos.
Em 1981 aparecem Quatro séculos de arquitetura no Brasil, de Paulo F. Santos, e o
manual Arquitetura contemporânea do Brasil, de Yves Bruand, que, embora defesado
em alguns aspectos, é usado até hoje como bibliografia básica de história da
arquitetura brasileira.
14
Apesar de não ter este perfil historiográfico, o livro Quadro da Arquitetura no Brasil, de
Nestor Goulart Reis Filho, merece menção. Editado inicialmente em 1970, reúne artigos do
autor sobre arquitetura brasileira publicados entre 1963 e 1969 na revista especializada
Acrópole.
15
O Prof. Flávio Motta trabalhou com os alunos Carlos Henrique Heck e Marta Rosseti
Batista, seus orientandos à época.
20
linhas de investigação (Flávio de Carvalho e a arquitetura moderna e Flávio de
Carvalho e o expressionismo) inauguradas por Daher. Apesar de não serem o foco
principal deste capítulo, elas voltarão a ser mencionadas adiante.
16
Daher afirma ter feito na dissertação “observações modestas sobre suas experiências
antropológicas e psicológicas, evitando comentários pitorescos ou anedóticos semelhantes aos
que encontramos em centenas de artigos jornalísticos.” (DAHER, 1982, p. 5)
21
Mário de Andrade é a voz do modernismo mais autorizada daquela
dissertação. Seus depoimentos aparecem recorrentemente ao longo do texto, seja
porque refletem como a restrita ala vanguardista da sociedade percebia e celebrava a
atuação de Flávio de Carvalho, seja porque comprovam o dilema entre aderir a uma
agenda internacional e reinventá-la segundo vocações brasileiras. Na passagem citada,
o escritor demonstra sua atualização em relação ao expressionismo alemão e o desejo
de desdobrar suas premissas segundo as características e urgências do contexto local.
22
aspecto psicológico e mórbido da arte moderna”17, de 1937, e “Um plano de seis
anos”18, de 1939.
Tendo estudado na França e na Inglaterra dos 12 aos 23 anos, ou seja, de 1911 a 1922,
Flávio de Carvalho, assim como grande parte dos modernistas brasileiros, vivencia de
perto o debate vanguardista europeu e, no Brasil, atua como mediador e repropositor
de seu conteúdo programático frente às especificidades do meio artístico local. Em
dois momentos de sua trajetória como animador cultural na cidade de São Paulo, o
primeiro no Clube dos Artistas Modernos, em 1931, e o segundo nos Salões de Maio,
entre 1937 e 1939, promove exposições e debates sobre tendências vanguardistas e
cultiva um rico intercâmbio, tanto indo em viagens de pesquisa para a Europa quando
trazendo artistas para curtas estadias no Brasil.
17
O texto foi publicado no Diário de S. Paulo em 22 de junho de 1937 e apresentado como
conferência na ocasião do I Salão de Maio, do mesmo ano.
18
Publicado na primeira edição da Revista Anual do Salão de Maio (RASM), São Paulo,
1939, s.p.
23
Londres quando é declarado o estado de beligerância, em 1914, e ele, sem portar seu
passaporte, é impedido de voltar das férias para casa.
24
constitutiva digressão a partir do Impressionismo: “A impressão é um movimento do
exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito).
A expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que se
imprime no objeto”. (Cf. ARGAN, 1992, p. 227).
25
Em ambos os casos, e talvez como característica geral, o autor nota um amplo
leque de variações, a experiência dos limites da forma, a “recusa de uma sintaxe a
priori” (Cf. DAHER, p. 19-20). Ou seja, a ausência de um conjunto de características
definitivas que se possa assumir como “estilo de época”. Os movimentos seminais de
vanguarda histórica, dentre eles o Expressionismo, refutam o esteticismo em favor da
“disponibilidade dos meios artísticos” (Cf. BÜRGER, p. 49). Neles, diminui o caráter
conteudístico da obra de arte e dilata-se o âmbito da experimentação formal.
19
Cf. DAHER, 1979, p, 36.
26
Na busca pela sensibilização e por um sentido de existência pleno, que plasme na
criação a união de matéria e espírito, predomina o vigor do gesto como característica
comum aos diversos grupos expressionistas, tanto no contexto inicial alemão quando
no de interlocutores que foram sendo identificados em outros lugares, a partir
principalmente de 191220. Nas pinturas de Kandinsky; na retomada dos pós-
impressionistas Van Gogh e Munch; de Kokoschka, Nolde e De Kooning, o
movimento de corpo inteiro, e não mais apenas de punho, carrega a pincelada sobre a
tela. Daher observa que os sinais de vitalidade e reação, dentre eles o gesto e o grito,
ainda que nem sempre comunicáveis ou compreensíveis, “oferecem ao espectador
uma experiência compulsiva de uma outra realidade, uma natureza diversa”. (Cf.
DAHER, 1979, p. 29)
27
O projeto de arquitetura expressionista empreende uma “transposição total de
uma ideia pessoal de trabalho”, encara o desejo de “plasmar as paredes externas de
modo violento, agressivo, sem deixar nenhum ponto da superfície intocado pela
vontade do autor” (KIRCHNER in DAHER, 1979, p. 53). Lançando mão de postura
neo-gótica e repertório mediaval, as edificações expressionistas demonstram senso
decorativo e alguma irracionalidade, se comparadas com o racionalismo clássico de
um arquiteto moderno como Le Corbusier.
28
Daher pontua que as estruturas do espaço não são dadas a priori, mas sim fundadas
no projeto. Haja visto seu desejo construtivo, que cria uma complexidade técnica, é de
se imaginar o quanto a arquitetura expressionista tenha sido impactada pela crise
econômica do pós-guerra. Se no geral as novas construções já estavam sujeitas a
diminuir em quantidade, quem dirá as de cunho expressionista, com todos os riscos e
excedentes envolvidos em sua realização.
29
agitações sociais, trazendo ao nível da consciência literária
inspirações populares comprimidas, esboçavam-se também aqui,
embora em miniatura. No campo operário, com as grandes greves de
1917, 18, 19, 20, em São Paulo e no Rio a fundação do Partido
Comunista em 1922. No setor burguês, com a fermentação política
desfechada no levante de 1922, mais tarde na revolução de 1924.
Finalmente, não se ignora o papel que a arte primitiva, o folclore, a
etnografia tiveram na definição das estéticas modernas, muito
atentas aos elementos arcaicos e populares comprimidos pelo
academicismo. Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à
vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado
recente. (CÂNDIDO in DAHER, 1979, p. 79)
30
Por hora, para fazer jus à narrativa de Daher, vale apenas mencionar alguns
outros expressionistas participantes desse evento inaugural da modernidade cultural
brasileira, dentre eles Vicente do Rêgo Monteiro, devido a suas pinturas de temática
indigenista; e Antonio Garcia Moya, um dos poucos representantes da seção
arquitetônica da Semana, com desenhos de projetos de motivações pré-colombianas.
22
Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Retrato da Arte Moderna. São Paulo: Departamento de Cultura,
1948.
31
O autor destaca ainda a atuação política do Teatro Oficina, dirigido por José
Celso Martinez, durante a ditadura militar. Esta menção temporalmente distanciada
do contexto inicial de um expressionismo brasileiro, entre o fim dos anos 1920 e
1940, é justificada (Cf. Ibid., p 108) pela afinidade do grupo teatral com um programa
vinculado à gestualidade do corpo em cena, à defesa da integridade do indivíduo e de
sua liberdade de expressão em tempos de censura. Daher assume estes atributos como
potencialmente expressionistas e termina com o Teatro Oficina a constelação de
referências que cercam a relação de Flávio de Carvalho com o Expressionismo.
Neste texto e no “Plano de seis anos”, de 1939, o artista expõe sua compreensão sobre
os movimentos vanguardistas modernos, suas características e os estágios que cada
um assume num fluxo de desenvolvimento aparentemente contínuo, embora inter-
dependente, de “revolução” – ou transformação, desenvolvimento – da arte.
23
O texto foi publicado no Diário de S. Paulo, em 22 de junho de 1937.
32
O Expressionismo está localizado no segundo estágio desse fluxo descrito por
Flávio de Carvalho, após o Impressionismo e junto com o Dadaísmo e o Cubismo.
Nos três movimentos, surgidos numa Europa em guerra e conseqüentemente
compatíveis com os períodos históricos de mudança e perigo, “a emoção transpira em
osmoses através de todos os poros do quadro, a forma torna-se claramente secundária
– sangue, angústia sofredora e morte são fontes de prazer”.
As chagas e feridas desse estágio indicam uma urgência pelo período seguinte,
tempo “curativo do mundo”, em que encontra-se o “advento do ‘arqueológico’ do
surrealismo”. Neste terceito estágio o artista observa indícios de uma aproximação
com questões psicanalíticas, estratégias que “pescam nas profundesas do inconsciente
a sujeira da alma”. O ciclo é encerrado com a chegada ao Abstracionismo, capaz de
“purificar” a arte de vinculações de seu passado imediato surrealista, “da natureza e
da imundície ancestral do inconsciente” (Ibid., pp. 60-61)
33
Interior e Paisagem Mental, ambas de 1955 –, uma agenda abstracionista nas
Experiências e na forma como mobilizam uma racionalidade científica, mesmo que
aplicada na análise de um gesto expressivo.
34
“Expressionismo flaviano”. Isso porque a circunscreve numa leitura interrelacionada
e recontextualizada que o artista propõe para o cânone europeu de modernidade
artística e para as aproximações que se possa fazer das suas premissas, a partir de
outras problemáticas de trabalho.
24
Flávio de Carvalho trabalhou nos escritórios Barros Oliva (1923 - 1925) e Ramos de
Azevedo (1925 - 1927).
35
de exponentes da dança modernista, como Chinita Ullman, Carleto, Loie Fuller e
Josefine Baker – uns mais suaves e delicados e outro mais vigorosos e expressivos –,
o leva a encarar a dança como, a um só tempo, “síntese” e “estilização”, representação
e desnaturalização do movimento vital. (Cf. DAHER, 1979, p. 130).
Através justamente da percepção de atributos da dança, como a vitalidade e a
exterioridade, Flávio de Carvalho reúne elementos para a fundamentação de seus
projetos arquitetônicos. Dali em diante, passa a empregar em seus planos de casas,
prédios públicos e urbanismos, sejam eles reais ou metafóricos, contruídos ou não, o
ideal de um espaço orientado para o enaltecimento das individualidades daqueles que
a habitam, para a intensificação de suas experiências.
Daher nota que a arquitetura de Flávio de Carvalho chega a ser “biomórfica”,
não declaradamente em seu desenho, mas na definição de seu programa segundo
características humanas e alternâncias psicológicas. O primeiro atestado público desta
orientação expressionista, com a qual o artista almejava contribuir para o debate sobre
uma modernidade arquitetônica no Brasil, é o projeto de uma nova sede para o
Palácio do Governo de São Paulo, que inscreve em concurso, em 1927, sob o
pseudônimo “Efficácia”.
36
oposição encarniçada por parte dos adeptos da rotina.
(WARCHAVCHIK in XAVIER, 2003, p. 37)
O arquiteto começa em 1927 e termina em 1928 uma casa residencial na Rua Santa
Cruz, em São Paulo, que segue as características elencadas no texto para uma nova
arquitetura, conforme a cartilha de Le Corbusier. Esta casa, por haver sido construída,
e o projeto Efficácia (como posteriormente passou a ser chamado), por ter instaurado
um debate entre especialistas e também na imprensa, são considerados as primeiras
evidências da arquitetura moderna brasileira.
37
O projeto não é aprovado no concurso, mas suscita amblo debate, sendo
criticado por conservadores27 e louvado por vanguardistas. Na qualidade de uma
irônica interpretação da “força” política e econômica do Estado (de São Paulo), uma
fortaleza de cimento armado, hostil para fora e receptiva para dentro, Efficácia
configura, para Daher, uma entrada “ruidosa, grandiosa, espetacular”28 de Flávio de
Carvalho na história do modernismo.
Os dois painéis dispostos no salão principal do prédio indicam um ideal de
integração entre a arquitetura e as artes plásticas e sintetizam temas da aspiração
expressionista flaviana: um deles representa a raiz rural do homem paulista e o outro
mostra um conjunto de dançarinas. Segundo Flávio de Carvalho, citado por Daher,
este painel “simboliza expressionisticamente alguma coisa da dança em geral”. (Cf.
CARVALHO in DAHER, 179, p. 131)
Os volumes do edifício partem de um grande hall central de forma semi-
cilíndrica. De um lado, está a Casa Civil; do outro, simetricamente, a Casa Militar.
Em cima de ambos, existem jardins e viveiros de espécies tropicais. Sobre o hall,
ficam os salões de baile e banquete. O último nível abriga a casa do governador e as
suas salas de trabalho. A parte externa comporta as bases de aviação e defesa, com
holofotes e canhões. Obedecendo à primazia da planta, segundo doutrina
elementarista de Le Corbusier, o projeto resguarda um certo apreço pelo
funcionalismo moderno em seu escopo.
27
Sobre Efficácia, um anônimo, autodenominado “Um revoltado”, publica no jornal Diário
Nacional: “...Infelizmente, vivemos numa época em que a arte começou a degenerar. Refiro-
me ao novo Palácio do Governo. Como pode o governo aceitar o projeto incrível de
“Eficácia” e colocá-lo ao lado de obras cheias de dignidade dos outros concorrentes?
Semelhante ato me enche de indignação e, protestando, cumpro com meu dever, ao mesmo
tempo que represento a nobre opinião do povo paulista. O cérebro demasiado simplório do
engenheiro eficaciano não conseguiu colocar um ornato, uma estátua, uma flor, nem mesmo
um medalhão em sua fachada...” (TOLEDO, 1994, p. 57)
28
Cf. DAHER, 1979, 132.
38
Imagem 3: Projeto para o Palácio do Governo de São Paulo, 1927. Fonte: Rui Moreira Leite.
39
Ferraz, citado na biografia de J. Toledo30, “exercer uma arquitetura panfletária”,
“fazer barulho”, ser “sozinho um movimento” (FERRAZ in TOLEDO, p. 61).
Sobre cada um desses projetos, todos eles igualmente recusados, Daher tece
rápidas considerações, sempre que possível relacionando-os com empreendimentos de
outras vanguardas arquitetônicas e urbanísticas cujas características tangenciam as do
Expressionismo. O Palácio do Governo é comparado ao Futurismo dos prédios de
Sant’Elia e do filme Metrópolis, de Fritz Lang, por antecipar a visão maquínica
lecorbusiana e considerar a dramaticidade do “mundo do espírito no mundo das
coisas” (Cf. DAHER, p. 139); a Embaixada Argentina, por sua vez, devido à
estruturação analítica de volumes, ganha associação com um exemplar da arquitetura
neoplástica holandesa, a Casa Schroeder (1923 – 1924), de Gerrit Rietveld.
30
Flávio de Carvalho: o comedor de emoções, publicada em 1994 pelas editoras Unicamp e
Brasiliense.
40
Imagem 4: Projeto para Universidade de Minas Gerais, 1928. Fonte: Rui Moreira Leite.
Mendelsohn usa o termo “artista” para designar também o arquiteto. Seu depoimento
aponta o desejo de inscrever “vontade” e subjetividade no projeto, para além do mero
atendimento das funções básicas do edifício. O arquiteto, que costumava construir
aquilo que desenhava, e não exatamente o que lhe era encomendado por um
financiador, refuta o funcionalismo de sua geração e, assim como Flávio de Carvalho,
defende a transversalidade entre as disciplinas e os modos de produção da arte e a
arquitetura.
41
francês propaga o cartesianismo31 modernista e reforça, com isso, um processo de
renovação que viria a tornar-se, dentro de pouco tempo, uma verdadeira moda
acadêmica.
31
Flávio de Carvalho e Geraldo Ferraz vão ao encontro de Le Corbusier para entrevistá-lo. O
artista “fala na possibilidade de despertar no homem-habitante os sentimentos mais diversos,
como o sentimento de angústia. Le Corbusier sorri. Acha que a arquitetura deve ficar apenas
sob o sistema solar... Os olhos humanos estão apenas a um metro e sessenta centímetros sobre
a terra. (Cf. TOLEDO, 1994, p. 76)
42
A cidade antropofágica satisfaz o homem nu porque ela
suprime os tabus do matrimônio, e da propriedade, ela pertence a
toda coletividade, ela é um imenso monolito funcionando
homogeneamente, um gigantesco motor em movimento,
transformando a energia das idéias em necessidades para o
indivíduo, realizando o desejo coletivo, produzindo felicidade, isto
é, a compreensão da vida em movimento.
A cidade do homem nu será toda ela a casa do homem.
(CARVALHO, 1930, s/n)
Um dos dois projetos que o artista logrou construir, por iniciativa própria, o
conjunto de 17 casas da Vila América, começado em 1936 e terminado em 1937,
entre a Alameda Lorena e a Alameda Ministro Rocha Azevedo, explora ao máximo o
terreno em forma de “L” e cria situações particulares de isolamento e sociabilidade.
43
Imagem 5: Casa do conjunto da Alameda Lorena. Fonte: Luiz Carlos Daher.
44
rememora desenhos de Moya, expostos na Semana de 22. Seus motivos pré-
colombianos e egípcios diferenciavam-se das referências abstratas européias
usualmente empregadas na arquitetura modernista brasileira.
Daher descreve a sede da Fazenda como um lugar onde “tudo se mistura e transforma
a vida particular em festa calculada. De fato, a casa tem inúmeras facetas, a começar
pela grande porta de entrada, que, instalada no centro de uma face trapezoidal do
edifício, dispõe de uma cortina de fitas de tecido coloridas que voam com o vento e
sugerem o movimento e a dança. Ali dentro, encontra-se um salão principal preparado
para pequenos bailes e refeições experimentais. A mesa de jantar, feita em ferro e
cristal belga, dispõe de um sistema de contra-luz vermelha capaz de “cegar” os olhos
dos convidados da imagem da comida posta.
45
arquitetônico expressionista. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, período em
que pouco se construía em São Paulo, Flávio de Carvalho planeja e acompanha32 in
loco a edificação da Fazenda. (Cf. Ibid., p. 165)
32
O artista, em depoimento para a revista Casa e Jardim, explica sobre a construção da sede da
Fazenda Capuava: “O seu preço foi baixo porque dirigi pessoalmente a construção, empregando
operários quaisquer, ensinados por mim (...) Na difícil montagem das ferragens do concreto armado
com suas emendas eletricamente soldadas, foram utilizados empregados os mais boçais (sic), e nunca
haviam trabalhado em construções. Todos, pela primeira vez, aprenderam a trabalhar durante essa
reforma” (CARVALHO in Casa e Jardim, 1958, 32-40)
33
A coleção MWM – IFK já havia publicado quatro outros livros sobre artes visuais, em
edições anuais: 1980 – Aldo Bonadei; 1981 – Construtivismo afetivo de Emanuel Araújo;
1982 – A escola baiana de pintura; 1983 – Carlos Scliar.
34
Os blocos são: I – O trabalho e a dança; II – Linhas e cores; III – O Espaço teatralizado;
IV – Fabricando ídolos; V – O personagem e o drama; VI – Cronologia e bibliografia.
35
Os textos republicados são: I – A pintura do o som e a música do espaço (1935); II –
Manifesto do III Salão de Maio (1939); IV – Sobre as linhas de força; V – A origem trágica
46
Apesar da mudança de tom, que adequa o conteúdo textual a uma linguagem mais
resenhística, nota-se a continuidade da investida de Daher em analizar aspectos da
trajetória de Flávio de Carvalho em relação às vanguardas européias e
prioritariamente ao Expressionismo.
das jóias. Ainda há entre os textos uma entrevista concedida pelo artista ao jornal Visão, em
18 de Março de 1966 (III – Retrato de Flávio busca o fundamental)
47
“o passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros,
mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer-sim ao caráter
global da vida como aquilo que, em toda mudança, é igual, de igual
potência, de igual ventura; a grande participação panteísta em
alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais
terríveis e problemáticas propriedades da vida; a eterna vontade de
geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento da unidade entre a
necessidade do criar e o aniquilar” (NIETZCHE in DAHER, 1984,
p. 21)
36
Segundo depoimento do artista em entrevista concedida em 1971, para ocasião da comemoração do
centenário do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), e gravada em áudio no estúdio do Museu da
Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro. Cf.
48
motivações e fundamentações teóricas de seu experimento e ilustra momentos do seu
embate com o coletivo, como se, conforme Daher, “exteriorizasse as camadas
introjetadas de sentimentos, emoções e conflitos que nutrem a seiva expressionista”.
(DAHER, 1982, p. 42)
49
Assim como o Teatro e as Experiências de Flávio de Carvalho são demarcados por
um vitalismo e por uma pesquisa sobre as emoções humanas de cunho expressionista,
também o são a pintura e o desenho. A “volúpia de forma”39, que Daher toma como
título para o livro, nada mais é do que o desejo do artista aplicado sobre a obra, o
gesto de existência (imprevisível, vigoroso, fragmentado, difuso) expresso
diretamente sobre a tela ou o papel, em óleo, nanquim ou carvão, sem pre-concepção
e com pouca ou nenhuma correção. Dado à organicidade dessa prática, Daher observa
que a fronteira entre a pintura e o desenho torna-se permeável na trajetória de Flávio
de Carvalho.
39
No
livro Os ossos do mundo, Flávio de Carvalho relata: “… escolho a cor predominante
para iniciar o retrato e coloco-a com volúpia de formas sobre a tela” (Cf. CARVALHO, 2005,
p. 109). O artista também deu o título Volúpia a um painel que pintou em 1932.
40
Citando Flávio Motta no texto Contribuições ao Estudo do Art-Nouveau no Brasil. São
Paulo: s.c.p., 1957.
50
Flávio de Carvalho vivencia a tensão do momento de procura da “expressão
fundamental” usando como modelos seus interlocutores imediatos, personagens da
classe artística e intelectual modernista: Cacilda Becker (1938), Mário de Andrade
(1939), José Lins do Rêgo (1948), Jorge Amado (1945), Maria Kareska (1950),
Flávio Motta (1955), Camargo Guarnieri (1953), Piero Maria Bardi (1964), Mário
Schenberg (1968), Sérgio Buarque de Holanda (1970), para citar alguns.
Mário de Andrade, que, antes de ter sido retratado por Flávio de Carvalho,
havia sido pintado, em 1927, por Lasar Segall, ícone do Expressionismo histórico
brasileiro, compara: “Quando olho para o retrato de Segall me sinto bem. Quando
defronto o retrato feito por Flávio, sinto-me assustado, pois nele vejo o lado tenebroso
da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros…”. A partir do depoimento do
escritor, Daher diferencia o “Expressionismo lírico” de Segall, afeito à harmonia das
emoções, do “Expressionismo psicológico” de Flávio de Carvalho. Para Mário de
Andrade, neste segundo parece haver a vontade de “extrair os demônios interiores do
retratado, como se os arrancasse puxando cordas retesadas, as endiabradas linhas de
força psicológicas” (ANDRADE in DAHER, 1984, p. 49)
Imagem 8: Retrato de Mário de Andrade, Lasar Segall, 1927. Fonte: Luiz Carlos Daher.
51
Imagem 9: Retrato de Mário de Andrade, Flávio de Carvalho, 1939. Fonte: Luiz Carlos Daher.
52
A preocupação com a intensidade existencial evidenciada através da cor é mais um
fator de aproximação da pintura de Flávio de Carvalho com a obra dos expressionistas
europeus. No desenho, outro elemento predomina para dar conta de semelhante desejo
de exteriorização daquilo que não se pode controlar ou convencionar da personalidade
retratada: as “linhas de força”.
“Às vezes coloco nos desenhos linhas que são absolutamente contrárias àquilo
que normalmente é indicado pela imagem”41, diz Flávio de Carvalho aos estudantes
da FAU-USP, em 1963. Daher aponta que essas linhas e o gestual de que resultam
“transportam camadas superpostas de sensibilidade, derramando o que a cristalização
do vivido escondia”. (DAHER, 1979, P. 171)
41
Cf. CARVALHO in LEITE, 2010, p. 49.
42O apelido foi dado no texto do autor para o livro Flávio de Carvalho – 32 desenhos, em
1967.
43
Atualmente,
a obra pertence ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC – USP). O museu foi fundado em 1963, pelo mesmo patrono do MAM e
da Bienal de São Paulo, o industrial Francisco Matarazzo Sobrinho, que, na ocasião,
transferiu para lá todo o acervo do MAM. Dentre as obras transferidas figura a Série Trágica.
53
de Experiência, alimenta o receio e um certo ocultismo fantasioso44 que envolvem a
reputação pública de Flávio de Carvalho.
Imagem 10: Duas das nove pranchas da Série Trágica, de 1947. Fonte: Luiz Carlos Daher.
Daher qualifica a obra de Flávio de Carvalho como dedicada à compreensão das
“fontes de vida”. Essas fontes estariam contidas, principalmente, na “ancestralidade”
e no “sexo” (Cf. DAHER, 1984, p. 194), instâncias sobre as quais o artista disserta em
seu terceiro livro, A origem animal de Deus, lançado em 1973 junto com o roteiro da
peça O Bailado do Deus Morto, de 1933. A ancestralidade (ou o primitivo) e o sexo
(ou o ato fecundante, a erótica): para o artista, duas fabulações motivadoras do
enfrentamento do medo e da morte.
54
e análises para as gerações posteriores. Além dele e de Flávio Motta, Daher também
menciona Gilberto Freyre como sendo fundamental para a constituição de um
reperório que possibilite pesquisas futuras sobre o artista.
Carvalho arregala os olhos de menino e às vezes de doido para ver o mundo. Por isso vê tanta
coisa que o adulto todo sofisticado não vê. Vê tantas relações entre as coisas que os adultos
cem por cento e os completamente normais deixam de ver. Do sentido dessas relações vem o
lirismo novo e profundo, cheio de grandes coragens que há nas notas de viajante de Flávio de
Carvalho. […] A sua coragem de ter medo –que hoje só os meninos têm- de se analisar nas
suas sensações mais profundas de medo, e das que o adulto convencional, deformado pelos
preconceitos de bravura à espanhola, de “He-Man” à Americana, de “modernismo” à
brasileira ou a Graça Aranha, não tem.
55
doutorado, dedicada a revisar cinco tendências47 da arquitetura brasileira de 1925 a
1936. Apesar de não convir inclui-la no escopo da presente dissertação, vale indicá-la
como um contraponto possível ao ideário de Daher, na medida em que localiza Flávio
de Carvalho no grupo dos “Futurismos”. Neste trabalho, Forjaz reconhece o vínculo
do artista com as “teorias pessoais” e com a “expressividade”, mas prefere acessá-lo
pela relação com o Futurismo, e com o “sentido imparcial que lhe dão todos os que,
incorporando a crítica da contemporaneidade, inventam o futuro antes de atentar para
as estratégias de reforma da realidade presente” (Cf. FORJAZ, 2004, pp. 135 - 136)
Daher conclui Volúpia da Forma, sua última obra pública sobre Flávio de
Carvalho, tecendo este panorama de iniciativas do meio teórico e curatorial que, junto
com sua pesquisa seminal, contribuem para dar densidade às leituras da produção do
artista e tirá-lo da condição de “mera nota de rodapé” (Cf. DAHER, 1984, p. 161) da
história da arte e da arquitetura brasileiras. Foge ao seu relato, por motivos óbvios, a
exposição Expressionismo no Brasil: heranças e afinidades, integrante da 18a Bienal
de São Paulo48, de 1985. A curadoria da mostra é um desdobramento do percurso
aberto por Arquitetura e Expressionismo. Ela seria assinada pelo autor, não fosse sua
morte naquele mesmo ano.
47
Os cinco grupos trabalhados são a “Tradição nacional”, a “Academia francesa”, a “Bauhaus
germânica”, os “Futurismos” e a “Volta à verdade”. Cada um é tema de um capítulo da tese.
48
A 18a Bienal de São Paulo teve curadoria-geral de Sheila Leirner e aconteceu de 4 de
outubro a 15 de dezembro de 1985.
56
Imagem 11 - Mostra Expressionismo no Brasil, na 18° Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico
Wanda Svevo.
Num exercício historiográfico estendido, artifício não só possível mas recorrente nas
curadorias, como demonstra o terceiro capítulo desta dissertação, a exposição leva o
debate do Expressionismo para a contemporaneidade, permitindo, por exemplo, que
uma produção em pintura dos anos 1980 seja considerada à luz deste marco
conceitual modernista. No conjunto de 75 artistas, Nuno Ramos e Daniel Senise
ladeiam Emiliano Di Cavalcanti e Oswaldo Goeldi. Nesta cronologia expandida para
o debate do expressionismo, três telas49 de Flávio de Carvalho exemplificam aquilo
que Daher interpretou como o “Expressionismo flaviano”.
49
As telas são De manhã cedo (1931), Retrato (1933) e Nuvens do desejo (1949).
57
CAPÍTULO 2
58
O levantamento da obra de Flávio de Carvalho iniciado por Flávio Motta e seus
orientandos, na FAU-USP, é inviabilizado pelo endurecimento do regime militar
brasileiro, quando promulgado o AI-5, em 1968. O material coletado e mantido em
estado bruto50 motiva a pesquisa de mestrado de Luiz Carlos Daher na mesma escola.
Este autor, no entanto, não opta por continuar uma sistematização e sim investe numa
leitura analítica e pontual, dedicada, como já vimos, a aproximar o artista das
tendências expressionistas. Só em 1982 é retomada a ideia de catalogar e
historiografar a obra completa de Flávio de Carvalho, por iniciativa da professora e
historiadora da arte Aracy Amaral51.
50
Como anteriormente mencionado, o material do levantamento coordenado pelo Prof. Dr.
Flávio Motta não foi arquivado no sistema de bibliotecas da USP. Parte dele é mantida nos
arquivos pessoais do próprio professor-coordenador e de Carlos Heck, dentre os seus
orientandos aquele que dedicava atenção especial à obra do artista.
51
Desenvolvido com apoio da Fapesp, entre 1982 e 1983.
52
O Arquivo Histórico Wanda Svevo dispõe de minutas dos contatos de Luiz Carlos Daher e
Rui Moreira Leite para realização da curadoria da Sala Especial. O desvínculo do primeiro,
apesar de aparentemente não registrado no acervo da Fundação Bienal de São Paulo, pode ser
verificado pela não divulgação de seu nome como parte da equipe realizadora do evento, nem
em catálogos nem na imprensa.
59
retrospectiva do artista no MAM-SP, em 2010. O presente capítulo é dedicado à
revisão das principais ideias dessa trajetória acadêmico-curatorial53.
53
A trajetória acadêmico-curatorial de Rui Moreira Leite aqui referenciada reúne, além do
mestrado e do doutorado e das duas exposições realizadas pelo autor sobre Flávio de
Carvalho, o livro Artista Total (Editora Senac, 2008) e os artigos “Flávio de Carvalho:
modernism and avant-garde in São Paulo”53 (1995), “Modernismo e vanguarda: o caso de
Flávio de Carvalho”53 (1998), “Flávio de Carvalho: media artist avant la lettre”53 (2004) e
Flávio de Carvalho: o artista total53 (2008).
60
Perseguindo um ímpeto monográfico, Rui Moreira Leite dedica doze anos
continuados à estruturação de uma narrativa sobre Flávio de Carvalho, não
exatamente cronológica mas voltada a, de alguma maneira, cobrir a diversidade de
linguagens e fases de trabalho do artista. O período também foi usado para que o
autor percorresse os principais acervos documentais de São Paulo e do Rio de
Janeiro54 e contactasse colecionadores e interlocutores55 de Flávio de Carvalho a fim
de sistematizar listagens de obras, textos e referências56. Tanto o mestrado quanto o
doutorado dispõem desse material em anexos.
54
Foram consultadas as seguintes instituições públicas: Biblioteca Municipal Mário de
Andrade, Biblioteca do Museu de Arte Assis Chateaubriand, Biblioteca da FAU-USP,
Biblioteca da ECA-USP, Biblioteca do Instituto de Ensinos Brasileiros da USP, Biblioteca do
MAC-USP, Biblioteca do MAM-SP, Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo de O Estado
de S. Paulo, Arquivo dos Diários Associados, Arquivo da Folha de S. Paulo, Arquivo Mário
de Andrade (IEB-USP) (SP); Biblioteca Nacional, Biblioteca da Escola Nacional de Belas
Artes (RJ). Dentre os acervos privados, figuram o do próprio Flávio de Carvalho, mantido
pela família, à época na pessoa de Lúcia de Carvalho Crissiúma; e os de Carlos Drummond
de Andrade, Gilberto Ramos, J. Toledo, José Roberto Graciano, Lidia Kliass, Marta Rossetti
Batista e Stela Teixeira de Barros. (LEITE, 1987, p. iv)
55
Conforme a lista de agradecimentos de sua dissertação de mestrado, o autor capta
depoimentos de: Alfredo Mesquita, Ana Maria Martins, Azis Simão, Caio Prado Jr., Cássio
M’Boy, Décio de Almeida Prado, Dulce Carneiro, Eduardo Paffei, Flávio Motta, Francisco
Luiz de Almeira Salles, Frank Julian Philips, Gerda Brentani, Gilberto Ramos, Gilda e
Antonio Cândido de Melo e Souza, Hideo Onaga, Hugo Adami, João Carvalhal Ribas, J.
Toledo, Jorge Amado, Lidia Kliass, Lívio Abramo, Lívio Xavier, Mário Schemberg, Newton
Freitas, Nicanor Miranda, Olinto Moura, Paulo Mendes de Almeida, Raphael Galvez,
Sangirardi Jr., Stella Angeli, Yolanda Penteado, Yvonne Levi. Além disso, corresponde-se
com: Ana Stella Schic Philippot (Paris), Carlos Drummond de Andrade (Rio de Janeiro),
Carmem Portinho (Rio de Janeiro), Fernando Goldgaber (Rio de Janeiro), Gaspero Del Corso
(Roma), Gylberto Freyre (Recife), Jorge Amado (Salvador), Lavínia Viotti (Campos do
Jordão), Maria Ferrara (Roma), Maria Luisa Strauss (Campinas), Mário Pires (Caminas),
Sangirardi Jr. (Rio de Janeiro), embaixatriz Tuni Murtinho (Brasília), Galeria Nazionale
d’Arte Moderna e Contemporânea (Roma), Lycée Janson de Sailly (Paris), Museum of
Modern Art (Nova Iorque), University of Newcastle Upon Type (New Castle). (Cf. Ibid., p.
iii)
56
O mestrado é acompanhado por lista de obras dividida nas seguintes categorias: livros;
artigos e conferências em livro; inéditos; depoimentos e entrevistas em livro; conferências;
entrevista, declarações e depoimentos em periódicos; artigos em periódicos; ilustrações;
desenho; pastel; óleos; aquarelas e guaches; arquitetura; cenografia e figurinos; decorações e
interiores; escultura; arte aplicada; monumentos. O tomo ainda possui bibliografia de:
catálogos; obras de referencia; citações em livro; referências em teses; conferencias sobre o
artista; publicações sobre o artista; participações em álbuns; filmes sobre o artista; artigos
assinados sobre o artista; artigos sobre o artista em periódicos; notas, referencias, citações em
artigos assinados e na imprensa. O doutorado dispõe de: fortuna critica, entrevistas,
correspondências e cronologia, além de um tomo a parte para a edição atualizada e ampliada
da lista de textos e obras do artista.
61
O material sistematizado por Rui Moreira Leite é fundamental de investigação
e verificação científica sobre Flávio de Carvalho. Uma vez reconhecida a sua
contribuição documental, interessa aqui priorizar os indicativos analíticos do legado
de pesquisa do autor, em textos e exposições, entre 1987 e 2010. Que possíveis
interpretações vislumbrou para a obra do artista? Como a descreveu e caracterizou?
62
exercida pelo artista principalmente em iniciativas como o Clube de Artistas
Modernos (1932 – 1934) e o Salão de Maio (1937 – 1939) - como capitaneadora de (e
preponderente para) suas práticas notadamente artísticas, como a pintura, o desenho, a
arquitetura, o teatro etc.
58
Em 1979, Wilson Martins publica, pela Cultrix/Edusp, a coleção História da Inteligência
Brasileira, e cita, no volume VI, a trajetória e as relações de Flávio de Carvalho. São Paulo:
Cultrix/EDUSP, 1979, vol.6, p. 501.
59
Após a turbulenta participação de Flávio de Carvalho no Congresso Panamericano de
Arquitetura, em 1930, quando apresenta a tese A cidade do homem nu e vai de encontro às
espectativas do público, o autor do Manifesto Antropófago publica no jornal O homem do
povo, do qual era editor: “o arquiteto Flávio de Carvalho é o melhor calculista de São Paulo,
63
ideal”, sinal de reconhecimento da atualização e dos desdobramentos arquitetônicos e
urbanísticos que promovia a partir dos ideais modernistas de primeira geração60.
Do ponto de vista teórico, este espaço social moderno foi descrito em A cidade
do homem nu, artigo em que Daher havia encontrado indícios de Expressionismo e
que agora Rui Moreira Leite vislumbra como definidor de “uma nova estrutura
urbana” equivalente ao desejo de experiência de um indivíduo vanguardista e
libertário, crítico com relação ao progresso e aos resquícios de colonização: o
“homem antropofágico” (Cf. Ibid., p. 18). Na cidade antropofágica, portanto, homem
e meio far-se-iam e renovar-se-iam mutuamente, ordenados por uma única instituição
rija e acessível a todos, o “centro de pesquisa”.
possui uma alta competência profissionoal e tem talento e imaginação, mas não pode
construir porque os ‘meios sociais de produção’ se acham fechados nas mãos avarentas de
uma falsa elite, cretinizada e intratável. A independência de Flávio não permite conchavos,
nem com a falsa aristocracia de produção nem com o cliente que é bestificado por ela…”
(ANDRADE in TOLEDO, 1994, p. 99)
60
Em citação ao texto “Informes sobre o modernismo”, escrito por Oswald de Andrade em
1929, Rui Moreira Leite filia Flávio de Carvalho à “terceira fase do movimento”, junto com
Maria Eugênia Buenaventura, autora do estudo “A vanguarda antropofágica”. Esta fase
haveria sido iniciada após a publicação dos dois primeiros exemplares da Revista de
Antropofagia e teria como planos a organização da Bibliotequinha Antropofágica, que incluía
Brasil/Freud, do artista, nunca publicado. (Cf. Ibid., p.17)
61
Flávio de Carvalho submete projetos nos seguintes concursos: Palácio do Governo de São
Paulo (1927), Embaixada Argentina no Rio de Janeiro (1928), Farol de Colombo (1928),
Universidade de Minas Gerais (1928), Palácio do Congresso do Estado de São Paulo (1929).
Apesar de dedicar um curto capítulo inicial de sua dissertação a uma retomada de aspectos
principais desses projetos, Moreira Leite abstém-se de interpretá-los. Ele, no entanto, cita
considerações da pesquisa de Ricardo Forjaz Christiano de Souza para o livro Trajetórias da
Arquitetura Modernista (Idart, 1982). Em 2005, o autor citado desenvolve uma leitura da obra
arquitetônica de Flávio de Carvalho em tese de doutorado na FFLCH-USP, com orientação do
Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto.
64
Obviamente, a abstração e a utopia desta cidade-laboratório não recebem
adesões nem da platéia do Congresso Panamericano de Arquitetura e Urbanismo nem
do leitores do Diário da Noite, duas instâncias onde o texto de Flávio de Carvalho foi
apresentado naquele ano, 1930. A caminhada da Experiência N° 2, em 1931, apesar
de dar-se como exemplo individual da tese formulada anteriormente, acirra ainda
mais as resistências do público paulistano ao ideário do artista. O debate sobre a
criação de núcleos de sociabilidade e experiência voltaria a ser possível apenas em
1933, no ciclo restrito de cerca de 170 sócios do Clube de Artistas Modernos.
Entre fim de 1932 e meados de 1933, numa época em que São Paulo dispunha
de poucos lugares para a reunião, apenas alguns cafés, restaurantes e redações de
jornais, o CAM é para os modernistas uma oportunidade de convívio, intercâmbio e
produção em ateliê coletivo. Os fundadores da iniciativa (Flávio de Carvalho, Di
Cavalcanti, Gomide e Carlos Prado) lançam-na fazendo circular a seguinte ficha de
inscrição:
Logo que começaram as atividades do clube, foram instituídas comissões setoriais nas
áreas administrativa, de pintura, escultura, arquitetura, teatro, literatura, imprensa,
estudos gerais, festas e música. A agenda daquele “espaço alternativo”, como
denomina Moreira Leite (Cf. Ibid., p. 47), começa dedicada a eventos musicais e
espetáculos de dança e humor, passa por uma curta temporada de exposições e
debates e culmina numa terceira fase, dentre todas a mais profícua, composta por
conferências de temática variada. Caio Prado Jr. fala sobre “A Rússia de hoje”, Jorge
65
Amado relata “A vida das crianças na fazenda de cacau”, Oswald de Andrade
antecipa o tema da peça “O Homem e o Cavalo”, para citar algumas dentre tantas
outras conferências realizadas.
62
A ideia de criar o Salão de Maio é de Quirino da Silva, em 1937. A primeira comissão
organizadora reúne, além dele, Geraldo Ferraz, Paulo de Magalhães, Flávio de Carvalho,
Irene Bojano e Madeleine Roux. O grupo dissolveu-se pouco antes da terceira edição, em
1939, devido a uma série de motivos, dentre os quais o fato de Flávio de Carvalho haver
registrado o título do evento em seu nome. Dai por diante o artista segue sozinho nessa
organização e enfrenta as dificuldades de reestabelecer relações com parceiros e
patrocinadores do evento. (Cf. Ibid., p. 76)
63
O VIII Congresso de Filosofia foi promovido em 1934 pelo Museu Britânico, responsável
pelo convite a Flávio de Carvalho (Cf. Ibid., p. 62)
64
O Congresso de Psicotécnica aconteceu uma semana depois do VIII Congresso de
Filosofia. Os relatos sobre esta fala, ocorrida em sessão do dia 14 de setembro de 1934,
levam a crer que ela tenha sido marcada devido a contatos feitos pelo artista no encontro de
Praga.
66
da Editora Nacional por um novo livro, Os ossos do mundo, que, apesar de ter sido
escrito durante o período acordado, não chegou a ser publicado naquela ocasião65.
Este evento, que pode ser visto como um precursor da Bienal de São Paulo,
em sua missão de conectar a arte brasileira com a internacional, é o grande favorecido
pelas interlocuções estabelecidas por Flávio de Carvalho na Europa. Além das
exposições de abstracionistas e surrealistas ingleses, dentre eles Ben Nicholson e
65
A editora perde o interesse no conteúdo apresentado e o próprio Flávio de Carvalho
viabiliza a publicação do livro, em 1936, pela Editora Ariel. Em 2005, ele é reeditado pela
Editora Antiqua.
66
Rui Moreira Leite cita algumas entrevistas, dentre as quais algumas realizadas com
participantes dos Congressos de Filosofia e Psicotécnica (Seracky, Henry Wallon, Gustavo H.
Minella etc.); críticos de arte (Herbert Read e Gibb Smith); artistas (Man Ray, Hoffmeister,
Robson, Perier, Ben Nicholson, Emil Filla); poetas e teóricos (André Breton, Tristan Tzara e
James Laver); o diretor de teatro Josef Turneau e o dramaturgo Jiri Voskovec; o demonólogo
Roger Caillois; o profeta Khrisnamurti; a musicista Margaret Ludwig; o especialista em
literatura eslava K. Krejci; o ministro da educação da Tchecoslováquia Jan Kremar; o
educador Vojtech Cizek; o deão da Universidade de Praga Otekar Fisher (Cf. Ibid., p. 69)
67
A conferência foi realizada no Instituto de Engenharia no dia 28 de março de 1935. A obra
de Arne Hosek em pintura nasce da transposição de peças musicais para construções
pictóricas. (Cf. Ibid., p. 70)
68
Revista francesa criada em 1933, em Paris, pelo suíço Albert Skira e editada até seu fim,
em 1939, por André Breton e Pierre Mabile. Antecedeu a La Révolution Surréaliste e a Le
Surréalisme au service de la révolution como porta-voz do movimento surrealista nos anos
1930. Teve treze edições e contou com a participação de artistas e intelectuais como Pablo
Picasso, Henri Matisse, Juan Miró, Marc Chagall, René Magritte e Wassily Kandinsky,
Georges Bataille, Jacques Lacan, Carl Gustav Jung, Roberto Matta e Aldous Huxley.
67
Roland Penrose, na edição de 1938, dentre todas a mais estuturada e apoiada pela
classe artística local, o Salão traz, no ano seguinte, mostras de Alexander Calder,
Alberto Magnelli e Josef Albers. Man Ray chega a ser anunciado, mas cancela a
vinda em data próxima à abertura.
As três edições mobilizam o meio artístico, tanto pelo acesso que promovem a
estas produções estrangeiras, quanto no que diz respeito à discussão dos critérios de
seleção de artistas brasileiros inscritos e ao entendimento sobre as tendências que
estas escolhas e o manifesto publicado no catálogo do Salão de 1939 indicam. No seu
“Plano de seis anos”, Flávio de Carvalho posiciona-se em favor de um evento que
sustenta um entendimento de arte moderna polarizado entre o Abstracionismo e o
Surrealismo.
69
O último Salão de Maio termina com um jantar de confraternização entre os artistas.
Enquanto Sérgio Milliet fazia sua conferência, dançarinas japonesas apresentavam-se e um
menu temático era servido, com pratos como “frango assado surrealista” e “frios manifestos”.
(Cf. Ibid., p. 81)
70
Apresentaram conferências nos Salões de Maio: Flávio de Carvalho, Álvaro Moreya,
Julieta Barbara, Carlos Pinto Alves, Irene de Bojano, Elias Chaves Neto, Vera Vicente
Azevedo, Anton Giuglio Bragaglia (1a edição, 1937); Agripino Grieco, Aníbal Machado,
Carlos Pinto Alves, Dias da Costa, Durval Marcondes, Elias Chaves Neto, Francisco Pati,
Geraldo Ferraz, Graciliano Ramos, Hernandez Catá, Jorge Amado, Oswald de Andrade,
Quirino Campofirito, Sangirardi Jr., Jean Maugue, Roger Bastide (2a edição, 1938); Vanorden
Shaw, Sérgio Milliet, Lívio Abramo, Tarsila do Amaral, Nicanor Miranda (3a edição, 1939).
(Cf. Ibid., p. 81)
68
No doutorado, Rui Moreira Leite continua seu levantamento de dados e extrapola a
pesquisa dos anos 1930, em que, como vimos, delineia um “animador cultural”. Nas
décadas subseqüentes, de 1940 até a morte de Flávio de Carvalho, em 1973, interessa-
lhe observar no trabalho do artista características como a diversificação de linguagens
e a opção por estratégias muitas vezes imateriais e processuais. Esses traços o levam a
sugerir uma aproximação com a ciência e com a noção de laboratório. O autor, assim,
evidencia e analisa o termo “Experiência”, empregado por Flávio de Carvalho para
definir tanto títulos de obras quanto princípios de sua atividade artística.
69
Permite articular estratégias tão diversas quanto a exteriorização de emoções em gesto
e cor, nos retratos em pintura e desenho, e o desejo de suscitar reações e intensificar a
vivência humana na arquitetura.
Entendo que Rui Moreira Leite endossa o tom especulativo levantado por
Flávio de Carvalho e assume uma suposta continuidade. “Experiência sem número”,
sem periodicização, portanto. A experiência como método e motriz de um laboratório;
o laboratório como metáfora do lugar para a criação.
71
Sangirardi Jr., em texto republicado no catálogo da 17a Bienal de São Paulo, afirma que a
Experiência N°1 teria acontecido quando o artista “fingiu que estava se afogando e gritou
desesperadamene por socorrro”. Algo que, segundo ele, “não deu resultado. Nem livro”
(SANGIRARDI in LEITE e ZANINI, 1983, p. 70).
70
Universidade de Durham. Em paralelo a esta educação técnico-científica, dedica-se
também a um curso de belas artes na Edward VII. Ambos até meados de 1922,
quando volta para o Brasil. Este percurso teria levado Flávio de Carvalho a assumir
em seus projetos artísticos e arquitetônicos a racionalidade, a analítica e a
comprobabilidade apropriadas do objeto e do método de pesquisa científicos. Os
estudos simultâneos de artes e ciências exatas lhe teriam garantido repertório para
posicionar-se ante a realidade convencionada inscrevendo nela os reagentes e riscos
de seu empirismo individual.
71
A diferenciação acima corrobora com um mito de individualidade até mesmo
fomentado por Flávio de Carvalho (“eu sou um contra mil…”73, dizia ele para a
procissão de católicos). No entanto, a meu ver, ela ainda carece de considerações do
que significaria essa busca por experiência e/ou experimentação por meio de uma
obra ou de projeto artísticos.
73
CARVALHO, Flávio. Experiência no. 2: realizada sobre uma procissão de Corpus
Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2001, p. 25.
74
Cito Georg Simmel e Walter Benjamin a partir de suas obras “As grandes cidades e a vida
do espírito” (1903) e “Experiência e pobreza” (1933), respectivamente.
72
bibliográfica): o caminho em que a própria consideração sobre os pressupostos de
uma obra teórica fechada permite sua abertura parcial e interpretativa, bem como sua
articulação com fontes de pesquisa correlatas, sejam elas indicadas pelos autores ou
não.
Dewey defende que tal urgência por continuidade existe por dois motivos
principais. Primeiro, para afirmar a obra de arte como experiência mesma, anterior à
construção e à materialização de algum objeto, seja ele um livro, um quadro, uma
estátua. Segundo, para qualificar a experiência humana como dotada de qualidade
estética, visto que inserida no feixe de “movimento e culminação, de rupturas e
reencontros” que constituem o mundo real. (Cf. Ibid., p. 80) A partir dessas
colocações, o autor parece querer refutar um entendimento de arte como disciplina
autônoma (Cf. BÜRGER, 2008, p. 83), inconsciente e pura, e reestabelecer seus laços
com a “praxis vital”75.
75
Sobre autonomia e inconsciência, Peter Bürger diria, em seu Teoria da Vanguarda: “só
depois de a arte, no esteticismo, ter-se livrado inteiramente de todos os laços com a práxis
vital é que o estético pôde desenvolver-se “de forma pura”, o que, por outro lado, tornou
reconhecível a outra face da autonomia, a inconsciência social (gesellschaftliche
folgenlosigkeit). O protesto vanguardista, cujo objetivo é reconduzir a arte à práxis vital,
revela a conexão entre autonomia e inconsciência. (BÜRGER, 2008, p. 83)
73
Não há razão nenhuma de querer separar a arte da avalanche
científica. Isso seria o fim da própria arte76. Se assim fizéssemos ela
se tornaria insignificante, desprezível e viria a desaparecer. A arte
é quase toda ela produzida hoje inconscientemente, em momentos
de alucinação do artista. E esse método ineficiente não deve ser
continuado. Podemos produzi-la pelo raciocínio, pela análise
lógica. (CARVALHO in LEITE, 1994, p. 23)
76
A grafia original da tese distingue os depoimentos do artista em texto redondo e os do autor
em itálico.
77
A última etapa da Experiência N°2 é o seu registro em um livro ilustrado e publicado com
tiragem inicial de 1.000 cópias. Tudo indica que não tenha havido um planejamento ou uma
fundamentação teórica anterior à caminhada de 1931. O teor da descrição dos eventos e da
análise psicológica propostas na publicação é criado a posteriori, a partir da memória de
Flávio de Carvalho sobre o vivido. A obra teórico-literária possui dados, portanto, de uma
reencenação empreendida pelo artista.
74
ambigüidade entre procedimentos da arte e da ciência pode ser explicada pelo fato de
ser o próprio artista teórico e cobaia de suas pesquisas.
Novamente recorrendo a John Dewey, destaco que, ante este corpo e esta
subjetividade, usadas como medida reagente primordial para a criação e para a
renovação, impõe-se o ambiente, lugar onde a vida “se dá”. “Não apenas nele”, aliás,
“mas por causa dele, pela interação com ele”. Sobre essa relação, o autor escreve:
75
de Carvalho concebe suas intervenções e projetos. A interrupção dos “fluxos”, a
criação de “crises” (Cf. Ibid., p. 79-80), a desnaturalização, o estranhamento e a
vivência de um laboratório sobre as formas de vida, expressão e sociabilidade
ganham, em novembro de 1932, uma sede, o Teatro de Experiência. O espaço,
concebido pelo artista junto com Oswaldo Sampaio e instalado no térreo do CAM,
nasce sem uma pauta pre-definida, apenas com “o espírito imparcial da pesquisa” em
texto, dramaturgia, cenografia, figurino, som e iluminação.
A partir de menção feita por Rui Moreira Leite, entendo que o projeto do
Teatro refere-se ao episódio da Experiência N°2, e, de certa forma, transforma sua
radicalidade pontual numa encubadora de novos “testes (irritantes ou calmantes) para
observar a reação do público” (Cf. CARVALHO in LEITE, 1987, p. 49). O mesmo
Flávio de Carvalho que encarara a rua como palco e os transeuntes como platéia, no
ano anterior, lança-se agora sobre o espaço cênico e sobre o desejo de torná-lo
território de despojamento, ruptura e invenção. Ao jornal O Homem do Povo, dirigido
por Oswald de Andrade, o artista declara:
76
(CARVALHO in LEITE, 1987, p. 49). Segundo Rui Moreira Leite, talvez tenha sido
a primeira apresentação da história do teatro brasileiro a usar palavrões.
Dividido em dois atos, o roteiro mostra o percurso de um Deus desde a sua forma
primitiva, como “Monstro mitológico”, entre as feras do mato, até a confissão e o fim,
por ter sucumbido à tentação humana, encarnada pela “Mulher Menor”. Rui Moreira
Leite observa semelhanças estruturais e temáticas entre a obra e A origem da tragédia
(1871), em que Friedrich Nietzsche disserta sobre as etapas de desenvolvimento do
teatro como frutos do embate entre os deuses Apolo e Dionísio, que representam o
sonho e a embriaguês. Pergunto: seria esta embriaguês sinônimo do que o artista
chama de “experiência”, ou ainda, da “turbulência mental” que insiste em definir
como geradora de sua criação?
77
O Teatro de Experiência pode ser visto como um precursor do teatro de
vanguarda no país80. No entanto, seu curso, assim como o da Experiência N°2, por
suscitar polêmicas e despertar a censura, completa-se nos boletins policiais, nas
páginas de jornais e nos fóruns de discussão da intelectualidade modernista. Estes
espaços simbólicos, em que o vanguardismo de Flávio de Carvalho conseguiu atingir
e provocar a audiência de seu tempo, passam a interessar-lhe cada vez mais. A mídia,
em especial, passa a ser um “lugar” onde o artista não só exerce sua atividade perene
de articulista e comentador, mas também faz sua obra acontecer, entre o registro
jornalístico e o termômetro da opinião pública. Sobre o assunto, Rui Moreira Leite,
em artigo posterior81 à tese de doutorado, comenta:
Passadas quase três décadas desde a primeira matéria de ataque ao projeto do Palácio
Municipal, de 1927, consolida-se na obra de Flávio de Carvalho o papel da imprensa
como “arena para performance pública”. Se outrora a formação desta arena era
circunstancial e involuntária, nos anos 1950 ela passa a pautar e programar a ação de
Flávio de Carvalho.
80
Em 1933, Procópio Ferreira e Joracy Camargo encenam Deus lhe pague. Além desta peca,
vale também menção a obra de Álvaro Moreyra como seguidora da abertura criada pelo
Bailado do Deus Morto na história do teatro brasileiro. (Cf. LEITE, 1994, p. 53)
81
O artigo, intitulado “Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre”, foi escrito em 2002
e publicado em 2004, em inglês, no volume 72, número 2, da Revista Leonardo. Sua redação
antecipa as ideias centrais do livro Flávio de Carvalho: o artista total, que a Editora Senac
lança em 2008.
82
Apelidado “new look”, devido à proximidade temporal com o inovador modelo feminino
desenhado por Christian Dior, o traje era composto por um saiote e um blusão de cores
vibrantes. Uma estrutura metálica disposta dentro do blusão garantia a sua boa ventilação e
evitava a sensação de calor.
78
artigos A moda e o novo homem83, e executado pela figurinista do Balé do IV
Centenário Maria Ferrara, em 1956, é lançado neste mesmo ano, nos jornais, revistas
e na TV. Antes mesmo de ir às ruas e angariar seguidores num pequeno cortejo de
demonstração de uso, em 18 de outubro, o artista já tornara-se garoto-propaganda da
vestimenta e de seu estilo transgressor.
Em 1958, ocorre a última das Experiências, uma expedição liderada por Flávio de
Carvalho ao alto Amazonas com uma equipe de cinema e duas modelos loiras
selecionadas por casting para estabelecer um contato com os povos primitivos da
selva e filmar a epopéia de Umbelina Valéria, uma jovem caucasiana que, ao ser
raptada por Xirianãs, teria fundado uma aldeia de índios brancos e sido mitificada
como a “Deusa Branca”.
83
Publicada no jornal Diário de S. Paulo, entre 4 de março e 21 de outubro, a série é
composta por 39 artigos. Eles foram reeditados primeiramente pelo Sesc, em 1992, junto com
uma exposição sediada nesta mesma instituição. Em 2010, os textos voltaram a ser publicados
pela Editora Azougue, na coletânea de textos A moda e o novo homem: dialética da moda,
organizada por Sérgio Cohn e Heyk Pimenta. Neste mesmo ano, a mostra “A teoria da moda
de Flávio de Carvalho”, curada por Mariana Lanari e Agnaldo Farias, espacializa excertos dos
textos do artista junto a imagens da fotografia de moda contemporânea brasileira. A
exposição aconteceu primeiro no Museu Brasileiro de Escultura, em São Paulo e depois no
Museu de Arte Moderna do Rio.
79
Imagem 14 - Encontro posado de uma das modelos com índios xirianãs, na Experiência n4. Fonte: Cedae-
Unicamp.
Nesse sentido, a irresoluta Experiência n°4 tanto desdobra mais uma etapa
desta pesquisa de concepção de um homem moderno “experiencial” e reagente ao seu
meio quanto também consolida a mídia de massa como um lugar de encontros e
negociações do artista com a sociedade. Flávio de Carvalho inscreve seu laboratório
artístico-científico na agenda pública. Se, por um lado, podemos encontrar neste gesto
ambições propagantistas e disseminatórias de um pensamento de vanguarda, por
outro, vislumbramos um certo elogio ou apego ao que existe de individual e
intransferível na experiência vivida.
80
É como eu me sinto no momento em que escrevo; visualizando a
minha aventura, me parece visualizar a parte de um estranho mundo
a mim, me sinto metade como um arqueólogo e metade como um
cínico cético. A concatenação dos fatos não me traz senão um
panorama ilusório e arqueologicamente me sinto tão inseguro como
se estivesse elaborando por meio de uma ficção exaltada um mundo
neurótico qualquer. (CARVALHO, 2001, p. 31)
Através dos indícios reunidos por Rui Moreira Leite, sou levada a concluir que
o arquiteto de prancheta, animador marginal, pioneiro de tantas histórias que o
mantêm em suas “notas de rodapé”84, confirmou seu legado justamente pela
inconclusividade e pela inadequação de seus projetos e programas. Penso que, se este
meio “arqueólogo” meio “cínico cético” escolheu operar sempre através das balizas e
do léxico da ciência, talvez o tenha feito exatamente para envolvê-la em dúvidas e
especulações, dissociá-la da verdade.
84
Cf. DAHER, 1984, p. 161.
85
Tradução livre da autora, a partir de versão inglesa da citação utilizada no artigo Flávio de
Carvalho: Media Artist Avant la Lettre (Cf. LEITE, 2004).
81
por acaso, ambas as disciplinas incorrem pelas ciências humanas e consideram o
sujeito e a subjetividade como pressuposto maior para seus estudos.
86
Em entrevista concedida a Silveira Peixoto, Flávio de Carvalho fala sobre suas leituras:
“anos atrás, quando li Nietzsche, senti-me fortemente comovido pela selvageria poética e pela
profundeza da essência humana, que nele se contêm. Nietzsche tornou-se, para mim, a besta
intelectualizada. Gostava e gosto imenso da estranha brutalidade que ele usa, ao lidar com os
bonecos bem vestidos do pensamento e do comportamento. Li Freud e comovi-me com a
polarização sexual de suas idéias. Era perfeitamente natural, para mim, encontrar a Gênese
das coisas no sexo. Não devemos ao sexo o próprio fato de nossa existência? Senti-me
profundamente empolgado com os etnógrafos Sir James Frazer e Malinowsky. Na literatura
da minha profissão, li apenas coisas de engenharia, não podendo suportar literatura sobre
arquitetura, a não ser os anúncios em revistas americanas. (CARVALHO in LEITE, 1994, p.
149)
87
Esta intimidade de Flávio de Carvalho com a bibliografia de Sigmund Freud aparece em
seu acervo pessoal, pertencente hoje ao CEDAE-Unicamp. Dentre títulos de um arquivo
composto por recortes de jornais, cartas e fotografias, a biblioteca de Flávio de Carvalho
82
da Psicanálise entre 1913 e 1914, é traduzido para o português e lançado no Brasil.
No entanto, Flávio de Carvalho conhecera o título nos anos que morou na Europa e, à
altura daquele lançamento, pouco depois do episódio na procissão de Corpus Christi,
redigia seu livro relatando e analisando a contra-caminhada a partir de um marco
teórico em grande parte freudiano.
dispõe de mais de 3.000 livros e contém edições estrangeiras de publicações de Freud, sempre
profusamente anotadas pelo artista.
88
Em Totem e Tabu, Freud estabelece relações entre a Psicanálise e outras disciplinas, como
83
os episódios narrados e das apreciações teóricas empreendidas, portanto, aparecem a
voz particular e a experiência pessoal de Flávio de Carvalho.
84
necessidades de mudança. Temos que recuperar a nossa plasticidade
de primitivo para poder compor o mundo novo (CARVALHO in
LEITE, 1994, p. 91).
91
Dr.
Pedro de Alcântara, Dr. Durval Marcondes, Dr. A.C. Pacheco, Dr. Neves Manta, Dr.
Fausto Guerner, além de José Kliass. Todos eles contribuem com palestra no CAM sobre
temas relacionados a arte e psicanálise.
92
Novamente a diferenciação de agentes de fala se dá por sinais gráficos no texto da
dissertação de mestrado. Os depoimentos de Flávio de Carvalho aparecem em itálico,
seguidos e intercalados pela escrita de Rui Moreira Leite.
85
projetam também sobre o meio artístico indagações sobre a obsolecência de padrões e
a demanda por renovação. Valendo-se da “plasticidade do primitivo”, como já
dissera, o artista acredita poder indicar caminhos para a mudança, ou para a pesquisa
e a instabilidade de pensamento constantes, em lugar de certezas e consolidações.
86
Andrade (1939), além da Série Trágica (1947) (Cf. LEITE, 1994, p. 78). O autor as
analisa, assim como o fizera Daher, a partir da ideia de “linhas de forças”93, vetores
diagonais que tensionam a composição a partir do centro e que, junto com um
esquema de cores vibrantes atribuídas pelo artista, dão à figura dinamismo e
dramaticidade.
O extenso levantamento empreendido por Rui Moreira Leite ao longo de doze anos,
entre mestrado e doutorado, revela um Flávio de Carvalho de “qualidade multímoda”
(Cf. LEITE, 1994, p. 135), dedicado “alternadamente à pintura, ao desenho, à
arquitetura como forma de exercitar permanentemente o raciocínio e de se conservar
jovem” (CARVALHO in LEITE, 1994, p. 11). Na sua obra seguinte, um livro de
93
No texto de apresentação da obra plástica de Flávio de Carvalho, reunida na Sala Especial
da 17a Bienal de São Paulo, em 1981, Rui Moreira Leite define o conceito de “linha de força”
ou “linha psicológica” a partir da obra Retrato de Paula Hoover, desenho em carvão datado
de 1943. O elemento de construção pictórica capaz de instaurar uma “introspecção subjetiva
entre o modelo e o artista” aparece expressivamente na produção das décadas de 1940 e 1950.
(cf. LEITE, 1983, pp. 31-32).
87
iniciação à trajetória do artista, editado e distribuído pelo Senac em 2008, o autor
adota outro termo para esta mesma definição: “artista total”.
Cunhado na virada do século XIX para o XX, o termo “arte total” (do alemão
“gesamtkunstwerk”) designa a extensão da arte por todos os aspectos da vida
cotidiana. Deste modo, o ideal de “totalidade” alicerça uma prática artística
interdisciplinar e, de alguma maneira, engajada socialmente. Segundo Domenico De
Masi, a arte total é a “utopia de um único homem que domine a complexidade das
diversas formas do saber e controle suas múltiplas práticas.” (DE MASI, 1997, p.
177) Richard Wagner, apoiado por Friedrich Nietzsche, é um dos primeiros a executar
em obra esta utopia, ao passo que é capaz de, ineditamente, articular música, artes
plásticas, teatro e poesia na montagem de um espetáculo.
88
as classes, e, por outro, como parte do reaquecimento da vida metropolitana e da
sociedade de massa; por um lado, entre o humanismo e o espírito comunitário, por
outro, entre o funcionalismo e o racionalismo industriais. Este impasse é decisivo na
definição de uma série de tendências do programa da escola e da arquitetura moderna
européia daquela primeira metade do século XX.
95
O
encontro aconteceu em 1929, na casa de um mecenas paulistano, quando da primeira vinda de Le
Corbusier ao Brasil. Flávio de Carvalho acompanhava o pensamento do arquiteto suíço pela revista
L’Esprit Nouveau, fundada por Le Corbusier em 1886 junto com Amedée Ozenfant (1886 – 1966). O
biógrafo J. Toledo narra a situação do encontro: “E, ali, no calor do amistoso encontro, enquanto
metralhavam, Flávio, lesta e furtivamente, apanha seu bloco de desenhos e, muito ágil, faz um retrato
caricato de La Corbusier, que só ia ouvindo o agudo interrogatório: “—Acha que a arquitetura é um
problema filosófico? Deve a arquitetura ser lógica? Que é lógica? Deve a arquitetura ter cor? Qual é
o fator predominante: a cor, a forma ou a idéia funcional? Que é que constitui o agradável na cor e na
forma? É esse agradável objetivo ou subjetivo? Como introduzir o valor psíquico na arquitetura?
Deve-se ou não sacrificar a idéia de estrutura pelo fator psíquico? Deve o desejo de progredir
sujeitar-se ao homem ou o homem sujeitar-se ao desejo de progredir? (TOLEDO, 1994, p. 76)
89
Ironicamente, o artista adota “Efficácia” como pseudônimo nos concursos dos
quais participa. Talvez para expressar o desejo de não exatamente projetar uma
máquina social cuja eficiência seria garantida pelo planejamento e pelo controle das
formas de vida, mas para deflagrar um espaço a priori ineficiente e
desfuncionalizado, concebê-lo como grau zero. “Eficiente”, na acepção de Flávio de
Carvalho, é o espaço que promove liberdade e experiência, tanto dos indivíduos que o
projetam quanto da coletividade que dele usufrui.
A Fazenda Capuava (1936) é descrita por Dulce Carneiro, em matéria para a Revista
Casa & Jardim, em 1958, como um projeto “exclusivamente poético”, “produto puro
da imaginação” (Cf. CARNEIRO in LEITE, 1994, p. 83). A poesia e as manifestações
de subjetividade, naquilo que têm de presencial e corpóreo (cênico, poder-se-ia
concluir, pela trajetória do artista também no teatro) mas também de “místico” e
ancestral, são para a jornalista o grande diferencial de Flávio de Carvalho em relação
aos seus contemporâneos na arquitetura. Em 1966, o escritor publica no Jornal da
Arte:
90
primitivo da palavra. O que a fazenda tem de melhor é a arte
aplicada do seu interior – móveis e cortinas. Não tratamos com um
profissional de arquitetura, mas com um estranho poeta à procura de
um ambiente cenográfico. Para isso não repele os meios da
construção moderna mas ao mesmo tempo, isola-se em templos e
túmulos. (Ibid., pp. 85-86)
96
Sobre o projeto da Universidade da Música, de 1954, Flávio de Carvalho relata: “o partido
adotado foi o da força vital da paisagem das montanhas. A necessidade de isolar o homem na
montanha com 360 graus sobre os vales contornantes, a fim de que ele possa meditar e
absorver a força telúrica da paisagem e produzir obras com raízes básicas. (CARVALHO in
LEITE, 1994, p. 115)
97
Apesar de as principais fontes de pesquisa da arquitetura de Flávio de Carvalho
apresentarem a Fazenda Capuava como uma construção em concreto armado, Rui Moreira
Leite alega, em visita guiada à expo do MAM video-documentada por Cacá Vicalvi, que a
casa é feita em alvenaria.
98
Flávio de Carvalho realiza, em 1957, o figurino e a cenografia de Cangaceira, obra a ser
encenada pelo Balé do IV Centenário para a I Bienal de Artes Plásticas do Teatro. Os croquis
e o modelos ganham prêmio e, por isso, deveriam participar da IV Bienal de São Paulo,
naquele mesmo ano. No entanto, antes disso, divergências entre o artista e a comissão de
organização retiram o material da mostra. (Cf. LEITE, 1994, p. 128)
91
do Parque Ibirapuera, de Oscar Niemeyer –, declara-se “indiferente”. Rui Moreira
Leite aponta que, para Flávio de Carvalho, à essa altura, do auge de sua reclusão e de
seu radicalismo, não existia arquitetura brasileira. Isso porque, diz o autor, “ou os
projetos seriam cópias de projetos europeus, ou a internacionalização resultaria numa
utilização dos mesmos materiais que determinariam a mesma forma em qualquer
parte do mundo, independentemente da nacionalidade”. (LEITE, 1994, p. 115)
99
O depoimento foi retirado do trecho de entrevista reproduzida por Rui Moreira Leite e
publicado originalmente no Diário de S. Paulo, em 3 de fevereiro de 1952: “De modo geral, a
chamada arte abstrata é um refúgio para a incompetência e mediocridade. É muito mais fácil
fazer abstrações superficiais e inúteis que passar pelo duro processo de aprendizagem das
artes plásticas. Hoje em dia o mundo está cheio de menininhas e menininhos que aparecem às
dezenas, aos milhares, entupindo as galerias com abstrações pueris. São tantos os
abstracionistas que já nem conseguem chamar a atenção sobre si mesmos. (Cf. CARVALHO
in LEITE, 1994, p. 110)
100
Relatada à Folha da Noite de 27 de novembro de 1953: “A abstração, a ausência de
assunto, tem importância inegável. Ela se desenvolve através da arquitetura. A arte abstrata é
algo maravilhoso. (v. A pintura moderna é mais importante, pois focaliza seus problemas com
maior eficiência – fala Flávio de Carvalho – Caminhamos para a desumanização da pintura –
As figuras são abolidas – O que vale é o equilíbrio de formas e cores – Não podemos
progredir”. (Cf. Ibid., p. 111)
92
Munido de justificativas como estas, Flávio de Carvalho participa da
polarização entre figurativos e abstratos da 1a Bienal de São Paulo, em 1951. Opostos
a ele, estavam o crítico Mário Pedrosa e o jovem artista Waldemar Cordeiro, recém
egresso de uma produção expressionista e engajado, a essa altura, com a pesquisa
geométrica que resvala no início do Concretismo em São Paulo. A posição de Flávio
de Carvalho em favor da figura e da tematização do sujeito não o impedem de realizar
obras abstratas como Paisagem Interior e Paisagem Mental, ambas de 1955, e de
aplicar, com maior incidência, geometrias de cores nos fundos dos retratos que
produziu.
101
No artigo “Em defesa da Bienal”, publicado no Jornal do Brasil em 30 de maio de 1957, o
crítico escreve: “eu vi em Ibirapuera o seu envio e votaria com o júri. Flávio paga aqui o
preço de seu permanente amadorismo. O seu mal é a pluralidade de seus talentos que vai
desde os literários aos plásticos. O pior é que nenhum deles vive e isso o torna um diletante,
um diletante genial em tudo, inclusive no senso de publicidade. (PEDROSA in LEITE, 1994,
p. 128)
93
para o IAB, como membro de uma chapa independente de oposição, formada por
Carlos Heck e Sérgio Ferro (1967) (Cf. Ibid., p. 130-131). No catálogo da exposição
retrospectiva do MAM, em 2010, o autor lembra que o interesse pela atividade de
Flávio de Carvalho também foi “renovado por ocasião da primeira montagem de uma
peça de Oswald de Andrade, O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina”, em 1967. (LEITE,
2010, p. 33)
94
e, por isso, reagindo a outro contexto. Rui Moreira Leite menciona como, nas décadas
de 1960 e 1970, as Experiências foram interpretadas como uma “antecipação das
performances então em voga” (Cf. LEITE, 1994, p. 136). Também poderíamos
imputar na repercussão das Experiências e na constante atividade jornalística de
Flávio de Carvalho as origens de outras ocupações midiáticas como, por exemplo, as
Inserções em circuitos ideológicos (1968 - 1970), de Cildo Meireles, e a Artdoor e a
Arte Classificada (1970), da dupla Paulo Bruscky e Daniel Santiago.
A partir do binômio arte e vida, chave para a arte conceitual, o autor ratifica o
alinhamento de sua pesquisa com uma problemática e um léxico que mobilizam a
produção e a crítica de arte desde os anos 1960. Quando, em 1931, Flávio de
Carvalho identifica em sua obra um “estado fictício experimental”, certamente não se
103
Sobre o assunto, ver pesquisa de Cristina Freire no livro Além dos mapas: os monumentos
no imaginário contemporâneo, publicado pela editora Annablume, em 1997.
95
refere ao termo “experimental” com a especificidade que ele adquire posteriormente.
Sem dispor de outras menções ou atualizações que o artista houvera feito a respeito
do “experimental” e de suas derivações (“experimentação”, “experimentalismo”),
entendo que a terminologia é usada por Rui Moreira Leite com o objetivo de tornar
Flávio de Carvalho contemporâneo ao presente de seu autor, de acessá-lo por meio
das urgências, faculdades e categorias do momento de pesquisa.
Vinte e sete anos depois, em 2010, o artista volta a ser tema de uma grande
retrospectiva, desta vez no MAM de São Paulo. A curadoria de Rui Moreira Leite
naturalmente continua o raciocínio estabelecido em 1983, mas também reflete
inúmeras atualizações relativas ao levantamento de obras de Flávio de Carvalho.
Interesso-me aqui por apontar algumas dessas relações entre ambas as iniciativas
curatoriais à luz de uma obrigatória atenção aos contextos históricos e institucionais a
que cada uma delas corresponde. Vale considerar, portanto, além do conteúdo das
mostras, quais fatores externos motivam a busca pelo artista e geram significados para
a sua obra neste intervalo de três décadas em que o Brasil passa de país periférico
para potência econômica e artística no cenário internacional.
96
de ambas as Bienais é semelhante, sempre dividida em três núcleos, dos quais um
detém-se na produção corrente, outro lança-se sobre uma produção não institucional
(“arte incomum” em 1981 e arte plumária em 1983) e um terceiro, o chamado Núcleo
Histórico, dá especial visibilidade a personagens ou temáticas de um “passado
recente” e de forte adesão à contemporaneidade (arte postal em 1981 e Flávio de
Carvalho em 1983).
Com este projeto quadrienal, Zanini torna-se pioneiro na adoção do termo
“curadoria” para designar suas atividades na instituição. Também pela primeira vez
na história das Bienais, o professor abole os espaços reservados para as
representações nacionais e permite-se organizar artistas e obras de origens diferentes
(mesmo que ainda largamente indicados pelos consulados de cada país) a partir de
critérios de “relações e analogias de linguagem” (ZANINI, 1981, p. 19).
104
Flávio de Carvalho participou das quatro primeiras Bienais (1951, 1953, 1955 e 1957)
havendo sido selecionado por um júri de especialistas. Na quarta edição, este júri premia o
artista com o cenário do balé A Cangaceira, de 1953. O prêmio, entretanto, só chega a ser
entregue em 1963, junto com a exibição de obras do artista numa Sala Especial, a primeira
dele. Outras participações acontecem em 1965 e 1967, nas 8a e 9a Bienais. A segunda Sala
97
diferencia-se por localizá-lo como “motriz do presente” (contemporâneo) e não
apenas cânone de um passado modernista estabelecido e encerrado.
Especial vem em 1971, na décima primeira edição. Em 1973, Flávio de Carvalho morre em 4
de junho e obras suas integram a 12a Bienal, entre outubro e novembro. Após mais uma
participação em 1979 (15a) e a terceira e última Sala Especial, em 1983 (17a), ainda ocorrem
inclusões de suas obras nas Bienais de 1979 (15a), 1989 (20a), 1994 (Bienal Brasil Século
XX), 1998 (24a) e 2010 (29a).
105
Segundo o catálogo geral da 17a Bienal, Jorge Aristides de Sousa Carbajal é responsável
pelo projeto de montagem e também pela comunicação visual da mostra. Para tanto, conta
com a colaboração de Fernando Piva Campana e Fábio Luis Caruso de Albuquerque
Maranhão.
106
A exposição reuniu 56 pinturas e 61 desenhos do artista.
98
Imagem 16 - Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17° Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico
Wanda Svevo.
A Sala Especial pensada por Walter Zanini e Rui Moreira Leite visa à criação
de acesso a este legado não apenas através da reunião e da exposição de vestígios
físicos das décadas de trabalho de Flávio de Carvalho, mas também através da
promoção da fala de especialistas em um debate107 e em uma compilação de textos no
catálogo108. Sobre todas estas mídias – a exposição, o seminário, o catálogo – incide a
motivação da dupla de pesquisadores de indicar, ou ao menos sugerir, uma taxonomia
para a obra do artista. Desta forma, não só critérios cronológicos mas também
disciplinares e temáticos balizam agrupamentos e explicitam leituras ao longo da
narrativa da exposição.
107
A mesa foi composta por Sangirardi Jr., Nicanor Miranda e Mário Barata e tinha Rui
Moreira Leite como mediador.
108
No catálogo especialmente dedicado à Sala Especial, após um texto de apresentação
redigido por Water Zanini e um panorama de Rui Moreira Leite sobre arte e arquitetura, são
publicados um texto de Nicanor Miranda sobre a produção cenográfica do artista e, para
fechar, depoimentos pessoais de Sérgio Milliet, Newton Freitas e Sangirardi Jr.
99
O início da produção do artista, ainda fortemente pautado por uma escola
européia de desenho e pintura, é exemplificado com a seqüência de obras Mulher
Sentada, Cabeça do meu modelo (1918) e Retrato de Marina Crissiúma (1922).
Feitas em pastel, no intervalo de quatro anos que compreendem o fim da temporada
de estudos e a vinda para o Brasil, as obras sugerem uma época. Sua reunião constitui
uma das balizas cronológicas da curadoria. Outra baliza presente é a da relação de
Flávio de Carvalho com as ciências humanas. Sua afinidade com a psicologia, por
exemplo, é ressaltada por meio da justaposição do Autoretrato de 1965 com retratos
dos psicanalistas Julian Philips (1972) e Wilfred R. Bion (1973). As analogias
materiais e pictóricas das pinturas (o gestual dos modelos, as “linhas de força”) são
evidentes, mas a curadoria, neste caso, acontece no momento em que aponta para
dados exteriores às obras e pertencentes ao contexto de vida do artista.
As quatro seqüências supracitadas são repetidas por Rui Moreira Leite em sua
curadoria de 2010. Passam-se os anos e mantêm-se algumas das categorias e leituras
formuladas em 1983. Mantém-se um raciocínio de pesquisa ancorado
majoritariamente no levantamento e na verificação de dados e, por isso, regido por
uma dinâmica de tempo dilatada e acumulativa. A retrospectiva do MAM configura-
se como mais uma etapa da trajetória de Rui Moreira Leite pela obra de Flávio de
Carvalho. Um percurso maturado ao longo de 27 anos de íntima convivência do
pesquisador com suas fontes.
100
outra instituição, apesar da trama histórica que conecta Bienal e MAM. Neste novo
contexto, impõem-se o perfil e a missão institucional do museu, impõem-se seu
acervo e as narrativas possíveis a partir dele. Não existe uma representação expressiva
da obra de Flávio de Carvalho na coleção do MAM, apenas alguns nus em nanquim109
e o óleo Autorretrato, de 1965. Portanto, pode-se dizer que a realização da
retrospectiva não se baseia na necessidade de mostrar a coleção do museu, mas sim na
pertinência que a obra do artista possui para um debate crucial para a instituição: a
passagem do moderno para o contemporâneo.
109
São nove nus ao total: quatro da série Mulheres, sendo um de 1961, dois de 1966 e dois de
1968; Retrato de Glória, de 1965; Sem título, de 1966; Rosto de mulher, de 1969 e Pássaro
Cibernético, de 1969.
110
Em assembléia na Rádio Eldorado, sócios do MAM como Paulo Mendes de Almeida e
Mário Pedrosa, redigem a ata de um novo estatuto para o museu. Este documento diz que “O
Museu de Arte Moderna de São Paulo, sociedade civil sem fins lucrativos, políticos ou
religiosos, tem por objetivo constituir um acervo de artes plásticas modernas, principalmente
brasileiras, incentivar e difundir a arte contemporânea”. A partir dai, ainda sem sede própria,
recomeça a história do MAM.
101
eventos integram as comemorações dos 60 anos do MAM e consolidam uma política
institucional que estabelece a transversalidade entre o moderno e contemporâneo.
111
O colóquio aconteceu nos dias 7 e 8 de novembro de 2008. A exposição foi inaugurada no
dia 16 de outubro e seguiu aberta para visitação até 14 de dezembro do mesmo ano.
112
Em 2007, já com a curadoria-geral de Felipe Chaimovich, foram nomeados para o
conselho consultivo de arte do MAM os críticos Annateresa Fabris, Luiz Camillo Osório e
Lisette Lagnado.
113
Exposição Marcel Duchamp: uma obra de arte que não é uma obra de arte, em cartaz de
15 de julho a 21 de setembro de 2008, na Grande Sala. Na Sala Paulo Figueiredo, durante o
mesmo período, foi exposta a mostra Dicuamp-me, com curadoria de Felipe Chaimovich.
114
Exposição Roberto Burle Marx 100 anos: a permanência do instável, em cartaz de 17 de
julho a 13 de setembro de 2009, na Grande Sala. Na Sala Paulo Figueiredo, durante o mesmo
período, foi exposta a mostra Jardim da infância: os irmãos Campana visitam o MAM.
102
Comparada à Sala Especial de 1983, a mostra retrospectiva dispõe de menos
obras e maior documentação acerca delas115. Esta mudança é conseqüência do acesso
dificultado às coleções, ao longo dos anos, e também do desgaste de alguns originais,
como o blusão utilizado na Experiência n°3, que estava na Bienal e, em 2010, já não
mais existia. As reproduções e documentos, contudo, permitem a tematização de
conteúdos inacessíveis e, principalmente, enriquecem a abordagem de projetos e
vivências de natureza imaterial.
Imagem 17 - Slideshow de imagens da Experiência n°2. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
115
No
texto do catálogo, Rui Moreira Leite define os elementos que compõem a exposição:
“ao lado das obras em suporte tradicional, ampliações fotográficas documentam sua obra
arquitetônica, registram seus projetos em decoração de interiores, cenografia e monumentos.
As vitrines exibem volumes da biblioteca do artista, revistas e documentos originais que
permitem reconstruir seus interesses e ligações”. (LEITE, 2010, p. 25)
103
Imagem 18 - Fotografias da Experiência n°4 e retratos do artista (1965) e dos psicanalistas Julian Philips
(1972) e Wilfred R. Bion (1973). Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
Algumas das palestras do CAM aparecem na forma de publicações posteriores, como
Onde o proletariado dirige, de Osório César, A União Soviética, um novo mundo, de
Caio Prado Júnior e Xangai, de Nelson Tabajara de Oliveira. Já os livros e registros
da temporada européia indicam as origens dos Salões de Maio, que também são
referendados a partir da inclusão de três pinturas participantes da edição de 1939:
Retrato de Mário de Andrade, Retrato de Oswald e Julieta Barbara (1939) e Mulher
Esperando (1937).
Imagem 19 - Vitrine com livros da temporada do artista na Europa. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte:
MAM-SP.
104
No conjunto de obras em suportes tradicionais, há duas inclusões inéditas, segundo
revela o curador em visita guiada documentada por Cacá Vicalvi116. A primeira delas
é o Retrato de Jorge Amado, de 1945, nunca antes exposto por restrições impostas
pelo modelo e proprietário. Os escritor morreu em 2001 e seus herdeiros passaram a
permitir o empréstimo. Rui Moreira Leite pontua esta obra como pertencente ao
momento (a década de 1940) de maior expressividade no desenho e na pintura de
Flávio de Carvalho. Suas claras “linhas de força” a aproximariam da consagrada Série
Trágica, mas a promessa de abertura da nova sede do MAC no prédio do antigo
Detran-SP117 mantiveram a obra reservada e, por isso, indisponível.
Imagem 20 - Entrada da mostra retrospectiva do MAM, com Projeto para o viaduto do Chá... de 1934.
Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
116
A visita guiada foi documentada a pedido do MAM e consta na biblioteca do museu para
consulta.
117
A sede começou a ser reformada em 2008 e teve vários anúncios frustrados de abertura.
Nesta ocasião, ela não aconteceria, mas, mesmo assim, não houve tempo hábil para efetivar o
empréstimo.
105
Se comparado com a vista bucólica do Viaduto Santa Efigênia à noite, do mesmo ano
de 1934 e também presente na mostra, o projeto revela as ambições de modernização
de Flávio de Carvalho. Sua visada como partido inicial da retrospectiva de Rui
Moreira Leite indica que, a despeito de todas as diacronias e discordâncias, é aquela
cidade, ainda pacata e provinciana, o eixo de criação do artista, lugar por onde transita
e em relação ao qual se posiciona, público que deseja atrair e provocar ao longo de
toda a sua vida e obra.
106
CAPÍTULO 3
FLÁVIO DE CARVALHO EM CURADORIAS CONTEMPORÂNEAS
107
3.1 Da história das exposições às exposições históricas
118
Tradução livre da autora.
119
Diretor do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia e Presidente do International
Committee for Museums and Collections of Modern Art (Cimam).
108
modernidade, mas modernidades múltiplas e interrelacionadas” (Cf. BORJA-VILLEL
in WALLACE, 2010, p. 257), no “Sul geopolítico” do mundo, “onde as instituições
são frágeis” e ainda marcadas por reminiscências do eurocentrismo modernista,
120
“Não é difícil identificar, na atitude do autor da Série Trágica, uma adesão irrestrita aos
princípios do ateísmo. Vale lembrar que, desde os primórdios, o pensamento ateu empreende
uma crítica radical da exploração do medo no momento da morte, com forte impacto nas
representações fúnebres” (Cf. MORAES in LAGNADO, 2009, p. 9) afirma Eliane Robert
Moraes no artigo “Mãe, medusa”, publicado no Caderno Videobrasil Clio, pátria, editado em
2009 por Lisette Lagnado.
121
Características como o ateísmo, a “escatologia” e o “informe” levam a autora a associar
Flávio de Carvalho a George Bataille, escritor de cujo livro A história do olho foi tradutora e
sobre quem publica artigos e apresenta trabalhos desde os anos 1990.
109
do artista foge à “tradição interpretativa do nosso modernismo à luz do nacional” e,
por isso, demanda a constituição de “outras chaves de leitura”122.
Além da Sala Especial da 17a Bienal de São Paulo (1983), outras mostras
foram escolhidas aqui para cobrir o período de 1999 a 2010. O conjunto, sempre
redutor em relação a um universo maior, considerou aspectos da dissidência de Flávio
de Carvalho em relação ao modernismo “oficial” brasileiro. Boa parte das exposições
apresenta a obra do artista como precursora de práticas e debates afinados com o
sentido de contemporaneidade. São elas: 100 anos do revolucionário romântico,
(1999); Da Antropofagia a Brasília (2002), MAM na Oca (2008); Grito e Escuta, 7a
Bienal do Mercosul (2009), A cidade do homem nu; Desvios de la deriva:
Experiencias, travesías y morfologías e Há sempre um copo de mar para um homem
navegar, 29a Bienal de São Paulo (2010). A abordagem crítica destas mostras ao
longo do capítulo, no entanto, não obedece a critérios cronológicos e sim a afinidades
conceituais.
122
No artigo “‘Sulrealismo’ à vista”, publicado no caderno “Ilustríssima”, da Folha de S.
Paulo, em 20 de fevereiro de 2011.
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2002201105.htm) (visualizado em 17/12/11).
110
No ano do centenário de Flávio de Carvalho, 100 anos de um revolucionário
romântico é a única mostra a ser concretizada123 com fins retrospectivos. Além da
exposição, o projeto promove também uma remontagem da peça O Bailado do Deus
Morto. Dirigida por José Possi Neto, seguindo o roteiro de 1933, a peça ganha um
preâmbulo em que o ator Cláudio Mamberti, no papel de Flávio de Carvalho, lê um
trecho do ensaio “A origem animal de Deus”, publicado em 1973 junto com o texto
do Bailado.
É curioso notar, que, no entanto, talvez pela precariedade dos acervos da obra
do artista, os elementos cênicos – concebidos com a finalidade de promover uma
“experiência” de acesso e não substituir os objetos originais – terminaram sendo
incorporados à coleção do MAB-Faap. Ao final da retrospectiva e de sua itinerância,
o conjunto de máscaras, uma maquete da Fazenda Capuava e um saiote do New Look
passam a integrar a coleção do museu, tornando-se intermediários do legado
conceitual do artista.
123
Rui Moreira Leite teria sido convidado pelo Centro Cultural Fiesp, mas não dá
continuidade ao projeto e a sua retrospectiva acaba não acontecendo. Este cancelamento e a
ausência de iniciativas em homenagem ao centenário de Flávio de Carvalho em São Paulo
levam a Faap a itinerar “100 anos...” para a cidade.
124
Foram quatro dias de espetáculo, 19, 20, 26 e 27 de outubro. A mostra ficou em cartaz na
Faap entre 19 de outubro e 29 de novembro. Antes disso, passou pelo CCBB-RJ de 4 de
agosto a 26 de setembro.
125
Em entrevista à autora desta dissertação, em São Paulo, em 12/12/11.
111
linguagens, enspecialmente entre a arte, a arquitetura e o teatro, inspiram o projeto
expográfico de Gláucio Ribeiro126.
Imagem 21 - Entrada de 100 anos de um revolucionário romântico, 1999. Fonte: Arquivo Denise Mattar.
112
recebem o texto curatorial e criam uma convergência visual para uma única obra
exposta neste ambiente de entrada, o Auto-retrato de 1965.
Imagem 22 – Primeira sala da mostra 100 anos.... Fonte: Arquivo Denise Mattar.
113
Imagem 23 - Detalhe da expografia que cita a montagem da primeira individual de Flávio de Carvalho.
Fonte: Arquivo Denise Mattar.
A segunda sala da retrospectiva aborda a cenografia e a arquitetura de Flávio de
Carvalho e as vincula com sua produção pictórica e com as Experiências. As
presenças da Série Trágica (1947) e da escultura Auto-retrato psicológico (1930), e
também a menção à Experiência nº3, todas elas causadoras de grande repercussão na
imprensa, aparentemente desviam do assunto principal mas terminam por contribuir
com a noção de um pensamento espacial da ordem do acontecimento, da atuação
individual e da provocação de uma esfera pública de convívio e embate. Esta noção
teria a ver com uma “arquitetura quase virtual”129 ou, nas palavras de Rui Moreira
Leite, uma “arquitetura midiática”. O autor é apontado por Denise Mattar como uma
das fontes principais de sua pesquisa, junto com Luiz Carlos Daher e o biógrafo J.
Toledo130, que presta uma consultoria para a curadoria da mostra.
129
Cf. MATTAR, 1999, p. 9.
130
No texto de apresentação do catálogo, Denise Mattar diz ter usado como fontes Volúpia da
forma e Arquitetura e Expressionismo, de Luiz Carlos Daher; o catálogo da Sala Especial da
17a Bienal de São Paulo, de Rui Moreira Leite e Walter Zanini, e o livro O comedor de
emoções, de J. Toledo.
114
Imagem 24 - Réplica do cenário de Bailado Dorinha Costa com máscaras do Bailado do Deus Morto ao
fundo. Fonte: Arquivo Denise Mattar.
Imagem 25 – Totem de Flávio de Carvalho lançando o New Look, detalhe do cenário do Bailado Dorinha
Costa e cronologia ao fundo. Fonte: Arquivo Denise Mattar.
115
Surrealismo132. Na ocasião, agencia a reedição do livro Experiência nº2: uma possível
teoria e uma experiência: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi, pela Nau
Editora.
132
A mostra foi realizada nos CCBB do Rio de Janeiro e de São Paulo.
133
Selecionados e apresentados por Valeska Freitas.
134
Até 2009, a série havia publicado volumes sobre Milton Dacosta, Oswaldo Goeldi, Mestre
Valentim, Neoconcretismo (um movimento, única exceção), Alfredo Volpi, Joaquim Guedes,
Marc Ferrez, Sergio Camargo, Vital Brazil, Vilanova Artigas, Burle Marx, Franz Weissmann,
Jorge Guingle, Lucio Costa e Mira Schendel.
116
“concentração na figura humana e ênfase no gesto cromático”135. Pela
interdisciplinaridade e pelo vanguardismo em antecipar estratégias de trabalho e
debates contemporâneos, Luiz Camillo Osório reconhece a trajetória do artista como
uma “poética em trânsito”136.
Passados oito anos, esta interpretação do autor sobre Flávio de Carvalho e sobre uma
necessidade de, à luz dele e de outros artistas, “ampliar nossas leituras do
modernismo”, é projetada na exposição MAM 60, da qual Luiz Camillo Osório é
curador junto com Annateresa Fabris137. Realizada em comemoração aos 60 anos do
Museu de Arte Moderna de São Paulo, a mostra parte do acervo e da história da
instituição, marcada por investimentos, hiatos e uma “complexidade intrinsicamente
moderna, que recusa modelos padronizados” (OSÓRIO, 2008, p. 101).
135
Cf. OSÓRIO, 2009, p. 10.
136
O termo dá titulo ao texto de Luiz Camillo Osório (Cf. OSÓRIO, 2009, p. 7)
137
Ambos, a esta altura, eram membros do conselho consultivo do Museu de Arte de São
Paulo, junto com Lisette Lagnado.
138
Foram levadas para o MAC-USP 419 obras de Ciccilo, 19 obras de Yolanda Penteado e
1.234 obras adquiridas depois da constituição do MAM (Cf. TEIXEIRA DA COSTA in
FABRIS e OSÓRIO, 2008, p. 91).
117
Por meio desse breve histórico, vê-se que o MAM fez uma opção pela
contemporaneidade. Opção esta que terminou encurtando a travessia do moderno para
o contemporâneo na instituição e vinculando-os definitivamente dentro de sua prática
reflexiva. No colóquio internacional Histórias e(m) movimento, realizado também por
ocasião do aniversário do museu, durante o período da exposição MAM 60139, esta
travessia e estes vínculos são discutidos por críticos em quatro painéis temáticos. A
iniciativa enfatiza a especulação teórica que o museu deseja, mas, mais ainda, precisa
fazer para compreender e repertoriar criticamente sua história. Além disso, o colóquio
demarca o posicionamento do MAM em um debate maior sobre o estatuto e os
desafios do museu na contemporaneidade.
118
“primeiro acervo”142, doado para o MAC, em 1963, rememoram o passado
“subtraído” do MAM. O início da exposição aborda este período de instabilidade,
entre final dos 1950 e meados dos 1960, a partir de uma linha do tempo e de um
conjunto de documentos, como cartas, cartazes e catálogos originais da época.
Algumas obras do acervo do MAC já aparecem nesta abertura, outras vão sendo
inseridas ao longo da expografia da mostra, desenhado por Felipe Tassara, Maria
Moon, Iara Terzi Ito e Tânia Mara Menecucci.
142
Em ensaio extenso publicado no catálogo da mostra, a curadora Annateresa Fabris analiza
o que chama de “primeiro acervo” do MAM. (Cf. FABRIS in FABRIS e OSÓRIO, 2008, pp.
15 – 90).
143
De Flávio de Carvalho, o acervo do MAM possui a pintura Auto-retrato, de 1965; quatro
desenhos em nanquim intitulados Mulheres, sendo dois de 1966 e dois de 1968; os desenhos
Sem título (1966) e Pássaro Cibernético (1969). De Alfredo Volpi, a coleção dispõe de duas
têmperas e dois óleos: Mastros (1970), Portais e Bandeirinhas (déc. 1960), Mulata (1927) e
Mogi das Cruzes (1932 / 1933).
144
De autoria de Carlito Carvalhosa (Duas águas) e João Doria (Editora Anônima).
119
A proposta é que se vejam essas obras inseridas dentro de uma
temporalidade heterogênea, assumidamente desencantada, não
obstante a crença na possível instauração de censuras na história,
que fundam, no indivíduo e na sociedade, uma potência nova
relativa à capacidade de tornar-se outro. (p. 121)
Deste modo, dois aspectos da obra de Flávio de Carvalho são designados como
geradores de “potências” que se projetam sobre o presente e aderem à produção
contemporânea. Primeiro, o “estranhamento figurativo” do artista e características
como a “materialidade” e a “sensualidade” motivam uma aproximação de desenhos
seus145 com trabalhos de Wesley Duke Lee (A zona: preparation drawing for a
drawing, 1966 e Retrato de Lydia ou A respeito do filho, 1969 / 1970), Roberto
Magalhães (Pandora libertando os males do mundo, 1963 e Auto-retrato, 1965),
Marcelo Grassman (Incubus Sucubus nº2, 1953 e Noturno, 1955), Marcelo Solá (Sem
título, 1997) e Ernesto Neto (O tempo e o sono vazio, 2000).
145
Todos pertencentes ao acervo do MAM, exceto a Série Trágica, que integra a coleção do
MAC.
120
Verônica Stigger146, no ensaio Retratação da morte: a Série Trágica de Flávio
de Carvalho, destaca a inconclusividade da cena narrada147 e o foco no processo em
detrimento da composição final de uma imagem. Já a interpretação dada por Eliane
Robert Moraes associa o ateísmo de Flávio de Carvalho a gestos, como o da Série
Trágica, de confronto dos “imutáveis dogmas cristãos [o medo da morte sendo um
deles] valendo-se de uma escandalosa lucidez.” (Cf. MORAES in LAGNADO, 2009,
p. 10)
146
A autora concluiu em 2010 pós-doutorado no MAC-USP sobre as Experiências de Flávio
de Carvalho. Já publicou artigos sobre o artista, como Retratação dentro da morte: a Série
Trágica de Flávio de Carvalho (Revista Crítica Cultural, vol. 4, N°2, 2009) e “A vacina
antropofágica” (Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: Realizações
Editora, 2011).
147
“A pequena narrativa criada por Flávio de Carvalho – em que cada desenho é o registro de
um instante – se exime de chegar a seu termo. (STIGGER, 2009, p. 6)
148
Cf. OSÓRIO in FABRIS e OSÓRIO, 2009, p. 119.
121
3.2 Correspondências latino-americanas
Entre 2009 e 2010, dois dos principais eventos do meio artístico brasileiro, a 7a Bienal
do Mercosul (2009) e a 29a Bienal de São Paulo (2010), inserem Flávio de Carvalho
em seus partidos curatoriais. Antes mesmo de versar sobre os motivos de inclusão
específicos a cada um dos casos citados, vale notar que sua presença em ambas as
mostras denota o desejo de afirmar sua extemporaneidade como moderno e seu
vanguardismo em relação à arte contemporânea. Mais ainda, vale perceber a forma
como Flávio de Carvalho é situado como deflagrador e participante de discussões
relativas à identidade latino-americana que mobilizam, principalmente durante os
regimes ditatoriais dos anos 1960 e 1970, a constituição de focos de criação e
resistência no continente.
149
Este assunto é largamente abordado pelo artista e crítico uruguaio Luis Camnitzer em
Didactica de La liberación: arte conceptualista latinoamericano, publicado em 2008. Outra
autora dedicada a esta discussão é Mari Carmen Ramirez, em ensaios como “Tactics for
Thriving on Adversity: Conceptualism in Latin America, 1960-1980" e “Brokering Identities:
art curators and the politics of cultural representation”, publicados no livro da exposição
Global Conteptualism: points os origin 1950s – 1980s, de 1999 (ALBERO, CAMNIZTER e
WEISS, 1999), e na coletânea Thinking about exhibitions, de 1996 (FERGUSON, NAIRNE e
GREENBERG, 1999), respectivamente.
122
Por fim, é preciso mencionar o papel da recente criação da Rede Conceitualismos
do Sul, plataforma de cerca de 45 artistas e pesquisadores150 de todo o continente,
criada no fim de 2007 devido à “necessidade de intervir politicamente nos processos
de neutralização do potencial crítico de um conjunto de ‘práticas conceituais’ que
passaram a acontecer na América Latina a partir de 1960” (CANAL
CONTEMPORÂNEO, 2007), como afirma um documento assinado por 25 de seus
membros e publicado no site da organização.
150
Em texto publicado no site Canal Contemporâneo em 2009, em que se comentava o
episódio do incêndio do acervo de Helio Oiticica, são apresentados os seguintes integrantes
da Rede Conceitualismos do Sul: “Halim Badawi (Bogotá), Joaquín Barriendos (México),
Assumpta Bassas (Barcelona), Patricia Bentancur (Montevidéu), Marcus Betti (São Paulo),
Carina Cagnolo (Córdoba), Fernanda Carvajal (Santiago/Buenos Aires), Graciela Carnevale
(Rosario), Jesús Carrillo (Madri), María Fernanda Cartagena (Quito), Helena Chávez Mac
Gregor (México), Lía Colombino (Assunção), María Clara Cortés (Bogotá), Fernando Davis
(La Plata/Buenos Aires), María de los Ángeles de Rueda (La Plata), Felipe Ehrenberg (São
Paulo), Marcelo Expósito (Barcelona/Buenos Aires), Fernando Fraenza (Córdoba), Cristina
Freire (São Paulo), Pilar García (México), Cristián Gómez Moya (Santiago do Chile), David
Gutiérrez (Bogotá), María Iñigo (Madri), Jens Kastner (Viena), Syd Krochmalny (Buenos
Aires), Ana Longoni (Buenos Aires), Miguel López (Lima/Barcelona), William López
(Bogotá), Octavio Mercado (México), André Mesquita (São Paulo), Fernanda Nogueira (São
Paulo/Barcelona), Soledad Novoa (Santiago do Chile), Luisa Ordóñez (Bogotá), Clemente
Padín (Montevidéu), Juan Pablo Pérez Rocca (Buenos Aires), Alejandra Perié (Córdoba),
Júlia Rebouças (Minas Gerais), Cristina Ribas (Rio de Janeiro), Suely Rolnik (São Paulo),
Juan Carlos Romero (Buenos Aires), Sylvia Suárez (Bogotá), Mabel Tapia (Paris/Buenos
Aires), Emilio Tarazona (Lima), Paulina Varas (Valparaíso), Ana Vidal (Bahía Blanca),
Jaime Vindel (León/Madri), Rafael Vital (São Paulo), Isobel Whitelegg (Londres)”. (CANAL
CONTEMPORÂNEO, 2009)
(http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/002592.html - visualizado em 21 de
novembro de 2011)
151
O primeiro encontro da Rede aconteceu entre 23 e 25 de abril de 2008, no auditório do
MAC-USP, sob a coordenação das Profa. Cristina Freire (USP) e da Profa. Ana Longoni
(Universidade de Buenos Aires). Dentre os palestrantes, estavam as coordenadoras; os artistas
Felipe Ehrenberg, Clemente Padin, Graciela Carnevale (Tucuman Arde) e Paulo Bruscky; e
os pesquisadores Fernando Davis, Soledad Navoa Danoso, Miguel López, Emílio Tarazona,
Antoni Mercader e Suely Rolnik. Os anais do seminário foram publicados em 2009 pela
Annablume Editora. Neste mesmo ano, aconteceu um segundo seminário, no Centro Cultural
Parque de España, em Rosário, Argentina.
123
quais debruça-se o meio crítico do qual fazem parte seus principais autores e
articuladores.
152
Cf. MEIJERS in FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1996, p. 8
124
O postulado de Luis Camnitzer ratifica a inscrição contextual do termo e suas
conseqüentes filiações aos movimentos mútuos de cooperação e resistência de um
artista em relação ao seu lugar, seja ele físico ou simbólico, de estada ou de fala. Esta
definição de “conceitualismo” também representa significativa flexibilização para
uma discussão que, em sua origem, denota um alinhamento teórico, ou até
características de um estilo, circunscritos à Inglaterra e aos Estados Unidos dos 1960 -
1970. Apresentado no plural (“conceitualismos”) e de maneira relativa, o termo
ampara e, de certo modo, inspira a aproximação com a obra de Flávio de Carvalho,
mesmo quando ela desloca a discussão para um passado mais remoto, para o anos
1930, para a São Paulo da Experiência nº2.
125
mexicano Erick Beltran; o professor e artista chileno Mario Navarro; e os artistas
argentinos Marina de Caro e Roberto Jacoby.
155
O evento ocupou cinco galpões desativados às margens do Rio Guaíba e pôde extender-se
por demais equipamentos culturais, como o Santander Cultural e o Museu de Arte do Rio
Grande do Sul (MARGS), além de mobilizar o espaço público da cidade.
126
buscou amplificar o som de uma multiplicidade de ideias e questionamentos
plasmadores sobre nossa mesa de trabalho”.
Imagem 26 - Mostra Desenho das ideias, 7a Bienal do Mercosul. Fonte: Fundação Bienal do Mercosul.
O percurso iniciado no piso térreo com aproximações entre Cildo Meireles, Leon
Ferrari, Jorge Carballo, Abraham Cruzvillegas, Magdalena Jitrik e Johanna Calle ou
Anna Maria Maiolino, Maria Lúcia Cattani, Elisa O’Farrell & Javier Bustos, Linda
Matalon, Juan Downey, Delcy Mirelos e Henri Michaux culmina nas vizinhanças
pontuais das salas menores do primeiro andar, dentre elas a que aproxima Flávio de
Carvalho a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Dado como precursor da
performance na América Latina, em sua especificidade de “comentar a realidade
imperante” (Ibid., p. 68), Flávio de Carvalho é representado pela Experiência n°2
156
Na 6a Bienal do MERCOSUL, em 2007, os curadores Gabriel Perez-Barrero e Alejandro
Cesarco realizaram a exposição Conversas, estruturada a partir da escolha de nove
artistas/obras chave e da constituição, a partir deles, de núcleos de obras com os quais
potencialmente dialogavam, segundo indicações dos artistas e curadores.
127
(1931), no catálogo, e inserção de réplica do traje e de fotografias de registro da
Experiência n°3 (1956), na exposição.
Imagem 27 - Sala dedicada a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Fonte: Fundação Bienal do Mercosul.
128
promovem, ou ao menos almejam promover, “mudanças radicais em seus contextos”,
sustentando a atitude não resiliente e provocadora dos vanguardistas, mas, ao mesmo
tempo, considerando sua responsabilidade e seu comprometimento com o lugar e com
a coletividade da qual fazem parte. (Ibid., p. 69)
159
NOORTHOORN, 2009, p. 69
160
VIGO in NOORTHOORN, 2009, p. 43
161
Intervenções e propostas realizadas no caderno dos Classificados de um jornal de grande
circulação.
129
Paulo Bruscky puderam retomar as “principais funções” da arte: “informação,
protesto e denúncia” (Ibid., p 374).
162
Destes 78 artistas e grupos latino-americanos, 51 são brasileiros.
163
Este número – 158 artistas – refere-se à quantia divulgada pela Fundação Bienal de São
Paulo para designar os participantes com ocupações permenentes na expografia da mostra.
Além deles, devem ser contabilizados artistas de diversas áreas que integraram a programação
de eventos dos Terreiros.
130
(entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), a Bienal de São Paulo nasce e edifica-
se a partir de uma “vocação internacional”164.
À luz desse percurso histórico, a decisão dos curadores gerais Agnaldo Farias
e Moacir dos Anjos de assumir, para a 29a edição do evento, seu caráter “alternativo
aos centros de difusão mais consolidados da Europa e da América do Norte” (DOS
ANJOS e FARIAS, 2010, p. 18) torna-se determinante para o embasamento de uma
postura institucional afeita ao criticismo e ao protagonismo locais. Vale pontuar que
esta atitude conecta-se com reflexões legadas pelas duas Bienais anteriores168. A
presença expressiva de artistas brasileiros e oriundos dos demais países da América
Latina, portanto, configura uma aposta no vocabulário e nos “sotaques”169 brasileiros
164
Segundo Cristina Freire, no texto “O inconsciente moderno do museu de arte
contemporânea no Brasil”, apresentado no seminário História e(m) movimento, no MAM-SP,
em novembro de 2008, a Bienal de São Paulo foi criada em 1951, com o espírito
desenvolvimentista da época, “para converter São Paulo na capital do mundo” (FREIRE in
CHAIMOVICH, FABRIS, LAGNADO e OSÓRIO, 2008, p. 38).
165
Para fundar o MAM, Ciccilo contou com o apoio de Nelson Rockefeller, então vice-
presidente norte-americano, colecionador de arte e presidente do MoMA, responsável pela
primeira doação de obras de artistas das vanguardas históricas para a coleção do museu (Ibid,
p. 37)
166
Na 27a edição, o projeto curatorial de Lisette Lagnado, selecionado via concurso, extinguiu
as representações nacionais da estrutura da Bienal. Todos os artistas participantes foram
convidados pela curadoria do evento, e não mais pelas embaixadas de seus países de origem.
Estas embaixadas, ou as agências de fomento e divulgação, deslocaram o aporte de verba que
disponibilizavam para o artista de seu país e passaram a contribuir com a Bienal num regime
de apoio e/ou patrocínio internacional.
167
Dados definidos pelas embaixadas nacionais e que, por isso, muitas vezes, fugiam ao
controle da equipe curatorial.
168
A 27a (Como viver junto), mencionada na nota acima e concebida em torno do programa
ambiental de Hélio Oiticica, e a 28a (Em vivo contato), curada por Ivo Mesquita e Ana Paula
Cohen, em 2008, que instaurou a presença e a simbologia de um “vazio” para discutir a
economia das Bienais e a crise institucional da Fundação Bienal de São Paulo.
169
Cf. DOS ANJOS, Moacir. “Contraditório” in Panorama da arte brasileira: Contraditório.
São Paulo: MAM, 2008.
131
e latino-americanos, na sua posição distintiva neste lugar de fala (e de promissores
intercâmbios culturais) que é uma Bienal internacional.
170
Estes acervos de arte moderna e contemporânea, quando não são inexistentes ou mantidos
inacessíveis por seus colecionadores privados, encontram-se em vias de exportação ou
correndo riscos devido às condições precárias de conservação a que são submetidos. No
contexto brasileiro, alguns casos notórios são a venda da Coleção Adolfo Leirner, em março
de 2007, para o Museum of Fine Arts, de Houston (EUA); e o incêndio que destruiu parte da
reserva técnica de obras de Hélio Oiticica mantida por sua família, em outubro de 2009.
171
As Bienais de São Paulo geralmente duram entre 2 e 3 meses. A 29a edição foi inaugurada
em 21 de setembro de 2010 e funcionou até 12 de dezembro do mesmo ano.
172
Segundo verso do poeta alagoano Jorge de Lima, em sua obra maior, A invenção de Orfeu
(1952).
173
Entre espelhamentos e ruídos possíveis, foram promovidos diálogos entre os contextos do
brasileiro Miguel Rio Branco (no filme Nada levarei qundo eu morrer, aqueles que me devem
cobrarei no inferno, de 1979 – 1981) e da norte-americana Nan Goldin (no slide-show The
Ballad of sexual dependency, 1981 – 1996); da argentina Marta Minujin (no happening La
Menesunda, de 1965) e do dinamarquês Palle Nielsen (na experiência Modellen - en modell
för ett kvalitativt samhälle, ou Model for a Quantitative Society, de 1968), dentre outros.
174
O pensamento de Jacques Rancière embasa o partido curatorial de Há sempre um copo de
mar... Sua definição de “dissenso” ou de “desentendimento” é “um tipo determinado de
situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não
entende o que diz o outro. (...) Os casos de desentendimento são aqueles em que a disputa
132
são indicativos do imbricamento que a mostra propõe entre arte e política. Segundo
texto de apresentação dos curadores no catálogo, lançado na abertura175 da Bienal:
sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação da palavra.”
(RANCIÈRE, 1996, p. 12)
175
Por haver sido lançado na abertura do evento, o catálogo não dispõe de imagens de registro
da exposição pronta nem de um texto curatorial apoiado nos resultados alcançados e em
reflexões que eles tenham suscitado.
176
A equipe curatorial da 29a Bienal de São Paulo, além de Agnaldo Farias e Moacir dos
Anjos, contou com Chus Martínez (Espanha), Fernando Alvim (Angola), Rina Carvajal
(Venezuela – EUA), Sarat Maharaj (África do Sul – Inglaterra) e Yuko Hasegawa (Japão).
177
No texto de apresentação do catálogo, os curadores alegam que a “arte critica nao é
somente reativa a uma situação de restrição dada [como a ditadura militar], mas que é capaz
de ampliar ou ao menos problematizar, desde ela mesma e valendo-se de procedimentos
formais os mais variados, o repertório de posições, movimentos e falas que a cada momento é
pactuado e partilhado por uma coletividade”. (DOS ANJOS e FARIAS, 2010, p. 23)
133
mostra178, somam-se evidências da “política da arte” encampada pelo artista em sua
atuação interdisciplinar e sempre radicalmente transgressiva.
Imagem 28 - Série Trágica na área climatizada da 29a Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.
178
Em que um excerto do texto A cidade do homem nu é publicado na porção dedicada a
obras textuais, o chamado “rio literário” (CARVALHO in DOS ANJOS e FARIAS, 2010, PP.
195 – 204).
179
Os desenhos da Série Trágica: minha mãe morrendo (1947, col. MAC-USP) foram
montados na área climatizada da 29a Bienal, no terceiro andar do prédio, pelos mesmos
motivos que levaram para este espaço o conjunto de nove xilogravuras de Oswaldo Goeldi
(1930 – 1970, col. Museu Nacional); o B 33 Bólide caixa 18 “Homenagem a cara de cavalo”
(1966, col. MAM-Rio), de Helio Oiticica; Fotografia anonima de Venezuela (1979, col.
Galeria de Arte Nacional de Venezuela); obras do Grupo Rex (1964 – 1967, col. MASP e
particulares); a pintura Cri Du Coeur (2005, col. Galerie Lelong); e as litografuras e desenhos
arquitetônicos do Superstudio (1973, col. Archivo Superstudio). Em vários casos essas obras
trazem consigo agrupamentos de obras. A Série Trágica, apesar de não trazer trabalhos
relacionados, serve-se de uma paridade cronológica (e indiretamente temática) com a obra de
Oswaldo Goeldi e com a sala do Grupo Rex, cuja mobilização na São Paulo de 1966 e 1967
tem notória referência no trabalho precursor de Flávio de Carvalho, inclusive prestando-lhe
homenagem em palestra e edição do jornal do grupo em 1967.
134
Nota-se, a partir da integração de trabalhos do artista com produções recentes, o
desejo da curadoria de estabelecer “vínculos temporais” e defender uma
“temporalidade” própria, “fraturada”, “porosa” e “urgente”, nem afeita às demandas
de ineditismo impostas pelo mercado nem às valorações prematuras estabelecidas
pelos mecanismos de legitimação dos museus e coleções. (Ibid., p. 22) Afeita, sim, a
“entender a complexidade do momento”. Exercer esta temporalidade seria a tarefa do
“contemporâneo”, não exatamente cronológico (do presente), mas condicional (com o
presente), conforme Moacir dos Anjos defende180 e dentro de cuja defesa localiza
Flávio de Carvalho.
180
Em entrevista à Revista Bravo! de setembro de 2010, que apresentou uma matéria especial
dedicada à 29a Bienal, o curador afirma: "Tomamos por contemporâneo aquilo que nos faz
entender melhor a complexidade do momento. Nesse sentido, Flávio de Carvalho, um artista
da década de 1930, é contemporâneo". A afirmação ecoa um ideário apresentado ao curador
principalmente através do conjunto de aulas O que é o contemporâneo? E outros ensaios, do
filósofo Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2009).
181
A Experiência n°2 é documentada através de depoimento de Flávio de Carvalho em áudio
(MIS-Rio, 1971), reproduções gráficas de diagramas e passagens do livro homônimo e fac-
similes de matérias de jornais da época colecionadas pelo artista e hoje mantidas no arquivo
do Cedae-Unicamp.
135
Imagem 30 – Registro da performance Divisor, de Lygia Pape, projetado ao fundo. Fonte: Arquivo
Histórico Wanda Svevo.
182
A Experiência n°4 aparece na exposição por meio de fac-simile do anúncio de jornal que
anuncia a expedição e promove o lançamento de uma busca pela “Deusa Branca”, 25 fotos e
fac-simile de matéria sobre o fracasso e o fim da viagem. A documentação ainda conta com
imagens brutas de uma filmagem em 8mm que permanecia nos rolos originais (arquivo
Cedae-Unicamp) e que, por iniciativa da Bienal, com apoio da TV Cultura, foi transferida
para o sistema digital e pode ser exibida.
136
Imagem 31 - Fotografias da Experiência n°4 e Retrato de Sérgio Buarque de Holanda ao fundo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 32 - Cacique de Ramos, de Carlos Vergara. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
137
Celso Martinez Corrêa – aproximado de Flávio de Carvalho na pesquisa de Luiz
Carlos Daher, vale lembrar – conduziu 50 atores e bailarinos183 semi-nus por um
cortejo que evoluiu do primeiro pavimento até a sala documental de Flávio de
Carvalho, no segundo andar, depois desceu para o térreo e saiu do edifício, deixando
no espaço expográfico apenas os vestígios da trama do amor de deus com a “mulher
menor” e o desconcerto momentâneo de um acontecimento de cerca de duas horas.
Imagem 33 - Encenação da peça Bailado do Deus morto na 29a Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo
Histórico Wanda Svevo.
183
O grupo contou com atores da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona; dançarinos do
Bando Cavallaria, dirigido por Lu Brites; e estudantes de teatro oriundos das oficinas do
Movimento Bixigão. A iniciativa e a concepção do cenário e do figurino da peça foram de
Fábio Delduque, que também coordenou uma série de leituras e apresentações de textos de
Flávio de Carvalho (O Bailado do Deus Morto e A cidade do homem nu) ao longo do período
de mostra.
184
A terminologia usada deriva do texto de apresentação divulgado pelo grupo em seu site.
(http://teatroficina.uol.com.br/menus/45/posts/381 - visualizado em 30 de novembro de
2011).
138
concepção de seis espaços contidos, os Terreiros, para ativação da mostra e quebra
da contemplação costumeira no cubo branco.
139
Na conjuntura executivo-criativa sobre o qual se edifica a grande exposição,
“celebrar”, portanto, também quer dizer comemorar a “retomada”185, projetar a visita
de 400 mil estudantes e 1 milhão de visitantes186, arriscar-se na equação entre a
“opacidade”187 dos projetos estéticos e a grandiloqüência de qualquer texto ou obra
baseada na escala e na história do edifício e da exposição.
185
Como o jornalista Fábio Cypriano divulgou em matéria no jornal Folha de S. Paulo, no dia
da abertura da Bienal, sugerindo uma espécie de apelido para a edição do evento.
(http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/801599-apos-uma-decada-de-crise-bienal-recupera-
prestigio-nacional-e-internacional.shtml - visualizado em 30 de novembro de 2011)
186
Segundo divulgam os primeiros releases oficiais da 29a Bienal, sua meta de público era 1
milhão de visitantes, dos quais 400 mil deveriam ser trazidos pelo agendamento do programa
educativo.
187
O termo “opacidade” é formulado em Thinking about exhibitions. (Cf. POINSOT in
FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1999, p. 40).
140
As curadorias que compõem este tópico apresentam certa proximidade com as duas
Bienais apresentadas anteriormente, no que tange à discussão de uma relação da arte
brasileira e latino-americana com matrizes hegemônicas européias e norte-
americanas, mas ganham densidade à medida em que adotam como partido a
Antropofagia e as suas metáforas de “apropriação e hibridização cultural”188. Entre
tantas formuladas no Manifesto de 1928, poderíamos apontar a deglutição do
inimigo189, o desnudamento da sociedade190, e o engajamento dos artistas e
intelectuais de vanguarda na invenção de um vocabulário próprio e de perspectivas de
ação191 derivados da realidade geográfica e histórica local.
141
entanto, a presença de Flávio de Carvalho e as temáticas que, como signatário da
vanguarda brasileira da primeira metade do século XX, suscita sobre uma relação
outra entre modernidade e identidade nacional, justifica a aproximação das iniciativas
para fins de análise. De partida, pode-se notar o alcance interdisciplinar e cultural
(não apenas artístico ou estético) do conteúdo das três mostras. Vale também perceber
a relevância da perspectiva dos projetos de arquitetura e urbanização neste amplo
espectro.
197
Segundo Carlos Martins no texto Construir uma arquitetura, construir um país, que
integra o catálogo da exposição Da Antropofagia a Brasília. (MARTINS in SCHWARTZ,
2002, p. 379)
198
Desde Getúlio Vargas (1930 – 1945) a Juscelino Kubitschek (1956 – 1961), presidente
responsável pela construção de inúmeros edifícios públicos modernistas e pela realização de
Brasília (1956 – 1960), nova capital federal entregue como cume do projeto
desenvolvimentista de “50 anos em 5”.
199
Cf. PEDROSA, 1981, p. 356.
142
isolamento que instauravam um estado de crise na arte e na sociedade. O projeto de
Brasília traz o pensamento artístico para o foco de um empreendimento
governamental que objetiva não só a construção de uma “cidade nova” mas uma
“reforma total, completa, humana, do centro do país”200.
Se, por um lado, Jorge Schwartz, articula a exposição com fotos e plantas de
Brasília (além do repertório de trabalho dos seus três autores principais – Lúcio Costa,
Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx) a um mosaico de referências análogas e
correspondentes a ela, como é o caso do disco Sinfonia da Alvorada, de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes (1961), por outro, Lisette Lagnado e Inti Guerrero enfatizam
personagens outros e mantêm abertas suas alternativas de interpretação da história
“vencedora” e oficial. Nesta perspectiva, ao invés de reiterar a figura de Flávio de
Carvalho como um polemista, “diletante”202, incompreendido ou fracassado, devido
às suas consecutivas derrotas em concursos públicos, o mesmo recebe o mérito de
“utopista”, conectado a uma matriz de pensamento radical, idealista e por isso mesmo
não concluída.
143
perspectiva sobre um panorama artístico e arquitetônico comumente vinculado à
aceitação gradual das tendências abstracionistas e à formação da “geração Brazil
Builds”.
204
Cf. SCHWARTZ, 2002, p. 12.
205
Professor titular de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo desde 1971
e diretor do Museu Lasar Segall desde 2008.
206
Do arquiteto, são incluídas reproduções da pintura Retrato de Mário de Andrade (1945) e
dos projetos Casa Modernista, Rua Itápolis (1929), Residência do arquiteto (Casa da Rua
Santa Cruz) (1928), Residência de Luiz da Silva Prado (Casa da Rua Bahia) (1930),
Residência Nordshild (Casa Modernista do Rio de Janeiro) (1931). Também aparecem na
mostra sua parceria com Lúcio Costa no Conjunto de casas operárias da Gamboa (1934).
(SCHWARTZ, 2002, PP. 456 – 457)
207
A crise da Filosofia Messiânica (1950), A estrella do absyntho (1927), Memórias
sentimentais de João Miramar (1924), Pau Brasil (1925), O perfeito cozinheiro de almas
deste mundo... (Diário coletivo da garçonnière de Oswald de Andrade) (1918 – fac-simile de
1987), Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade (1927).
208
Cobra Norato (1931) e Urucungo. Poemas Negros (1933).
209
Abaporu (1928), Antropofagia (1929), Auto-retrato (1924), A Caipirinha (1923), Esboço
para o cartaz da conferencia de Blaise Cendars (III) (1924), Estudo para A Negra (1923),
Operários (1933), Retrato de Oswald de Andrade (1923), Saci-Pererê (1925), Sol poente
(1929), Sono (c. 1928), Tribunal de menores (1932).
144
O texto curatorial aponta a possibilidade desta obra-símbolo da Antropofagia ter
sido instalada sobre o cavalete de vidro criado por Lina Bo Bardi para o Museu de
Arte de São Paulo em 1963 e exposta na abertura da mostra, criando um efeito de
quebra cronológica. Apesar desta montagem não ter acontecido210, a aproximação
textual211 entre as obras da artista e a da arquiteta, e o que as duas propuseram para o
debate modernista em 1928 e em 1963, respectivamente, indica a intenção de
Schwartz de filiar a atuação extemporânea de Lina Bo Bardi às matrizes do
modernismo de 1922 e às suas repercussões diretas na arquitetura de Flávio de
Carvalho e de Gregori Warchavchik em diante. A “sobreposição” formulada faz
pensar nos momentos de sincronia e diacronia que os vanguardismos estabelecem
com seu presente e com a história que os sucede.
Imagem 34 - Abaporu na montagem final de Da Antropofagia a Brasília, no MAB. Fonte: Arquivo do Museu
de Arte Brasileira - Faap.
Se, por um lado, o “diálogo” entre Tarsila do Amaral e Lina Bo Bardi demonstra uma
sincronia entre suas proposições, mesmo que distanciadas em quase quatro décadas,
por outro, o “convívio” da pintura Viaduto Santa Ifigênia à noite (1934), de Flávio de
Carvalho, com o filme São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de R.R. Lustig e A.
Kemeny, indica uma relação diacrônica entre a paisagens de São Paulo que ambas as
210
Esta montagem não aconteceu no MAB. Os documentos de registro desta itinerância da
mostra inicialmente realizada no Museu Valenciano de Arte mostram a obra de Tarsila do
Amaral exposta sobre painéis expográficos brancos.
211
Segundo afirma o texto curatorial, “a intersecção é proposital, uma vez que nos permite
antecipar em três décadas e meia a presença da arquiteta italiana no Brasil e também projetar
– com a cronologia invertida – um diálogo entre sua obra e as linhas de trabalho existentes
nos projetos de Warchavchik, de Le Corbusier, de Burle Marx e do próprio Niemeyer”. (Ibid.,
p. 12)
145
obras observam. Enquanto a “cidade futurista” narrada no cinema mudo movimenta-
se com a coreografia das máquinas industriais e com cenas do lazer burguês, a São
Paulo registrada pelo artista-arquiteto, apesar de já verticalizada, permanece pacata e
melancólica, ainda aquém da metrópole modernista que àquela altura ambicionava
promover.
212
Cf. CARVALHO in MATTAR, 1999, p. 71.
146
Imagem 35 - Imagem do New Look ao fundo da sala, por trás da maquete de Brasília. Fonte: Arquivo do
MAB - Faap.
A vestimenta deste “novo homem”, o “homem dos trópicos” ou o “homem nu”, e,
mais ainda, o gesto de desfilá-la para a audiência da cidade, desdobram o ideário
modernista por uma via individual e imaterial. Isso acontece justamente no mesmo
ano em que, aprovado em concurso, o plano-piloto de Brasília começa a ganhar
colaboradores e concretude. Para estes dois caminhos extremos, a para a série de
matizes e narrativas contidas entre eles como resultantes de um processo de quatro
décadas (1920 – 1950) de modernização no Brasil, Jorge Schwartz emprega a
seguinte leitura:
Quatro anos após o statement curatorial de Paulo Herkenhoff na 24a Bienal de São
Paulo, calcada na metáfora oswaldiana lançada sobre a arte contemporânea brasileira
e mundial, a mostra Da Antropofagia a Brasília213 volta às bases desta questão e
apresenta de maneira didática os principais testemunhos desse percurso da
213
A mostra acontece na Espanha dois anos depois da 24a Bienal de São Paulo (1998), e vem
ao Brasil quatro anos depois. Sua realização certamente relaciona-se com o debate instaurado
pela “Bienal da Antropofagia”, quando, ao inaugurar esta abordagem contemporânea do tema,
Paulo Herkenhoff sinaliza: “estranhamente, o Brasil nunca realizara uma grande mostra sobre
a antropofagia para discutir sua pluralidade cultural” (HERKENHOFF, 1998, p. 22)
147
“dependência” à “autonomia” na história da cultura no país. A iniciativa demarca a
efeméride dos 80 anos da Semana de 22 e apóia-se nela para dar visibilidade e
divulgar internacionalmente o tema de uma modernidade (ou de uma vanguarda
moderna) brasileira.
148
Rocha para afirmar que “o nosso [Surrealismo] não é o Surrealismo do sonho e sim o
da realidade”. O entendimento adotado aqui, portanto, não seria o da superação da
matriz hegemônica, como apontara Subiratis. Seria, por sua vez, o de uma
recaracterização da mesma segundo valores e urgências da vanguarda brasileira. Para
o cinema-novista, o Surrealismo europeu teve importante papel na motivação de uma
“liberação anárquica” no continente, e, aqui, teria aderido ao nosso meio e às nossas
condições de vida (história, economia, clima, topografia…). Tornar-se-ia, a partir
deles, o nosso “tropicalismo”. (Cf. ROCHA in LAGNADO, 2010, p. 54)
artista como coordenadora do Arquivo Helio Oiticica, alocado no Itaú Cultural, Lisette
Lagnado concluiu tese de doutorado (O mapa do programa ambiental de Hélio Oiticica, com
orientação do Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto, 2003) e desenvolveu o partido curatorial da
27a Bienal de São Paulo (Como viver junto, 2006) em cima de seu “Programa ambiental”.
216
Para a curadora Lisette Lagnado, em visita guiada gravada e editada pelo MNCARS, a
mostra cultiva uma visão fronteiriça, uma “visão nem de arte nem de arquitetura”.
(http://blip.tv/museo-reina-sofia/desv%C3%ADos-de-la-deriva-conversaci%C3%B3n-entre-
lissette-lagnado-y-mar%C3%ADa-berrios-3747952) (Visualizado em 08/12/11)
217
O termo é usado no texto de apresentação da mostra para o site do MNCARS.
(http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-deriva.html) (Visualizado
em 08/12/11)
218
Le Corbusier esteve no Brasil por duas vezes, em 1929 e em 1936 e, embora nunca tenha
ido ao Chile, projetou no país o escritório de Roberto Dávila Carson e a residência Errázuriz.
149
Imagem 36 - Desvios de la deriva. Fonte: Flickr Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.
219
A curadora considera que a reunião de personagens da mostra empreende um “desajuste”.
Ela afirma que “este desajuste justificaria a eleição não usual dos protagonistas da exposição
(...) junto com o universo de Le Corbusier. Ao seu lado, o expressionismo de Flávio de
Carvalho e as “morfologias psicológicas” de Roberto Matta provocam mal-estares reais; uma
interlocução com Juan Borchers e a Escola de Valparaíso carece de afinidade ideológica; Lina
Bo Bardi Sérgio Bernardes admitem convergências mais seguras embora com perspectivas
mais ancoradas ao território onde se pratica a arquitetura. (LAGNADO, 2010, p. 54)
150
coletiva, neste sentido, cria visibilidade para a antítese do projeto moderno oficial220,
enfatiza uma agenda que permaneceu restrita e, talvez por isso, até hoje em estado
latente.
Imagem 37 - Mobiliário de Desvios de la deriva e lousas de aula da Escuela de Valparaíso ao fundo. Fonte:
Flickr MNCARS.
220
Conforme aponta o texto de Lisette Lagnado, na exposição “se entende que a não
coincidência de um projeto moderno com um programa de Estado permita esboçar outro
argumento para compreender procedimentos artísticos abortados ou em estado inoperante”.
(Ibid., p. 54)
221
Em 1923, há registros de caminhadas empreendidas por surrealistas franceses. Apesar de
não pertencerem ao escopo de Desvios de la deriva, elas poderiam ser apontadas como
supostos antecedentes à idéia de “deriva”. Guy Debord, em sua Teoria da deriva, refuta essa
associação por julgar a iniciativa demasiadamente previsível. “Por pouco desconfiar do acaso
e de seu uso ideológico sempre reacionário, fracassou a Celebre deambulação tentada em
1923 por quatro surrealistas a partir de uma cidade que eles sortearam: caminhar por
151
A Experiência nº2 (1931) teria antecipado o “urbanismo unitário”222 e práticas
“efêmeras de apreensão do espaço”, como a “psicogeografia”223 e a “deriva” (Ibid., p.
15), formulados para definir o Situacionismo, na Europa do fim da década de 1960. A
curadora observa que neste contexto havia uma urgência pela reconstrução de cidades
inteiras devastadas pela Segunda Guerra. Sem o quadro de bombardeio e destruição,
talvez não tivesse existido Situacionismo. Esta correspondência não procede na
América Latina, mas, a tirar pelos impulsos experimentais de Flávio de Carvalho e de
outros personagens mencionados em Desvios de la deriva, pratica-se a deriva.
descampados é sem Duvida deprimente, e as possíveis intervenções do acaso, em tais
circunstâncias, são raríssimas”, afirma o autor. (Cf. DEBORD in JACQUES, 2002, p. 88)
222
Diz-se “unitário” conforme prescrito por Constant Nieuwenhuis,
por ser contra a
separação moderna de funções, prescrita pela Carta de Atenas, divulgada após o IV
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em 1933. (Cf. Ibid., p. 15)
223
Uma passagem do livro Experiência Nº2 demonstra a proximidade da argumentação de
Flávio de Carvalho com a ideia situacionista de “psicogeografia”. Neste relato a posteriori, o
artista declara ter desejado “apalpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva,
registrar a liberação desta emoção, provocar uma revolta para ver algo do inconsciente.
(CARVALHO in LAGNADO, 2010, p. 62)
224
As ilustrações reproduzidas por Leonardo Crescenti e exibidas na mostra são “A
insegurança do velho”, “...como bonecos sem vida suspensos no espaço”, “... e os homens
pareciam pigmeus sacudidos por uma força estranha”, “...o Cristo, o padre, o Buda, o Moisés,
o político esquecido, o recluso, o mendigo, a prostituta amorosa... o homem de gênio”, “O
som da multidão veloz que sumia” e “Uma criatura estranha completamente diferente de tudo
que eu costumava ser... Era a imagem do terror”.
152
Imagem 38 – Em primeiro plano, o New Look instalado com o dispositivo criado por Dominique Gonzalez-
Foester. Fonte: Flickr MNCARS.
Nele, uma estrutura vestindo blusão e saiote225 desliza sobre um trilho fixado no teto.
O deslocamento em dois sentidos (para frente e para trás) contrários garantido por um
pequeno motor recupera “a analogia existente entre as duas caminhadas pelas vias
públicas” (LAGNADO, 2010, p. 63). Segundo a lógica curatorial, a ida citaria a
“atitude provocadora” da Experiência nº2, enquanto a volta mimetizaria a situação de
“desfile” que caracteriza a Experiência nº3.
225
O blusão exposto é original e o saiote é uma réplica feita em 1999, para ocasião da
retrospectiva curada por Denise Mattar. Ambas as peças pertencem à coleção de James
Lisboa.
153
A Experiência nº3 ainda é documentada através de um desenho de projeto do traje226
e de cinco fotos em que aparece o próprio artista como modelo de sua invenção227. A
caminhada de lançamento do New Look é contemporânea à Teoria da Deriva, escrita
por Guy Debord em 1956 e publicada na segunda edição da revista da Internacional
Situacionista, em 1958. É importante pontuar que, apesar de podermos empregar
também ao contexto da Experiência nº2 o sentido de deriva prescrito neste manifesto
como um “comportamento lúdico-construtivo” motivado pelo gesto de “entregar-se às
solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar” (DEBORD in
JACQUES, 2002, p. 87), só nestes meados da década de 1950 ele passa a
corresponder a algo fundamental para a sua formulação, a crescente
“espetacularização das cidades”.228
226
Intitulado Desenho para o New Look, pertence à família de Flávio de Carvalho.
227
As imagens pertencem ao arquivo de Leonardo Crescenti e à coleção do MAB-FAAP.
Várias de suas cópias de exibição foram feitas na ocasião da retrospectiva de 1999. Outras,
feitas em 2010 para a mostra Desvios de la deriva, ficaram na coleção do MNCARS.
228
Ao apresentar a compilação Apologia da deriva, Paola Berenstein Jacques afirma que o
“pensamento urbano situacionista” deve ser visto como “um apelo contra a espetacularização
das cidades e um manifesto pela participação efetiva – não apenas para parecer
“politicamente correto” como vem ocorrendo –, da população nas decisões urbanas.
(JACQUES, 2002, p. 30) O termo “espetáculo” aparece nos escritos de Guy Débord já no
período em que engajou-se na Internacional Situacionista. Em 1967, o autor escreve A
sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo e em 1973 lança um
filme homônimo.
154
propício para o jogo e para as inúmeras formas de “atuação” e “emancipação” de seus
habitantes229.
Para Lisette Lagnado232, esta é a razão para a sua inclusão na coletiva, com
projetos como o Sesc Pompéia (1977), os Espaços de Uso Público (1951), a Casa de
Vidro (1955), o Museu de Arte de São Paulo (1957 – 1968), o Trem das Artes do
MAC-USP (1969), dentre outros233. Apesar de não exatamente poder ser considerada
uma “utopista”, pois conseguiu construir obras de grande relevância ao longo de toda
a sua carreira no Brasil, Lina Bo Bardi difere da geração de arquitetos que também
construia à época, à luz da cartilha de Le Corbusier.
229
Esta idéia é formulada por Lisette Lagnado (Cf. LAGNADO, 2010, p. 62) a partir da
leitura do livro Homo Ludens, de Johan Huizinga.
230
A mostra podia ser acessada pelos edifícios Sabatini ou Nouvel. Ambos compõem o
conjunto arquitetônico do MNCARS.
231
http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-deriva.html (visualizado
em 13/12/11)
232
Em video institucional realizado pelo MNCARS para apresentar a exposição, com
depoimentos dela e da curadora-adjunta Maria Berríos.
(http://www.museoreinasofia.es/archivo/videos/2010/desvios-deriva.html) (visualizado em
13/12/11)
233
Ao todo, são incluídos através de esboços, plantas, cortes e fotografias, 16 projetos de Lina
Bo Bardi. O conjunto abarca a sua atuação nas áreas de arquitetura, design de mobiliário e
editorial.
155
sejam frustradas. Vê-se assim um Le Corbusier “específico”, “afetado por”234 suas
duas visitas ao Brasil, em 1929 e 1936. Pelos esboços de suas conferências235 e pelo
desenho Poesia, dispostos dissociadamente – ora sobre o mobiliário vazado ora sobre
as paredes e sempre confrontados com obras de outras autorias –, vê-se as curvas e as
errâncias da topografia carioca insidirem no traçado de Le Corbusier, a exemplo de A
lei do meandro (1929). Vê-se a cultura e a geografia brasileiras tensionarem suas
ambições arquitetônicas e urbanísticas, como demonstra Perspectiva sobre a baía do
Rio, da mesma data.
Imagem 40 - Perspectiva sobre a baía do Rio, Le Corbusier. Fonte: Pablo Leon de la Barra.
234
Segundo o relato da curadora-adjunta Maria Berríos no video institucional do MNCARS.
235
As conferências são “Conferência”; “Cidade histórica e cidade moderna, funcionamento
dos serviços comuns”; A lei do meandro”; “Perspectiva desde a baía do Rio” (1929); “O
prolongamento dos serviços públicos”; “Grandeza de visão na época dos projetos de futuro”;
Ócio e ocupação na civilização das máquinas”; Programa de ua faculdade de arquitetura”
(1936). O desenho Poesia não possui data.
236
No texto “Corolário brasileiro”, escrito em 1930, a posteriori à primeira visita e ao
sobrevôo da cidade proporcionado ao arquiteto na ocasião. O texto foi publicado na
compilação Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, cujo original
data de 1930 e a edição brasileira de 2004.
156
cientítica" ao vislumbrar bairros verticais e “um continente unido por aquedutos”
(LAGNADO, 2010, p. 65). Apesar do caráter intervencionista que poderia aproximar
as obras237 de Sérgio Bernardes das de Le Corbusier, sobressai nestas primeiras sua
visão macro-estrutural, humanista e geopoliticamente orientada. Por estes aspectos, a
pesquisa de Sérgio Bernardes nas áreas de arquitetura, design de mobiliário e de
soluções construtivas e ecologia significa um “desvio de rota”238 com relação à matriz
corbusiana.
237
Além dos dois projetos mencionados, apresentados através de esboços originais e
reproduções de desenhos e fotografias em slide-shows, também figuram na exposição plantas
do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Bruxelas (1958).
238
Segundo Maria Berríos no video institucional do MNCARS.
157
Já a trajetória do desvio empreendido por Roberto Matta começa por uma ruptura
concreta. No começo de sua carreira, o artista deixa o Chile para trabalhar no
escritório do mestre suíço entre 1934 e 1936, quando rompe com o modernismo
racionalista e passa a dedicar-se a “investigações atentas ao papel do inconsciente na
conquista da felicidade”239. Seu agrupamento de desenhos, pinturas e projetos
expostos cobre o intervalo de 1936 (Architectural study) a 1954 (Oeufficiency),
justamente o período de sua transição rumo às Morfologias psicológicas e a uma
concepção de espaço sensível e “erotizado”.
239
Cf. LAGNADO, 2010, p. 60.
240
Especificamente nas pinturas A inferioridade de Deus (1931), Ascensão definitiva de
Cristo (1932), Retrato ancestral (1932), que configuram uma tendência surrealista na início
da trajetória do artista e aproximam-se da temática tratada nas ilustrações do livro
Experiência nº2. As três pinturas estão presentes na mostra.
241
O apelido é citado por vários dos autores que escrevem biografias e trabalhos teóricos
sobre Flávio de Carvalho. Em 1987, ele dá nome a livro escrito por Sangirardi Jr.
158
de Carvalho teria eleito Sigmund Freud como principal norte teórico para seus
projetos, dos quais Desvíos de la deriva mostra substancial recorte242.
159
sua prática. É curioso pensar a proximidade que o conceito de “experiência”
desdobrado do palco para o espaço social estabelece com a premissa da Escola de
Valparaíso de “arquitetura da experiência”. Registros em super-8 de aulas e viagens
para o interior do continente, a partir da costa, além de “travessias” e “rondas”,
ilustram como no cotidiano desta espécie de “Bauhaus dos trópicos” constrói-se
conhecimento artístico, arquitetônico e urbanístico a partir da experiência do sujeito
comum. Na Escola, vivencia-se a “arquitetura como ato poético”246, segundo indica a
curadora-adjunta María Berríos, encarregada da seção chilena da mostra.
246
No video institucional no MNCARS.
247
Foram expostos 18 de 59 quadros negros, feitos na ocasião da exposição de 20 anos da
Escola em 1972.
248
Segundo Maria Berríos no video institucional do MNCARS.
249
Segundo Carlos Moreira Teixeira, no artigo “Cooperativa Ciudad Abierta, Chile”
(Arquitextos, março de 2003), as dunas representavam para o grupo de fundadores do projeto
um “lugar da inocência”, onde o conhecimento e a experiência seriam constantemente
apagados pelas tempestades de areia em favor do novo.
(http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.034/698) (visualizado em 14/11/11)
160
como dotados de reais “condições de mudar o mundo”250, por outros, os exercícios
poético-arquitetônicos da Escola de Valparaíso e do conjunto de protagonistas
reunidos em Desvíos de la deriva ao menos conspiram contra uma “profecia
racionalista” e especulam sobre maneiras de ser moderno e sul-americano.
250
Segundo Lisette Lagnado, no video institucional do MNCARS. O depoimento da curadora
indica que, naquela segunda metade dos anos 1950, “o arquiteto tinha as condições de
transformação do mundo”. Dai vem seu interesse por abordar iniciativas entre a arte e a
arquitetura, do contexto latino-americano da época.
251
Do site do MNCARS. (http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-
deriva.html) (visualizado em 14/12/11)
252
O período de exibição de A cidade do homem nu coincide parcialmente com o de Desvios
de la deriva. Enquanto a primeira permaneceu aberta para visitação de 15 de abril a 13 de
junho de 2010, no MAM-SP, a segunda funcionau de 5 de maio a 23 de agosto do mesmo
ano, no MNCARS, em Madri, Espanha.
253
Esta associação temática entre as exposições da Sala Paulo Figueiredo e da Grande Sala é
uma prática constante do MAM-SP, conforme anteriormente mencionado. Esta é a maneira
que o museu encontrou de cumprir sua missão institucional (dedicada a discutir a passagem
entre o moderno e o contemporâneo) articulando visadas históricas e retrospectivas sobre
obras de artistas modernos (Grande Sala) com especulações e recorrências encontradas na
produção contemporânea (Sala Paulo Figueiredo).
161
documentos expostos –, só figura na exposição a Experiência nº3, através de uma foto
da caminhada de apresentação do traje e de uma vitrine com matérias de jornais e
revistas, entre elas a Manchete e a norte-americana Time, anunciando o curioso
episódio.
A figura deste “novo homem”, que porta saiote e blusão e, segundo as linhas
do texto apresentado em 1930, vive “sem tabus escolásticos”, “livre para raciocinar e
pensar” (CARVALHO in GUERREIRO, 2010, p. 7), elucida sobre a radicalidade das
propostas de Flávio de Carvalho. Sua identidade visionária e “contracultural”254,
demonstrada em algumas aparições públicas no ano de 1956, concretizaria a imagem
de um futuro até hoje inconcebível, ou, no mínimo estranho para uma maioria
conservadora da população.
254
O termo “contracultural” é usado pelo curador numa visita guiada registrada em vídeo por
Cacá Vicalvi.
255
Em depoimento dado durante visita guiada da exposição, documentada em video por Caca
Vicalvi.
256
Cf. GUERRERO, 2010, p. 10.
257
No site do curador, o Dzi Croquettes consta na lista de artistas de A cidade do homem nu.
Esta inclusão é posterior à abertura da exposição, por isso o documentário Dzi Croquettes
(2009, direção Tatiana Issa & Raphael Alvarez), que conta a história do grupo teatral, não
figura nem na expografia nem no catálogo da mostra. Um trecho do filme, no entanto, foi
exibido no debate promovido pelo MAM sobre a exposição, com a presença de Inti Guerrero
e Luiz Camillo Osório. (http://intiguerrero.blogspot.com/2011/05/city-of-naked-man.html)
(visualizado em 15/12/11)
162
desconhecido258 na inauguração de Brasília259 em 1960. Ante os pilares do Palácio da
Alvorada parcialmente encobertos por algo como uma neblina ou uma luminosidade
forte, aparecem convidados da festa trajando smoking e cartola. O “dress code” de
fato anacrônico frente ao arrojamento de Brasília e, mais ainda, à moda proposta por
Flávio de Carvalho poucos anos antes, quando do início da construção daquela que
tornar-se-ia a “cidade do futuro”, símbolo do governo desenvolvimentista brasileiro,
leva o curador a enxergar uma atmosfera do passado, uma ambiência como a “Paris
dos anos 1930, no inverno”.
258
A informação sobre uma autoria desconhecida para esta fotografia aparece na lista de
obras da exposição.
259
Além da imagem mencionada, há outra fotografia da inauguração de Brasília na exposição.
Esta segunda retrata um grupo de candangos, com vestes pobres e fisionomias castigadas,
comemorando a conclusão do trabalho.
260
Durante o ano de 2008, o curador participou do programa de residências do Capacete.
Durante este período, freqüentou aulas na Universidade de São Paulo e iniciou o
levantamento de documentos que aparecem na exposição.
163
Imagem 43 - Documentação da Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.
Imagem 44 - Fotos de Brasília, A verdade andava nua e Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.
O debate “histórico” que réune A verdade andava nua, Brasília e Experiência nº3
concentra-se no coração da expografia que a arquiteta Marta Bogéa estrutura em torno
de uma disposição triangular de painéis. Uma opção de desenho que, além de criar
ambientes contidos e proporcionar uma circulação completa pelo espaço, também
pode sugerir simbologias sexuais e religiosas cabíveis ao contexto da mostra.
164
restrição” ou “sacrifício”261, motiva a busca do curador por analogias contemporâneas
para os temas da liberação sexual e da transgressão de padrões de gênero e
sociabilidade.
Disposta na parede de abertura da mostra, a série Rua direita, feita por Cláudia
Andujar em 1970 – coincidentemente na mesma rua de São Paulo onde ocorreu a
Experiência nº2 –, inicia a espiral de obras e discussões de “A cidade do homem nu”
documentando o tenso “encontro” da câmera fotográfica da artista com os pedestres
que atravessam a calçada e que, naquele momento de ditadura militar, carecem de
liberdade para auto-representarem-se.
261
Cf. CARVALHO in GUERRERO, 2010, p. 29.
262
A série também foi exposta, com uma edição diferente, na 29a Bienal de São Paulo, poucos
meses depois de A cidade do homem nu.
263
Segundo o curador no depoimento dado a Cacá Vicalvi.
165
também social. Enquanto Santiago Monge (Burlesque: fotografia de archivo, 2007)
intervém sobre uma publicidade impressa de cuecas de modo a literalmente revelar as
camadas da doutrina cultural que, através das roupas e dos hábitos, encobrem o corpo
masculino do modelo, Cristina Lucas ironiza a emancipação da mulher na sociedade e
o enfrentamento de sexismos persistentes, a partir do video You can walk too, 2007. A
dupla ainda relaciona-se com Soft materials (2007), de Daria Martin. A video-
projeção exibe uma espécie de namoro entre uma máquina industrial e um garoto que
a descobre e deseja.
Seguindo as hipóteses traçadas por Inti Guerrero, somos levados a perceber a atuação
de Ney Matogrosso e dos demais artistas participantes da exposição como
264
Ibid.
166
“selvagerias individuais”265, gestos de cunho antropofágico que, conforme o texto de
Flávio de Carvalho, “procuram a ressurreição do primitivo” e mobilizam “todos os
seus desejos, toda a sua curiosidade inata não reprimida (...) em busca de uma
civilização nua” (CARVALHO in GUERRERO, 2010, p. 7).
167
artistas europeus e latino-americanos amortizam as especificidades de seus léxicos e
de suas posições geopolíticas de fala. Sem que estas especificidades definam os
termos e os riscos de convívio destes historicamente “diferentes”, sem que seja
atualizada uma dinâmica de alteridade e um projeto coletivo para a mesma, momentos
da mostra põem em prática uma “necrofagia visual” (Ibid., p. 24). Em tempos de
multiculturalismo e desterritorialização, esta operação tem os méritos de promover a
abertura de obras de arte para leituras diversas e originais, mas pode, com isso, tornar-
se ato celebratório de uma diferença despolitizada.
266
Cf. HEINICH e POLLAK in FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1996, p. 237)
168
4. Considerações finais
169
outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2008,
pp. 58 – 59)
Cabe ao contemporâneo perceber o que o “olho nu” não alcança, apreender não
apenas o que se anuncia de um tempo mas também o que permanece nas suas
“sombras” (Ibid., p. 73), fora de suas narrativas hegemônicas. Esta habilidade,
aferível na escrita e na conduta de um artista como Flávio de Carvalho, certamente
pode ser estendida para a prática (ou, ao menos, para a tarefa) do crítico de arte.
Nos trabalhos teóricos e curatoriais revisados ao longo desta dissertação, são
comuns a reflexão sobre noções previamente convencionadas e o foco no alargamento
de vocabulário crítico e de possibilidades de leitura do objeto de pesquisa. A partir
deste conjunto de trabalhos, pudemos acessar como Flávio de Carvalho posicionou-se
ante seu tempo (1899 – 1973), e, numa segunda camada, como o nosso tempo (1979 –
2010267) formulou um espectro de versões para definir o artista.
Ao considerar e tematizar a atividade crítica e interpretativa como foco
principal desta dissertação, vivenciamos o que Roland Barthes denomina “fantasia de
concomitância”. O filósofo pergunta-se: “de quem sou contemporâneo? Com quem é
que eu vivo? O calendário não responde bem. É o que indica nosso pequeno jogo
cronológico – a menos que eles se tornem contemporâneos agora?” (Cf. BARTHES,
2003, pp. 11-12). Através da cadeia de proposições artísticas, teóricas e curatoriais
aqui consideradas, Flávio de Carvalho e seus intérpretes tornam-se contemporâneos,
mesmo que suas atividades permaneçam cronologicamente distanciadas e que suas
“conversas” não tenham chegado a acontecer de fato.
Para Luiz Carlos Daher, Rui Moreira Leite, Denise Mattar, Luiz Camillo
Osório, Annateresa Fabris, Victoria Noorthoorn, Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos,
Jorge Schwartz, Lisette Lagnado e Inti Guerreiro, além de outros teóricos ou
curadores mencionados, a história de Flávio de Carvalho apresenta-se como uma
oportunidade de “voltar a um presente em que jamais estivemos” (Cf. AGAMBEN,
2008, p. 70). Estas diferentes condutas de pesquisa retrospectiva demonstram que, ao
acessar o passado desde urgências e faculdades de análise atuais, destituímos a
narrativa histórica de uma apreciação consolidada e canônica e a envolvemos em
novos ímpetos de revisão e enunciação.
267
Se consideradas as datas dos trabalhos revisados.
170
Num país como o Brasil, cuja historiografia da arte é escassa e em vários
aspectos ainda vinculada a uma matriz européia e norte-americana, o exercício
narrativo e interpretativo sobre o nosso passado é preponderante também para se
entender as aspirações políticas que se tem no presente. Segundo Walter Benjamin, o
passado deixa “rastros e reminiscências” que nos alcançam, “traz consigo um índice
misterioso que o impele à redenção”.
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que
emudecem? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não
chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto,
marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra
está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos
concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige
um apelo. (BENJAMIN, 1994, p. 223)
171
sistema da arte, evocam tomadas de posição de seus agentes –, vimos que o artista
suscitou crescente interesse do meio crítico.
Interpelação – o ato de fala que permite ele/ela que está fora das
estuturas discursivas, isto é, fora do sistema de inteligibilidade, que
fale – é o momento desta exterioridade, de um ser diferente,
diferente da comunidade institucional oficial que protege somente
seus interesses. Essa exterioridade não nega a comunidade, mas a
assume como um lugar de convergência de pessoas e grupos livres
para estarem em desentendimento. (Ibid., p. 256)
172
A atitude de Flávio de Carvalho inspira e embasa a opção deste trabalho por
abordar sua trajetória através da composição de um painel multifacetado de leituras e
autorias. Ora somando-se, ora confrontando-se entre si, o conjunto de interpretações
aqui reunidas constitui um debate do campo acadêmico e curatorial e indica como,
entre conflitos e acordos, são gerados marcos teóricos e bibliografias da obra do
artista na história da arte brasileira.
268
A October 130, lançada no outono de 2009, publicou o dossiê “Questionnaire on ‘The
Contemporary’”, uma coletânea de textos curtos em que críticos e curadores baseados nos Estados
Unidos e na Europa respondem a questões colocadas por um dos editores da revista, Hal Foster: “is this
floating free [do contemporâneo, da contemporaneidade] real or imagined? A merely local perception?
A simple effect of the end-of-grand-narratives? It it is real, how can we specify some of its principal
causes, that is, beyond general references to “the market” and “globalization”? Or is it indeed a direct
outcome of a neoliberal economy, one that, moreover, is now in crisis? What are some of its salient
consequences for artists, critics, curators, and historians – for their information and their practice alike?
Are there collteral effects in other fields of art history? Are there instructive analogies to be drawn
from the situation in other arts and disciplines? Finally, are there benefits to this apparent lightness of
being?” (FOSTER, p. 3)
269
“É tudo tão contemporâneo, tão contemporâneo, tão contemporâneo...”, afirma Lisette
Lagnado na sua participação no seminário História e(m) movimento, no MAM-SP, em 2009.
Citando o tema de uma performance do artista Tino Sehgal, a curadora demonstra sua crítica
a uma relação tautológica com o presente e com a arte contemporânea na indústria cultural.
173
Na lógica do mercado, este “tempo excedente” (Cf. Ibid., p. 125) seria o passado
aparentemente concluso e desarticulado da atualidade; um tempo, por isso,
“improdutivo” e “desperdiçado”, como define o autor. No entanto, para o
“contemporâneo”, é justamente este “tempo excedente” a instância em que se pode
buscar a dilatação das nossas capacidade de apreender criticamente a história. Groys
defende que este é o tempo de “reescritura”, de trazer a compreensão histórica para a
experiência do intérprete e, com isso, habilitá-lo a tornar-se agente da história.
Apesar de, no escopo desta dissertação, esse quadro teórico não constar
exatamente como um fim, ele motivou e paramentou ideologicamente a investigação
sobre a obra de Flávio de Carvalho. Isto porque, ao fazê-lo através da identificação e
da costura de uma rede de autores que teceram versões do artista desde contextos tão
diversos, eu naturalmente cultivava um interesse não só nos assuntos de suas
interpretações mas também no ato de interpretar.
174
escritos que o tematizam seja maior do que esta dissertação conseguiu cobrir.
Certamente, o trabalho aqui iniciado poderia envolver outros objetos de estudo.
Poderia também aprofundar os tópicos abordados através da realização de entrevistas
e da análise da repercussão das curadorias na imprensa, por exemplo, ou versar mais
extensivamente sobre problemáticas que o tangenciam, como a definição de um
estatuto para o contemporâneo, a história das exposições e a historiografia crítica da
arte.
175
ANEXO A – Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do
Mercosul, MARGS
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP
176
ANEXO A: Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP
ANEXO A – Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP
177
177
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP
178
178
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
2º Piso
3º Piso
179
179
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do
Mercosul, MARGS
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do Mercosul, MARGS
181
180
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP
181
181
Bibliografia
Bibliografia Geral
182
_______________________. Catálogo XXIX Bienal de São Paulo: Há sempre um
copo de mar para um homem navegar. ANJOS Moacir; FARIAS, Agnaldo (org.). São
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Freud: volume XIII – Totem e Tabu e outros trabalhos (1913 – 1914). Rio de Janeiro:
Imago Editora, 2006.
_______________________. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud: volume XXI – O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e
outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.
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LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Editora WMF Martins
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MORAES, Eliane Robert. “Sobreviver junto” in LAGNADO, Lisette; PEDROSA,
Adriano (Ed.). 27a Bienal de São Paulo: Como Viver Junto. São Paulo: Fundação
Bienal, 2006. PP. 206 – 210.
REIS FILHO, Nestor Goulard. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2010. (Coleção Debates)
Bibliografia específica
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BIENAL DE SÃO PAULO. Sala Especial Flávio de Carvalho. LEITE, Rui Moreira;
ZANINI, Walter. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. (XVII Bienal de
São Paulo)
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_______________________. “As tarefas do curador”. Revista Trópico, seção Em
Obra. (http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2974,1.shl) (visualizado em
17/12/11).
LEITE, Rui Moreira. Experiência sem número: uma década marcada pela atuação de
Flávio de Carvalho. Dissertação de Mestrado em Artes Plásticas. São Paulo: ECA-
USP, 1987.
_______________________. Flávio de Carvalho (1899-1973): entre a experiência e
a experimentação. Tese de Doutorado em Artes Plásticas. São Paulo: ECA-USP,
1994.
_______________________. “Modernismo e vanguarda: o caso Flávio de Carvalho”.
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[www.scielo.br/pdf/ea/v12n33/v12n33a18.pdf] (Acessado em 19/09/2011).
OSÓRIO, Luiz Camillo. Flávio de Carvalho: Luiz Camillo Osório. São Paulo: Cosac
Naify, 2009. (Espaços da arte brasileira)
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SALLES, Francisco Luís de Almeida. “A Série Trágica de Flávio de Carvalho” in
Flávio de Carvalho – 32 desenhos. São Paulo: Edart, 1967 et Espelho de Sedução,
São Paulo: Art, 1979, n.p.
Sites
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http://centrefortheaestheticrevolution.blogspot.com/search/label/Lisette%20Lagnado
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Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia – Site Oficial.
http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-deriva.html
_______________________. Flickr.
http://www.flickr.com/photos/madrimasd/2379249753/
Revista Vitruvius.
http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.034/698
Audiovisual
MUSEU NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFIA. Desvios de la Deriva.
Conversación entre Lisette Lagnado y Maria Berrios. LAGNADO, Lisette;
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(http://www.museoreinasofia.es/archivo/videos/2010/desvios-deriva.html)
(visualizado em 01/11/11)
VICALVI, Cacá. Documentário sobre mostra MAM 60. OSÓRIO, Luiz Camillo
(entrevista). São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2008.
_______________________. Documentário sobre mostra Flávio de Carvalho.
LEITE, Rui Moreira (entrevista). São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2010.
_______________________. Documentário sobre mostra A cidade do homem nu.
GUERREIRO, Inti (entrevista). São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2010.
189