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FACULDADE SANTA MARCELINA

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM ARTES


(MESTRADO ACADÊMICO)

DA CONTEMPORANEIDADE DE FLÁVIO DE CARVALHO


Revisão bibliográfica dos principais estudos sobre o artista de 1979 a 2010

ANA MARIA MAIA ANTUNES

Orientadora: Profª Drª Zizette Lagnado Dwek

São Paulo
2012
FACULDADE SANTA MARCELINA
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM ARTES
(MESTRADO ACADÊMICO)

DA CONTEMPORANEIDADE DE FLÁVIO DE CARVALHO


Revisão bibliográfica dos principais estudos sobre o artista de 1979 a 2010

ANA MARIA MAIA ANTUNES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Artes Visuais, na linha de pesquisa História, Crítica e
Pensamento curatorial, como requisito para a obtenção do
Grau de Mestre em Artes Visuais.

Orientadora: Profª Drª Zizette Lagnado Dwek

São Paulo
2012

  2  
Dissertação apresentada perante a seguinte banca examinadora:

__________________________________

Prof. Dra. Zizette Lagnado Dwek (Presidente da Banca)

__________________________________

Prof. Dra. Eliane Robert Moraes (Docente Externo)

__________________________________

Prof. Dra. Verônica Stigger (Docente Externo)

São Paulo, 28 de fevereiro de 2012

  3  
Agradecimentos

 
À Capes, por ter-me concedido uma bolsa de pesquisa.
A minha orientadora, Lisette Lagnado, pela acolhida e pelo rigor.

Aos meus pais, pelo amor incondicional.


A Felipe, pelo cafuné.
Às minhas afilhadas Duda e Clara, para que elas leiam um dia.
À “Capote”, por me lembrar do carnaval.

A Moacir, que me fez perceber Flávio de Carvalho.


Aos autores citados, pelo caminho aberto por suas pesquisas.

  4  
Sumário

Lista de Imagens ……………………………………………………………………... 7

Resumo ……………………………………………………………………………... 10

Abstract …………………………………………………………………………….. 10

Introdução …………………………………………………………………………... 11

Capítulo 1 – Flávio de Carvalho por Luiz Carlos Daher ………………………. 17

1.1 Arquitetura e Expressionismo: da vanguarda européia ao “todos fazem, eu não


faço” ………………………………………………...………………………….. 18
1.1.1 A leitura de Daher para o Expressionismo na Europa e no Brasil ……….. 23
1.1.2 O “Expressionismo flaviano” …………………………………………...... 32
1.2 A Volúpia da Forma ……………………………………………………………. 46

Capítulo 2 – Flávio de Carvalho por Rui Moreira Leite ……………………….. 58


2.1 A experiência sem número de um “animador cultural” ………………………… 62
2.2 Um artista Entre a experiência e a experimentação …………………………… 69
2.3 A síntese de um “artista total” …………………………….……………………. 87
2.4 Dois momentos de um pensamento curatorial: da Sala Especial da 17a Bienal de
São Paulo à Retrospectiva do MAM-SP …………………………….……………... 96

Capítulo 3 – Flávio de Carvalho em curadorias contemporâneas ……………. 107


3.1 Da história das exposições às exposições históricas ………………………….. 108

- 100 anos de um revolucionário romântico, Denise Mattar

  5  
- MAM 60, Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris
3.2 Correspondências latino-americanas …………………………………..……… 122

- 7a Bienal do Mercosul, Victoria Noorthoorn e Camilo Yanéz


- 29a Bienal de São Paulo, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos
3.3 A partir da antropofagia, pela concepção de uma cidade do futuro
...................……………………………………………………………………..….. 140

- Da Antropofagia a Brasília, Jorge Schwartz


- Desvios de la deriva, Lisette Lagnado
- A cidade do homem nu, Inti Guerreiro

4. Considerações finais ……………………………………………………...…… 169

Anexos …………………………………………………………………….……… 176

- Anexo A: Planta arquitetônica mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP


- Anexo B: Planta arquitetônica mostra MAM 60, MAM-SP
- Anexo C: Planta arquitetônica 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
- Anexo D: Planta arquitetônica mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do
Mercosul, MARGS
- Anexo E: Planta arquitetônica mostra A cidade do homem nu, MAM-SP

Bibliografia …………………………………………………….………………… 182

  6  
Lista de Imagens

Imagem 1 - Paisagem mental (1955). Fonte: Luiz Carlos Daher.


Imagem 2 - A inferioridade de deus (1931). Fonte: Luiz Carlos Daher.
Imagem 3: Projeto para o Palácio do Governo de São Paulo, 1927. Fonte: Rui Moreira
Leite.
Imagem 4: Projeto para Universidade de Minas Gerais, 1928. Fonte: Rui Moreira
Leite.
Imagem 5: Casa do conjunto da Alameda Lorena. Fonte: Luiz Carlos Daher.
Imagem 6: Fazenda Capuava. Fonte: Luiz Carlos Daher.
Imagem 7: Exemplo de ilustração do livro Experiência no. 2. Fonte: Editora NAU.
Imagem 8: Retrato de Mário de Andrade, Lasar Segall, 1927. Fonte: Luiz Carlos
Daher.
Imagem 9: Retrato de Mário de Andrade, Flávio de Carvalho, 1939. Fonte: Luiz
Carlos Daher.
Imagem 10: Duas das oito pranchas da Série Trágica, de 1947. Fonte: Luiz Carlos
Daher.
Imagem 11 - Mostra Expressionismo no Brasil, na 18a Bienal de São Paulo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 12 - Primeira encenação do Bailado do deus morto. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 13 - Experiência n°3. Fonte: MAM-SP.
Imagem 14 - Encontro posado de uma das modelos com índios xirianãs, na
Experiência n°4. Fonte: Cedae-Unicamp.
Imagem 15 - Sala de jantar da Fazenda Capuava. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 16 - Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17a Bienal de São Paulo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 17 - Slideshow de imagens da Experiência n°2. Fotografia: Rochelle Costi.
Fonte: MAM-SP.
Imagem 18 - Fotografias da Experiência n°4 e retratos do artista (1965) e dos
psicanalistas Julian Philips (1972) e Wilfred R. Bion (1973). Fotografia: Rochelle
Costi. Fonte: MAM-SP.
Imagem 19 - Vitrine com livros da temporada do artista na Europa. Fotografia:
Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.

  7  
Imagem 20 - Entrada da mostra retrospectiva do MAM, com Projeto para o viaduto
do Chá, de 1934. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
Imagem 21 - Entrada de 100 anos de um revolucionário romântico, 1999. Fonte:
Denise Mattar.
Imagem 22 – Primeira sala da mostra 100 anos... Fonte: Arquivo Denise Mattar.
Imagem 23 - Detalhe da expografia que cita a montagem da primeira individual de
Flávio de Carvalho. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 24 - Réplica do cenário de Bailado Dorinha Costa com máscaras do Bailado
do Deus Morto ao fundo. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 25 – Totem de Flávio de Carvalho lançando o New Look, detalhe do cenário
do Bailado Dorinha Costa e cronologia ao fundo. Fonte: Denise Mattar.
Imagem 26 - Mostra Desenho das ideias, 7a Bienal do Mercosul. Fonte: Fundação
Bienal do Mercosul.
Imagem 27 - Sala dedicada a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Fonte:
Fundação Bienal do Mercosul.
Imagem 28 - Série Trágica na área climatizada da 29a Bienal de São Paulo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 29 - Documentação da Experiência n° 2. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.
Imagem 30 – Registro da performance Divisor, de Lygia Pape, projetado ao fundo.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 31 - Fotografias da Experiência n°4 e Retrato de Sérgio Buarque de Holanda
ao fundo. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 32 - Cacique de Ramos, de Carlos Vergara. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.
Imagem 33 - Encenação da peça Bailado do Deus morto na 29a Bienal de São Paulo.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.
Imagem 34 - Imagem 33 - Abaporu na montagem final de Da Antropofagia a Brasília,
no MAB. Fonte: Arquivo do Museu de Arte Brasileira - Faap.
Imagem 35 - Imagem do New Look ao fundo da sala, por trás da maquete de Brasília.
Fonte: Arquivo do MAB - Faap.
Imagem 36 - Desvios de la deriva. Fonte: Flickr Museu Nacional Centro de Arte
Reina Sofia.
Imagem 37 - Mobiliário de Desvios de la deriva e lousas de aula da Escuela de
Valparaíso ao fundo. Fonte: Flickr MNCARS.
Imagem 38 – Em primeiro plano, o New Look instalado com o dispositivo criado por
Dominique Gonzalez-Foerster. Fonte: Flickr MNCARS.

  8  
Imagem 39 - Desenho e foto da Experiência n°3. Fonte: Pablo Leon de la Barra.
Imagem 40 - Perspectiva sobre a baía do Rio, Le Corbusier. Fonte: Pablo Leon de la
Barra.
Imagem 41 - Vitrine com cadernos de Juan Borchers. Fonte: Flickr MNCARS.
Imagem 42 - Morfologia, de Roberto Matta. Fonte: Pablo Leon de la Barra.
Imagem 43 - Documentação da Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.
Imagem 44 - Fotos de Brasília, A verdade andava nua e Experiência nº3. Fonte:
MAM-SP.
Imagem 45 - Rua Direita, de Claudia Andujar. Fonte: MAM-SP.
Imagem 46 - Videoclip e figurino de Ney Matogrosso. Fonte: MAM-SP.
 

 
 
 
 

 
 
 

 
 
 

 
 
 

 
 
 
 

  9  
Resumo  

O objetivo desta dissertação é revisar uma bibliografia de trabalhos acadêmicos e uma


história de exposições que consideram a trajetória de Flávio de Carvalho e criam
interpretações originais para a sua produção. Quais foram as principais “versões” do
artista narradas pela crítica, pela curadoria e pela história da arte contemporâneas?
Dentro de um universo mais amplo de iniciativas, foram escolhidas para serem
analisadas as pesquisas acadêmicas de Luiz Carlos Daher (1979) e Rui Moreira Leite
(1987 – 1994) e as curadorias deste último (com Walter Zanini, na 17a Bienal de São
Paulo, em 1983, e sozinho, no MAM-SP, 2010), de Denise Mattar (CCBB, 1999),
Jorge Schwartz (MAB, 2002), Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris (Oca, 2008),
Victoria Noorthoorn (7a Bienal do Mercosul, 2009), Lisette Lagnado (Museu
Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2010), Inti Guerreiro (MAM-SP, 2010) e
Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos (29a Bienal de São Paulo, 2010). Seus textos e
formulações espaciais para uma obra circuscrita cronologicamente na modernidade
dão subsídios para uma observação de como o ato interpretativo pode instaurar
temporalidades outras para a obra de arte.

Abstract

The aim of this research is to review a bibliography of academic thesis and a history
of exhibitions that refer to Flávio de Carvalho creating original interpretations for his
production. What are the main "versions" of the artist narrated by critics, curators and
contemporary art history? Among a larger group of initiatives, the essay chose to
review academic thesis by Luiz Carlos Daher (1979) and Rui Moreira Leite (1987 -
1994) and curatorships by this last researcher (with Walter Zanini, at 17th São Paulo
Biennial, 1983 and alone, at MAM-SP, 2010), Denise Mattar (CCBB, 1999), Jorge
Schwartz (MAB, 2002), Luiz Camillo Osório and Annateresa Fabris (Oca, 2008),
Victoria Noorthoorn (7th   Bienal   do   Mercosul, 2009), Lisette Lagnado (Museu
Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2010), Inti Guerrero (MAM-SP, 2010) and
Agnaldo Farias and Moacir dos Anjos (29th Bienal de São Paulo, 2010). Their texts
and architectural statements about a body of work chronologically circumscribed in
modernity provide a basis for an observation of how the interpretive act can establish
other conceptual time frames for the work of art.  

  10  
Introdução: Sobre os diferentes “Flávios de Carvalho” da história da arte
contemporânea brasileira

A luz sobre o passado é o único tipo de luz capaz de iluminar


o presente, e de ajudar a derreter o véu da cegueira.
Flávio de Carvalho, 1936.

Ao longo da vida, Flávio de Carvalho (1899 – 1973) relacionou-se com representantes


de diversos segmentos da vanguarda modernista brasileira e internacional, havendo
sido denominado como “revolucionário romântico” (Le Corbusier), “pintor maldito”
(Pietro Maria Bardi), “antropófago ideal” (Oswald de Andrade), dentre outros1. A
variedade de perspectivas sobre a atividade do artista diz respeito a como ele
manteve-se propositivo na esfera pública de seu tempo, atuando não apenas nas artes
plásticas, mas na arquitetura, na cenografia, na imprensa, no teatro e na moda. Após a
morte de Flávio de Carvalho, outras abordagens passaram a aparecer, demonstrando
uma lacuna de sistematizações de sua obra complexa e vanguardista por seus pares
imediatos. O surgimento dessas investidas também indica uma vocação utópica desta
obra que a conduz ao presente.

O objetivo desta dissertação é revisar uma bibliografia de trabalhos


acadêmicos e uma história de exposições que consideram a trajetória do artista e
criam interpretações originais para a sua produção. Quais foram as principais
“versões” de Flávio de Carvalho narradas pela crítica, pela curadoria e pela história da
arte contemporâneas? No intervalo entre a pesquisa de Luiz Carlos Daher, finalizada
na FAU-USP, em 1979, e o ano de 2010, em que a Bienal de São Paulo e três outras
exposições deram destaque a Flávio de Carvalho, analisarei um grupo de cerca de
doze iniciativas, a partir exclusivamente do discurso e dos documentos de trabalho de
seus autores.

Este material compreende textos, livros e trabalhos acadêmicos publicados;


registros imagéticos, catálogos e plantas arquitetônicas; além de entrevistas

                                                                                                               
1
Estes e outros apelidos são listados por J. Toledo na introdução do livro O comedor de
emoções.

  11  
concedidas à imprensa e aos setores de documentação das instituições que sediaram
as mostras. As dissertações e teses escolhidas, por sua característica textual, mantêm-
se integralmente acessíveis para uma investigação posterior ao seu período de
realização. Já as curadorias de exposições, uma vez encerrado seu tempo de visitação,
demandam uma articulação de enunciados e vestígios do processo de concepção da
mesma, a ponto de se poder reconstruir o que o projeto conseguiu alcançar.

Vale mencionar que, das nove mostras reunidas neste trabalho, pude visitar
presencialmente apenas quatro. Vale também pontuar meu envolvimento profissional
com uma delas, a 29a Bienal de São Paulo, da qual fui assistente curatorial. Esta
experiência demandou um afastamento temporário das atividades acadêmicas, mas
gerou oportunidades de reflexão e conhecimento que certamente beneficiaram meu
percurso de pesquisa. Uma delas foi a ida ao Centro de Documentação Alexandre
Eulálio, na Universidade de Campinas, detentora de um vasto arquivo de livros,
jornais, fotografias e datiloscritos que pertenceram a Flávio de Carvalho.

A opção por incluir as exposições no escopo da dissertação, junto com os


trabalhos acadêmicos, justifica-se pela vocação das mesmas para empreender uma
reavaliação da produção artística, formular espacialmente hipóteses e articulações não
só estéticas mas culturais. Lisette Lagnado define a curadoria como “campo prático da
atividade crítica”2. Paulo Herkenhoff, por sua vez, a caracteriza como um “discurso
de leitura inventiva e poética de arte”3 Esta prática ou poética discursiva resguarda
diferenças com relação ao texto acadêmico que pareceram pertinentes ao presente
trabalho.

À medida em que ocupa “o principal lugar de trocas na economia política da


arte”4, a curadoria prescinde das estruturas de produção deste sistema e tem potencial
para tensionar suas categorias e valores. A história das curadorias, ou a história das
exposições, conforme terminologia mais amplamente adotada, investiga, portanto, o
sentido contextual e institucional dos enunciados da arte. O desenvolvimento desta

                                                                                                               
2
Em “As tarefas do curador”, publicado na seção Em Obras da Revista Trópico.
(http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2974,1.shl) (visualizado em 17/12/11).
3
No texto introdutório do livro Histórias de Canibalismos, editado a partir do Núcleo
Histórico da 24a. Bienal de São Paulo, da qual o autor foi curador-geral. (Cf. HERKENHOFF,
1998, p. 23)
4
Cf. FERGUSON, GREENBERG, NAINE, 1996, p. 2.

  12  
dissertação perpassa o advento das curadorias, desde os anos 19805, e a formação de
um repertório para uma história de exposições ainda pouco teorizada no contexto
brasileiro.

O primeiro capítulo debruça-se sobre a pesquisa de Luiz Carlos Daher, que


ressalta tendências expressionistas na arquitetura de Flávio de Carvalho. O trabalho
do autor nasce de um levantamento iniciado por Flávio Motta, na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e resulta numa dissertação de
mestrado, em 1979. Daher expande seus escritos sobre o artista ao publicar a Volúpia
da Forma, em 1984. O livro confirma a premissa que vincula Flávio de Carvalho às
vanguardas européias, neste caso não apenas na arquitetura mas também em sua obra
plástica.

Em 1985, para ocasião da 18a Bienal de São Paulo, este ideário fundamenta a
inclusão do artista na exposição coletiva Expressionismo no Brasil: heranças e
afinidades, que inicialmente seria curada pelo autor e, devido à sua morte, neste
mesmo ano, passa a ser assinada por Stela Teixeira de Barros e Ivo Mesquita.

O segundo capítulo tem Rui Moreira Leite como interlocutor principal. Há


quase três décadas dedicado a investigar fontes primárias e sistematizar uma visão
completa da trajetória de Flávio de Carvalho, o autor realizou uma dissertação de
mestrado (1987) e uma tese de doutorado (1994) sobre o artista na Escola de Artes e
Comunicação da USP, além de artigos especializados e duas exposições
retrospectivas.

A primeira delas remonta ao início de seu processo de pesquisa, quando, em


1983, ainda fazia parte do grupo de estudos de Aracy Amaral sobre personagens do
modernismo brasileiro. Nesta época, o curador-geral da 17a Bienal de São Paulo,
Walter Zanini, convida a pesquisador para conceber em parceria uma Sala Especial
dedicada a Flávio de Carvalho. Esta curadoria dá subsídios para a carreira acadêmica
de Rui Moreira Leite, em que sobressai uma apreciação das Experiências e uma
aproximação das mesmas com as práticas experimentais dos anos 1960 e 1970.

                                                                                                               
5
Este é o marco inicial da história da curadoria no Brasil e também da cronologia de
exposições abordadas na dissertação. Em 1981, Walter Zanini apresenta-se como curador da
16a Bienal de São Paulo, inaugurando o uso do termo no país. Em 1983, ele e Rui Moreira
Leite curam a Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17a edição do evento.

  13  
Outro aspecto da trajetória do artista que ganha relevância na interpretação do
autor é a interdisciplinaridade. O Flávio de Carvalho definido por Rui Moreira Leite
tem “qualidade multímoda”, ganha contornos de um “artista total”6 e é apresentado
em sua segunda curadoria, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2010,
segundo uma premissa de convívio entre obras de diferentes linguagens.

O terceiro capítulo aborda um conjunto de sete curadorias que tematizam a


obra de Flávio de Carvalho e a incluem em debates da arte contemporânea. Estas
mostras, que aconteceram no intervalo entre 1999 e 2010, são organizadas na
dissertação por afinidades temáticas e não cronologicamente. A retrospectiva 100
anos de um revolucionário romântico, curada por Denise Mattar na ocasião do
centenário do artista, em 1999, é aproximada da coletiva MAM 60, de 2008, em que
Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris promovem uma reflexão sobre a passagem
do moderno para o contemporâneo à luz da coleção e da história do MAM de São
Paulo.

Num segundo momento, os projetos da 7a Bienal do Mercosul (Grito e Escuta,


2009) e da 29a Bienal de São Paulo (Há sempre um copo de mar para um homem
navegar, 2010), com curadorias das duplas Victoria Noorthoorn e Camilo Yánez,
Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, respectivamente, incampam uma reflexão sobre a
revisão das narrativas hegemônicas européias e norte-americanas e sobre a
constituição de focos de criação e resistência artísticas, teóricas e institucionais no
continente latino-americano.

Um último agrupamento aprofunda a ideia de uma inversão da dinâmica


colonial apropriando-se do vocabulário e dos procedientos da antropofagia. Da
Antropofagia a Brasília: Brasil 1920 – 1950, de Jorge Schwartz (Museu de Arte
Brasileira, São Paulo, 2002); Desvios de la Deriva (Museu Nacional Centro de Arte
Reina Sofia, Madri, 2010), de Lisette Lagnado; e A cidade do homem nu (MAM, São
Paulo, 2010), de Inti Guerreiro, têm em comum o fato de incluírem em composições
de mostras coletivas evidências da utopia antropofágica de Flávio de Carvalho.

                                                                                                               
6
O termo “artista total” aparece no título do livro (Flávio de Carvalho – artista total) publicado por
Rui Moreira Leite em 2008, pela Editora Senac.

  14  
Esta dissertação identifica um panorama de interpretações que enunciam o
artista como “expressionista”, “arquiteto midiático”, “artista total”, “revolucionário
romântico”, “homem nu”, “artista-arquiteto”, dentre outros. Ao valer-se de sua atitude
participativa mas sempre “inatural” em relação ao seu tempo, e observar como ela
motiva atos de aproximação e leitura como os aqui elencados, cujas iniciativas
distanciam-se em décadas da biografia do artista, o trabalho vislumbra a adequação de
Flávio de Carvalho ao que Giorgio Agamben define como “contemporâneo”: aquele
que estabelece “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao
mesmo tempo, dele toma distâncias”7.

Naturalmente, ao empregar esta noção de contemporaneidade para qualificar a


obra do artista, não se almeja questionar seu pertencimento ao contexto da arte
moderna brasileira. Se almeja sim ressaltar a disponibilidade de sua obra para aderir a
sentidos e leituras extemporâneos; inspirar gerações posteriores a atentarem para o
“não-vivido”, considerarem o passado como “um presente em que jamais
estivemos”8. Por acreditar numa prática historiográfica que dependa da experiência do
narrador, e que por ela seja ampliada e relativizada, investe-se aqui numa abordagem
acumulativa do objeto de pesquisa, num texto feito em camadas.

Este texto nasce a partir de um encadeamento de interlocutores: o artista, seus


intérpretes e eu, que dedico-me a interpretá-los. Para solucionar eventuais
ambigüidades relativas à autoria das ideias apresentadas, a conjugação verbal na
primeira pessoa é usada nos momentos em que, a partir de tópicos formulados pelos
teóricos e curadores elencados, detalho algum aspecto discursivo, tecendo análises ou
agregando um referencial bibliográfico relacionado aos documentos que constituem
seu objeto de estudo. No geral, o texto segue enunciado na “terceira pessoa” dos
teóricos e curadores e estruturado pelas bases teóricas sobre as quais conceberam suas
ideias.

Da contemporaneidade de Flávio de Carvalho dedica-se a narrar aspectos da


vida e da obra do artista através de diversas perspectivas. Por isso, evita apresentar
nesta introdução uma súmula da vasta atuação de Flávio de Carvalho. Evita resumir
as situações de divergência que causou no meio artístico paulistano e brasileiro.
                                                                                                               
7
Cf. AGAMBEN, 2008, p. 59.
8
Cf. Ibid., p. 70.

  15  
O faz por entender que as considerações sobre esta trajetória aparecerão
oportunamente ao longo do texto, conforme sejam abordados os trabalhos teóricos e
curatoriais que as tematizam e que são aqui analisados. Desta maneira, esta
dissertação opta por vincular o assunto narrado a uma reflexão sobre as estruturas de
narração. Ressalta o lugar do autor e observa conteúdo, contexto e método
indissociadamente no processo de escrita histórica.

 
 
 
 

 
 
 

 
 
 

  16  
CAPÍTULO 1

FLÁVIO DE CARVALHO POR LUIZ CARLOS DAHER

Este estudo pretende ser uma contribuição para a


documentação e análise histórico-crítica dos projetos de
tendência expressionista, notadamente do que se refere à arte e
à arquitetura no Brasil. (…) A postura individualista e
cosmopolita de Flávio de Carvalho, frequentemente, implicou
em realizações de características expressionistas, e teve
impacto considerável no meio artístico paulista, especialmente
no período 1927 – 1947.

Luiz Carlos Daher, 1979.

  17  
1.1 Arquitetura e Expressionismo: da vanguarda européia ao “todos fazem, eu
não faço”

A primeira pesquisa acadêmica sobre Flávio de Carvalho é concluída na Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1979. Arquitetura e
Expressionismo: notas sobre a Estética do Projeto Expressionista, O Modernismo e
Flávio de Carvalho é a dissertação de mestrado que Luiz Carlos Daher, arquiteto,
historiador da arquitetura e docente desta faculdade9, realiza sob orientação do Prof.
Dr. Nestor Goulart Reis Filho10. O objetivo principal do autor é caracterizar os
projetos arquitetônicos e artísticos de Flávio de Carvalho segundo as formulações da
vanguarda expressionista na Europa e no Brasil. Nasce assim uma leitura focada e já
analítica das aspirações e realizações do artista em relação ao meio em que produziu,
entre os anos 1920 e os 1970.

Este capítulo revista os principais aspectos do mestrado de Daher e também


aborda a continuidade de sua investigação sobre Flávio de Carvalho nos livros
Arquitetura e Expressionismo e Volúpia da Forma, publicados em 1982 e 1984,
respectivamente. Ambas as iniciativas informam o meio crítico brasileiro e são usadas
como fontes para pesquisas subsequentes. Dentre os intérpretes que compõem o
objeto de estudo desta dissertação, quase todos revisam e citam a obra do autor.

O início da formulação de Daher sobre Flávio de Carvalho dá-se pela


constatação de que a predominância do Expressionismo dentre as filiações e
afinidades eletivas do artista condiz com seu isolamento no panorama arquitetônico
moderno brasileiro. Embora seja profícuo debatedor e reconhecido pioneiro nesse
ideário, junto com Gregori Warchavchik (o primeiro tendo concebido e o segundo
tendo construído os primeiros projetos modernistas do país, ambos nos anos 1920), o
artista dedica-se a uma atividade imaterial e utópica que, orientada para a
intensificação da experiência do indivíduo, ressalta as qualidades psicológicas e

                                                                                                               
9
O autor foi docente do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto entre
maio de 1972 e dezembro de 1985. A dissertação apresentada em 1979 baseia-se em pesquisa
de Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP).
10
O Prof. Dr. Nestor Goulart Reis Filho leciona na FAU-USP, no departamento de História e
Teoria da Urbanização, do Urbanismo e da Arquitetura.

  18  
anímicas do espaço social. A defesa desta agenda o faz divergir de um racionalismo
funcionalista que predomina na arquitetura oficial brasileira das próximas décadas.

Flávio de Carvalho não integra a “geração Brazil Builds”11, que começa a


construir edifícios públicos e residências de alto padrão aquisitivo nos anos 193012 e é
divulgada internacionalmente como criadora de um estilo arquitetônico moderno
brasileiro. É, no entanto, o primeiro a ser inventariado e estudado no contexto da
universidade. Quando Daher termina seu mestrado, a bibliografia sobre os
personagens e assuntos relacionados à arquitetura brasileira, entre narrativas
monográficas, geracionais ou temáticas, ainda é extremamente restrita. Num
levantamento sobre pesquisas acadêmicas dedicadas a arquitetos modernistas, o Prof.
Abílio Guerra constata que a maioria delas acontece apenas entre os anos 1990 e
200013.

                                                                                                               
11
Brazil Builds: Architecture New and Old é um projeto de 1942, composto por exposição e
livro, com curadoria de Philip Goodwin, no MoMA. Com o intuito de divulgar a produção
arquitetônica brasileira, principalmente a que desponta no país após a concepção e o início da
construção do edifício do Ministério da Educação e da Saúde (1936 – 1945), no Rio de
Janeiro, o projeto reúne trabalhos de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy,
Rino Levi, Vilanova Artigas, dentre outros. Após a exibição em Nova York, Brazil Builds
itinerou, entre 1943 e 1945, para Londres e várias cidades da América do Norte e do Brasil.
12
Podemos tomar como marco inicial do trabalho dessa geração a encomenda do projeto do
Ministério da Educação e Saúde (MES) do Rio de Janeiro, pelo governador Gustavo
Capanema, para Lúcio Costa. O arquiteto conta com a consultoria de Le Corbusier e convoca
um grupo de ex-alunos da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), que dirigira entre 1930 e
1931, dentre eles Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e
Oscar Niemeyer. A construção do edifício começa em 1937, chega a um primeiro acabamento
em 1942 (quando é fotografada para o projeto Brazil Builds) e é inagurado pelo presidente
Getúlio Vargas em 1945.
13
O Prof. Dr. Abílio Guerra, da FAU Mackenzie, no artigo “História da arquitetura brasileira:
pesquisas monográficas e trabalhos panorâmicos“, apresentado no I Encontro Nacional da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, no Palácio
Gustavo Copanema, Rio de Janeiro, entre 29 de jovembro e 3 de dezembro de 2010, lista
trabalhos acadêmicos realizados sobre os exponentes da arquitetura moderna brasileira:
“Oscar Niemeyer (VALLE, 2000; CASTOR, 2004; QUEIROZ, 2007), Affonso Eduardo
Reidy (KAMITA, 1994; CENIQUEL, 1996), Vilanova Artigas (BUZZAR, 1996; THOMAZ,
1997; CORREA, 1998; SUZUKI, 2000; IRIGOYEN DE TOUCEDA, 2000; COTRIM,
2008), Rino Levi (ANELLI, 1990; MACHADO, 1992; ANELLI, 1995; GONSALES, 2000;
ARANHA, 2003; VILLELA, 2003), Oswaldo Bratke (CAMARGO, 2000)13, Lucio Costa
(MARTINS, 1987; GUERRA, 2002; CARRILHO, 2003; RIBEIRO, 2005) e Roberto Burle
Marx (OLIVEIRA, 1998; DOURADO, 2000)” (GUERRA, 2010, p. 4-5).

  19  
No entanto, no mesmo ano em que Daher finaliza a dissertação, é publicado o
primeiro livro de cunho historiográfico14, Arquitetura brasileira, de Carlos Lemos.
Em 1981 aparecem Quatro séculos de arquitetura no Brasil, de Paulo F. Santos, e o
manual Arquitetura contemporânea do Brasil, de Yves Bruand, que, embora defesado
em alguns aspectos, é usado até hoje como bibliografia básica de história da
arquitetura brasileira.

A pesquisa de Daher sobre Flávio de Carvalho nasce de um levantamento


documental iniciado pelo Prof. Flávio Motta na FAU – USP15 em 1965, mas logo
interrompido devido ao endurecimento da ditadura militar. A iniciativa pertencia a um
projeto maior de investigação da produção modernista paulistana, com linhas de
pesquisa dedicadas não só a Flávio de Carvalho mas também a Gregori Warchavchik
e Rino Levi. Vale pontuar que, entre 1977 e 1978, Ricardo Forjaz Christiano de Souza
relata o legado destes três arquitetos, e o de Jayme da Silva Telles, para um Caderno
de Pesquisa que o Idart publica apenas em 1982. O grupo compõe o que este autor
denomina “ciclo paulista” (Cf. FORJAZ, 1982, p. 7), cuja produção, de 1925 a 1937,
representa os primórdios do modernismo no país.

O intervalo entre a realização e a publicação permite que até mesmo Forjaz


inclua Arquitetura e Expressionismo em sua bibliografia e afine-se com Daher na
percepção de características expressionistas em Flávio de Carvalho, além de um
apego à “invenção pessoal” e influências futuristas (Cf. Ibid., p. 77). Em 2004, o autor
conclui uma tese de doutorado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
USP, com orientação do Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto. O trabalho, intitulado O
debate arquitetônico brasileiro: 1925 – 36, dá continuidade ao escopo temático do
Caderno, mas enfoca o artista como “incontestavelmente futurista”. (Cf. FORJAZ,
2004, p. 135).

Esta tese e a mostra Expressionismo no Brasil: heranças e afinidades,


integrante da 18a Bienal de São Paulo, de 1985, constituem dois desdobramentos das

                                                                                                               
14
Apesar de não ter este perfil historiográfico, o livro Quadro da Arquitetura no Brasil, de
Nestor Goulart Reis Filho, merece menção. Editado inicialmente em 1970, reúne artigos do
autor sobre arquitetura brasileira publicados entre 1963 e 1969 na revista especializada
Acrópole.
15
O Prof. Flávio Motta trabalhou com os alunos Carlos Henrique Heck e Marta Rosseti
Batista, seus orientandos à época.

  20  
linhas de investigação (Flávio de Carvalho e a arquitetura moderna e Flávio de
Carvalho e o expressionismo) inauguradas por Daher. Apesar de não serem o foco
principal deste capítulo, elas voltarão a ser mencionadas adiante.

Feita sem a pretensão de “ser um estudo monográfico de toda a trajetória do


artista” (Cf. DAHER, 1979, p. 7), a dissertação de Daher decantou um aspecto de sua
obra para considerá-la com rigor científico. Com essa iniciativa, almejava contornar
as leituras mitificadoras e anedóticas que a imprensa16 e, em alguma medida, a crítica
criaram para Flávio de Carvalho ao longo de sua vida. Elas ainda eram definidoras da
reputação pública do artista naquele final dos anos 1970, poucos anos depois de sua
morte, em 1973.

Para alcançar seu objetivo, o autor focou-se no tema específico da relação do


artista com o Expressionismo, principalmente na arquitetura mas também nas artes
plásticas e nos escritos teóricos, e dedicou-se a cercá-lo de contextualizações, tanto da
história da arte quanto da história social. Num percurso de quatro capítulos –
“Aspectos do Expressionismo Alemão”, “Arquitetura e Expressionismo”,
“Modernismo e Expressionismo em São Paulo” e “Aspectos expressionistas da obra
de Flávio de Carvalho” –, Daher definiu um marco geral sobre a vanguarda histórica
européia e foi estreitando seus laços e diferenças com relação à realidade brasileira. O
cume do trabalho é a análise final da obra do artista, no quarto capítulo, em que o
autor sugere traços de um “expressionismo flaviano”.

Num primeiro momento do texto, dedicado às formulações gerais do tema,


Daher recorre à definição que Mário de Andrade dá ao termo “expressionismo”:
“tendência artística de origem alemã, que submete os dados da realidade e as normas
da técnica à visão expressiva pessoal que o artista tem do mundo”. Ou, conforme
revisão em que o próprio escritor detalha espaço-temporalmente o escopo do
movimento: “tendência artística moderna (de origem alemã) que procura submeter à
visão expressiva pessoal que o artista tem do mundo outros quaisquer elementos da
arte”. (ANDRADE in DAHER, 1979, p. 7)

                                                                                                               
16
Daher afirma ter feito na dissertação “observações modestas sobre suas experiências
antropológicas e psicológicas, evitando comentários pitorescos ou anedóticos semelhantes aos
que encontramos em centenas de artigos jornalísticos.” (DAHER, 1982, p. 5)

  21  
Mário de Andrade é a voz do modernismo mais autorizada daquela
dissertação. Seus depoimentos aparecem recorrentemente ao longo do texto, seja
porque refletem como a restrita ala vanguardista da sociedade percebia e celebrava a
atuação de Flávio de Carvalho, seja porque comprovam o dilema entre aderir a uma
agenda internacional e reinventá-la segundo vocações brasileiras. Na passagem citada,
o escritor demonstra sua atualização em relação ao expressionismo alemão e o desejo
de desdobrar suas premissas segundo as características e urgências do contexto local.

A escolha deste depoimento revela, mais do que um enunciado sobre o


Expressionismo, uma atitude de apropriação crítica do mesmo por parte de
modernistas como Mário de Andrade. No caso de Flávio de Carvalho, que nunca
assumiu-se como signatário de nenhuma vanguarda européia (nem mesmo do
Expressionismo), embora tenha estudado todas elas na teoria e na prática, a
relativização do cânone obedece à sua individualidade criadora e a enaltece. Em
entrevista dada a Walter Zanini em 1953, o artista afirma:

Desenvolvi minha pintura aos poucos, seguindo uma tendência


pessoal de criar no momento de fazer a coisa. Se minha pintura é
expressionista, é porque no instante de executá-la eu me sinto dessa
maneira. Quando começo a pintar nem sei como fazer nem a que
ponto chegar. Houve um tempo em que eu preconcebia. Mas nada
saía de bom” (ZANINI in DAHER, 1979, p. 172)

A espontaneidade de aplicar sentimentos ou estados de espírito na obra de arte, sem


planejamentos prévios, caracteriza o Expressionismo, bem como a afirmação da
personalidade e a negação de soluções industriais e massificadas para a vida. No
entanto, na atividade de Flávio de Carvalho, cujo discurso demonstra certa
volatilidade com relação à caracterizar-se segundo um estilo, a pulsão de criação está
sempre associada ao tensionamento de padrões e à sua renovação.

No Manifesto do III Salão de Maio, de 1939, o artista declarou uma


“revolução estética”, em que se pressupõe “um abandono gradativo da percepção
meramente visual e um desenvolvimento mais intenso da percepção psicológica e da
percepção mentalista do mundo” (CARVALHO in LEITE, 2010, p. 99). Essa
evocação pode indicar conformidade temática com tópicos do Expressionismo e do
Surrealismo, principalmente. Ela, no entanto, introduz uma revisão evolutiva de
momentos da história da arte moderna, que o artista faz em dois textos basilares: “O

  22  
aspecto psicológico e mórbido da arte moderna”17, de 1937, e “Um plano de seis
anos”18, de 1939.

Arquitetura e Expressionismo articula argumentos e exemplos que levam


Daher a afirmar uma predominância da vanguarda expressionista em detrimento das
outras na trajetória de Flávio de Carvalho. Perseguirei o ritmo imposto pelo autor,
desde a contextualização de um programa geral para o Expressionismo na Europa,
passando por sua chegada no Brasil, e finalmente, pelos aspectos da obra do artista
que motivam uma leitura que o assume como expressionista. Este roteiro similar ao
da dissertação de Daher permitirá identificar a maneira como o mesmo fundamenta
esta hipótese ao definir o “primeiro” Flávio de Carvalho narrado sistematicamente na
história da arte e na história da arquitetura brasileiras.

1.1.1 A leitura de Daher para o Expressionismo na Europa e no Brasil

Tendo estudado na França e na Inglaterra dos 12 aos 23 anos, ou seja, de 1911 a 1922,
Flávio de Carvalho, assim como grande parte dos modernistas brasileiros, vivencia de
perto o debate vanguardista europeu e, no Brasil, atua como mediador e repropositor
de seu conteúdo programático frente às especificidades do meio artístico local. Em
dois momentos de sua trajetória como animador cultural na cidade de São Paulo, o
primeiro no Clube dos Artistas Modernos, em 1931, e o segundo nos Salões de Maio,
entre 1937 e 1939, promove exposições e debates sobre tendências vanguardistas e
cultiva um rico intercâmbio, tanto indo em viagens de pesquisa para a Europa quando
trazendo artistas para curtas estadias no Brasil.

O início da relação de Flávio de Carvalho com o Expressionismo pode ser


vinculado à sua temporada de formação européia, quando, na iminência da Primeira
Guerra Mundial, crescem tendências artísticas derivadas da experiência do medo e, ao
longo dos anos de front, também da destruição e da morte. O artista permanece na
Europa ao longo de toda a Guerra, havendo sido forçado a mudar-se de Paris para

                                                                                                               
17
O texto foi publicado no Diário de S. Paulo em 22 de junho de 1937 e apresentado como
conferência na ocasião do I Salão de Maio, do mesmo ano.
18
Publicado na primeira edição da Revista Anual do Salão de Maio (RASM), São Paulo,
1939, s.p.

  23  
Londres quando é declarado o estado de beligerância, em 1914, e ele, sem portar seu
passaporte, é impedido de voltar das férias para casa.

Aqui, segundo Daher, é interessante pensar uma eventual conexão entre a


mudança de Paris para Londres e o afastamento das tendências impressionistas
cristalizadas na academia francesa do início do século XX. Citando Flávio Motta, o
autor indica como as ilustrações de revistas inglesas influenciaram o artista, e como
sua produção em desenho “revela ainda hoje certas semelhanças com as expressões de
‘linha de força’ própria do Art Nouveau [que na Inglaterra motivou o surgimento do
Arts and Crafts] e aproveitadas pelo expressionismo” (MOTTA in DAHER, 1979, p.
130).

Na qualidade de movimento sem manifesto, personagem de liderança nem


agenda declarada, o expressionismo tem limites espaço-temporais fluidos. Configura-
se como uma reação às condições político-sociais da Europa àquela altura, uma
tomada de posição dos artistas acerca do seu campo de fala e ação sobre a realidade.
O Expressionismo poderia ser visto como “arte do tempo de Guerra”, segundo
Delevoy, citado em nota por Daher, apenas se consideradas conotações ampliadas
para o conflito:

“conflito entre indivíduo e sociedade; entre realidade e desejo; entre


a necessidade de expressar-se sem mediações, e a contingência de
que os sistemas plásticos pressupõem certas mediações. De qualquer
maneira, pode-se dizer que tais conflitos aderem com facilidade a
outras circunstâncias históricas, que não as da Guerra.” (DELEVOY
in DAHER, 1979, p. 43)

Daher cerca-se deste e de outros estudos historiográficos para recuperar aspectos do


Expressionismo e de suas linhagens reconhecidas. Encontram-se dentre eles, todos
com publicações dos anos 1960 e 1970: Bernard Meyers (The German
Expressionists), Peter Selz (German expressionist paintings), Wolf-Dieter Dube (O
expressionismo), Maurice Tuchman (Van Gogh and expressionism), Horst Keller
(Graphic Art and German Expressionism), Brunela Eruli (Futurisme et
Expressionisme).

Em Arte Moderna, de 1988, Giulio Carlo Argan, que aparece na dissertação de


Daher com o livro Proyecto y Destino, de 1969, define o Expressionismo como uma

  24  
constitutiva digressão a partir do Impressionismo: “A impressão é um movimento do
exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito).
A expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que se
imprime no objeto”. (Cf. ARGAN, 1992, p. 227).

Numa Alemanha em vias de industrialização e urbanização, no início do


século XX, Daher observa que o “individualismo” e o “gosto pela discussão”
germânicos (Cf. DAHER, 1979, p. 15) possibilitam o surgimento de uma cena
expressionista profícua. Em 1905, formam-se os grupos Die Brücke (A ponte), em
Dresden, e Der Blaue Reiter (O cavalo azul), em Munique, cujas atuações e
derivações em outros coletivos e produções isoladas ressaltam a emoção e a
subjetividade, “descarregando significados interiores” (Cf. Ibid., p. 17) sobre a
superfície da obra.

Em 1911, Wassily Kandinsky, Gabrielle Mütter e Franz Marc promovem a I


Ausstellung der Redaktion des Blauen Reiter (I Exposição dos Editores do Cavaleiro
Azul), marcada por uma experimentação de cor desvinculada do realismo tradicional.
A verossimilhança deixa de ser um critério de construção pictórica e dá espaço para
“um processo de atribuição de significados através da cor”, como explica Argan:

O atributo implica um juízo, uma postura moral ou afetiva em


relação ao objeto a que se aplica; como o juízo se apresenta à
percepção juntamente com o objeto, ele se manifesta como
deformação ou distorção do objeto. A deformação expressionista,
que em alguns artistas chega a ser agressiva e ofensiva, não é
deformação ótica: é determinada por fatores subjetivos (a
intencionalidade com que se aborda a realidade presente) e objetivos
(a identificação da imagem com uma matéria resistente ou
relutante). (ARGAN, 1992, p. 240)

Essa tendência à deformação manifesta-se na produção dos artistas d’A Ponte,


segundo Daher, através de um conjunto de “dissonâncias deliberadas” (planos
rebatidos para a superfície do suporte, contraste de formas, contornos simplificados e
angulados, uso abundante da diagonal, dissonância tonal, textura dinâmica). Já em O
cavaleiro azul, ela representa operações “mais líricas”, de uma “harmonia consciente”
(cores mais luminosas, planos mais movimentados, contornos menos angulosos e
rudes).

  25  
Em ambos os casos, e talvez como característica geral, o autor nota um amplo
leque de variações, a experiência dos limites da forma, a “recusa de uma sintaxe a
priori” (Cf. DAHER, p. 19-20). Ou seja, a ausência de um conjunto de características
definitivas que se possa assumir como “estilo de época”. Os movimentos seminais de
vanguarda histórica, dentre eles o Expressionismo, refutam o esteticismo em favor da
“disponibilidade dos meios artísticos” (Cf. BÜRGER, p. 49). Neles, diminui o caráter
conteudístico da obra de arte e dilata-se o âmbito da experimentação formal.

Daher também destaca como traço definidor dos expressionistas o interesse


pela volta às origens por meio de disciplinas como a Psicologia e a Etnografia. A
busca de referências da arte primitiva e da decoração popular, tanto européia quanto
estrangeira, de países coloniais, demonstra a menção constante ao repertório e à
percepção do “outro”, seja ele o estrangeiro, a criança, o paranóico ou o socialmente
oprimido.

Ao limite da forma e dos “lugares de fala”, portanto, corresponde um limite


psicológico que os expressionistas, como depois também os surrealistas, vivenciam e
almejam abordar em obra. A psicanálise (Freud); a angústia e a solidão do habitante
da cidade moderna (Kierkegaard); o desejo de controle social, por um lado, e de
intensificação da vida nervosa, por outro (Nietzsche), estão na pauta da virada do
século XIX para o XX. Na qualidade de “arte de oposição”19 ou arte “anti-
naturalista”, muito mais do que como sistema ou programa fechados, o
Expressionismo apropria-se do “choque” como estratégia para interpelar o espectador.

Para o espectador moderno, com seus olhos constantemente fixados


na realidade, o anti-naturalismo deliberado do artista é perturbador
de modo muito mais pessoal. Ele sente o impacto de um poderoso
temperamento individual que quase sempre o esmaga e que abala
sua confiança nas coisas comuns. Então o espectador, que como o
artista sente-se constrangido por uma sociedade mecanizada todo-
poderosa, pode encontrar nessa expressão anti-real uma justificativa
pessoal, e seus próprios meios de enfrentar um mundo antagônico.
(MEYERS in DAHER, 1979, p. 30)

                                                                                                               
19
Cf. DAHER, 1979, p, 36.

  26  
Na busca pela sensibilização e por um sentido de existência pleno, que plasme na
criação a união de matéria e espírito, predomina o vigor do gesto como característica
comum aos diversos grupos expressionistas, tanto no contexto inicial alemão quando
no de interlocutores que foram sendo identificados em outros lugares, a partir
principalmente de 191220. Nas pinturas de Kandinsky; na retomada dos pós-
impressionistas Van Gogh e Munch; de Kokoschka, Nolde e De Kooning, o
movimento de corpo inteiro, e não mais apenas de punho, carrega a pincelada sobre a
tela. Daher observa que os sinais de vitalidade e reação, dentre eles o gesto e o grito,
ainda que nem sempre comunicáveis ou compreensíveis, “oferecem ao espectador
uma experiência compulsiva de uma outra realidade, uma natureza diversa”. (Cf.
DAHER, 1979, p. 29)

A defesa do gesto corresponde à resistência em aceitar a “despsicologização


das pessoas” na era da máquina. Ela é concomitante à formulação de uma
representação do espaço social marcado pela “psicologização intensa de edifícios e
ruas” (Cf. Ibid., p. 31). A cidade, para artistas expressionistas como Ludwig Meidner,
pode ser dramática e aterradora. O que representa apenas uma exaltação de um
ambiente maquínico e moderno, no Futurismo, vira promessa de esmagamento e
desejo de pacificação no Expressionismo. A cidade, na interpretação do artista, ganha
alma própria, reage, movimenta-se.

A arquitetura expressionista pôde em si sustentar semelhante desejo de


subjetividade, tensionando, para isso, os limites técnicos, funcionais e econômicos da
execução e da manutenção de seus empreendimentos. Contemporânea dos primórdios
do modernismo arquitetônico funcionalista cunhado na primeira metade do século XX
como International Style, a linhagem de projeto orientada pela “visão expressiva
pessoal” enfrentou dificuldades de assimilação tanto imediata quanto posterior.
Muitos historiadores da arquitetura, como alerta Daher, subtraem arquitetos
expressionistas (a exemplo de Hoffmann, Olbrich, Poelzig e Mendelsohn) de suas
narrativas para evitar digressões e quebrar uma coerência “modernista”.
                                                                                                               
20
“Em 1912, quando Der Sturm exibiu em Berlim as obras dos cavaleiros azuis, a tendência à
proliferação de grupos declinava, e o termo expressionismo, para designar as vanguardas sob
uma denominação comum, estava em pleno uso na revista. Aliás, o título da exposição nem
mencionava “cavaleiro azul”. Era: Deutsche Expressionistem, zuruckgestellte Bilder des
Sonderbundes Köln (Expressionistas alemães, quadros rejeitados pela Sonderbund em
Colônia). (DAHER, 1979, p. 22)

  27  
O projeto de arquitetura expressionista empreende uma “transposição total de
uma ideia pessoal de trabalho”, encara o desejo de “plasmar as paredes externas de
modo violento, agressivo, sem deixar nenhum ponto da superfície intocado pela
vontade do autor” (KIRCHNER in DAHER, 1979, p. 53). Lançando mão de postura
neo-gótica e repertório mediaval, as edificações expressionistas demonstram senso
decorativo e alguma irracionalidade, se comparadas com o racionalismo clássico de
um arquiteto moderno como Le Corbusier.

O tratamento escultórico que recebem advém do influência da Art-Nouveau,


que lhes garante plasticidade, expressividade nos detalhes e vigor nas cores, em
oposição à sobriedade e ao branco das construções funcionalistas. Uma certa
monumentalidade confere teor simbólico aos projetos: a transparência do vidro denota
luminosidade; o percurso de “baixo” a “cima”, por escadas sempre opulentes, indica o
movimento de elevação espiritual; o edifício toma a implantação central do terreno,
de modo a distinguir-se por completo do entorno.

Enaltece-se o espaço arquitetônico porque ele, segundo análise de Argan,


desta vez citado por Daher, é também “espaço figurativo”21, intencionalmente
constituído para abrigar e valorar a “dimensão da existência humana”. Segundo o
autor, ao identificar a deflagração de uma espacialidade já na pintura expressionista,
geradora de um consequente rebatimento pictórico para o projeto arquitetônico (se a
pintura é espacial, o espaço é pictórico), essa atribuição da arquitetura expressionista
torna-se preponderante para a superação de um “psicologismo exasperado” e o
estabelecimento de uma “relação concreta com a realidade através da experiência
existencial humana”.

O limite da arquitetura expressionista é, talvez, o de ter precedido a


possibilidade de uma realização construtiva concreta: na ordem
técnica e na ordem social. Mas a sua contribuição essencial consiste
em ter identificado totalmente, tanto na fantasia gráfica quanto na
estruturalidade racionalista, construção e espacialidade: em ter
portanto concebido o espaço como qualquer coisa que se constrói
com a forma e não mais como qualquer coisa em que se constrói a
forma. (ARGAN in Daher, 1979, pp. 70-71)
                                                                                                               
21
“O espaço figurativo, portanto, se põe sempre como um espaço artificial, como arquitetura
portanto, ainda que não tenha caráter especificamente arquitetônico: por reciprocidade, o
espaço arquitetônico se põe sempre, necessariamente, como espaço figurativo”. (Cf. ARGAN
in DAHER, 1979, p. 71)

  28  
Daher pontua que as estruturas do espaço não são dadas a priori, mas sim fundadas
no projeto. Haja visto seu desejo construtivo, que cria uma complexidade técnica, é de
se imaginar o quanto a arquitetura expressionista tenha sido impactada pela crise
econômica do pós-guerra. Se no geral as novas construções já estavam sujeitas a
diminuir em quantidade, quem dirá as de cunho expressionista, com todos os riscos e
excedentes envolvidos em sua realização.

Na iminência dos anos 1920, formam-se coletivos artísticos como o Groupe


1919, do qual Lasar Segall fez parte, antes de vir para o Brasil; o Arbeitstrat für Kunst
(Conselho do Trabalho para a Arte); e o Novembergruppe (Grupo de Novembro), em
torno do qual circulam Gropius e Mendelsohn. De fundamentação anarquista e
socialmente engajados, diversos expoentes dessa geração investem na pesquisa de
novos meios e procedimentos técnicos.

Investem também, junto com artistas e escritores, em iniciativas pedagógicas,


como a Bauhaus, de 1919, da qual Gropius foi um dos primeiros diretores. A
educação, para os expressionistas europeus, é um meio de se iniciar uma revolução
socialista. Não só as práticas pedagógicas como também o debate sobre a arquitetura
e o urbanismo e sobre os meios de comunicação de massa envolvem os seguidores
desse ideário num espírito de luta que resvala no que Daher identifica como “uma
superação da sua paixão confusa contra um mundo em mudança”. A apropriação e a
disseminação do choque expressionista pelo cinema e pela propaganda levam o autor
a concluir que, “tendo crescido na oposição, o Expressionismo não sobreviveria à sua
própria vitória”. (Cf. DAHER, 1979, pp. 35-36)

No Brasil, poucos, como Flávio de Carvalho, acompanhavam a pauta das


vanguardas artísticas e arquitetônicas européias. Com o fim da Primeira Guerra
Mundial, no entanto, este acesso deixou de ser tão restrito, conforme aponta Antônio
Cândido, no livro Literatura e Sociedade.

Com efeito, o Brasil se encontrava, depois da Primeira Guerra


Mundial, muito mais ligado ao Ocidente europeu do que antes; não
apenas pela participação mais intensa nos problemas sociais e
econômicos da hora, como pelo desnível cultural menos acentuado.
Além disso, alguns estímulos da vanguarda artística européia agiam
também sobre nós: a velocidade, a mecanização crescente da vida
nos impressionavam em virtude do brusco surto industrial de 1914-
1918, que rompeu nos maiores centros o ritmo tradicional. As

  29  
agitações sociais, trazendo ao nível da consciência literária
inspirações populares comprimidas, esboçavam-se também aqui,
embora em miniatura. No campo operário, com as grandes greves de
1917, 18, 19, 20, em São Paulo e no Rio a fundação do Partido
Comunista em 1922. No setor burguês, com a fermentação política
desfechada no levante de 1922, mais tarde na revolução de 1924.
Finalmente, não se ignora o papel que a arte primitiva, o folclore, a
etnografia tiveram na definição das estéticas modernas, muito
atentas aos elementos arcaicos e populares comprimidos pelo
academicismo. Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à
vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado
recente. (CÂNDIDO in DAHER, 1979, p. 79)

Entre potencialidades locais e espelhamentos de práticas européias, nascidas de


situações de urbanização e modernização semelhantes àquelas que as maiores cidades
do Brasil também enfrentavam, configura-se no Brasil um alinhamento expressionista
opositor ao naturalismo praticado na academia. Frente ao tom nacionalista e
celebratório desta tendência oposta, as práticas iniciais do Expressionismo brasileiro
sustentam o valor da digressão e da individualidade.

Daher afirma que a primeira manifestação expressionista no país acontece em


1913. Lasal Segall expõe numa mostra individual pinturas condizentes com o que
vinha realizando na Alemanha antes de mudar-se para São Paulo, e que aqui são
aceitas mas inicialmente pouco assimiladas, dado à prematuridade do debate
expressionista local. O mesmo acontece no advento das exposições de pinturas de
Anita Malfatti (1914), pupila de Lovis Corinth, integrante do movimento berlinense
de Secessão que culmina no Expressionismo Alemão; e de caricaturas de Di
Cavancanti, em 1917. Apenas a segunda individual de Anita desperta comentários
negativos dos conservadores, como o escritor Monteiro Lobato (Cf. DAHER, 1979, p.
84)

Os três artistas participam da Semana de 22, carregando a experimentação


formal e a psicologização dos personagens que demarcam sua filiação expressionista.
Quando da abordagem dessa tendência na produção de Flávio de Carvalho, que pouco
depois da Semana chegava de volta ao Brasil, veremos que, a despeito de afinidades e
parcerias, é em Segall que o artista reconhece um ponto de maior discordância
estética e política.

  30  
Por hora, para fazer jus à narrativa de Daher, vale apenas mencionar alguns
outros expressionistas participantes desse evento inaugural da modernidade cultural
brasileira, dentre eles Vicente do Rêgo Monteiro, devido a suas pinturas de temática
indigenista; e Antonio Garcia Moya, um dos poucos representantes da seção
arquitetônica da Semana, com desenhos de projetos de motivações pré-colombianas.

Sobre essa presença expressionista, especificamente sobre a representatividade


crescente de Anita Malfatti e Lasar Segall na cena artística dos anos 1920, Lourival
Gomes Machado, em Retrato da Arte Moderna22, formula, referindo-se ao fato de ter
acontecido próxima ao aniversário de 100 anos de independência do Brasil:

“tornar-se-iam independentes os homens e exigiriam para si esta


soberania espiritual, esse individualismo exuberante que nos livraria
do voto de submissão ao papado artístico do ensino oficial. A
memória da herança franco-joanina ainda estava viva e não deve ser
por simples coincidência que mostram ligações com a plástica
alemã os dois precursores que disputam ainda hoje a absoluta
primazia cronológica da primeira exposição de pintura
modernista...” (MACHADO in DAHER, 1979, p. 91)

Este quadro geral do Expressionismo, do surgimento, na Europa, até as ocorrências e


versões brasileiras, é concluído com uma hipótese de leitura proposta por Daher sobre
a disseminação de tendências expressionistas alemãs na cena artística brasileira – e,
por conformidade, no trabalho de Flávio de Carvalho. Para o autor, a ocorrência do
Expressionismo no país vincula-se com um desejo de ruptura com a tradição estética
francesa, legada pela colonização portuguesa e por suas missões culturais.

Esta crítica aparece em representantes da geração pós-Revolução de 30, que


desvia a pauta expressionista para temas outros, como o militarismo e a vida urbana.
Daher aponta como exemplos as peças teatrais de Oswald de Andrade (O homem e o
cavalo, de 1934, e O rei da vela, de 1937); as pinturas de grupos como a Família
Artística Paulista, o Quatro Novíssimos, o Seis novos de São Paulo e o Seibi; as
gravuras de Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi e toda a produção de Portinari voltada
para a problemática social.

                                                                                                               
22
Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Retrato da Arte Moderna. São Paulo: Departamento de Cultura,
1948.

  31  
O autor destaca ainda a atuação política do Teatro Oficina, dirigido por José
Celso Martinez, durante a ditadura militar. Esta menção temporalmente distanciada
do contexto inicial de um expressionismo brasileiro, entre o fim dos anos 1920 e
1940, é justificada (Cf. Ibid., p 108) pela afinidade do grupo teatral com um programa
vinculado à gestualidade do corpo em cena, à defesa da integridade do indivíduo e de
sua liberdade de expressão em tempos de censura. Daher assume estes atributos como
potencialmente expressionistas e termina com o Teatro Oficina a constelação de
referências que cercam a relação de Flávio de Carvalho com o Expressionismo.

1.1.2 O “Expressionismo flaviano”

A análise de Daher atribui à obra de Flávio de Carvalho características de um


Expressionismo específico, que teria sido apropriado e recriado pelo artista e, a partir
de então, definiria sua principal filiação dentro de um espectro de tendências do
modernismo europeu. Para considerar a hipótese proposta, optei por recuperar
depoimentos do artista sobre arte moderna e aproximar suas ponderações aos
argumentos do autor.

Flávio de Carvalho abre o texto “O aspecto psicológico e mórbido da arte


moderna”, publicado na imprensa23 e apresentado na conferência do I Salão de Maio,
em 1937, afirmando:

“O desenvolvimento do que costuma chamar ‘arte moderna’ seguiu


um ciclo revolucionário com etapas que caracterizam as grandes
emoções e o mecanismo das revoluções. Observam-se quatro
períodos: 1) período de meditação e de dialética; 2) período de
sangue e de exibição de feridas e de anarquismo; 3) período curativo
do mundo; 4) período de putrificação”. (CARVALHO in LEITE,
2010, p. 60)

Neste texto e no “Plano de seis anos”, de 1939, o artista expõe sua compreensão sobre
os movimentos vanguardistas modernos, suas características e os estágios que cada
um assume num fluxo de desenvolvimento aparentemente contínuo, embora inter-
dependente, de “revolução” – ou transformação, desenvolvimento – da arte.

                                                                                                               
23
O texto foi publicado no Diário de S. Paulo, em 22 de junho de 1937.

  32  
O Expressionismo está localizado no segundo estágio desse fluxo descrito por
Flávio de Carvalho, após o Impressionismo e junto com o Dadaísmo e o Cubismo.
Nos três movimentos, surgidos numa Europa em guerra e conseqüentemente
compatíveis com os períodos históricos de mudança e perigo, “a emoção transpira em
osmoses através de todos os poros do quadro, a forma torna-se claramente secundária
– sangue, angústia sofredora e morte são fontes de prazer”.

As chagas e feridas desse estágio indicam uma urgência pelo período seguinte,
tempo “curativo do mundo”, em que encontra-se o “advento do ‘arqueológico’ do
surrealismo”. Neste terceito estágio o artista observa indícios de uma aproximação
com questões psicanalíticas, estratégias que “pescam nas profundesas do inconsciente
a sujeira da alma”. O ciclo é encerrado com a chegada ao Abstracionismo, capaz de
“purificar” a arte de vinculações de seu passado imediato surrealista, “da natureza e
da imundície ancestral do inconsciente” (Ibid., pp. 60-61)

Na perspectiva de Flávio de Carvalho, apesar de o estágio de chegada ao


Abstracionismo parecer conclusivo, ele mantém-se irresoluto, à medida em que sedia
o embate entre esta tendência artística e seus valores mentais, de um lado, e o
Surrealismo e sua ebulição do inconsciente, do outro. No Plano de Seis Anos,
publicado na Revista Anual do Salão de Maio de 1939, o artista define as bases desta
polarização.

Ambas são necessárias para a existência da ideia de luta e de


movimento, e para a concretizaçao plástica a vir, porque ambas
aparecem no cenário da luta como consequência da mesma ânsia. A
luta entre Abstracionismo e Surrealismo é manifestação de um
único organismo – porque são forças antitéticas que caracterizam
duas coisas que vão sempre juntas no homem: ebulição do
inconsciente e a antítese, valores mentais. Uma não pode ser
decepada da outra, sem decepar e matar o organismo arte. (Ibid., p.
100)

Se o próprio Flávio de Carvalho referenda “Abstracionismo” e “Surrealismo” como


pólos motivadores da “turbulência” particular à criação “revolucionária” (ou
vanguardista), não se pode negar uma relação do conjunto de sua obra com essas
matrizes de pensamento. Dentro da trajetória do artista, tomo a iniciativa de
identificar, além das poucas pinturas notoriamente não-figurativas – como Paisagem

  33  
Interior e Paisagem Mental, ambas de 1955 –, uma agenda abstracionista nas
Experiências e na forma como mobilizam uma racionalidade científica, mesmo que
aplicada na análise de um gesto expressivo.

Imagem 1 - Paisagem mental (1955). Fonte: Luiz Carlos Daher.

Das influências surrealistas, percebo a abordagem do tema do inconsciente –


principalmente em obras seminais como A inferioridade de deus (1931), Ascenção
definitiva de Cristo e Composição (1932) – e o investimento contínuo em
formulações (“cura”) para o trauma (“ferida”) aberto pelos gestos expressivos.

Imagem 2 - A inferioridade de deus (1931). Fonte: Luiz Carlos Daher.

O prelúdio de uma “teoria” descrita por Flávio de Carvalho para as vanguardas


modernas não invalida, mas amplia o escopo da hipótese de Daher sobre um

  34  
“Expressionismo flaviano”. Isso porque a circunscreve numa leitura interrelacionada
e recontextualizada que o artista propõe para o cânone europeu de modernidade
artística e para as aproximações que se possa fazer das suas premissas, a partir de
outras problemáticas de trabalho.

Flávio de Carvalho posiciona-se a favor de uma permeabilidade entre as


noções de Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e Abstracionismo. Esta
permeabilidade é orquestrada por sua visão anímica, subjetivista e psicológica dos
temas motivadores da criação. Em Volúpia da Forma, Daher revisa os termos de sua
assertiva sobre uma relação com o Expressionismo que excluísse da trajetória do
artista influências das demais vanguardas.

“Flávio não foi somente expressionista. Sem abusar da palavra,


podemos dizer: passou por todas as vanguardas que o século
trombeteou, e a necessidade infatigável de expressão fê-lo explorar
todos os repentes demiúrgicos.” (DAHER, 1984, p. 17)

Apesar de resolvido posteriormente ao texto do mestrado, de 1979, o entendimento da


obra do artista pela sua “necessidade infatigátel de expressão” dá maior precisão à
leitura de Daher. O aspecto ressaltado aumenta a abrangência ao objeto de estudo do
autor, mas não chega a inviabilizar seu caminho de argumentação prévio, calcado na
relação com o Expressionismo.

Ao estabelecer uma narrativa sobre o começo da carreira de Flávio de


Carvalho, depois de sua volta da temporada de estudos na Europa, em 1922, e da
atividade como calculista nos principais escritórios de arquitetura de São Paulo24, de
1923 a 1927, o intérprete ressalta a experiência de Flávio de Carvalho como ilustrador
do Diário da Noite como preponderante para sua ambientação entre modernistas,
como Geraldo Ferraz e Di Cavalcanti, e para o surgimento das primeiras feições
expressionistas em seu trabalho plástico.
O autor percebe estas feições nos desenhos que o artista fez para coberturas
jornalísticas de espetáculos teatrais e bailados. Sua observação atenta dos movimentos

                                                                                                               
24
Flávio de Carvalho trabalhou nos escritórios Barros Oliva (1923 - 1925) e Ramos de
Azevedo (1925 - 1927).

  35  
de exponentes da dança modernista, como Chinita Ullman, Carleto, Loie Fuller e
Josefine Baker – uns mais suaves e delicados e outro mais vigorosos e expressivos –,
o leva a encarar a dança como, a um só tempo, “síntese” e “estilização”, representação
e desnaturalização do movimento vital. (Cf. DAHER, 1979, p. 130).
Através justamente da percepção de atributos da dança, como a vitalidade e a
exterioridade, Flávio de Carvalho reúne elementos para a fundamentação de seus
projetos arquitetônicos. Dali em diante, passa a empregar em seus planos de casas,
prédios públicos e urbanismos, sejam eles reais ou metafóricos, contruídos ou não, o
ideal de um espaço orientado para o enaltecimento das individualidades daqueles que
a habitam, para a intensificação de suas experiências.
Daher nota que a arquitetura de Flávio de Carvalho chega a ser “biomórfica”,
não declaradamente em seu desenho, mas na definição de seu programa segundo
características humanas e alternâncias psicológicas. O primeiro atestado público desta
orientação expressionista, com a qual o artista almejava contribuir para o debate sobre
uma modernidade arquitetônica no Brasil, é o projeto de uma nova sede para o
Palácio do Governo de São Paulo, que inscreve em concurso, em 1927, sob o
pseudônimo “Efficácia”.

Àquela altura, seu único potencial interlocutor no que concerne à formulação


de uma arquitetura moderna brasileira é Gregori Warchavchik, russo radicado em São
Paulo que, em 1925, publicara no Correio da Manhã25 o manifesto “Acerca da
arquitetura Moderna”. O texto refuta o conservadorismo neocolonial e a falta de
originalidade do Urbanismo e da Arquitetura vigentes e defende o uso racional da
tecnologia daquele tempo, como o concreto armado:

Para que a nossa arquitetura tenha um cunho original, como o têm


as nossas máquinas, o arquiteto moderno deve não somente deixar
de copiar os velhos estilos, como também deixar de pensar no estilo.
O caráter da nossa arquitetura, como o das outras artes, não pode ser
propriamente um estilo para nós, os contemporâneos, mas sim para
as gerações que nos sucederão. A nossa arquitetura deve ser apenas
racional, deve basear-se apenas na lógica, e esta lógica devemos
opô-la aos que estão procurando por força imitar na construção de
algum estilo. É muito provável que este ponto de vista encontre uma
                                                                                                               
25
O texto foi publicado no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1 de novembro de
1925. É a partir desta fonte que Alberto Xavier o cita. Antes disso, no entanto, em 14 de
junho do mesmo ano, havia sido publicado no jornal Il Piccolo (São Paulo), com o titulo
“Futurismo?”.

  36  
oposição encarniçada por parte dos adeptos da rotina.
(WARCHAVCHIK in XAVIER, 2003, p. 37)

O arquiteto começa em 1927 e termina em 1928 uma casa residencial na Rua Santa
Cruz, em São Paulo, que segue as características elencadas no texto para uma nova
arquitetura, conforme a cartilha de Le Corbusier. Esta casa, por haver sido construída,
e o projeto Efficácia (como posteriormente passou a ser chamado), por ter instaurado
um debate entre especialistas e também na imprensa, são considerados as primeiras
evidências da arquitetura moderna brasileira.

O reconhecimento do pioneirismo de ambos os projetos, no entanto, vela


diferenças nas condutas e nos alinhamentos ideológicos dos dois arquitetos. Se
Warchavchik antecede uma geração e depois junta-se a ela, tornando-se inclusive
sócio de Lúcio Costa e professor da Escola Nacional de Belas Artes, Flávio de
Carvalho sustenta por toda a sua carreira uma postura crítica e uma relação de
adversidade com o meio profissional e acadêmico da arquitetura.

No texto “Modernista Warchavchik”, escrito por Flávio de Carvalho em


26
1930 , torna-se clara a recusa do artista em ser incluído num movimento e
“estandartizado”:

A nova humanidade só pode admitir a arte sob uma fórmula diversa:


"Todos fazem, eu não faço". Esta é a fórmula única que permite o
processo de se desligar da estandartização, de abandonar a
monotonia de repetir sempre, de penetrar num universo livre e
gloriosamente novo, de fecundar o futuro com a energia primitiva.
A nova arquitetura, para não cair na monotonia das coisas, precisa
ser emotiva e romântica. Precisa criar novos ideais, precisa mudar
sempre... Simbolizar exaltadamente a idéia de vida: mudar... Um
acontecimento depois do outro. (ARTE EM REVISTA, 1980.)

O depoimento citado por Daher demonstra que a individualidade autoral (“todos


fazem, eu não faço”), a mobilização da “emoção” e da “energia primitiva” definem a
pesquisa arquitetônica do artista. Estes valores, todos eles pertinentes a uma
caracterização do Expressionismo, são aplicados em Efficácia.
                                                                                                               
26
“Modernista Warchavchik”, publicado no Diário da Noite, São Paulo, em 8 de julho de
1930 e republicado na Arte em Revista n§ 4 (Arquitetura Nova), São Paulo, CEAC, em agosto
de 1980.

  37  
O projeto não é aprovado no concurso, mas suscita amblo debate, sendo
criticado por conservadores27 e louvado por vanguardistas. Na qualidade de uma
irônica interpretação da “força” política e econômica do Estado (de São Paulo), uma
fortaleza de cimento armado, hostil para fora e receptiva para dentro, Efficácia
configura, para Daher, uma entrada “ruidosa, grandiosa, espetacular”28 de Flávio de
Carvalho na história do modernismo.
Os dois painéis dispostos no salão principal do prédio indicam um ideal de
integração entre a arquitetura e as artes plásticas e sintetizam temas da aspiração
expressionista flaviana: um deles representa a raiz rural do homem paulista e o outro
mostra um conjunto de dançarinas. Segundo Flávio de Carvalho, citado por Daher,
este painel “simboliza expressionisticamente alguma coisa da dança em geral”. (Cf.
CARVALHO in DAHER, 179, p. 131)
Os volumes do edifício partem de um grande hall central de forma semi-
cilíndrica. De um lado, está a Casa Civil; do outro, simetricamente, a Casa Militar.
Em cima de ambos, existem jardins e viveiros de espécies tropicais. Sobre o hall,
ficam os salões de baile e banquete. O último nível abriga a casa do governador e as
suas salas de trabalho. A parte externa comporta as bases de aviação e defesa, com
holofotes e canhões. Obedecendo à primazia da planta, segundo doutrina
elementarista de Le Corbusier, o projeto resguarda um certo apreço pelo
funcionalismo moderno em seu escopo.

                                                                                                               
27
Sobre Efficácia, um anônimo, autodenominado “Um revoltado”, publica no jornal Diário
Nacional: “...Infelizmente, vivemos numa época em que a arte começou a degenerar. Refiro-
me ao novo Palácio do Governo. Como pode o governo aceitar o projeto incrível de
“Eficácia” e colocá-lo ao lado de obras cheias de dignidade dos outros concorrentes?
Semelhante ato me enche de indignação e, protestando, cumpro com meu dever, ao mesmo
tempo que represento a nobre opinião do povo paulista. O cérebro demasiado simplório do
engenheiro eficaciano não conseguiu colocar um ornato, uma estátua, uma flor, nem mesmo
um medalhão em sua fachada...” (TOLEDO, 1994, p. 57)
28
Cf. DAHER, 1979, 132.

  38  
Imagem 3: Projeto para o Palácio do Governo de São Paulo, 1927. Fonte: Rui Moreira Leite.

Em três artigos publicados consecutivamente no Diário Nacional29, Mário de


Andrade analiza Efficácia, ressaltando argumentos dos quais Daher lança mão para,
após assumir o componente elementarista, evidenciar aspectos expressionistas no
projeto. Um deles tem a ver com a simetria do edifício, inicialmente desaprovada
(“teria a vontade da forma sobrepujado a necessidade funcional?”) e logo defendida
pelo autor, dado que garante o equilíbrio e demonstra que “as necessidades do prédio”
são as “forças”. Outra característica, sujeita à primeira, é o emprego de limites
formais e funcionais no projeto, o que se explica pela “busca deliberada de efeitos
psicológicos”.
Após apreciar os elementos constitutivos de Efficácia, Mário de Andrade
afirma que julga o projeto “teórico demais, mais uma propaganda de tendência que
‘pura criação lírica’” (Cf. ANDRADE in DAHER, 1979, pp. 134 - 136). Essa
tendência à “proclamação”, a um desejo de tese maior do que o compromisso com a
solução arquitetônica para um programa de atividades, demarca a atitude de Flávio de
Carvalho, bem como a de outros personagens de arquitetura expressionista.

Participando de concursos, o artista conseguia atingir a parcela mais


conservadora do meio arquitetônico e apontar para a existência de outros paradigmas,
mesmo que ainda, ou eternamente, “irrealizáveis”. Conseguia, como definiu Geraldo
                                                                                                               
29  “Arquitetura moderna I, II e III”. Diário Nacional, publicados em 2, 3 e 4 de fevereiro de
1928.

  39  
Ferraz, citado na biografia de J. Toledo30, “exercer uma arquitetura panfletária”,
“fazer barulho”, ser “sozinho um movimento” (FERRAZ in TOLEDO, p. 61).

Em 1929, enquanto Warchavchik constrói já a segunda casa, na Rua Itápolis, e


Rino Levi abre seu escritório próprio, Flávio de Carvalho participa de três concursos
consecutivos: o da Embaixada Argentina no Rio de Janeiro, o da Universidade de
Minas Gerais e o do Farol de Colombo. Este último certame internacional objetivava
escolher uma proposta de monumento a ser edificado na República Dominicana, em
homenagem ao quinto centenário da descoberta da América, em 1492.

Sobre cada um desses projetos, todos eles igualmente recusados, Daher tece
rápidas considerações, sempre que possível relacionando-os com empreendimentos de
outras vanguardas arquitetônicas e urbanísticas cujas características tangenciam as do
Expressionismo. O Palácio do Governo é comparado ao Futurismo dos prédios de
Sant’Elia e do filme Metrópolis, de Fritz Lang, por antecipar a visão maquínica
lecorbusiana e considerar a dramaticidade do “mundo do espírito no mundo das
coisas” (Cf. DAHER, p. 139); a Embaixada Argentina, por sua vez, devido à
estruturação analítica de volumes, ganha associação com um exemplar da arquitetura
neoplástica holandesa, a Casa Schroeder (1923 – 1924), de Gerrit Rietveld.

O projeto da Universidade de Minas Gerais, dissociado dos anteriores devido


ao uso de uma cortina de arcos rente ao chão, é interpretado à luz da arquitetura
expressionista de Hans Poelzig e, principalmente, Erich Mendelsohn (Cf. Ibid., p.
142). Ambos os arquitetos têm na plasticidade escultórica dos arcos uma constante
temática. Mendelsohn, no entanto, desdobra esse uso de formas curvilíneas e
contínuas por toda a área de seus edifícios, dando-lhes organicidade e horizontalidade
na definição da hierarquia dos espaços. Estas características de trabalho do autor da
Torre Einstein (Potsdam, Alemanha), o prédio expressionista por excelência,
certamente são observadas e referenciadas por Flávio de Carvalho.

                                                                                                               
30
Flávio de Carvalho: o comedor de emoções, publicada em 1994 pelas editoras Unicamp e
Brasiliense.

  40  
Imagem 4: Projeto para Universidade de Minas Gerais, 1928. Fonte: Rui Moreira Leite.

Avançando na aproximação de Mendelsohn e Flávio de Carvalho, encontro o


humanismo e a artisticidade como características comuns a ambos, em detrimento de
uma conduta puramente técnica. Em 1914, o arquiteto alemão afirma:

La voluntad del artista… otorga a la obra su carácter, espíritu y


atractivo; sólo ella es de interés”. Essa vontade era absoluta: “El
artista lleva en si mismo la constante que dirige su próprio trabajo,
su labor se basa en tomar partido, nunca en exigir. Su logro
definitivo resulta juzgado por si mismo tras el trascurso del tiempo.
(MENDELSOHN in COBBERS, 2007, p. 9)

Mendelsohn usa o termo “artista” para designar também o arquiteto. Seu depoimento
aponta o desejo de inscrever “vontade” e subjetividade no projeto, para além do mero
atendimento das funções básicas do edifício. O arquiteto, que costumava construir
aquilo que desenhava, e não exatamente o que lhe era encomendado por um
financiador, refuta o funcionalismo de sua geração e, assim como Flávio de Carvalho,
defende a transversalidade entre as disciplinas e os modos de produção da arte e a
arquitetura.

O debate sobre a formação do arquiteto, entre a arte e a ciência (engenharia),


acontece no Brasil na década de 1930. Em 1929, Le Corbusier faz sua primeira
viagem ao país. Já conhecido por seu livro inaugural Urbanismo, de 1925, o arquiteto

  41  
francês propaga o cartesianismo31 modernista e reforça, com isso, um processo de
renovação que viria a tornar-se, dentro de pouco tempo, uma verdadeira moda
acadêmica.

No fim de 1930, findada a revolução que depõe a República Velha e leva


Getúlio Vargas ao poder federal, Lúcio Costa assume a Escola Nacional de Belas
Artes. O arquiteto ocupa o cargo por um ano, devido a desavenças com a ala
conservadora da instituição. O curto período de gestão foi preponderante para a
atualização dos critérios do Salão de Belas Artes e para a reformulação dos métodos
de ensino da arquitetura, visando “aparelhar a escola de um ensino técnico-científico
tanto quanto possível perfeito e orientar o ensino artístico no sentido de uma perfeita
harmonia com a construção.” (COSTA in XAVIER, 2003, p. 58)

Justamente enquanto nasce dentre os alunos da Escola uma geração de


arquitetos modernos “construtores” (como Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Lui Nunes,
Jorge Moreira e Alcides da Rocha Miranda, dentre outros), Flávio de Carvalho
radicaliza sua postura ao apresentar no V Congresso Panamericano de Arquitetura,
no Rio de Janeiro, o artigo “A cidade do homem nu”, que confirma uma tendência
imaterial e utópica em sua obra. Como deflagradora da Antropofagia na Arquitetura,
junto com o projeto do Farol de Colombo, a tese evoca a emancipação com relação à
doutrina religiosa e moral da civilização européia e à “deglutição simbólica” da
origem, da cultura e do habitat brasileiros:

A cidade do homem nu será sem dúvida uma habitação própria para


o homem antropofágico. Ele poderá sublimar os seus desejos
organizadamente. Ele poderá sentir em si a renovação constante do
espírito; o movimento da vida aparecerá de um realismo estonteante
e ele compreenderá que viver é raciocinar velozmente e dominar os
tabus pela compreensão.
A cidade americana não é mais a cidade-fortim da conquista.
Ela será a cidade geográfica e climatérica, a cidade do homem nu,
do homem com o raciocínio livre e eminentemente antropófago.

                                                                                                               
31
Flávio de Carvalho e Geraldo Ferraz vão ao encontro de Le Corbusier para entrevistá-lo. O
artista “fala na possibilidade de despertar no homem-habitante os sentimentos mais diversos,
como o sentimento de angústia. Le Corbusier sorri. Acha que a arquitetura deve ficar apenas
sob o sistema solar... Os olhos humanos estão apenas a um metro e sessenta centímetros sobre
a terra. (Cf. TOLEDO, 1994, p. 76)

  42  
A cidade antropofágica satisfaz o homem nu porque ela
suprime os tabus do matrimônio, e da propriedade, ela pertence a
toda coletividade, ela é um imenso monolito funcionando
homogeneamente, um gigantesco motor em movimento,
transformando a energia das idéias em necessidades para o
indivíduo, realizando o desejo coletivo, produzindo felicidade, isto
é, a compreensão da vida em movimento.
A cidade do homem nu será toda ela a casa do homem.
(CARVALHO, 1930, s/n)

Não só o elogio à origem, entrelaçado ao ideário da Antropofagia, mas principalmente


a livre constituição e externalização das individualidades tornam “A cidade do
homem nu” potencialmente expressionista. Daher justifica essa filiação alegando que
sua conotação anti-clerical e anti-capitalista a faz “escapar ao sentido de continuidade
da história, assimilando mais a noção de ‘ciclos’ históricos, sem rigor metodológico,
como signo de ruptura e antagonismo” (DAHER, 1979, p. 151). Essa cidade-
laboratório, onde o homem “intensifica“ suas experiências guiado por uma única
instituição constituída, o “centro de pesquisas”, na leitura do autor, “refuta o sentido
do típico”, responde a uma apologia de modernidade importada da Europa propondo a
invenção de modelos não massificados e correspondentes com o contexto e as
urgências socio-culturais locais.

A carreira arquitetônica de Flávio de Carvalho resulta em apenas duas


edificações construídas, ambas com financiamento próprio. Quando convidado a falar
para os estudantes da FAU-USP, em 1963, o artista creditou esse fato à sua
personalidade “antissocial”, à falta de relacionamentos que permitissem que sua
arquitetura fosse “exercída”, “construída” (Cf. CARVALHO in XAVIER, 2003, p.
355). Daher interpreta esta restrição da trajetória de Flávio de Carvalho, no entanto,
como conseqüência de seu exercício radical da forma, algo que complexificava a
viabilidade econômica do projeto e gerava incertezas sobre seu resultado final.

Um dos dois projetos que o artista logrou construir, por iniciativa própria, o
conjunto de 17 casas da Vila América, começado em 1936 e terminado em 1937,
entre a Alameda Lorena e a Alameda Ministro Rocha Azevedo, explora ao máximo o
terreno em forma de “L” e cria situações particulares de isolamento e sociabilidade.

  43  
Imagem 5: Casa do conjunto da Alameda Lorena. Fonte: Luiz Carlos Daher.

As superficies internas são personalizadas com texturas e azulejos desenhados pelo


autor; o piso da sala define uma pista de dança; as fachadas ganha contornos
escultóricos únicos, sendo uma delas semelhante a um rosto humano. O cuidado com
a individualidade orienta diversas escolhas na casa, inclusive algumas chamadas por
Daher de “atos de rebeldia”, como, por exemplo, a instalação de três portas de
entrada. A primeira é a social, a segunda a de serviço e a terceira deixa dúvidas. O
intérprete deduz que “muito mais aceitável é que se tratava de uma homenagem à
individualidade do serviçal, que tinha ai seu caminho estreito, mas íntimo e livre para
a alcova” (Cf. Ibid., p. 161).

A “visão expressiva” de Flávio de Carvalho não só é exteriorizada em cada


detalhe como entregue aos inquilinos num folheto explicativo sobre “modos de usar”
no ato do aluguel do imóvel. Com o passar dos anos, sucessivas reformas
descaracterizam completamente o conjunto com relação ao plano original.

O “sonho expressionista” de Flávio de Carvalho só seria factível e mantido


como originalmente proposto na Fazenda Capuava, em Valinhos, propriedade rural
terminada no mesmo ano que as casas de aluguel, em 1938. A Fazenda foi local de
residência de sua família e sua, até o falecimento, em 1973. Como um templo
primitivo, imponente e cênico, feito em concreto armado e revestido dos mais
variados materiais, de tudo aquilo que é inovador para a época (como o alumínio, que
revestia os banheiros para espelhar por todos os lados os seus usuários), o prédio

  44  
rememora desenhos de Moya, expostos na Semana de 22. Seus motivos pré-
colombianos e egípcios diferenciavam-se das referências abstratas européias
usualmente empregadas na arquitetura modernista brasileira.

Imagem 6: Fazenda Capuava. Fonte: Luiz Carlos Daher.

Daher descreve a sede da Fazenda como um lugar onde “tudo se mistura e transforma
a vida particular em festa calculada. De fato, a casa tem inúmeras facetas, a começar
pela grande porta de entrada, que, instalada no centro de uma face trapezoidal do
edifício, dispõe de uma cortina de fitas de tecido coloridas que voam com o vento e
sugerem o movimento e a dança. Ali dentro, encontra-se um salão principal preparado
para pequenos bailes e refeições experimentais. A mesa de jantar, feita em ferro e
cristal belga, dispõe de um sistema de contra-luz vermelha capaz de “cegar” os olhos
dos convidados da imagem da comida posta.

Do salão principal derivam simetricamente duas alas construídas, uma


culminante num grande escritório / biblioteca e outra na chamada “sala ancestral”,
onde são alocados os objetos de família. Não por acaso, os pólos simbolizam o valor
da pesquisa e da ancestralidade na trajetória do artista.

Além da simbologia adotada na disposição dos cômodos e móveis, na escolha


de uma coleção de objetos da cultura popular e na constituição de um uso do espaço
orientado para o “gozo de liberdade individual”, o próprio processo de construção da
casa pode exemplificar a proximidade vislumbrada por Daher com o ideário

  45  
arquitetônico expressionista. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, período em
que pouco se construía em São Paulo, Flávio de Carvalho planeja e acompanha32 in
loco a edificação da Fazenda. (Cf. Ibid., p. 165)

Constitui uma “escola” particular, a partir das necessidades do canteiro de


obras, e adota soluções artesanais, cabíveis especificamente àquele contexto e aos
seus anseios de criador. Àquela altura, quando uma geração de arquitetos e até mesmo
escritores modernistas como Oswald e Mário de Andrade passam a defender uma
obra de arte cada vez mais “coletiva e funcional” (Cf. Ibid., p. 168), e, por outro lado,
uma arquitetura cada vez mais profissionalizada, Flávio de Carvalho é julgado
negativamente como “individualista”.

O julgamento contribui para a compreensão de um artista historicizado à


margem, como um “maldito” ou um “romântico”, no mau sentido da palavra.
Contribui também para a verificação dos termos em que Daher o classifica como
expressionista, ou seja, como um opositor à tendência racionalista imperante, alguém
que não submete sua “visão expressiva pessoal” à opressão das “normas da realidade
e dos dados da técnica”, um “anti-natural” (Cf. Ibid., p. 176).

1.2 A Volúpia da Forma


Cinco anos depois do término da pesquisa de mestrado, Luiz Carlos Daher publica,
pela Coleção MWM-IFK33, o livro Fávio de Carvalho e a Volúpia da Forma.
Concebida como um “álbum de arte”, uma iniciação à obra do artista, a publicação é
dividida em seis blocos34, com ensaios textuais curtos do autor intercalados por alguns
escritos do artista35 e cadernos de imagens de obras reproduzidas em tamanho grande.

                                                                                                               
32
O artista, em depoimento para a revista Casa e Jardim, explica sobre a construção da sede da
Fazenda Capuava: “O seu preço foi baixo porque dirigi pessoalmente a construção, empregando
operários quaisquer, ensinados por mim (...) Na difícil montagem das ferragens do concreto armado
com suas emendas eletricamente soldadas, foram utilizados empregados os mais boçais (sic), e nunca
haviam trabalhado em construções. Todos, pela primeira vez, aprenderam a trabalhar durante essa
reforma” (CARVALHO in Casa e Jardim, 1958, 32-40)
33
A coleção MWM – IFK já havia publicado quatro outros livros sobre artes visuais, em
edições anuais: 1980 – Aldo Bonadei; 1981 – Construtivismo afetivo de Emanuel Araújo;
1982 – A escola baiana de pintura; 1983 – Carlos Scliar.
34
Os blocos são: I – O trabalho e a dança; II – Linhas e cores; III – O Espaço teatralizado;
IV – Fabricando ídolos; V – O personagem e o drama; VI – Cronologia e bibliografia.
35
Os textos republicados são: I – A pintura do o som e a música do espaço (1935); II –
Manifesto do III Salão de Maio (1939); IV – Sobre as linhas de força; V – A origem trágica

  46  
Apesar da mudança de tom, que adequa o conteúdo textual a uma linguagem mais
resenhística, nota-se a continuidade da investida de Daher em analizar aspectos da
trajetória de Flávio de Carvalho em relação às vanguardas européias e
prioritariamente ao Expressionismo.

A persistência nessa fundamentação, desdobrada agora com maior fôlego na


pintura e no desenho (além de passagens pelo teatro, pela animação cultural e pela
teoria), permite-me prosseguir com o raciocínio iniciado, mesclando, inclusive,
argumentos da dissertação e do livro sempre que ambos coincidem. É comum que
assuntos em suspenso no Arquitetura e Expressionismo voltem a ser abordados no
Volúpia da Forma, às vezes de maneira mais conclusiva ou justificativa, como no
caso da passagem abaixo:

Em certo aspecto, o abandono da representação conflitante entre


corpo e geometria, em prol da assunção da superfície como um
campo de tensões emocionais, simboliza na obra de Flávio de
Carvalho o abandono relativo do Surrealismo e a opção pelo
Expressionismo. Claro, o Surrealismo não desaparece totalmente e
constitui uma possibilidade virtual, na associação automática de
símbolos, no caráter flutuante de algumas imagens, no retorno
periódico de bichos e monstros geometrizados. Mas no geral o que
vemos é a evolução de um pintor expressionista do corpo a executar
implacavelmente a arqueologia das emoções sedimentadas.
(DAHER, 1984, p. 49)

Uma vez confrontado o esclarecimento de Daher com os textos (“Aspecto Psicológico


e Mórbido da Arte Moderna” e “Plano de Seis Anos”) em que Flávio de Carvalho, na
posição de crítico, mais do que artista, subordina o Expressionismo ao Surrealismo na
linha evolutiva da arte, talvez se possa identificar que o cerne da defesa do teórico
está justamente na constatação de que a obra de Flávio de Carvalho opta por dilatar o
momento de “ferida”, de perigo e de perda de controle sugerido pelo artista como
definidor do Expressionismo. Ao invés de representar o trauma e empreender a “cura”
surrealista, Flávio de Carvalho prefere manter-se na iminência de dor e de prazer que
compõe a “proporção dionisíaca da vida”,

                                                                                                               
das jóias. Ainda há entre os textos uma entrevista concedida pelo artista ao jornal Visão, em
18 de Março de 1966 (III – Retrato de Flávio busca o fundamental)

  47  
“o passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros,
mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer-sim ao caráter
global da vida como aquilo que, em toda mudança, é igual, de igual
potência, de igual ventura; a grande participação panteísta em
alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais
terríveis e problemáticas propriedades da vida; a eterna vontade de
geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento da unidade entre a
necessidade do criar e o aniquilar” (NIETZCHE in DAHER, 1984,
p. 21)

Com a criação da categoria de trabalho “experiência”, influenciada pela pesquisa do


movimento da dança e antecipadora do que a arte contemporânea entende por
performance, Flávio de Carvalho abre espaço para a vivência do corpo em sua
trajetória. Com isso, não só ativa como funda os espaços sociais que projeta, concebe
a cidade no limite entre a preponderância do indivíduo e o poder de resiliência e
coerção do coletivo, da multidão.

Em 7 de junho de 1931, no mesmo ano em que participara da sua primeira


exposição coletiva, o Salão Modernista da Escola Nacional de Belas Artes, o artista
percorre uma procissão de Corpus Christi, na Rua Direita, em São Paulo, no sentido
contrário ao dos centenas de fiéis e ostentando um assintoso chapéu de veludo verde
escuro. Nessa via central de uma São Paulo crescentemente urbana, intensificada em
seus convívios, porém de mentalidade ainda provinciana e conservadora, nasce a
Experiência nº2, “uma das primeiras obras do mundo sobre a ‘psicologia das
multidões’“, segundo seu autor36. A ação integra uma série de três Experiências e
inaugura um uso laboratorial, e, em certa medida, teatral, para os espaços da vida
comum em sociedade.

Assim como as casas e edifícios públicos que planejou, a rua e a imprensa


passam a também funcionar como instâncias cênicas. Suas audiências, e o
antagonismo que demonstram com relação aos gestos e proposições de Flávio de
Carvalho, reforçam o valor da inadequação e da individualidade ali depositadas. Em
Experiência nº2: uma possível teoria e uma experiência: realizada sobre uma
procissão de Corpus Christi, livro publicado no ano seguinte, o artista resenha as

                                                                                                               
36
Segundo depoimento do artista em entrevista concedida em 1971, para ocasião da comemoração do
centenário do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), e gravada em áudio no estúdio do Museu da
Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro. Cf.

  48  
motivações e fundamentações teóricas de seu experimento e ilustra momentos do seu
embate com o coletivo, como se, conforme Daher, “exteriorizasse as camadas
introjetadas de sentimentos, emoções e conflitos que nutrem a seiva expressionista”.
(DAHER, 1982, p. 42)

Imagem 7: Exemplo de ilustração do livro Experiência no. 2. Fonte: Editora NAU.

Os anos seguintes são demarcados pelo envolvimento de Flávio de Carvalho com a


Revolução Constitucionalista, de 1932, e o abertura do Clube de Artistas Modernos
(CAM), onde, entre meados de 1932 e fim de 1933, o artista articula eventos e
encontros da parcela mais radical37 dos vanguardistas modernos brasileiros. O Clube
também sedia o Teatro de Experiência38, fundado por Flávio de Carvalho junto com
Osvaldo Sampaio para abrigar diversas ordens de experimentação cênica:

“cenários, modos de dicção, mímica, a dramatização de novos


elementos de expressão, problemas de iluminação e som e
conjugados ao movimento de formas abstratas, aplicação de pré-
determinados testes (irritantes ou calmantes) para observar a reação
do público, com o intuito de formar uma base prática de psicologia
do divertimento” (CARVALHO in SANGIRARDI JR., 1985, p. 44)
                                                                                                               
37
O CAM opunha-se à SPAM, Sociedade Pró-Arte Moderna, fundada um dia antes, por
Gregori Warchavchik, e detentora de membros ilustres como Lasar Segall, Tarsila do Amaral,
Rossi Osir e Paulo Mendes. Flávio de Carvalho julgava a Sociedade demasiado aristocrática.
(TOLEDO, 1994, p. 131)
38
O Teatro de Experiência só funciona por pouco mais de seis meses. Em 12 de junho de
1933, após alguns improvisos de Procópio Ferreira; uma curta temporada de O homem e o
cavalo, de Oswald de Andrade; e duas apresentações do Bailado do Deus Morto, de Flávio de
Carvalho, a polícia de costumes o fecha.

  49  
Assim como o Teatro e as Experiências de Flávio de Carvalho são demarcados por
um vitalismo e por uma pesquisa sobre as emoções humanas de cunho expressionista,
também o são a pintura e o desenho. A “volúpia de forma”39, que Daher toma como
título para o livro, nada mais é do que o desejo do artista aplicado sobre a obra, o
gesto de existência (imprevisível, vigoroso, fragmentado, difuso) expresso
diretamente sobre a tela ou o papel, em óleo, nanquim ou carvão, sem pre-concepção
e com pouca ou nenhuma correção. Dado à organicidade dessa prática, Daher observa
que a fronteira entre a pintura e o desenho torna-se permeável na trajetória de Flávio
de Carvalho.

O desenho quis ser pintura: Flávio desenhou com o pincel. A pintura


quis ser desenho: as pinceladas produziram tiras, linhas largas de
cor. Suave chicotada, o gesto descarregava pigmento no centro e
deslizava nos extremos, ‘como se tudo surgisse de um forte impulso
e se esgotasse nas extremidades’40 (DAHER, 1984, p. 66)

O desejo de forma de Flávio de Carvalho concretiza-se numa obra basicamente


figurativa, com grandes conjuntos de nus e retratos. Em oposição às tendências
abstracionistas dos 1950, como o Concretismo e o Tachismo, o artista cultiva uma
obra plástica afeita ao que seu intérprete denomina “geometria das paixões”, “uma
correspondência entre as energias do retratista e do retratado, transformados em
caçador e presa” (Cf. Ibid., p. 56).

A figura permanece nas composições do artista como uma defesa da


“importância humana do personagem” numa época de “desumanização do mundo e
desprezo pelo semelhante”, conforme o próprio afirma em entrevista para a Revista
Visão, de 18 de março de 1966. A produção de retratos acontece ao longo de toda sua
carreira, embora seja mais intensa na década de 1950.

                                                                                                               
39   No
livro Os ossos do mundo, Flávio de Carvalho relata: “… escolho a cor predominante
para iniciar o retrato e coloco-a com volúpia de formas sobre a tela” (Cf. CARVALHO, 2005,
p. 109). O artista também deu o título Volúpia a um painel que pintou em 1932.
40
Citando Flávio Motta no texto Contribuições ao Estudo do Art-Nouveau no Brasil. São
Paulo: s.c.p., 1957.

  50  
Flávio de Carvalho vivencia a tensão do momento de procura da “expressão
fundamental” usando como modelos seus interlocutores imediatos, personagens da
classe artística e intelectual modernista: Cacilda Becker (1938), Mário de Andrade
(1939), José Lins do Rêgo (1948), Jorge Amado (1945), Maria Kareska (1950),
Flávio Motta (1955), Camargo Guarnieri (1953), Piero Maria Bardi (1964), Mário
Schenberg (1968), Sérgio Buarque de Holanda (1970), para citar alguns.

Mário de Andrade, que, antes de ter sido retratado por Flávio de Carvalho,
havia sido pintado, em 1927, por Lasar Segall, ícone do Expressionismo histórico
brasileiro, compara: “Quando olho para o retrato de Segall me sinto bem. Quando
defronto o retrato feito por Flávio, sinto-me assustado, pois nele vejo o lado tenebroso
da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros…”. A partir do depoimento do
escritor, Daher diferencia o “Expressionismo lírico” de Segall, afeito à harmonia das
emoções, do “Expressionismo psicológico” de Flávio de Carvalho. Para Mário de
Andrade, neste segundo parece haver a vontade de “extrair os demônios interiores do
retratado, como se os arrancasse puxando cordas retesadas, as endiabradas linhas de
força psicológicas” (ANDRADE in DAHER, 1984, p. 49)

Imagem 8: Retrato de Mário de Andrade, Lasar Segall, 1927. Fonte: Luiz Carlos Daher.

  51  
Imagem 9: Retrato de Mário de Andrade, Flávio de Carvalho, 1939. Fonte: Luiz Carlos Daher.

Para Flávio de Carvalho, as cores mimetizam e dramatizam o estado emocional do


retratado, por isso, variam de acordo com o momento de observação para realização
da obra. A partir de uma primeira cor escolhida, o artista desenvolve o equilíbrio e a
justaposição de manchas que compõem as formas finais da retrato. Daher afirma que,
devido a essa variedade de “possibilidades emocionais”, um retrato em cores
representava sempre um desafio maior para o artista (Cf. DAHER, 1984, p. 93). Num
texto publicado no Diário de S. Paulo de 18 de novembro de 1956, Flávio de
Carvalho atesta ser a cor o problema central da pintura, antes mesmo do assunto que
ela aborda:

Lidar com cores é lidar com elementos importantes da vida. Cada


cor é uma sensibilidade e uma sugestionabilidade, é um mundo à
parte. Lidar com cores exige grande sensibilidade filosófica e
grande desejo de contato com o mundo. (…) O contato com cada
cor deve ter a força e a expressão de um contato sexual. O devaneio
tátil torna-se o aliado da poesia visual em viagem maravilhosa pelo
mundo do desejo. As cores devem ser consideradas fundamentais,
filogenicamente falando, tomando parte preponderante na evolução
do homem e tendo influência marcante no desenvolvimento
psicológico e nos destinos do homem. (CARVALHO, 1956, s/n)

  52  
A preocupação com a intensidade existencial evidenciada através da cor é mais um
fator de aproximação da pintura de Flávio de Carvalho com a obra dos expressionistas
europeus. No desenho, outro elemento predomina para dar conta de semelhante desejo
de exteriorização daquilo que não se pode controlar ou convencionar da personalidade
retratada: as “linhas de força”.

“Às vezes coloco nos desenhos linhas que são absolutamente contrárias àquilo
que normalmente é indicado pela imagem”41, diz Flávio de Carvalho aos estudantes
da FAU-USP, em 1963. Daher aponta que essas linhas e o gestual de que resultam
“transportam camadas superpostas de sensibilidade, derramando o que a cristalização
do vivido escondia”. (DAHER, 1979, P. 171)

O maior exemplo da presença das “linhas de força” no desenho do artista é


Minha mãe morrendo, de 1947, posteriormente apelidada por Francisco Luís de
Almeida Salles como Série Trágica42. Para Daher, este conjunto de desenhos em
carvão é, junto com o projeto do Palácio Municipal, de 1946, a “reafirmação
expressionista” de Flávio de Carvalho, o “auge dos sentimentos-limites” (Cf. Ibid.,
1984, p. 182) em sua trajetória. Criadas a partir da observação dos instantes finais da
própria mãe, Dona Ofélia Crissiúma Carvalho, sobre uma cama de hospital, as nove
pranchas chocam a audiência da época com a agonia do semblante da dor e a
iminência da morte.

A obra integra a segunda mostra individual do artista, em 1948, no recém


inaugurado Museu de Arte Moderna de São Paulo e é reapresentada inúmeras vezes
até a sua aquisição definitiva43, em 1952, o que demonstra maior flexibilidade do
meio institucional da arte naquela época para as provocações do artista. Aos olhos da
audiência mais conservadora da cidade, no entanto, a realização da Série Trágica,
somada às polêmicas anteriores, como a Experiência nº 2 e o fechamento do Teatro

                                                                                                               
41
Cf. CARVALHO in LEITE, 2010, p. 49.
42O apelido foi dado no texto do autor para o livro Flávio de Carvalho – 32 desenhos, em
1967.  
43   Atualmente,
a obra pertence ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC – USP). O museu foi fundado em 1963, pelo mesmo patrono do MAM e
da Bienal de São Paulo, o industrial Francisco Matarazzo Sobrinho, que, na ocasião,
transferiu para lá todo o acervo do MAM. Dentre as obras transferidas figura a Série Trágica.

  53  
de Experiência, alimenta o receio e um certo ocultismo fantasioso44 que envolvem a
reputação pública de Flávio de Carvalho.

Imagem 10: Duas das nove pranchas da Série Trágica, de 1947. Fonte: Luiz Carlos Daher.

 
Daher qualifica a obra de Flávio de Carvalho como dedicada à compreensão das
“fontes de vida”. Essas fontes estariam contidas, principalmente, na “ancestralidade”
e no “sexo” (Cf. DAHER, 1984, p. 194), instâncias sobre as quais o artista disserta em
seu terceiro livro, A origem animal de Deus, lançado em 1973 junto com o roteiro da
peça O Bailado do Deus Morto, de 1933. A ancestralidade (ou o primitivo) e o sexo
(ou o ato fecundante, a erótica): para o artista, duas fabulações motivadoras do
enfrentamento do medo e da morte.

O intérprete conclui suas considerações sobre a obra de Flávio de Carvalho


identificando uma linhagem de poucos pesquisadores que, àquela altura, em 1984,
reconhecem o “pioneirismo desbravador” do artista. Geraldo Ferraz, na sua atividade
crítica concomitante à atuação de Flávio de Carvalho, deixa os primeiros documentos
                                                                                                               
44   O
depoimento de Cecília Bionda, que, acompanhada de Sangirardi Jr., avista o artista nas
ruas de São Paulo, indica: “-- Olhe ali… aquele homem… É um monstro! Dizem que tem
vícios incríveis! Nas salas da casa onde mora, forrada de panos pretos, existem alçapões,
corujas, venenos ardentes, crânios humanos, um bode preto… Ele se alimenta com salsichas
de carne de criança! Todas as sextas-feiras, à meia noite em ponto, encontra-se com o diabo,
de quem é amigo íntimo. Chama-se Flávio de Carvalho…”, (SANGIRARDI in TOLEDO,
1994, p. 351)

  54  
e análises para as gerações posteriores. Além dele e de Flávio Motta, Daher também
menciona Gilberto Freyre como sendo fundamental para a constituição de um
reperório que possibilite pesquisas futuras sobre o artista.

O sociólogo acompanha de perto o trabalho de Flávio de Carvalho, tendo


prefaciado Os Ossos do Mundo, de 1936, e convidado Flávio de Carvalho para
apresentar, em 1967, a palestra “Trópico e Vestuário” no seu Seminário de
Tropicologia45. É de sua autoria uma menção ao termo “post-moderno”46 para
caracterizar o artista, dado ao seu visionarismo e conseqüente descolamento do debate
artístico e intelectual de seu tempo.

Na virada dos anos 1970 para os 1980, além da pesquisa de mestrado de


Daher, desdobrada nos dois livros aqui revisados (Flávio de Carvalho: Arquitetura e
Expressionismo, 1982 e A Volúpia da Forma, de 1984), circulam sobre a obra de
Flávio de Carvalho poucos textos e citações em livros de temática mais ampla. Daher
demarca a existência de Quadro da Arquitetura no Brasil, de Nestor Goulart Reis
Filho (1970), e a publicação do ensaio “Arquitetura contemporânea”, de Carlos
Lemos, no livro História Geral da Arte no Brasil, editado por Walter Zanini em 1983.

Junto a eles, retomo o início da pesquisa de Ricardo Forjaz Christiano Souza,


que em 1981 rende o Caderno de pesquisa Trajetórias do Modernismo brasileiro.
Esta investigação é continuada em 2005 e atinge a relevância de uma tese de
                                                                                                               
45
Em 1966, Gilberto Freyre cria, com base na sua experiência na Universidade de Colúmbia,
o Seminário de Tropicologia. A característica essencial desse tipo de Seminário é “a abertura
ao confronto de experiências intelectuais e profissionais heterogêneas, como tentativa de
superação dos especialismos próprios da nossa época” (Cf. Site do IGF). O encontro
acadêmico funcionou na Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco)
por 14 anos. Desde então, já foi sediado, sem uma freqüência regular, na Fundação Joaquim
Nabuco, no Instituto de Tropicologia e na Fundação Gilberto Freyre (2003), todos no Recife.
46   Numa passagem do prefácio de Ossos do Mundo, Gilberto Freyre alega: “Flávio de

Carvalho arregala os olhos de menino e às vezes de doido para ver o mundo. Por isso vê tanta
coisa que o adulto todo sofisticado não vê. Vê tantas relações entre as coisas que os adultos
cem por cento e os completamente normais deixam de ver. Do sentido dessas relações vem o
lirismo novo e profundo, cheio de grandes coragens que há nas notas de viajante de Flávio de
Carvalho. […] A sua coragem de ter medo –que hoje só os meninos têm- de se analisar nas
suas sensações mais profundas de medo, e das que o adulto convencional, deformado pelos
preconceitos de bravura à espanhola, de “He-Man” à Americana, de “modernismo” à
brasileira ou a Graça Aranha, não tem.

Entretanto, o medo é criador.

Dá novas visões ao homem. (TOLEDO, 1994, p. 306)

  55  
doutorado, dedicada a revisar cinco tendências47 da arquitetura brasileira de 1925 a
1936. Apesar de não convir inclui-la no escopo da presente dissertação, vale indicá-la
como um contraponto possível ao ideário de Daher, na medida em que localiza Flávio
de Carvalho no grupo dos “Futurismos”. Neste trabalho, Forjaz reconhece o vínculo
do artista com as “teorias pessoais” e com a “expressividade”, mas prefere acessá-lo
pela relação com o Futurismo, e com o “sentido imparcial que lhe dão todos os que,
incorporando a crítica da contemporaneidade, inventam o futuro antes de atentar para
as estratégias de reforma da realidade presente” (Cf. FORJAZ, 2004, pp. 135 - 136)

No campo curatorial, merecem nota de Daher as iniciativas das Bienais de São


Paulo de 1973 e 1983. Esta última, com curadoria de Walter Zanini e Rui Moreira
Leite, será abordada no próximo capítulo.

Daher conclui Volúpia da Forma, sua última obra pública sobre Flávio de
Carvalho, tecendo este panorama de iniciativas do meio teórico e curatorial que, junto
com sua pesquisa seminal, contribuem para dar densidade às leituras da produção do
artista e tirá-lo da condição de “mera nota de rodapé” (Cf. DAHER, 1984, p. 161) da
história da arte e da arquitetura brasileiras. Foge ao seu relato, por motivos óbvios, a
exposição Expressionismo no Brasil: heranças e afinidades, integrante da 18a Bienal
de São Paulo48, de 1985. A curadoria da mostra é um desdobramento do percurso
aberto por Arquitetura e Expressionismo. Ela seria assinada pelo autor, não fosse sua
morte naquele mesmo ano.

O projeto seguiu, sob a curadoria de Stella Teixeira da Costa e Ivo Mesquita, e


foi dedicado à memória de Luiz Carlos Daher. Seu resultado englobou manifestações
em arquitetura, artes plásticas, música, teatro, dança, literatura e cinema, conforme
levantamento que o autor vinha preparando para a sua tese de doutorado, que não
chegou a ser finalizada. Expressionismo no Brasil... traçou o percurso desta tendência
vanguardista que, no contexto do modernismo pós-Semana de 22, e especialmente no
contexto da década de 1950, delineou-se como uma balisa contrária às poéticas
construtivas.

                                                                                                               
47
Os cinco grupos trabalhados são a “Tradição nacional”, a “Academia francesa”, a “Bauhaus
germânica”, os “Futurismos” e a “Volta à verdade”. Cada um é tema de um capítulo da tese.
48
A 18a Bienal de São Paulo teve curadoria-geral de Sheila Leirner e aconteceu de 4 de
outubro a 15 de dezembro de 1985.

  56  
Imagem 11 - Mostra Expressionismo no Brasil, na 18° Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico
Wanda Svevo.

 
Num exercício historiográfico estendido, artifício não só possível mas recorrente nas
curadorias, como demonstra o terceiro capítulo desta dissertação, a exposição leva o
debate do Expressionismo para a contemporaneidade, permitindo, por exemplo, que
uma produção em pintura dos anos 1980 seja considerada à luz deste marco
conceitual modernista. No conjunto de 75 artistas, Nuno Ramos e Daniel Senise
ladeiam Emiliano Di Cavalcanti e Oswaldo Goeldi. Nesta cronologia expandida para
o debate do expressionismo, três telas49 de Flávio de Carvalho exemplificam aquilo
que Daher interpretou como o “Expressionismo flaviano”.

                                                                                                               
49
As telas são De manhã cedo (1931), Retrato (1933) e Nuvens do desejo (1949).

  57  
CAPÍTULO 2

FLÁVIO DE CARVALHO POR RUI MOREIRA LEITE

O artista representava uma ponte entre estes dois momentos


fundamentais: o início da renovação nos anos 1920 e a
vanguarda dos anos 1960. Ultrapassara dessa maneira os
anos 1930, nos quais se destacara como animador cultural, em
momento marcado pelo radicalismo social e politico; e
também nos anos 1950, com a hegemonia das correntes
abstratas.

Rui Moreira Leite, 2010.

  58  
O levantamento da obra de Flávio de Carvalho iniciado por Flávio Motta e seus
orientandos, na FAU-USP, é inviabilizado pelo endurecimento do regime militar
brasileiro, quando promulgado o AI-5, em 1968. O material coletado e mantido em
estado bruto50 motiva a pesquisa de mestrado de Luiz Carlos Daher na mesma escola.
Este autor, no entanto, não opta por continuar uma sistematização e sim investe numa
leitura analítica e pontual, dedicada, como já vimos, a aproximar o artista das
tendências expressionistas. Só em 1982 é retomada a ideia de catalogar e
historiografar a obra completa de Flávio de Carvalho, por iniciativa da professora e
historiadora da arte Aracy Amaral51.

No contexto deste novo levantamento, o jovem arquiteto Rui Moreira Leite


atua como colaborador e começa uma investigação vertical e extensiva sobre o artista,
antes mesmo de entrar para o programa de Pós-Graduação da ECA-USP. Seu fôlego
de pesquisa motiva Walter Zanini, professor e então curador geral da 17a Bienal de
São Paulo, a convidá-lo em 1983 para realizar uma Sala Especial dedicada a Flávio de
Carvalho, em parceria com Luiz Carlos Daher. Enquanto o primeiro selecionaria
obras da trajetória plástica do artista, o segundo dedicar-se-ia à produção
arquitetônica. Desentendimentos entre Walter Zanini e Luiz Carlos Daher
desvinculam-o do projeto52 e Rui Moreira Leite segue sozinho no que seria sua
primeira curadoria.

No intervalo entre o levantamento que culminou na Sala Especial e a


atualidade, Rui Moreira Leite ganhou notoriedade como um dos mais assíduos
especialistas em Flávio de Carvalho. Investigou o tema em pesquisas de mestrado e
doutorado, escreveu artigos acadêmicos e um livro, e também curou uma

                                                                                                               
50
Como anteriormente mencionado, o material do levantamento coordenado pelo Prof. Dr.
Flávio Motta não foi arquivado no sistema de bibliotecas da USP. Parte dele é mantida nos
arquivos pessoais do próprio professor-coordenador e de Carlos Heck, dentre os seus
orientandos aquele que dedicava atenção especial à obra do artista.
51
Desenvolvido com apoio da Fapesp, entre 1982 e 1983.
52
O Arquivo Histórico Wanda Svevo dispõe de minutas dos contatos de Luiz Carlos Daher e
Rui Moreira Leite para realização da curadoria da Sala Especial. O desvínculo do primeiro,
apesar de aparentemente não registrado no acervo da Fundação Bienal de São Paulo, pode ser
verificado pela não divulgação de seu nome como parte da equipe realizadora do evento, nem
em catálogos nem na imprensa.

  59  
retrospectiva do artista no MAM-SP, em 2010. O presente capítulo é dedicado à
revisão das principais ideias dessa trajetória acadêmico-curatorial53.

Como curador, Rui Moreira Leite cobriu dois momentos paradigmáticos da


inserção institucional e histórica da obra de Flávio de Carvalho. O primeiro deles, a
Sala Especial de 1983, coroa 10 anos de morte do artista vislumbrando na sua atuação
“multímoda” (Cf. LEITE, 2008, p. 139) raízes para as estratégias conceituais que
demarcaram a produção artística dos anos 1960 e 1970. Esta foi uma oportunidade,
portanto, de aproximar um artista até então filiado ao modernismo (de segunda
geração, em relação à Semana de 22) de um debate contemporâneo. O segundo
momento, a retrospectiva de 2010, compartilha de semelhante ímpeto genealógico, só
que empreendido, neste caso, num contexto de crescente projeção do Brasil na cena
artística internacional.

O entendimento de um artista contemporâneo e “multímodo” aparece como


pano de fundo da dissertação de mestrado (1987) e da tese de doutorado (1994) de
Rui Moreira Leite, na ECA-USP, com orientação do professor Walter Zanini. O
principal foco de ambos os trabalhos, no entanto, é a realização de um levantamento
biográfico e artístico o mais rigoroso e completo possível sobre a obra de Flávio de
Carvalho.

Isso posto, noto que as apreciações empreendidas em ambas as pesquisas


advêm da própria atividade de reunir e sistematizar documentos e depoimentos
relativos ao objeto de estudo. Mais ainda, de como este material levantado é
organizado, classificado e apresentado. Em nenhum momento o conteúdo da pesquisa
parece corresponder a hipóteses ou vontades ensaísticas a priori. Entretanto, a partir
de detalhes como a escolha de títulos para os trabalhos e de termos para certas seções,
podemos encontrar as orientações de leituras oferecidas por Rui Moreira Leite em sua
pesquisa colossal.

                                                                                                               
53
A trajetória acadêmico-curatorial de Rui Moreira Leite aqui referenciada reúne, além do
mestrado e do doutorado e das duas exposições realizadas pelo autor sobre Flávio de
Carvalho, o livro Artista Total (Editora Senac, 2008) e os artigos “Flávio de Carvalho:
modernism and avant-garde in São Paulo”53 (1995), “Modernismo e vanguarda: o caso de
Flávio de Carvalho”53 (1998), “Flávio de Carvalho: media artist avant la lettre”53 (2004) e
Flávio de Carvalho: o artista total53 (2008).

  60  
Perseguindo um ímpeto monográfico, Rui Moreira Leite dedica doze anos
continuados à estruturação de uma narrativa sobre Flávio de Carvalho, não
exatamente cronológica mas voltada a, de alguma maneira, cobrir a diversidade de
linguagens e fases de trabalho do artista. O período também foi usado para que o
autor percorresse os principais acervos documentais de São Paulo e do Rio de
Janeiro54 e contactasse colecionadores e interlocutores55 de Flávio de Carvalho a fim
de sistematizar listagens de obras, textos e referências56. Tanto o mestrado quanto o
doutorado dispõem desse material em anexos.

                                                                                                               
54
Foram consultadas as seguintes instituições públicas: Biblioteca Municipal Mário de
Andrade, Biblioteca do Museu de Arte Assis Chateaubriand, Biblioteca da FAU-USP,
Biblioteca da ECA-USP, Biblioteca do Instituto de Ensinos Brasileiros da USP, Biblioteca do
MAC-USP, Biblioteca do MAM-SP, Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo de O Estado
de S. Paulo, Arquivo dos Diários Associados, Arquivo da Folha de S. Paulo, Arquivo Mário
de Andrade (IEB-USP) (SP); Biblioteca Nacional, Biblioteca da Escola Nacional de Belas
Artes (RJ). Dentre os acervos privados, figuram o do próprio Flávio de Carvalho, mantido
pela família, à época na pessoa de Lúcia de Carvalho Crissiúma; e os de Carlos Drummond
de Andrade, Gilberto Ramos, J. Toledo, José Roberto Graciano, Lidia Kliass, Marta Rossetti
Batista e Stela Teixeira de Barros. (LEITE, 1987, p. iv)
55
Conforme a lista de agradecimentos de sua dissertação de mestrado, o autor capta
depoimentos de: Alfredo Mesquita, Ana Maria Martins, Azis Simão, Caio Prado Jr., Cássio
M’Boy, Décio de Almeida Prado, Dulce Carneiro, Eduardo Paffei, Flávio Motta, Francisco
Luiz de Almeira Salles, Frank Julian Philips, Gerda Brentani, Gilberto Ramos, Gilda e
Antonio Cândido de Melo e Souza, Hideo Onaga, Hugo Adami, João Carvalhal Ribas, J.
Toledo, Jorge Amado, Lidia Kliass, Lívio Abramo, Lívio Xavier, Mário Schemberg, Newton
Freitas, Nicanor Miranda, Olinto Moura, Paulo Mendes de Almeida, Raphael Galvez,
Sangirardi Jr., Stella Angeli, Yolanda Penteado, Yvonne Levi. Além disso, corresponde-se
com: Ana Stella Schic Philippot (Paris), Carlos Drummond de Andrade (Rio de Janeiro),
Carmem Portinho (Rio de Janeiro), Fernando Goldgaber (Rio de Janeiro), Gaspero Del Corso
(Roma), Gylberto Freyre (Recife), Jorge Amado (Salvador), Lavínia Viotti (Campos do
Jordão), Maria Ferrara (Roma), Maria Luisa Strauss (Campinas), Mário Pires (Caminas),
Sangirardi Jr. (Rio de Janeiro), embaixatriz Tuni Murtinho (Brasília), Galeria Nazionale
d’Arte Moderna e Contemporânea (Roma), Lycée Janson de Sailly (Paris), Museum of
Modern Art (Nova Iorque), University of Newcastle Upon Type (New Castle). (Cf. Ibid., p.
iii)
56
O mestrado é acompanhado por lista de obras dividida nas seguintes categorias: livros;
artigos e conferências em livro; inéditos; depoimentos e entrevistas em livro; conferências;
entrevista, declarações e depoimentos em periódicos; artigos em periódicos; ilustrações;
desenho; pastel; óleos; aquarelas e guaches; arquitetura; cenografia e figurinos; decorações e
interiores; escultura; arte aplicada; monumentos. O tomo ainda possui bibliografia de:
catálogos; obras de referencia; citações em livro; referências em teses; conferencias sobre o
artista; publicações sobre o artista; participações em álbuns; filmes sobre o artista; artigos
assinados sobre o artista; artigos sobre o artista em periódicos; notas, referencias, citações em
artigos assinados e na imprensa. O doutorado dispõe de: fortuna critica, entrevistas,
correspondências e cronologia, além de um tomo a parte para a edição atualizada e ampliada
da lista de textos e obras do artista.

  61  
O material sistematizado por Rui Moreira Leite é fundamental de investigação
e verificação científica sobre Flávio de Carvalho. Uma vez reconhecida a sua
contribuição documental, interessa aqui priorizar os indicativos analíticos do legado
de pesquisa do autor, em textos e exposições, entre 1987 e 2010. Que possíveis
interpretações vislumbrou para a obra do artista? Como a descreveu e caracterizou?

Na primeira parte do capítulo, procurarei respostas para estas perguntas


atribuindo como ponto de partida expressões do vocabulário do autor (“animador
cultural”, “artista multímodo” e “artista total”) e tecendo, a partir das mesmas, uma
leitura transversal, em que diferentes instantes de formulação podem ser justapostos e
articulados. Na segunda parte, analisarei os componentes dos recortes curatoriais de
1983 e 2010 procurando continuidades e/ou mudanças interpretativas e,
principalmente, tentando envolvê-los por questões oriundas de seus contextos
institucionais e historiográficos.

2.1 A experiência sem número de um “animador cultural”


O levantamento do mestrado intitulado A experiência sem número concentra-se nos
anos 1930, década de fundação da Universidade de São Paulo e do Departamento de
Cultura de São Paulo, “período não só de sedimentação, após a grande efervescência
anterior (a tirar pela Semana de Arte Moderna de 22), mas também de
aprofundamento de tendências, de fortalecimento de correntes criadoras: período de
atividade fecunda e alegre” de Flávio de Carvalho (LEITE, 1994, p. 136). Talvez
influenciado pela experiência da Sala Especial na 17a Bienal de São Paulo, que
antecedeu sua incursão no curso de pós-graduação, Rui Moreira Leite abandona a
ideia de estudar a construção pictórica dos retratos que o artista realizou ao longo de
toda a vida57, em pintura e desenho, e assume como mote a atuação de Flávio de
Carvalho como “personalidade dominante no meio artístico paulista na década de 30”
(Ibid., p. 102). Para tanto, o autor descreve a atividade de “animador cultural” -
                                                                                                               
57
Segundo listagem realizada por Rui Moreira Leite e publicada como um segundo tomo da
tese de doutorado, os primeiros retratos de Flávio de Carvalho são Figura Masculina e
Retrato, atribuídos ao período de estudos europeus do artista. O primeiro realizado no Brasil
data de 1922, Retrato de Marina Crissiúma. Pode-se considerar as décadas de 1950 e 1960
como um período abundante na pintura e no desenho de retrato do artista, dentre os quais
figuram, por exemplo, Retrato de Compositor Camargo Guarnieri (1953), Retrato do Prof.
P.M. Bardi (1964), Retrato de Mário Schemberg (1968). (Cf. LEITE, 1994, v.II)

  62  
exercida pelo artista principalmente em iniciativas como o Clube de Artistas
Modernos (1932 – 1934) e o Salão de Maio (1937 – 1939) - como capitaneadora de (e
preponderente para) suas práticas notadamente artísticas, como a pintura, o desenho, a
arquitetura, o teatro etc.

Enquanto “animador cultural”, Flávio de Carvalho faz proposições


vanguardistas e visionárias para uma São Paulo e uma cena artística paulistana e
brasileira ainda provincianas. Com isso, ele provoca a opinião pública e cultiva a
repulsa e a inimizade de muitos. Alguns teóricos, como Luiz Carlos Daher, entendem
que, devido à singularidade do seu projeto e às reações que sempre provocou, Flávio
de Carvalho viveu e produziu de maneira isolada e independente, à revelia dos
debates predominantes entre artistas e arquitetos de sua geração.

Um trabalho como a dissertação de Rui Moreira Leite presta depoimento de


natureza oposta, à medida em que enxerga no próprio visionarismo de Flávio de
Carvalho motivos para a criação e para o constante aquecimento de um meio, mesmo
que por vezes restrito, frágil e refratário ao debate lançado por seu proponente. Seguro
que não se pode localizar o artista como uma figura de liderança e amplas
interlocuções neste meio. Pode-se, contudo, resguardar seu lugar de atuação
alternativa, dissidente, talvez até de certa maneira marginal, entre e para poucos, mas
não por isso menos impactante sobre seu tempo.

Rui Moreira Leite inaugura na academia58 a compreensão de que Flávio de


Carvalho não estava sozinho e sim integrado a uma história da inteligência
modernista brasileira que perpassa momentos de toda a sua biografia e da qual
participa como profícuo porta-voz. Se a articulação promovida pela Semana de de 22
já esmorecera quando da volta do artista da Europa, naquele mesmo ano, poucos
meses depois, sua presença no circuito paulistano seria motivo para retomar o debate.
Oswald de Andrade, em certa ocasião59, haveria chamado o artista de “antropófago

                                                                                                               
58
Em 1979, Wilson Martins publica, pela Cultrix/Edusp, a coleção História da Inteligência
Brasileira, e cita, no volume VI, a trajetória e as relações de Flávio de Carvalho. São Paulo:
Cultrix/EDUSP, 1979, vol.6, p. 501.
59
Após a turbulenta participação de Flávio de Carvalho no Congresso Panamericano de
Arquitetura, em 1930, quando apresenta a tese A cidade do homem nu e vai de encontro às
espectativas do público, o autor do Manifesto Antropófago publica no jornal O homem do
povo, do qual era editor: “o arquiteto Flávio de Carvalho é o melhor calculista de São Paulo,

  63  
ideal”, sinal de reconhecimento da atualização e dos desdobramentos arquitetônicos e
urbanísticos que promovia a partir dos ideais modernistas de primeira geração60.

Pontuando a carreira de Flávio de Carvalho em concursos de arquitetura, entre


1927 e 192961, principalmente, Moreira Leite define um “trabalho [que] deve ser mais
vinculado a uma atividade de propaganda do projeto moderno que de tentativa efetiva
de concretização de projetos determinados”. De fato os projetos não são aprovados
nem construídos, mas não por isso deixam de ser (ou exatamente por isso são) uma
“oportunidade não negligenciável de colocar em discussão os critérios da prática
projetual reinante.” (Cf. Ibid., p. 6) Se até então a Antropofagia estava restrita aos
campos das artes plásticas, da literatura e da música, a partir de Flávio de Carvalho
ela é aplicada sobre a formulação de um espaço social moderno.

Do ponto de vista teórico, este espaço social moderno foi descrito em A cidade
do homem nu, artigo em que Daher havia encontrado indícios de Expressionismo e
que agora Rui Moreira Leite vislumbra como definidor de “uma nova estrutura
urbana” equivalente ao desejo de experiência de um indivíduo vanguardista e
libertário, crítico com relação ao progresso e aos resquícios de colonização: o
“homem antropofágico” (Cf. Ibid., p. 18). Na cidade antropofágica, portanto, homem
e meio far-se-iam e renovar-se-iam mutuamente, ordenados por uma única instituição
rija e acessível a todos, o “centro de pesquisa”.
                                                                                                               
possui uma alta competência profissionoal e tem talento e imaginação, mas não pode
construir porque os ‘meios sociais de produção’ se acham fechados nas mãos avarentas de
uma falsa elite, cretinizada e intratável. A independência de Flávio não permite conchavos,
nem com a falsa aristocracia de produção nem com o cliente que é bestificado por ela…”
(ANDRADE in TOLEDO, 1994, p. 99)
60
Em citação ao texto “Informes sobre o modernismo”, escrito por Oswald de Andrade em
1929, Rui Moreira Leite filia Flávio de Carvalho à “terceira fase do movimento”, junto com
Maria Eugênia Buenaventura, autora do estudo “A vanguarda antropofágica”. Esta fase
haveria sido iniciada após a publicação dos dois primeiros exemplares da Revista de
Antropofagia e teria como planos a organização da Bibliotequinha Antropofágica, que incluía
Brasil/Freud, do artista, nunca publicado. (Cf. Ibid., p.17)
61
Flávio de Carvalho submete projetos nos seguintes concursos: Palácio do Governo de São
Paulo (1927), Embaixada Argentina no Rio de Janeiro (1928), Farol de Colombo (1928),
Universidade de Minas Gerais (1928), Palácio do Congresso do Estado de São Paulo (1929).
Apesar de dedicar um curto capítulo inicial de sua dissertação a uma retomada de aspectos
principais desses projetos, Moreira Leite abstém-se de interpretá-los. Ele, no entanto, cita
considerações da pesquisa de Ricardo Forjaz Christiano de Souza para o livro Trajetórias da
Arquitetura Modernista (Idart, 1982). Em 2005, o autor citado desenvolve uma leitura da obra
arquitetônica de Flávio de Carvalho em tese de doutorado na FFLCH-USP, com orientação do
Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto.

  64  
Obviamente, a abstração e a utopia desta cidade-laboratório não recebem
adesões nem da platéia do Congresso Panamericano de Arquitetura e Urbanismo nem
do leitores do Diário da Noite, duas instâncias onde o texto de Flávio de Carvalho foi
apresentado naquele ano, 1930. A caminhada da Experiência N° 2, em 1931, apesar
de dar-se como exemplo individual da tese formulada anteriormente, acirra ainda
mais as resistências do público paulistano ao ideário do artista. O debate sobre a
criação de núcleos de sociabilidade e experiência voltaria a ser possível apenas em
1933, no ciclo restrito de cerca de 170 sócios do Clube de Artistas Modernos.

Entre fim de 1932 e meados de 1933, numa época em que São Paulo dispunha
de poucos lugares para a reunião, apenas alguns cafés, restaurantes e redações de
jornais, o CAM é para os modernistas uma oportunidade de convívio, intercâmbio e
produção em ateliê coletivo. Os fundadores da iniciativa (Flávio de Carvalho, Di
Cavalcanti, Gomide e Carlos Prado) lançam-na fazendo circular a seguinte ficha de
inscrição:

Um grupo de artistas modernos resolveu fundar um pequeno clube


para os seguintes fins: reunião, modelo coletivo, assinatura de
revistas sobre arte, manutenção de um pequeno bar, conferências e
exposições, formação de uma biblioteca sobre arte, defesas dos
interessas da classe.
O clube alugará um salão que ocupa um andar inteiro e é suficiente
para 120 pessoas. O nosso orçamento mostra que poderemos iniciar
atividades alugando imediatamente a sede com 45 sócios, e
esperamos o seu apoio. Queira devolver o talão em baixo
devidamente assinado para Clube dos Artistas Modernos, Rua Pedro
Lessa, 2 São Paulo.
Envie um exemplar para um amigo modernista (CARVALHO, DI
CAVALCANTI, GOMIDE e PRADO in LEITE, 1987, p. 34)

Logo que começaram as atividades do clube, foram instituídas comissões setoriais nas
áreas administrativa, de pintura, escultura, arquitetura, teatro, literatura, imprensa,
estudos gerais, festas e música. A agenda daquele “espaço alternativo”, como
denomina Moreira Leite (Cf. Ibid., p. 47), começa dedicada a eventos musicais e
espetáculos de dança e humor, passa por uma curta temporada de exposições e
debates e culmina numa terceira fase, dentre todas a mais profícua, composta por
conferências de temática variada. Caio Prado Jr. fala sobre “A Rússia de hoje”, Jorge

  65  
Amado relata “A vida das crianças na fazenda de cacau”, Oswald de Andrade
antecipa o tema da peça “O Homem e o Cavalo”, para citar algumas dentre tantas
outras conferências realizadas.

Após os episódios de censura ocorridos no Teatro da Experiência, que existiu


no espaço térreo do CAM ao longo do primeiro semestre de 1933, a história do clube
chega ao fim devido a dificuldades financeiras e desentendimentos entre os sócios.
Flávio de Carvalho e outros modernistas, como Anita Malfatti, Mário de Andrade,
Geraldo Ferraz, Caio Prado Jr., Paulo Emílio Salles Gomes, Victor Brecheret e
Chinita Ullman, ensaiam a pronta abertura de um novo clube, o Quarteirão, que,
apesar de divulgado na imprensa, não ultrapassa as discussões estatutárias.

Na narrativa cronológica criada por Rui Moreira Leite, também merecem


menção dois momentos da carreira de Flávio de Carvalho nesta década de 1930 que
exemplificam seu papel provocador e fomentador de um meio crítico para a arte
moderna e para o pensamento de vanguarda naquela década de 1930. São eles: sua
temporada de cinco meses na Europa, em 1934, e sua atividade como colaborador e
organizador62 dos Salões de Maio, entre 1937 e 1939.

O motivo inicial da viagem é a participação do artista no VIII Congresso de


Filosofia63, em Praga, onde relatou a Experiência N°2, e no Congresso de
Psicotécnica64, no qual apresentou o texto “Mecanismo da Emoção Amorosa”. Além
de ambos os compromissos agendados, Flávio de Carvalho partiu com a encomenda

                                                                                                               
62
A ideia de criar o Salão de Maio é de Quirino da Silva, em 1937. A primeira comissão
organizadora reúne, além dele, Geraldo Ferraz, Paulo de Magalhães, Flávio de Carvalho,
Irene Bojano e Madeleine Roux. O grupo dissolveu-se pouco antes da terceira edição, em
1939, devido a uma série de motivos, dentre os quais o fato de Flávio de Carvalho haver
registrado o título do evento em seu nome. Dai por diante o artista segue sozinho nessa
organização e enfrenta as dificuldades de reestabelecer relações com parceiros e
patrocinadores do evento. (Cf. Ibid., p. 76)
63
O VIII Congresso de Filosofia foi promovido em 1934 pelo Museu Britânico, responsável
pelo convite a Flávio de Carvalho (Cf. Ibid., p. 62)
64
O Congresso de Psicotécnica aconteceu uma semana depois do VIII Congresso de
Filosofia. Os relatos sobre esta fala, ocorrida em sessão do dia 14 de setembro de 1934,
levam a crer que ela tenha sido marcada devido a contatos feitos pelo artista no encontro de
Praga.

  66  
da Editora Nacional por um novo livro, Os ossos do mundo, que, apesar de ter sido
escrito durante o período acordado, não chegou a ser publicado naquela ocasião65.

A viagem, no entanto, também possibilitou o contato do artista com membros


das vanguardas européias através de cujo pensamento e de cujas realizações
acreditava poder aquecer o debate sobre a modernidade no Brasil. Durante o tempo de
estada, Flávio de Carvalho fez inúmeras entrevistas com artistas, cientistas e teóricos
europeus66. As transcrições dessas conversas rendem uma série de publicações em
órgãos da imprensa brasileira, do início de 1935 até o fim da década.

Dentre os encontros mais fortuitos, podem ser elencados o com o pintor e


arquiteto tchecoslovaco Arne Hosek, que motivou Flávio de Carvalho a realizar a
conferência “A Pintura do Som e a Música do Espaço”67; o com os surrealistas
franceses, que o convidam para ser correspondente da revista Minotaure68; e o com o
crítico Herbert Read, através do qual consegue trazer uma exposição de artistas
ingleses para o segundo Salão de Maio, em 1938.

Este evento, que pode ser visto como um precursor da Bienal de São Paulo,
em sua missão de conectar a arte brasileira com a internacional, é o grande favorecido
pelas interlocuções estabelecidas por Flávio de Carvalho na Europa. Além das
exposições de abstracionistas e surrealistas ingleses, dentre eles Ben Nicholson e

                                                                                                               
65
A editora perde o interesse no conteúdo apresentado e o próprio Flávio de Carvalho
viabiliza a publicação do livro, em 1936, pela Editora Ariel. Em 2005, ele é reeditado pela
Editora Antiqua.
66
Rui Moreira Leite cita algumas entrevistas, dentre as quais algumas realizadas com
participantes dos Congressos de Filosofia e Psicotécnica (Seracky, Henry Wallon, Gustavo H.
Minella etc.); críticos de arte (Herbert Read e Gibb Smith); artistas (Man Ray, Hoffmeister,
Robson, Perier, Ben Nicholson, Emil Filla); poetas e teóricos (André Breton, Tristan Tzara e
James Laver); o diretor de teatro Josef Turneau e o dramaturgo Jiri Voskovec; o demonólogo
Roger Caillois; o profeta Khrisnamurti; a musicista Margaret Ludwig; o especialista em
literatura eslava K. Krejci; o ministro da educação da Tchecoslováquia Jan Kremar; o
educador Vojtech Cizek; o deão da Universidade de Praga Otekar Fisher (Cf. Ibid., p. 69)
67
A conferência foi realizada no Instituto de Engenharia no dia 28 de março de 1935. A obra
de Arne Hosek em pintura nasce da transposição de peças musicais para construções
pictóricas. (Cf. Ibid., p. 70)
68
Revista francesa criada em 1933, em Paris, pelo suíço Albert Skira e editada até seu fim,
em 1939, por André Breton e Pierre Mabile. Antecedeu a La Révolution Surréaliste e a Le
Surréalisme au service de la révolution como porta-voz do movimento surrealista nos anos
1930. Teve treze edições e contou com a participação de artistas e intelectuais como Pablo
Picasso, Henri Matisse, Juan Miró, Marc Chagall, René Magritte e Wassily Kandinsky,
Georges Bataille, Jacques Lacan, Carl Gustav Jung, Roberto Matta e Aldous Huxley.

  67  
Roland Penrose, na edição de 1938, dentre todas a mais estuturada e apoiada pela
classe artística local, o Salão traz, no ano seguinte, mostras de Alexander Calder,
Alberto Magnelli e Josef Albers. Man Ray chega a ser anunciado, mas cancela a
vinda em data próxima à abertura.

As três edições mobilizam o meio artístico, tanto pelo acesso que promovem a
estas produções estrangeiras, quanto no que diz respeito à discussão dos critérios de
seleção de artistas brasileiros inscritos e ao entendimento sobre as tendências que
estas escolhas e o manifesto publicado no catálogo do Salão de 1939 indicam. No seu
“Plano de seis anos”, Flávio de Carvalho posiciona-se em favor de um evento que
sustenta um entendimento de arte moderna polarizado entre o Abstracionismo e o
Surrealismo.

Geraldo Ferraz, um dos membros da comissão original do Salão e a princípio


co-autor do texto em questão, o acusa de, com isso, e especificamente aceitando obras
da Família Paulista na exposição, defender um “ecletismo” pretensamente “imparcial”
(Cf. Ibid., 77). Pouco depois, Victor Brecheret e Lasar Segall também reagem às
noções postas e manifestam-se publicamente contrários. Em meio a desacordos,
celebrações69 e rodadas generosas de conferências70, devido principalmente à
dificuldade de financiamento, é encerrado o Salão de Maio. Dali por diante, Flávio de
Carvalho dedicar-se-ia a empreendimentos arquitetônicos e negócios seus e de sua
família e, ao menos por alguns anos, sairia deste lugar de “polemista” e “provocador”
que a alcunha de “animador cultural” lhe reserva nos anos 1930.

2.2 Um artista “Entre a experiência e a experimentação”

                                                                                                               
69
O último Salão de Maio termina com um jantar de confraternização entre os artistas.
Enquanto Sérgio Milliet fazia sua conferência, dançarinas japonesas apresentavam-se e um
menu temático era servido, com pratos como “frango assado surrealista” e “frios manifestos”.
(Cf. Ibid., p. 81)
70
Apresentaram conferências nos Salões de Maio: Flávio de Carvalho, Álvaro Moreya,
Julieta Barbara, Carlos Pinto Alves, Irene de Bojano, Elias Chaves Neto, Vera Vicente
Azevedo, Anton Giuglio Bragaglia (1a edição, 1937); Agripino Grieco, Aníbal Machado,
Carlos Pinto Alves, Dias da Costa, Durval Marcondes, Elias Chaves Neto, Francisco Pati,
Geraldo Ferraz, Graciliano Ramos, Hernandez Catá, Jorge Amado, Oswald de Andrade,
Quirino Campofirito, Sangirardi Jr., Jean Maugue, Roger Bastide (2a edição, 1938); Vanorden
Shaw, Sérgio Milliet, Lívio Abramo, Tarsila do Amaral, Nicanor Miranda (3a edição, 1939).
(Cf. Ibid., p. 81)

  68  
No doutorado, Rui Moreira Leite continua seu levantamento de dados e extrapola a
pesquisa dos anos 1930, em que, como vimos, delineia um “animador cultural”. Nas
décadas subseqüentes, de 1940 até a morte de Flávio de Carvalho, em 1973, interessa-
lhe observar no trabalho do artista características como a diversificação de linguagens
e a opção por estratégias muitas vezes imateriais e processuais. Esses traços o levam a
sugerir uma aproximação com a ciência e com a noção de laboratório. O autor, assim,
evidencia e analisa o termo “Experiência”, empregado por Flávio de Carvalho para
definir tanto títulos de obras quanto princípios de sua atividade artística.

Em paralelo a isso, Rui Moreira Leite estrutura um viés de leitura a partir de


um vocábulo que ele mesmo propõe: “experimentação”. A escolha e o emprego do
termo certamente indicam uma associação feita pelo autor (respaldado pelo seu
orientador, o Prof. Walter Zanini) entre Flávio de Carvalho e a geração de artistas dos
anos 1960 e 1970. Apesar da extemporaneidade das trajetórias citadas, é de alguma
maneira sugerido na tese de doutorado um lugar para Flávio de Carvalho na
genealogia da arte conceitual no Brasil.

Este perfil de um precursor dos “experimentalismos” que datam do começo de


uma cronologia do contemporâneo, ou de um atualizador do espírito vanguardista e
interdisciplinar característico do moderno, antagônico a estilos e especializações,
rende uma síntese posterior para o artista, atribuída por Rui Moreira Leite em livro
publicado pela Editora Senac: “Artista Total”, “a um só tempo artista plástico,
arquiteto, encenador teatral e cenógrafo, escritor e animador cultural”. (LEITE, 2008,
p. 13)

Neste e no próximo tópico, considerarei, pois, os três termos apresentados –


“experiência”, “experimentação” e “artista total” – como palavras-chaves
consecutivas e encadeadas de uma segunda apreciação que identifico na longa
trajetória de pesquisa de Rui Moreira Leite.

A palavra “experiência” aparece nos títulos dos dois trabalhos acadêmicos do


autor: Experiência sem número (1987) e Da experiência à experimentação (1994).
Sua visibilidade, no entanto, deriva da importância que ela possui no léxico do
próprio Flávio de Carvalho. Além de nomear alguns projetos relevantes do artista –
Teatro de Experiência (1933) e Experiências N°2 (1931), N°3 (1956) e N°4 (1958) –,
o termo é encontrado extensivamente por toda a sua concepção e prática de arte.

  69  
Permite articular estratégias tão diversas quanto a exteriorização de emoções em gesto
e cor, nos retratos em pintura e desenho, e o desejo de suscitar reações e intensificar a
vivência humana na arquitetura.

Flávio de Carvalho deixa incertos os limites para um começo e um fim da sua


série de Experiências quando escolhe iniciá-las pela de número 2 e dissemina, assim,
a dúvida sobre o que as teria antecedido. Seria a caminhada contra-corrente de 1931
um ato tributário da desobediência do nobre francês Jean de La Barre, que se recusa a
tirar o chapéu numa procissão em 1618? Seria, como alegou o artista, despistando
aqueles que o indagavam: a sucessora do monumento funerário em homenagem a seu
pai, Raul Rezende de Carvalho; ou de “uma coisa sem interesse nenhum, que figura
apenas em meu [seu] arquivo pessoal71” (Cf. MARTINS in LEITE, 1987, p. 25)?

Entendo que Rui Moreira Leite endossa o tom especulativo levantado por
Flávio de Carvalho e assume uma suposta continuidade. “Experiência sem número”,
sem periodicização, portanto. A experiência como método e motriz de um laboratório;
o laboratório como metáfora do lugar para a criação.

O autor enfatiza na obra de Flávio de Carvalho a “tentativa de integrar a


criação artística à investigação científica”, a investida de aproximar arte e ciência
como formas complementares de produção de conhecimento (Cf. LEITE, 1987, p.
22). No artigo “O futurismo na architectura”, publicado originalmente no Diário da
Noite, em 26 de junho de 1930, e reproduzido parcialmente na tese de doutorado de
Rui Moreira Leite, Flávio de Carvalho afirma que “arte e ciência formam um único
núcleo de pensamento e podemos produzir arte pelo raciocício lógico, usando o
mesmo processo analítico que usamos nas ciências” (CARVALHO in LEITE, 1994,
p. 23).

Rui Moreira Leite menciona a formação que o artista recebeu na Inglaterra


para explicar esse ideário programático. Após cursar um ano de Stonyhurst College
(1915 – 1916), onde freqüenta aulas de lógica, metafísica, psicologia, cosmologia e
ética, Flávio de Carvalho ingressa na Armstrong College, escola de engenharia da

                                                                                                               
71
Sangirardi Jr., em texto republicado no catálogo da 17a Bienal de São Paulo, afirma que a
Experiência N°1 teria acontecido quando o artista “fingiu que estava se afogando e gritou
desesperadamene por socorrro”. Algo que, segundo ele, “não deu resultado. Nem livro”
(SANGIRARDI in LEITE e ZANINI, 1983, p. 70).

  70  
Universidade de Durham. Em paralelo a esta educação técnico-científica, dedica-se
também a um curso de belas artes na Edward VII. Ambos até meados de 1922,
quando volta para o Brasil. Este percurso teria levado Flávio de Carvalho a assumir
em seus projetos artísticos e arquitetônicos a racionalidade, a analítica e a
comprobabilidade apropriadas do objeto e do método de pesquisa científicos. Os
estudos simultâneos de artes e ciências exatas lhe teriam garantido repertório para
posicionar-se ante a realidade convencionada inscrevendo nela os reagentes e riscos
de seu empirismo individual.

A formulação mais direta sobre a ideia de experiência na obra do artista é


apresentada por Rui Moreira Leite na introdução de Da experiência à
experimentação. Citando Jorge de Sena, o autor introduz uma analogia que, embora
seja aplicável a todo o restante do texto, dá espaço à retomada da leitura monográfica
e volta a ser tematizada apenas na conclusão. Acerca de “experiência” e
“experimentação”, Sena escreve:

Experiência refere-se ao conhecimento empírico que vitalmente e


individualmente se adquire, experimentação implica a organização
metódica de um evento, para observação de seus resultados. A
experiência não é redutível senão à expressão artística individual. A
experimentação por seu lado, só se completa significativamente pela
formulação matemática ou pela descrição genérica, de que resultem
indutivamente leis gerais para uma série de fenômenos72.

Consecutivamente à citação, insinuando inclusive um diálogo direto entre seu texto e


o de sua fonte escrita, Rui Moreira Leite sintetiza as ideias apresentadas por Jorge de
Sena e as projeta sobre o dualismo indivíduo-multidão (coletividade), sem dúvida
presente nas buscas do artista.

Toda a atividade de Flávio de Carvalho parece descrever um


movimento pendular entre a obtenção desse conhecimento
individual e a tentativa de chegar à formulação de leis gerais para os
mais diversos fenômenos, revela a intenção de unir arte e ciência.
(LEITE, 1994, p. V)
                                                                                                               
72
SENA, Jorge de. “Sobre a dualidade fundamental dos períodos literários” in Dialécticas da
Literatura. Lisboa: 70, 1973, p. 174-175. O autor, de origem portuguesa, viveu no Brasil
entre 1959 e 1964, onde lecionou e desenvolveu a tese de doutorado Os Sonetos de Camões e
o Soneto Quinhentista Peninsular, esta última atividade junto ao Departamento de Letras da
USP.

  71  
A diferenciação acima corrobora com um mito de individualidade até mesmo
fomentado por Flávio de Carvalho (“eu sou um contra mil…”73, dizia ele para a
procissão de católicos). No entanto, a meu ver, ela ainda carece de considerações do
que significaria essa busca por experiência e/ou experimentação por meio de uma
obra ou de projeto artísticos.

Vale salientar que, apesar de a diferenciação ser verificável na postura de fato


pendular do artista entre o “conhecimento individual” e a “tentativa de chegar à
formulação de leis gerais” − o que, nos termos de Jorge de Sena, denotaria,
respectivamente, a experiência e a experimentação −, não se pode afirmar uma clara
distinção de Flávio de Carvalho entre os dois termos. No livro em que registra a
caminhada de 1931, por exemplo, ele oscila constantemente entre ambos, usados
neste caso quase como sinônimos.

Pode-se pontuar que, na história da arte, o uso disseminado de “experiência”


como uma questão ou agenda é anterior ao de “experimentação”, mais comumente
vinculado ao debate dos conceitualismos, nos anos 1960, como veremos adiante. A
definição teórica de “experiência” remonta, para o campo da arte e para a estética, ao
advento da modernidade e às implicações que traz para a vida cotidiana, a partir de
meados do século XIX: a vida na cidade e a “intensificação anímica” (Cf. SIMMEL,
2009, p. 4); o progresso fabril e bélico, a devastação das guerras, a pobreza e o
abandono do “patrimônio humano” em nome de uma “atualidade” destituída de
densidade74. (Cf. BENJAMIN, 1994, p. 119)

Partindo da linha de interpretação aberta por Rui Moreiro Leite e usando-a


como referencial, atribuo aqui articulações exteriores aos escritos do autor, mas
dotadas de pertinência cronológica e temática com relação à discussão da
“experiência”. Com isso, e com a decisão de não separar por completo essas ideias
empregadas posteriormente numa nova seção de texto, torno explícita uma linha
sempre possível no âmbito de uma dissertação desta natureza (uma revisão

                                                                                                               
73
CARVALHO, Flávio. Experiência no. 2: realizada sobre uma procissão de Corpus
Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2001, p. 25.
74
Cito Georg Simmel e Walter Benjamin a partir de suas obras “As grandes cidades e a vida
do espírito” (1903) e “Experiência e pobreza” (1933), respectivamente.

  72  
bibliográfica): o caminho em que a própria consideração sobre os pressupostos de
uma obra teórica fechada permite sua abertura parcial e interpretativa, bem como sua
articulação com fontes de pesquisa correlatas, sejam elas indicadas pelos autores ou
não.

Em 1931, mesmo ano da Experiência n°2, John Dewey apresentou um


conjunto de palestras na Universidade de Harvard sobre o tema da “experiência”.
Num contexto em que especulava-se sobre o fato de a atividade industrial haver
desvinculado o trabalho do artista da dinâmica dos meios de produção, agora
massificados e automatizados, e sobre o modo como isso pode haver provocado um
“‘individualismo’ estético peculiar”, o filósofo saiu em defesa da integração entre a
arte e a realidade. Para tanto, alegou ser a tarefa da filosofia da arte “recuperar a
continuidade da experiência estética com os processos normais do viver.” (DEWEY,
2010, p. 70)

Dewey defende que tal urgência por continuidade existe por dois motivos
principais. Primeiro, para afirmar a obra de arte como experiência mesma, anterior à
construção e à materialização de algum objeto, seja ele um livro, um quadro, uma
estátua. Segundo, para qualificar a experiência humana como dotada de qualidade
estética, visto que inserida no feixe de “movimento e culminação, de rupturas e
reencontros” que constituem o mundo real. (Cf. Ibid., p. 80) A partir dessas
colocações, o autor parece querer refutar um entendimento de arte como disciplina
autônoma (Cf. BÜRGER, 2008, p. 83), inconsciente e pura, e reestabelecer seus laços
com a “praxis vital”75.

A evocação de Dewey afina-se com o depoimento de Flávio de Carvalho em


artigo reproduzido na tese de Rui Moreira Leite. No trecho citado, o artista desaprova
o esteticismo e aponta como alternativa uma arte “analítica” e “lógica”, fruto da
sinergia de sua missão e de suas práticas com as da ciência:

                                                                                                               
75
Sobre autonomia e inconsciência, Peter Bürger diria, em seu Teoria da Vanguarda: “só
depois de a arte, no esteticismo, ter-se livrado inteiramente de todos os laços com a práxis
vital é que o estético pôde desenvolver-se “de forma pura”, o que, por outro lado, tornou
reconhecível a outra face da autonomia, a inconsciência social (gesellschaftliche
folgenlosigkeit). O protesto vanguardista, cujo objetivo é reconduzir a arte à práxis vital,
revela a conexão entre autonomia e inconsciência. (BÜRGER, 2008, p. 83)

  73  
Não há razão nenhuma de querer separar a arte da avalanche
científica. Isso seria o fim da própria arte76. Se assim fizéssemos ela
se tornaria insignificante, desprezível e viria a desaparecer. A arte
é quase toda ela produzida hoje inconscientemente, em momentos
de alucinação do artista. E esse método ineficiente não deve ser
continuado. Podemos produzi-la pelo raciocínio, pela análise
lógica. (CARVALHO in LEITE, 1994, p. 23)

A tarefa desta espécie de artista-cientista proposta coincide com a do cientista


definido por Dewey como alguém contrastante a “uma pessoa cujo objetivo é
estético” (ou esteticista, nos termos de Bürger). Como alguém, portanto, que “se
interessa por problemas, por situações em que a tensão entre o conteúdo da
observação e do pensamento é acentuada”. (DEWEY, 2010, p. 77)

Segundo a estrutura narrativa proposta por Rui Moreira Leite, a Experiência


N°2 é certamente a ação mais representativa deste conjunto de obra gerado pelos
“problemas” e pela “tensão” entre pólos antagônicos, ou “reagentes”, nas palavras do
próprio Flávio de Carvalho. O “reagente”, no episódio da procissão, seria o próprio
artista, andando em sentido contrário ao fluxo coletivo e incitando-lhes ao conflito, de
modo a:

(…) desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente


qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, nos
gestos, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso do ambiente, palpar
psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva, registrar o
escoamento dessa emoção, provocar a revolta para ver alguma coisa
do inconsciente. (CARVALHO, 2001, p. 16)

Assumindo um rigor metodológico que não se sabe ser anterior à caminhada da


Experiência Nº2 ou inventado no momento de escrita do livro-registro77, Flávio de
Carvalho relata as etapas e metas de seu embate. Neste caso e em alguns outros, a

                                                                                                               
76
A grafia original da tese distingue os depoimentos do artista em texto redondo e os do autor
em itálico.
77
A última etapa da Experiência N°2 é o seu registro em um livro ilustrado e publicado com
tiragem inicial de 1.000 cópias. Tudo indica que não tenha havido um planejamento ou uma
fundamentação teórica anterior à caminhada de 1931. O teor da descrição dos eventos e da
análise psicológica propostas na publicação é criado a posteriori, a partir da memória de
Flávio de Carvalho sobre o vivido. A obra teórico-literária possui dados, portanto, de uma
reencenação empreendida pelo artista.

  74  
ambigüidade entre procedimentos da arte e da ciência pode ser explicada pelo fato de
ser o próprio artista teórico e cobaia de suas pesquisas.

A seqüência de Experiências que se seguem a esta primeira, dentre as quais


poderíamos incluir livremente a Série Trágica (1947)78, continuam a prática do artista
de deixar a “criação alimentar-se da ação” (Cf. LEITE, 1994, p. 137) e usar, para isso,
seu próprio corpo e sua presença como mídias para o trabalho acontecer. Junto a eles,
Flávio de Carvalho mobiliza seus sentidos, medos, desejos, parcelas de uma biografia
pessoal ora cabíveis como metáforas universais da condição humana.

Novamente recorrendo a John Dewey, destaco que, ante este corpo e esta
subjetividade, usadas como medida reagente primordial para a criação e para a
renovação, impõe-se o ambiente, lugar onde a vida “se dá”. “Não apenas nele”, aliás,
“mas por causa dele, pela interação com ele”. Sobre essa relação, o autor escreve:

A todo momento a criatura viva é exposta aos perigos do meio que a


circunda, e a cada momento precisa recorrer a alguma coisa nesse
meio para satisfazer suas necessidades. A carreira e o destino de um
ser vivo estão ligados a seus intercâmbios com o meio, não
externamente, mas sim de uma maneira mais íntima. (…) A própria
vida consiste em fases nas quais o próprio organismo perde o
compasso da marcha das coisas circundantes e depois retoma a
cadência com elas – seja por esforço, seja por um acaso fortuito. E,
em uma vida em crescimento, a recuperação nunca é mero retorno a
um estado anterior, pois é enriquecida pela situação de disparidade e
resistência que atravessou com sucesso. (…) Esses lugares comuns
biológicos são algo mais do que isso; chegam às raízes da estética
na experiência. O mundo é cheio de coisas que são indiferentes ou
até hostis à vida; os próprios processos pelos quais a vida se mantém
tendem a desajustá-lo de seu meio. No entanto, quando a vida
continua e, ao continuar, se expande, há uma separação dos fatores
de oposição e conflito; há uma transformação deles em aspectos
diferenciados de uma vida mais energizada e significativa.
(DEWEY, 2010, p. 76)

O modo como Dewey retira do embate indivíduo (tese) – ambiente (antítese) os


elementos que provocam uma possível reação de síntese assemelha-se a como Flávio
                                                                                                               
78
Em 1947, Flávio de Carvalho enfrenta os instantes finais de sua mãe Ophélia Crissiúma de
Carvalho sobre uma cama de hospital munido de um caderno de anotações e da coragem de
registrar a fisionomia da dor e da morte em nove rascunhos que depois seriam transferidos
para os desenhos em carvão sobre papel (70 x 50cm cada) da Série Trágica - Minha Mãe
Morrendo.

  75  
de Carvalho concebe suas intervenções e projetos. A interrupção dos “fluxos”, a
criação de “crises” (Cf. Ibid., p. 79-80), a desnaturalização, o estranhamento e a
vivência de um laboratório sobre as formas de vida, expressão e sociabilidade
ganham, em novembro de 1932, uma sede, o Teatro de Experiência. O espaço,
concebido pelo artista junto com Oswaldo Sampaio e instalado no térreo do CAM,
nasce sem uma pauta pre-definida, apenas com “o espírito imparcial da pesquisa” em
texto, dramaturgia, cenografia, figurino, som e iluminação.

A partir de menção feita por Rui Moreira Leite, entendo que o projeto do
Teatro refere-se ao episódio da Experiência N°2, e, de certa forma, transforma sua
radicalidade pontual numa encubadora de novos “testes (irritantes ou calmantes) para
observar a reação do público” (Cf. CARVALHO in LEITE, 1987, p. 49). O mesmo
Flávio de Carvalho que encarara a rua como palco e os transeuntes como platéia, no
ano anterior, lança-se agora sobre o espaço cênico e sobre o desejo de torná-lo
território de despojamento, ruptura e invenção. Ao jornal O Homem do Povo, dirigido
por Oswald de Andrade, o artista declara:

A ideia do cenário para mim forma um único conjunto com a ideia


de teatro. Separar um do outro é um ato de cretinismo dificilmente
crível. O teatrólogo deve também saber fazer cenários, ou vice-
versa. O problema é um só: movimentar coisas iluminadas e sonoras
para provocar uma reação sensorial na assistência.
Não importa se os atores são fixos e sonoros e se os cenários em
movimento ou vice-versa, ou em combinação desses. A arte consiste
em apresentar uma série de sensações visuais e sonoras e provocar
na assistência uma emoção profunda que forçosamente varia com a
capacidade de perceber do assistente. (Ibid., pp. 48 - 49)

A primeira peça do Teatro de Experiência é O Bailado do Deus Morto, escrita e


digirida por Flávio de Carvalho. A obra é apresentada três vezes, na terceira já com a
presença da polícia de costumes, que fecha79 naquele dia mesmo o estabelecimento
definitivamente, por julgá-lo demasiado irreverente. Trata-se de “uma peça cantada,
falada e dançada; os atores usavam máscaras de alumínio e camisolas brancas, o
efeito cênico era um movimento de luzes sobre o pano branco e o alumínio”
                                                                                                               
79
Em 12 de junho de 1933, após alguns improvisos de Procópio Ferreira; uma curta
temporada de O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade; e duas apresentações do Bailado
do Deus Morto, de Flávio de Carvalho, a polícia de costumes fecha a sede do Teatro.

  76  
(CARVALHO in LEITE, 1987, p. 49). Segundo Rui Moreira Leite, talvez tenha sido
a primeira apresentação da história do teatro brasileiro a usar palavrões.

Imagem 12 - Primeira encenação do Bailado do deus morto. Fonte: Denise Mattar.

Dividido em dois atos, o roteiro mostra o percurso de um Deus desde a sua forma
primitiva, como “Monstro mitológico”, entre as feras do mato, até a confissão e o fim,
por ter sucumbido à tentação humana, encarnada pela “Mulher Menor”. Rui Moreira
Leite observa semelhanças estruturais e temáticas entre a obra e A origem da tragédia
(1871), em que Friedrich Nietzsche disserta sobre as etapas de desenvolvimento do
teatro como frutos do embate entre os deuses Apolo e Dionísio, que representam o
sonho e a embriaguês. Pergunto: seria esta embriaguês sinônimo do que o artista
chama de “experiência”, ou ainda, da “turbulência mental” que insiste em definir
como geradora de sua criação?

É comum a ambas as histórias − tanto a do Bailado… quanto a d’A origem… −


algo que se pode entender como a derrota da metafísica, nas figuras de Deus e de
Apolo. Em seu lugar, reinam soberanas a matéria e a racionalidade. Reina o ateísmo
propagado pelo artista através de estratégias sempre antropocêntricas e
subjetivadoras. “A psicanálise matou o Deus…” (Cf. CARVALHO, 1973, p. 92),
entoa a frase final do Bailado…, destacável na história do teatro brasileiro por haver
instituído uma boca de cena carnal e profana, em que a dramaturgia pode nutrir-se da
vida e não mais deve ratificar o sagrado.

  77  
O Teatro de Experiência pode ser visto como um precursor do teatro de
vanguarda no país80. No entanto, seu curso, assim como o da Experiência N°2, por
suscitar polêmicas e despertar a censura, completa-se nos boletins policiais, nas
páginas de jornais e nos fóruns de discussão da intelectualidade modernista. Estes
espaços simbólicos, em que o vanguardismo de Flávio de Carvalho conseguiu atingir
e provocar a audiência de seu tempo, passam a interessar-lhe cada vez mais. A mídia,
em especial, passa a ser um “lugar” onde o artista não só exerce sua atividade perene
de articulista e comentador, mas também faz sua obra acontecer, entre o registro
jornalístico e o termômetro da opinião pública. Sobre o assunto, Rui Moreira Leite,
em artigo posterior81 à tese de doutorado, comenta:

Ultimately, the descriptions of Flávio de Carvalho’s interventions


reveal, on the one hand, the promotion of living experience to the
category of art making and, on the other hand, an awareness that the
media stands as an arena for public performance and social
intervention, hence the artist’s interest in communicating his works
through mass media. (LEITE, 2004, p. 156)

Passadas quase três décadas desde a primeira matéria de ataque ao projeto do Palácio
Municipal, de 1927, consolida-se na obra de Flávio de Carvalho o papel da imprensa
como “arena para performance pública”. Se outrora a formação desta arena era
circunstancial e involuntária, nos anos 1950 ela passa a pautar e programar a ação de
Flávio de Carvalho.

A Experiência N°3 já nasce consciente de sua audiência e de como atingi-la. O


“traje de verão"82 desenhado pelo artista em 1952, indiretamente discutido na série de

                                                                                                               
80
Em 1933, Procópio Ferreira e Joracy Camargo encenam Deus lhe pague. Além desta peca,
vale também menção a obra de Álvaro Moreyra como seguidora da abertura criada pelo
Bailado do Deus Morto na história do teatro brasileiro. (Cf. LEITE, 1994, p. 53)
81
O artigo, intitulado “Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre”, foi escrito em 2002
e publicado em 2004, em inglês, no volume 72, número 2, da Revista Leonardo. Sua redação
antecipa as ideias centrais do livro Flávio de Carvalho: o artista total, que a Editora Senac
lança em 2008.
82
Apelidado “new look”, devido à proximidade temporal com o inovador modelo feminino
desenhado por Christian Dior, o traje era composto por um saiote e um blusão de cores
vibrantes. Uma estrutura metálica disposta dentro do blusão garantia a sua boa ventilação e
evitava a sensação de calor.

  78  
artigos A moda e o novo homem83, e executado pela figurinista do Balé do IV
Centenário Maria Ferrara, em 1956, é lançado neste mesmo ano, nos jornais, revistas
e na TV. Antes mesmo de ir às ruas e angariar seguidores num pequeno cortejo de
demonstração de uso, em 18 de outubro, o artista já tornara-se garoto-propaganda da
vestimenta e de seu estilo transgressor.

Imagem 13 - Experiência n°3. Fonte: MAM-SP.

Em 1958, ocorre a última das Experiências, uma expedição liderada por Flávio de
Carvalho ao alto Amazonas com uma equipe de cinema e duas modelos loiras
selecionadas por casting para estabelecer um contato com os povos primitivos da
selva e filmar a epopéia de Umbelina Valéria, uma jovem caucasiana que, ao ser
raptada por Xirianãs, teria fundado uma aldeia de índios brancos e sido mitificada
como a “Deusa Branca”.

                                                                                                               
83
Publicada no jornal Diário de S. Paulo, entre 4 de março e 21 de outubro, a série é
composta por 39 artigos. Eles foram reeditados primeiramente pelo Sesc, em 1992, junto com
uma exposição sediada nesta mesma instituição. Em 2010, os textos voltaram a ser publicados
pela Editora Azougue, na coletânea de textos A moda e o novo homem: dialética da moda,
organizada por Sérgio Cohn e Heyk Pimenta. Neste mesmo ano, a mostra “A teoria da moda
de Flávio de Carvalho”, curada por Mariana Lanari e Agnaldo Farias, espacializa excertos dos
textos do artista junto a imagens da fotografia de moda contemporânea brasileira. A
exposição aconteceu primeiro no Museu Brasileiro de Escultura, em São Paulo e depois no
Museu de Arte Moderna do Rio.

  79  
 

Imagem 14 - Encontro posado de uma das modelos com índios xirianãs, na Experiência n4. Fonte: Cedae-
Unicamp.

O objetivo inicial da expedição era uma pesquisa de cunho antropológico e


etnográfico, acrescida do levantamento e do uso de inúmeras estratégias para a vida e
a intensificação da experiência na selva, como a feitura de roupas de proteção contra
mosquitos e a estocagem de espelhos e fogos de artifício para intercâmbio com os
nativos. A preparação e os causos da filmagem da epopéia, no entanto, aumentam
ainda mais a curiosidade imediata e factual de uma audiência cativada para a viagem
em boletins semanais publicados em jornais e revistas, inclusive internacionais, como
a Time Life.

Nesse sentido, a irresoluta Experiência n°4 tanto desdobra mais uma etapa
desta pesquisa de concepção de um homem moderno “experiencial” e reagente ao seu
meio quanto também consolida a mídia de massa como um lugar de encontros e
negociações do artista com a sociedade. Flávio de Carvalho inscreve seu laboratório
artístico-científico na agenda pública. Se, por um lado, podemos encontrar neste gesto
ambições propagantistas e disseminatórias de um pensamento de vanguarda, por
outro, vislumbramos um certo elogio ou apego ao que existe de individual e
intransferível na experiência vivida.

  80  
É como eu me sinto no momento em que escrevo; visualizando a
minha aventura, me parece visualizar a parte de um estranho mundo
a mim, me sinto metade como um arqueólogo e metade como um
cínico cético. A concatenação dos fatos não me traz senão um
panorama ilusório e arqueologicamente me sinto tão inseguro como
se estivesse elaborando por meio de uma ficção exaltada um mundo
neurótico qualquer. (CARVALHO, 2001, p. 31)

A passagem retirada do livro Experiência n°2: realizada sobre uma procissão de


Corpus Christi: uma possível teoria e uma experiência, escrito e ilustrado por Flávio
de Carvalho após a sua contra-caminhada, demonstra certa hesitação, talvez quanto à
cientificidade e confiabilidade de seu relato sobre os fatos passados. A partir do
depoimento se pode perceber que, se há em Flávio de Carvalho uma tendência às “leis
gerais” insinuada por Rui Moreira Leite, ao citar Jorge de Sena, essa tendência não
confirma qualquer espécie de prescrição. “O artista prevê aquilo que o homem social
fará”, afirma Flávio de Carvalho em entrevista (Cf. LEITE, 2004, p. 157),
fundamentando inclusive uma relação de diacronia e extemporaneidade.

Através dos indícios reunidos por Rui Moreira Leite, sou levada a concluir que
o arquiteto de prancheta, animador marginal, pioneiro de tantas histórias que o
mantêm em suas “notas de rodapé”84, confirmou seu legado justamente pela
inconclusividade e pela inadequação de seus projetos e programas. Penso que, se este
meio “arqueólogo” meio “cínico cético” escolheu operar sempre através das balizas e
do léxico da ciência, talvez o tenha feito exatamente para envolvê-la em dúvidas e
especulações, dissociá-la da verdade.

O autor aponta que, além da engenharia, ciência exata apreendida no período


de formação universitária do artista e empregada nos seus anos de prática
arquitetônica, as principais disciplinas científicas presentes na estruturação do
pensamento de Flávio de Carvalho são a psicologia e a etnografia. Michel Foucault as
define como capazes de nutrir “um princípio perpétuo de inquietação, dúvida e
interrogação em relação ao conhecimento adquirido”85 (Cf. LEITE, 2004, p.157). Não

                                                                                                               
84
Cf. DAHER, 1984, p. 161.
85
Tradução livre da autora, a partir de versão inglesa da citação utilizada no artigo Flávio de
Carvalho: Media Artist Avant la Lettre (Cf. LEITE, 2004).

  81  
por acaso, ambas as disciplinas incorrem pelas ciências humanas e consideram o
sujeito e a subjetividade como pressuposto maior para seus estudos.

Flávio de Carvalho denominaria este “princípio perpétuo” como “turbulência


mental”, termo que, apesar de controverso e de certa forma impreciso, é notório na
voz do artista, tendo aparecido em inúmeros de seus textos e depoimentos. Rui
Moreira Leite interpreta “turbulência mental” como uma tentativa de manter ativas as
“forças primitivas de criação”, um ato de resistência às convenções e a qualquer tipo
de doutrina. O termo denota algo que, segundo o autor, Flávio de Carvalho teria
defendido através de ensaios teóricos e de estratégias “experienciais”, antropofágicas
e expressionistas: o vanguardismo, a criação artística como movimento de crítica e
renovação contínuas.

O referencial usado para esta conceituação advém de um repertório construído


por Flávio de Carvalho, como auto-didata, na Psicologia e na Etnografia,
principalmente, mas também em outras áreas do conhecimento, como a Filosofia. Rui
Moreira Leite conta que o artista dedicou grande parte de sua viagem à Europa, em
1934, à visita a museus de etnografia, castelos e coleções. O autor também narra que
Flávio de Carvalho leu profusamente86 autores como Friedrich Nietzsche, Sir George
James Frazer (Origem da família e do clã), Alfred Adler (O temperamento nervoso,
1912) e George Le Bon (Psicologia das multidões, 1895).

Segundo o biógrafo J. Toledo, Freud é destacado entre todos os teóricos


mencionados por haver sido “leitura de cabeçeira” (Cf. TOLEDO, 1994, p. 17) do
artista87 por grande parte da sua vida. Em 1931, Totem e Tabu, escrito pelo inventor

                                                                                                               
86
Em entrevista concedida a Silveira Peixoto, Flávio de Carvalho fala sobre suas leituras:
“anos atrás, quando li Nietzsche, senti-me fortemente comovido pela selvageria poética e pela
profundeza da essência humana, que nele se contêm. Nietzsche tornou-se, para mim, a besta
intelectualizada. Gostava e gosto imenso da estranha brutalidade que ele usa, ao lidar com os
bonecos bem vestidos do pensamento e do comportamento. Li Freud e comovi-me com a
polarização sexual de suas idéias. Era perfeitamente natural, para mim, encontrar a Gênese
das coisas no sexo. Não devemos ao sexo o próprio fato de nossa existência? Senti-me
profundamente empolgado com os etnógrafos Sir James Frazer e Malinowsky. Na literatura
da minha profissão, li apenas coisas de engenharia, não podendo suportar literatura sobre
arquitetura, a não ser os anúncios em revistas americanas. (CARVALHO in LEITE, 1994, p.
149)
87
Esta intimidade de Flávio de Carvalho com a bibliografia de Sigmund Freud aparece em
seu acervo pessoal, pertencente hoje ao CEDAE-Unicamp. Dentre títulos de um arquivo
composto por recortes de jornais, cartas e fotografias, a biblioteca de Flávio de Carvalho

  82  
da Psicanálise entre 1913 e 1914, é traduzido para o português e lançado no Brasil.
No entanto, Flávio de Carvalho conhecera o título nos anos que morou na Europa e, à
altura daquele lançamento, pouco depois do episódio na procissão de Corpus Christi,
redigia seu livro relatando e analisando a contra-caminhada a partir de um marco
teórico em grande parte freudiano.

Logo no começo da publicação, Flávio de Carvalho alerta o leitor sobre a


natureza de seu relato. Em nota, demonstra seu alinhamento com o que Freud
denomina “psicografia da personalidade”, habilidade comum à arte e à psicanálise88
de “fazer conjecturas, com mais ou menos certeza, (…) sobre a personalidade íntima
de quem reside por trás dela” (FREUD, 2006, pp. 181-182). Neste caso, a
personalidade e os anseios em questão são os do próprio artista:

(…) a narrativa está sujeita a quatro influências deformadoras; 1a)


perda dos acontecimentos no momento de observar; 2a) deformação
dos acontecimentos colhidos pelo modo de ver pessoal; 3a) perda de
acontecimentos durante o processo de recordar para escrever; 4a)
deformação pela apreciação pessoal dos acontecimentos recordados.
Essas quatro deformações constituem os quatro movimentos do
processo arqueológico que estou seguindo, e que terá como
resultado um panorama desconexo, cheio de vazios, representando o
que aparentemente aconteceu. (CARVALHO, 2002, p. 33)

A partir da advertência do artista, percebe-se que, se por um lado perdemos


objetividade em relação a uma versão factual do ocorrido, por outro ganhamos uma
camada de leitura subjetivada, que expõe dilemas de seu enunciador. Acima de todos

                                                                                                               
dispõe de mais de 3.000 livros e contém edições estrangeiras de publicações de Freud, sempre
profusamente anotadas pelo artista.
88   Em Totem e Tabu, Freud estabelece relações entre a Psicanálise e outras disciplinas, como

a Filosofia, a Filologia, a Biologia, a História e a Estética. Para o autor, a Psicanálise


despertaria interesse devido a: a) para a História: sua habilidade de estabelecer “uma estreita
conexão entre essas realizações psíquicas dos indivíduos, por um lado, e de sociedades, por
outro, postulando uma mesma e única fonte para ambas”; b) para a Sociologia: sua
capacidade de alicerçar o estudo das “bases emocionais” do convívio indivíduo – sociedade;
para a Estética: seu enfrentamento e análise da subjetividade, das manifestações do
inconsciente e dos conflitos humanos que dão lastro à criação. (FREUD, 2006, p. 187) Talvez
se possa encontrar na noção de conflito aquilo que Flávio de Carvalho especula ser a
“turbulência mental”.

  83  
os episódios narrados e das apreciações teóricas empreendidas, portanto, aparecem a
voz particular e a experiência pessoal de Flávio de Carvalho.

Rui Moreira Leite interpreta a aparente onipresença do artista como uma


tentativa de ocupar, por aqueles instantes (vividos e/ou narrados, a essa altura não se
sabe mais ao certo), o lugar do “chefe”. Na situação de uma procissão católica, o
chefe é “deus”, o representante e elo de ligação religiosa e social da multidão de fiéis.
Deus é o que Freud reconhece como o “tótem do clã”89. Valendo-se deste postulado,
Flávio de Carvalho lança sua provocação: “o tótem é o igual do indivíduo. O
indivíduo transporta a sua personalidade para o objeto ou animal tótem” (Cf.
CARVALHO, 2002, p. 56).

Ao estabelecer uma relação de analogia com deus, o artista reinvidica para o


indivíduo (e, neste caso, para si) uma autoridade até então reservada ao divino ou
espiritual: a de arregimentar vínculos de liderança e superioridade, reestabelecer uma
dinâmica política entre iguais. A criação de um espaço para o livre exercício desta
autoridade individual (a esfera pública) permite que o artista (o “deus-homem”)
imponha sua personalidade transgressora e mundana como alternativa tangível para o
grupo e perante “deus-pai”. A ação obviamente não resulta bem-sucedida no que
concerne a adesões ou reflexões em massa, mas comprova a hipótese de um lugar
para a arte como deflagradora de desconcertos psíquicos, estéticos e morais na
sociedade.

Em entrevista concedida em 195690 e mencionada na tese de Rui Moreira


Leite, o artista defende argumentos que não só aplicara na Experiência n°2 mas em
diversos projetos dali por diante. Ele os sintetiza na seguinte formulação:

(…) a arte é um gráfico da própria conduta do homem, é um gráfico


dos acontecimentos sociais e prevê o cansaço do homem e as suas
                                                                                                               
89
Para Freud, em Totem e tabu,   “o tótem do clã é reverenciado por uma corporação de
homens e mulheres que se chamam a si próprios pelo nome do tótem, acreditam possuirem
um só sangue, descendentes que são de um ancestral comum, e estão ligados por obrigações
mútuas e comuns e por uma obrigação comum no tótem. O totemismo, assim, constitui tanto
uma religião como um sistema social. Em seu aspecto religioso, consiste na relação de
respeito e proteção mútua entre um homem e o seu tótem. No seu aspecto social, consiste nas
relações dos integrantes do clã uns com os outros e com os homens de outros clãs. (FREUD,
2006, p.112)
90
Para Daniel Oliveira, publicada em Paratodos. Rio de Janeiro, vol. 12, 1956.

  84  
necessidades de mudança. Temos que recuperar a nossa plasticidade
de primitivo para poder compor o mundo novo (CARVALHO in
LEITE, 1994, p. 91).

A procura pelas manifestações do primitivo resulta em iniciativas de Flávio de


Carvalho, junto ao CAM e aos Salões de Maio, para divulgar produções artísticas de
loucos e de crianças. Seriam eles, na sociedade, quem estaria mais próximo de um
pensamento não doutrinário, de uma livre manifestação dos desejos e do inconsciente.
Em 1933, o artista, junto a interlocutores como Osório César e alguns psicanalistas91
em atividade em São Paulo e no Rio de Janeiro, promove uma exposição de desenhos
de loucos e crianças. Intercalando falas de Flávio de Carvalho com articulações
suas92, Rui Moreira Leite aponta na mostra uma “função demonstrativa”:

Como declarava então os desenhos das crianças, quando não estão


estupidamente controlados pelos professores, têm uma importância
que não apreendemos bem. Porque trazem para nossa meditação
todo o drama anímico dos homens das cavernas, do
epithecantropus erectus e a magnífica agitação de uma fauna
incrível, que mal podemos visualizar e acreditar. Da mesma forma,
os desenhos dos alienados estão a indicar o caminho para encontrar
a genesis da tortura que sacode a alma do louco.
Para ele a exposição estaria a demonstrar que a criança
impulsionando livremente o lápis desdobra toda a tragédia da vida
e do mundo, todos os cataclismas da alma e do pensamento, ela vê
a dolorosa caricatura de tudo e dramatiza numa simplicidade de
formas e cores que faz inveja aos grandes artistas. O fim dessas
considerações é a condenação do ensino nas Escolas de Belas Artes,
responsáveis, segundo Flávio de Cavalho, pela supressão da fantasia
da criança por professores de mentalidade gasta e empoeirada.
(LEITE, 1987, p. 44)

Através do reconhecimento da criação desses outros agentes, de certa forma


marginais ao circuito, à academia e à história da arte, Flávio de Carvalho e seus pares

                                                                                                               
91   Dr.
Pedro de Alcântara, Dr. Durval Marcondes, Dr. A.C. Pacheco, Dr. Neves Manta, Dr.
Fausto Guerner, além de José Kliass. Todos eles contribuem com palestra no CAM sobre
temas relacionados a arte e psicanálise.
92
Novamente a diferenciação de agentes de fala se dá por sinais gráficos no texto da
dissertação de mestrado. Os depoimentos de Flávio de Carvalho aparecem em itálico,
seguidos e intercalados pela escrita de Rui Moreira Leite.

  85  
projetam também sobre o meio artístico indagações sobre a obsolecência de padrões e
a demanda por renovação. Valendo-se da “plasticidade do primitivo”, como já
dissera, o artista acredita poder indicar caminhos para a mudança, ou para a pesquisa
e a instabilidade de pensamento constantes, em lugar de certezas e consolidações.

Rui Moreira Leite verifica que, na viagem à Europa, em 1934, Flávio de


Carvalho procura bases para a ampliação desses estudos sobre as motrizes primitivas
para a criação visitando acervos de tempos passados, como galerias de pintura,
museus etnográficos, castelos, igrejas, cidades mortas. O mote investigativo do artista
continua sendo o gráfico das emoções amorosas ancestrais e o papel da arte em
despertá-las e, como num processo psicanalítico, rearranjá-las. Em Os ossos do
mundo, compêndio de textos escritos na viagem e publicado em 1936, Flávio de
Carvalho descreve sua atuação como arqueólogo e etnógrafo desses vestígios de
civilização e, a partir dela, esboça teses – ou “suspeitas intelectuais”, como prefere
chamar – sobre o lugar da experiência na escrita da história.

Contra a “ditadura de verdades”, sobre a qual a ciência do século XX se apóia,


oferecendo “apoio e segurança ao tumúlto interno do homem” (Cf. CARVALHO,
2002, p. 44), Flávio de Carvalho defende que “a luz sobre o passado é o único tipo de
luz capaz de iluminar o presente”. (Cf. Ibid., p. 42) No capítulo, intitulado
“As ruínas do mundo”, declara:

O exame dos objetos do mundo e das coisas encontradas no decorrer


da vida estabelece também uma relação anímica maior entre o
indivíduo e o objeto examinado, o objeto adquire para o indivíduo
um valor e uma sugestibilidade que ele antes não possuía.
(CARVALHO in LEITE, 1987, p. 66)

Desde modo, Flávio de Carvalho antecipa a qualquer formulação (até mesmo as


historicamente cunhadas) o caráter pessoal e “anímico” que os “objetos do mundo”
trazem potencialmente em si, visto que sujeitos aos fluxos de vida e às possibilidades
e impossibilidades de encontro e interpretação.

Esta prática encontra equivalências na obra plástica do artista, no extenso


conjunto de retratos que pintou e desenhou ao longo da vida. Rui Moreira Leite
observa a “agudização na apreensão psicológica” que acontece principalmente em
obras como os retratos de Brasil Gerson (1937), Péricles do Amaral (1939), Mário de

  86  
Andrade (1939), além da Série Trágica (1947) (Cf. LEITE, 1994, p. 78). O autor as
analisa, assim como o fizera Daher, a partir da ideia de “linhas de forças”93, vetores
diagonais que tensionam a composição a partir do centro e que, junto com um
esquema de cores vibrantes atribuídas pelo artista, dão à figura dinamismo e
dramaticidade.

O retrato parece de fato acontecer no intervalo entre Flávio de Carvalho e o


modelo, naquilo que o primeiro pode alcançar e expressar da interioridade do
segundo. A possibilidade de escolha entre tantas geometrias e temperaturas de cor e a
constante exposição do “lado tenebroso”, como Mário de Andrade confessa ter visto
no seu retrato (Ibid., p. 79), também anteriormente citado por Daher, permitem
conclusões acerca de um exercício identitário e emocional também especulativo, tanto
quanto foram as Experiências e os escritos dos anos 1930 previamente mencionados.

A “turbulência mental” definida e defendida por Flávio de Carvalho denota


esta especulação, o livre acesso às “forças primitivas de criação”, a possibilidade de
desmonte das verdades e do conhecimento herdados ancestralmente, o jovem e o
artista intercedendo pela renovação das formas de vida em sociedade. Este
mecanismo justifica-se por uma preocupação com a experiência artística e vital, ou,
como definiu Ruben Navarra, “mais com a turbulência de suas ideias que com as
ideias mesmas” (Cf. NAVARRA in LEITE, 1994, p. 65)

2.3 A síntese de um “artista total”

O extenso levantamento empreendido por Rui Moreira Leite ao longo de doze anos,
entre mestrado e doutorado, revela um Flávio de Carvalho de “qualidade multímoda”
(Cf. LEITE, 1994, p. 135), dedicado “alternadamente à pintura, ao desenho, à
arquitetura como forma de exercitar permanentemente o raciocínio e de se conservar
jovem” (CARVALHO in LEITE, 1994, p. 11). Na sua obra seguinte, um livro de

                                                                                                               
93
No texto de apresentação da obra plástica de Flávio de Carvalho, reunida na Sala Especial
da 17a Bienal de São Paulo, em 1981, Rui Moreira Leite define o conceito de “linha de força”
ou “linha psicológica” a partir da obra Retrato de Paula Hoover, desenho em carvão datado
de 1943. O elemento de construção pictórica capaz de instaurar uma “introspecção subjetiva
entre o modelo e o artista” aparece expressivamente na produção das décadas de 1940 e 1950.
(cf. LEITE, 1983, pp. 31-32).

  87  
iniciação à trajetória do artista, editado e distribuído pelo Senac em 2008, o autor
adota outro termo para esta mesma definição: “artista total”.

Apesar de dar título à publicação, a expressão é abordada apenas uma vez,


logo no texto de apresentação: “Flávio de Carvalho é o artista brasileiro que
personifica o ideal das vanguardas artísticas do século XX, o artista total – a um só
tempo artista plástico, encenador teatral e cenógrafo, escritor e animador cultural”
(LEITE, p. 13). Para além da justificativa quanto ao seu emprego, o termo não volta a
aparecer. Permanece, no entanto, como leitura possível, um índice que evoca - assim
como “experiência” e “experimentação” evocaram anteriormente – a ideia de “série”
ou de “continuidade” nesse campo de práticas híbridas entre arte e arquitetura.

Cunhado na virada do século XIX para o XX, o termo “arte total” (do alemão
“gesamtkunstwerk”) designa a extensão da arte por todos os aspectos da vida
cotidiana. Deste modo, o ideal de “totalidade” alicerça uma prática artística
interdisciplinar e, de alguma maneira, engajada socialmente. Segundo Domenico De
Masi, a arte total é a “utopia de um único homem que domine a complexidade das
diversas formas do saber e controle suas múltiplas práticas.” (DE MASI, 1997, p.
177) Richard Wagner, apoiado por Friedrich Nietzsche, é um dos primeiros a executar
em obra esta utopia, ao passo que é capaz de, ineditamente, articular música, artes
plásticas, teatro e poesia na montagem de um espetáculo.

É, no entanto, a Bauhaus a principal disseminadora da “gesankunstwerk”. A


escola de arte e design alemã, atuante entre 1919 e 1933, consolida um projeto
estético moderno a ser democratizado a partir do trabalho conjunto de pintores,
escultores, desenhistas, pedreiros, marceneiros e arquitetos, entre a artesania artística
e as soluções industriais. Abre-se aqui, principalmente no que tange à concepção de
espaços sociais e cívicos, a discussão da “síntese das artes”, dentro da qual a
arquitetura, como uma prática técnico-artística implicada nos meios de produção e,
por isso, não autônoma94, assume evidente protagonismo.

Naquele entre-guerras, há uma Europa a ser reconstruída, cultural e


arquitetonicamente. Nesse cenário, a Bauhaus inscreve-se como, por um lado, um
projeto vanguardista ancorado no socialismo e confiante num ideal de harmonia entre
                                                                                                               
94
Cf. BÜRGER, 2008, p. 83

  88  
as classes, e, por outro, como parte do reaquecimento da vida metropolitana e da
sociedade de massa; por um lado, entre o humanismo e o espírito comunitário, por
outro, entre o funcionalismo e o racionalismo industriais. Este impasse é decisivo na
definição de uma série de tendências do programa da escola e da arquitetura moderna
européia daquela primeira metade do século XX.

A matriz racionalista fundada por Walter Gropius na Bauhaus (Walter


Gropius), apurada e disseminada no Brasil principalmente por Le Corbusier e por seu
International Style, deflagra o início da vertente que constrói e torna notória a
arquitetura moderna no país. O mestre suíço vem ao Brasil pela primeira vez em 1929
e volta em 1936, para, entre outros compromissos, proferir a palestra “A arquitetura e
as belas artes”, na qual elenca aspectos de um estilo, como a “policromia” e o
“diálogo com as artes plásticas”. A defesa é entoada por Lúcio Costa, com a ressalva
de que, para ele, o que deve ocorrer não é uma “síntese” entre arte e arquitetura e sim
uma “interrelação” na qual seriam mantidas especificidades disciplinares (Cf.
FERNANDES, 2011, p. 6). Esse pensamento resulta no desenho do edifício do MEC
(antigo MES), pioneiro de uma linhagem, assinado pelo brasileiro e por sua equipe,
em colaboração com Le Corbusier.

Apesar de, pelas inúmeras divergências já mencionadas, Flávio de Carvalho


não ter aderido à “geração Brazil Builds”, mantém-se informado e ativo no debate do
modernismo arquitetônico internacional e manifesta interesse pela figura de Le
Corbusier, personalidade que encontra e entrevista em 192995. No contexto brasileiro,
estabelecendo um diálogo aproximado, porém sempre divergente, Flávio de Carvalho
tensiona os limites do racionalismo arquitetônico e urbanístico vigentes e questiona,
em seus projetos, o que seria “eficiência”.

                                                                                                               
95   O
encontro aconteceu em 1929, na casa de um mecenas paulistano, quando da primeira vinda de Le
Corbusier ao Brasil. Flávio de Carvalho acompanhava o pensamento do arquiteto suíço pela revista
L’Esprit Nouveau, fundada por Le Corbusier em 1886 junto com Amedée Ozenfant (1886 – 1966). O
biógrafo J. Toledo narra a situação do encontro: “E, ali, no calor do amistoso encontro, enquanto
metralhavam, Flávio, lesta e furtivamente, apanha seu bloco de desenhos e, muito ágil, faz um retrato
caricato de La Corbusier, que só ia ouvindo o agudo interrogatório: “—Acha que a arquitetura é um
problema filosófico? Deve a arquitetura ser lógica? Que é lógica? Deve a arquitetura ter cor? Qual é
o fator predominante: a cor, a forma ou a idéia funcional? Que é que constitui o agradável na cor e na
forma? É esse agradável objetivo ou subjetivo? Como introduzir o valor psíquico na arquitetura?
Deve-se ou não sacrificar a idéia de estrutura pelo fator psíquico? Deve o desejo de progredir
sujeitar-se ao homem ou o homem sujeitar-se ao desejo de progredir? (TOLEDO, 1994, p. 76)

  89  
Ironicamente, o artista adota “Efficácia” como pseudônimo nos concursos dos
quais participa. Talvez para expressar o desejo de não exatamente projetar uma
máquina social cuja eficiência seria garantida pelo planejamento e pelo controle das
formas de vida, mas para deflagrar um espaço a priori ineficiente e
desfuncionalizado, concebê-lo como grau zero. “Eficiente”, na acepção de Flávio de
Carvalho, é o espaço que promove liberdade e experiência, tanto dos indivíduos que o
projetam quanto da coletividade que dele usufrui.

     

Imagem 15 - Sala de jantar da Fazenda Capuava. Fonte: Denise Mattar.

A Fazenda Capuava (1936) é descrita por Dulce Carneiro, em matéria para a Revista
Casa & Jardim, em 1958, como um projeto “exclusivamente poético”, “produto puro
da imaginação” (Cf. CARNEIRO in LEITE, 1994, p. 83). A poesia e as manifestações
de subjetividade, naquilo que têm de presencial e corpóreo (cênico, poder-se-ia
concluir, pela trajetória do artista também no teatro) mas também de “místico” e
ancestral, são para a jornalista o grande diferencial de Flávio de Carvalho em relação
aos seus contemporâneos na arquitetura. Em 1966, o escritor publica no Jornal da
Arte:

Enquanto um dos dogmas da arquitetura moderna é a leveza, o


ilustre paulista concebe suas construções como obras de magia.
Então as massas erguem-se pesadas e ameaçadoras como pagodes.
A Fazenda da Capuava é um túmulo assírio, seu porte monumental
lembra um templo bárbaro. É uma arquitetura mística, no sentido

  90  
primitivo da palavra. O que a fazenda tem de melhor é a arte
aplicada do seu interior – móveis e cortinas. Não tratamos com um
profissional de arquitetura, mas com um estranho poeta à procura de
um ambiente cenográfico. Para isso não repele os meios da
construção moderna mas ao mesmo tempo, isola-se em templos e
túmulos. (Ibid., pp. 85-86)

A “síntese das artes” de Flávio de Carvalho se dá na constituição de um lugar que


comporte o seu próprio estilo de vida: laboratorial, cênico e intensificado, como
descrito anteriormente. Seu isolamento deve-se à manutenção de sua integridade e
individualidade psíquica e intelectual. A adoção de um partido arquitetônico a partir
da paisagem circundante96 remete à busca por forças vitais ancestrais.

O emprego de materiais e meios de construção universais na arquitetura


moderna, como o concreto armado97, combina-se com opções de decoração e
mobiliário que, quando não engenhosos e exclusivamente desenhados pelo artista,
assumem a anacronia de seus gostos pelas origens e pelas coleções históricas. No
entanto, acima de qualquer uma dessas características, o que define a arquitetura de
Flávio de Carvalho como “obra de arte total” é o fato de manter-se motivada por um
programa.

A possibilidade de finalizar apenas os empreendimentos próprios (Fazenda


Capuava, 1936 e casas de aluguel da Alameda Lorena, 1938) e a volta à cenografia98
de teatro, nos anos 1950, demonstram o distanciamento do artista do debate
arquitetônico de sua geração e da subseqüente, ao qual, em 1954 – ano de finalização

                                                                                                               
96
Sobre o projeto da Universidade da Música, de 1954, Flávio de Carvalho relata: “o partido
adotado foi o da força vital da paisagem das montanhas. A necessidade de isolar o homem na
montanha com 360 graus sobre os vales contornantes, a fim de que ele possa meditar e
absorver a força telúrica da paisagem e produzir obras com raízes básicas. (CARVALHO in
LEITE, 1994, p. 115)
97
Apesar de as principais fontes de pesquisa da arquitetura de Flávio de Carvalho
apresentarem a Fazenda Capuava como uma construção em concreto armado, Rui Moreira
Leite alega, em visita guiada à expo do MAM video-documentada por Cacá Vicalvi, que a
casa é feita em alvenaria.
98
Flávio de Carvalho realiza, em 1957, o figurino e a cenografia de Cangaceira, obra a ser
encenada pelo Balé do IV Centenário para a I Bienal de Artes Plásticas do Teatro. Os croquis
e o modelos ganham prêmio e, por isso, deveriam participar da IV Bienal de São Paulo,
naquele mesmo ano. No entanto, antes disso, divergências entre o artista e a comissão de
organização retiram o material da mostra. (Cf. LEITE, 1994, p. 128)

  91  
do Parque Ibirapuera, de Oscar Niemeyer –, declara-se “indiferente”. Rui Moreira
Leite aponta que, para Flávio de Carvalho, à essa altura, do auge de sua reclusão e de
seu radicalismo, não existia arquitetura brasileira. Isso porque, diz o autor, “ou os
projetos seriam cópias de projetos europeus, ou a internacionalização resultaria numa
utilização dos mesmos materiais que determinariam a mesma forma em qualquer
parte do mundo, independentemente da nacionalidade”. (LEITE, 1994, p. 115)

Atento à soberania cultural brasileira e latino-americana, mesmo havendo


motivado a abertura da cena local para intercâmbios e interlocuções estrangeiras ao
longo de toda a carreira, o artista desconfia de linhagens “internacionalistas” para a
arquitetura e para a arte. Entre os 1950 e os 1960, ataca a disseminação e a
reprodução, em alguma medida, de modas européias e norte-americanas no país. Esse
combate incide sobre o modernismo arquitetônico brasileiro e também sobre a ampla
adesão a tendências abstracionistas nas artes plásticas.

O mesmo Flávio de Carvalho que, na viagem de 1934, aproximara-se de


abstracionistas europeus como Jean Helion e Ben Nicholson, naquele início de 1950
refuta, de maneira de certo debochada, a produção dos “menininhos e menininhas que
aparecem às dezenas, aos milhares, entupindo as galerias com abstrações pueris”99
(CARVALHO in LEITE, 1994, p. 110). Além do incômodo com uma aparente moda
formal, o artista expressa em momentos diferentes algumas razões para tal crítica,
dentre elas a incompreensibilidade dos temas abordados e a ausência de “problemas”
advinda, provavelmente, da “desumanização da pintura”100 (Cf. Ibid., p. 111).

                                                                                                               
99
O depoimento foi retirado do trecho de entrevista reproduzida por Rui Moreira Leite e
publicado originalmente no Diário de S. Paulo, em 3 de fevereiro de 1952: “De modo geral, a
chamada arte abstrata é um refúgio para a incompetência e mediocridade. É muito mais fácil
fazer abstrações superficiais e inúteis que passar pelo duro processo de aprendizagem das
artes plásticas. Hoje em dia o mundo está cheio de menininhas e menininhos que aparecem às
dezenas, aos milhares, entupindo as galerias com abstrações pueris. São tantos os
abstracionistas que já nem conseguem chamar a atenção sobre si mesmos. (Cf. CARVALHO
in LEITE, 1994, p. 110)
100
Relatada à Folha da Noite de 27 de novembro de 1953: “A abstração, a ausência de
assunto, tem importância inegável. Ela se desenvolve através da arquitetura. A arte abstrata é
algo maravilhoso. (v. A pintura moderna é mais importante, pois focaliza seus problemas com
maior eficiência – fala Flávio de Carvalho – Caminhamos para a desumanização da pintura –
As figuras são abolidas – O que vale é o equilíbrio de formas e cores – Não podemos
progredir”. (Cf. Ibid., p. 111)

  92  
Munido de justificativas como estas, Flávio de Carvalho participa da
polarização entre figurativos e abstratos da 1a Bienal de São Paulo, em 1951. Opostos
a ele, estavam o crítico Mário Pedrosa e o jovem artista Waldemar Cordeiro, recém
egresso de uma produção expressionista e engajado, a essa altura, com a pesquisa
geométrica que resvala no início do Concretismo em São Paulo. A posição de Flávio
de Carvalho em favor da figura e da tematização do sujeito não o impedem de realizar
obras abstratas como Paisagem Interior e Paisagem Mental, ambas de 1955, e de
aplicar, com maior incidência, geometrias de cores nos fundos dos retratos que
produziu.

O fato de sustentar atitude contrária à vigente no meio artístico e crítico, no


entanto, provoca, na segunda metade dos anos 1950, o “momento de maior
turbulência no relacionamento do artista com as instituições” (LEITE, 1994, p. 128).
O auge deste conflito é a exclusão de obras de Flávio de Carvalho da 4a Bienal de São
Paulo, em 1957, iniciativa apoiada inclusive por Mário Pedrosa, que considera o
artista “um diletante”101.

Dois anos depois, em 1959, o crítico organizaria o Congresso Internacional


Extraordinário de Críticos de Arte, uma reunião de uma semana em que, à luz do
projeto de Brasília, às vésperas de sua conclusão, discutir-se-ia temas relativos à ideia
de “síntese das artes”. A ausência do nome de Flávio de Carvalho dentre os
participantes, apesar da pertinência de seu repertório para aquela discussão, talvez
seja sintoma da inimizade com Mário Pedrosa e de seu isolamento àquela altura.

Só na 7a Bienal, de 1963, após haver mudanças no juri do evento, o artista é


homenageado e recebe o prêmio que lhe fora concedido, porém não entregue, na
quarta edição. A partir deste mesmo ano, outros indicativos apontam um interesse
crescente pela obra de Flávio de Carvalho. São eles, principalmente: o começo da
pesquisa coordenada por Flávio Motta na FAU-USP (1963); a homenagem do Grupo
Rex (1966); o prêmio na Bienal de 1967 e a Sala Especial na de 1971; a candidatura

                                                                                                               
101
No artigo “Em defesa da Bienal”, publicado no Jornal do Brasil em 30 de maio de 1957, o
crítico escreve: “eu vi em Ibirapuera o seu envio e votaria com o júri. Flávio paga aqui o
preço de seu permanente amadorismo. O seu mal é a pluralidade de seus talentos que vai
desde os literários aos plásticos. O pior é que nenhum deles vive e isso o torna um diletante,
um diletante genial em tudo, inclusive no senso de publicidade. (PEDROSA in LEITE, 1994,
p. 128)

  93  
para o IAB, como membro de uma chapa independente de oposição, formada por
Carlos Heck e Sérgio Ferro (1967) (Cf. Ibid., p. 130-131). No catálogo da exposição
retrospectiva do MAM, em 2010, o autor lembra que o interesse pela atividade de
Flávio de Carvalho também foi “renovado por ocasião da primeira montagem de uma
peça de Oswald de Andrade, O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina”, em 1967. (LEITE,
2010, p. 33)

Rui Moreira Leite analiza as razões da virada de um meio anteriormente


refratário e agora receptivo a Flávio de Carvalho estabelecendo relações entre sua
trajetória e o cenário político brasileiro. Para o autor, após uma década de 1950
demarcada pela volta à democracia, pelo desenvolvimentismo e por uma conseqüente
“estética nacionalista”, o golpe militar de 1964 e os crescentes mecanismos de
repressão desarticulam não apenas os grupos revolucionários políticos mas também os
coletivos artísticos e suas possibilidades de encontro e debate. Segundo descreve, este
novo cenário dá margem à “valorização da ação independente de artistas e
intelectuais” e emprega “à figura de Flávio de Carvalho a força de um símbolo”, cujas
características e estretégias adequariam-se à conjuntura dos anos 1960 e 1970 (Cf.
Ibid., p. 136).

O comentário de Rui Moreira Leite evoca uma caracterização deste período


certamente apoiada na trajetória institucional e na historiografia de Walter Zanini,
que, antes de curar as Bienais de São Paulo de 1981 e 1983, já atuara como diretor do
MAC-USP e coordenador, neste museu, das mostras Jovem Arte Contemporânea
(JAC), entre 1967 e 1974. Para Zanini, a produção artística dos anos 1960 e 1970102
define-se pelo surgimento de uma “neovanguarda”, “comprometida com a realidade
imediata”, com a “renovação institucional” e com o “radicalismo na arte”. Os
conceitualismos motivam os artistas a discutirem circuitos e inscreverem mensagens
em mídias reprodutíveis e de massa, a apropriarem-se do vocabulário e da conduta da
“desmaterialização”, do “processo” e da “performance” (Cf. ZANINI in AGUILAR,
1994, p. 318)

Os paralelismos com a obra de Flávio de Carvalho tornam-se possíveis à


medida em que o artista recorre a semelhante repertório, embora extemporaneamente
                                                                                                               
102
No artigo “Duas décadas difíceis: 60 e 70”, publicado no catálogo da mostra Brasil Século
XX, realizada pela Fundação Bienal de São Paulo em 1994.

  94  
e, por isso, reagindo a outro contexto. Rui Moreira Leite menciona como, nas décadas
de 1960 e 1970, as Experiências foram interpretadas como uma “antecipação das
performances então em voga” (Cf. LEITE, 1994, p. 136). Também poderíamos
imputar na repercussão das Experiências e na constante atividade jornalística de
Flávio de Carvalho as origens de outras ocupações midiáticas como, por exemplo, as
Inserções em circuitos ideológicos (1968 - 1970), de Cildo Meireles, e a Artdoor e a
Arte Classificada (1970), da dupla Paulo Bruscky e Daniel Santiago.

Poderíamos atentar para a investigação do artista acerca da imaterialidade e


das formas de registro de suas ações (Experiência n°2 em livro, Série Trágica em
desenho, Experiência n°4 em filme, inacabado); para a maneira como, seja
projetando, definindo dispositivos e um programa em “A cidade do homem nu” ou
mobilizando a multidão da procissão de Corpus Christi, ele presta considerável
contribuição para a genealogia do que postariormente viria a ser denominado
“intervenção urbana”103.

Em História Geral da Arte no Brasil (1983), talvez o primeiro esforço


concreto dedicado a uma narrativa historiográfica que recupera o moderno e adentra
pela contemporaneidade, Walter Zanini dota Flávio de Carvalho de uma “capacidade
de percepção da realidade que utiliza diversificado espectro de linguagens” (ZANINI,
1983, p. 616). Rui Moreira Leite, por sua vez, segue semelhante direção ao concluir
sua tese de doutorado alegando que, na obra do artista, haveria, além desta percepção
aguçada, a capacidade de interpelar a realidade.

(…) a experiência de situações limite revelar-se-ia uma busca


permanente que conduziria tanto suas investigações quanto sua obra
como artista plástico e arquiteto – atitudes provocadoras que
apontam para a tentativa de integrar arte e vida. (LEITE, 1994, p.
137)

A partir do binômio arte e vida, chave para a arte conceitual, o autor ratifica o
alinhamento de sua pesquisa com uma problemática e um léxico que mobilizam a
produção e a crítica de arte desde os anos 1960. Quando, em 1931, Flávio de
Carvalho identifica em sua obra um “estado fictício experimental”, certamente não se
                                                                                                               
103
Sobre o assunto, ver pesquisa de Cristina Freire no livro Além dos mapas: os monumentos
no imaginário contemporâneo, publicado pela editora Annablume, em 1997.

  95  
refere ao termo “experimental” com a especificidade que ele adquire posteriormente.
Sem dispor de outras menções ou atualizações que o artista houvera feito a respeito
do “experimental” e de suas derivações (“experimentação”, “experimentalismo”),
entendo que a terminologia é usada por Rui Moreira Leite com o objetivo de tornar
Flávio de Carvalho contemporâneo ao presente de seu autor, de acessá-lo por meio
das urgências, faculdades e categorias do momento de pesquisa.

2.2 Dois momentos de um pensamento curatorial: da Sala Especial da 17a Bienal


de São Paulo à retrospectiva do MAM-SP

A aproximação historiográfica entre Flávio de Carvalho e a geração dos anos 1960 e


1970 não só gera um entendimento da obra do artista a partir de um repertório
extemporâneo à sua produção, mas também transforma-na em recurso para a
compreensão daquilo que as estratégias conceituais tinham de, em alguma medida,
inovador. Posto como antecessor em uma genealogia estabelecida por afinidades
eletivas (o experimentalismo, as ocupações midiáticas, a interdisciplinaridade etc.),
Flávio de Carvalho é apresentado por Rui Moreira Leite e Walter Zanini na Sala
Especial da 17a Bienal de São Paulo, em 1983, como uma “referência fundamental
para a atualidade” (ZANINI, 1983, p. 298).

Vinte e sete anos depois, em 2010, o artista volta a ser tema de uma grande
retrospectiva, desta vez no MAM de São Paulo. A curadoria de Rui Moreira Leite
naturalmente continua o raciocínio estabelecido em 1983, mas também reflete
inúmeras atualizações relativas ao levantamento de obras de Flávio de Carvalho.
Interesso-me aqui por apontar algumas dessas relações entre ambas as iniciativas
curatoriais à luz de uma obrigatória atenção aos contextos históricos e institucionais a
que cada uma delas corresponde. Vale considerar, portanto, além do conteúdo das
mostras, quais fatores externos motivam a busca pelo artista e geram significados para
a sua obra neste intervalo de três décadas em que o Brasil passa de país periférico
para potência econômica e artística no cenário internacional.

Em 1983, Walter Zanini faz sua segunda curadoria-geral consecutiva de


Bienais. O professor já havia curado a 16a Bienal, de 1981, a convite do presidente
Luiz Villares, empossado na ocasião dos 30 anos da instituição. A estrutura do projeto

  96  
de ambas as Bienais é semelhante, sempre dividida em três núcleos, dos quais um
detém-se na produção corrente, outro lança-se sobre uma produção não institucional
(“arte incomum” em 1981 e arte plumária em 1983) e um terceiro, o chamado Núcleo
Histórico, dá especial visibilidade a personagens ou temáticas de um “passado
recente” e de forte adesão à contemporaneidade (arte postal em 1981 e Flávio de
Carvalho em 1983).
Com este projeto quadrienal, Zanini torna-se pioneiro na adoção do termo
“curadoria” para designar suas atividades na instituição. Também pela primeira vez
na história das Bienais, o professor abole os espaços reservados para as
representações nacionais e permite-se organizar artistas e obras de origens diferentes
(mesmo que ainda largamente indicados pelos consulados de cada país) a partir de
critérios de “relações e analogias de linguagem” (ZANINI, 1981, p. 19).

Estas inovações metodológicas puderam acontecer tanto pela herança da


gestão experimental do historiador da arte no MAC-USP (1963 – 1978) quanto pela
influência, direta ou indireta, de eventos daquela virada de década. O marco dos 30
anos da Bienal impulsiona a renovação da presidência e a promessa de prosperidade
financeira, esta última logo interrompida com uma crise que chegou a ameaçar a
edição de 1983. Além disso, também pode ser apontada como motivadora das
mudanças empreendidas por Walter Zanini a proposta de uma Bienal Latino-
Americana, formulada por Aracy Amaral, em 1978. O evento não é concretizado mas
sua discussão instaura as bases para a realização de um seminário responsável por
uma pausa reflexiva e pelo estreitamento de um intercâmbio entre pensadores de todo
o continente, em 1980.

Na Bienal de 1983, Walter Zanini dá visibilidade à arte plumária de diversas


aldeias indígenas brasileiras e, no núcleo dedicado à produção corrente, enfatiza
pesquisas em meios tecnológicos (videotexto) e atualizações dos suportes da escultura
e da pintura. O projeto da Sala Especial demarca 10 anos de morte de Flávio de
Carvalho. Dentre tantas passagens do artista pela história do evento104, esta

                                                                                                               
104
Flávio de Carvalho participou das quatro primeiras Bienais (1951, 1953, 1955 e 1957)
havendo sido selecionado por um júri de especialistas. Na quarta edição, este júri premia o
artista com o cenário do balé A Cangaceira, de 1953. O prêmio, entretanto, só chega a ser
entregue em 1963, junto com a exibição de obras do artista numa Sala Especial, a primeira
dele. Outras participações acontecem em 1965 e 1967, nas 8a e 9a Bienais. A segunda Sala

  97  
diferencia-se por localizá-lo como “motriz do presente” (contemporâneo) e não
apenas cânone de um passado modernista estabelecido e encerrado.

“Resta muito a dizer de Flávio de Carvalho”, afirma Walter Zanini, indicando


sua discordância com relação às apreciações anteriormente realizadas. O curador geral
e co-curador da Sala Especial estrutura um Núcleo Histórico a partir do artista, de
quem prefere ressaltar “propósitos interdisciplinares”. Para o autor, se, por um lado,
“o pintor e o desenhista já foram bastante divulgados”, por outro, o arquiteto
permaneceu “numa posição incômoda e marginalizada”, o cenógrafo, figurinista,
estilista, teórico e crítico permaneceram “praticamente desconhecidos” (ZANINI,
1983, p. 297).

O projeto curatorial desenvolvido em parceria com Rui Moreira Leite reúne


mais de 200 itens, entre obras e documentos. O conjunto reflete o estágio atual do
levantamento iniciado por Rui Moreira Leite em 1982 e ocupa profusamente os 470
metros quadrados do mezanino do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. A expografia do
arquiteto Jorge Aristides de Sousa Carbajal105 é iniciada com uma reprodução
ampliada de um trecho do livro Experiência n°2 e, a partir dai, cria fluxos em que
amplas sequências de desenhos e pinturas106 combinam-se com esculturas; originais
de projetos de arquitetura; estudos e maquetes de monumentos; guaches e fotografias
de espetáculos teatrais; reprodução das ilustrações, trajes originais e registros
fotográficos das Experiências (neste último caso, apenas da nº4 e da Expedição ao
berço dos gafanhotos, do fim dos anos 1930); documentos e títulos da biblioteca
pessoal do artista, em posse de seu herdeiro direto àquela altura, o tio Custódio
Ribeiro de Carvalho.

                                                                                                               
Especial vem em 1971, na décima primeira edição. Em 1973, Flávio de Carvalho morre em 4
de junho e obras suas integram a 12a Bienal, entre outubro e novembro. Após mais uma
participação em 1979 (15a) e a terceira e última Sala Especial, em 1983 (17a), ainda ocorrem
inclusões de suas obras nas Bienais de 1979 (15a), 1989 (20a), 1994 (Bienal Brasil Século
XX), 1998 (24a) e 2010 (29a).
105
Segundo o catálogo geral da 17a Bienal, Jorge Aristides de Sousa Carbajal é responsável
pelo projeto de montagem e também pela comunicação visual da mostra. Para tanto, conta
com a colaboração de Fernando Piva Campana e Fábio Luis Caruso de Albuquerque
Maranhão.
106
A exposição reuniu 56 pinturas e 61 desenhos do artista.

  98  
Imagem 16 - Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17° Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico
Wanda Svevo.

Além de obras já incluídas em museus e coleções, como a Série Trágica, pertencente


ao acervo do MAC, havia na Sala Especial um vasto material deixado pelo artista e
ainda não propriamente inventariado nem ainda tornado alvo de especulação do
circuito da arte. A mostra é decisiva para o início de uma visibilidade pública do
legado de Flávio de Carvalho e para a tomada de consciência sobre a necessidade de
organização de seu espólio. Vale aqui apenas adiantar que, apesar de iniciativas da
família e de amigos próximos, como o artista e biógrafo J. Toledo, a
profissionalização da herança deixada pelo artista até hoje nunca aconteceu.

A Sala Especial pensada por Walter Zanini e Rui Moreira Leite visa à criação
de acesso a este legado não apenas através da reunião e da exposição de vestígios
físicos das décadas de trabalho de Flávio de Carvalho, mas também através da
promoção da fala de especialistas em um debate107 e em uma compilação de textos no
catálogo108. Sobre todas estas mídias – a exposição, o seminário, o catálogo – incide a
motivação da dupla de pesquisadores de indicar, ou ao menos sugerir, uma taxonomia
para a obra do artista. Desta forma, não só critérios cronológicos mas também
disciplinares e temáticos balizam agrupamentos e explicitam leituras ao longo da
narrativa da exposição.
                                                                                                               
107
A mesa foi composta por Sangirardi Jr., Nicanor Miranda e Mário Barata e tinha Rui
Moreira Leite como mediador.
108
No catálogo especialmente dedicado à Sala Especial, após um texto de apresentação
redigido por Water Zanini e um panorama de Rui Moreira Leite sobre arte e arquitetura, são
publicados um texto de Nicanor Miranda sobre a produção cenográfica do artista e, para
fechar, depoimentos pessoais de Sérgio Milliet, Newton Freitas e Sangirardi Jr.

  99  
O início da produção do artista, ainda fortemente pautado por uma escola
européia de desenho e pintura, é exemplificado com a seqüência de obras Mulher
Sentada, Cabeça do meu modelo (1918) e Retrato de Marina Crissiúma (1922).
Feitas em pastel, no intervalo de quatro anos que compreendem o fim da temporada
de estudos e a vinda para o Brasil, as obras sugerem uma época. Sua reunião constitui
uma das balizas cronológicas da curadoria. Outra baliza presente é a da relação de
Flávio de Carvalho com as ciências humanas. Sua afinidade com a psicologia, por
exemplo, é ressaltada por meio da justaposição do Autoretrato de 1965 com retratos
dos psicanalistas Julian Philips (1972) e Wilfred R. Bion (1973). As analogias
materiais e pictóricas das pinturas (o gestual dos modelos, as “linhas de força”) são
evidentes, mas a curadoria, neste caso, acontece no momento em que aponta para
dados exteriores às obras e pertencentes ao contexto de vida do artista.

Outros dois agrupamentos estruturam-se a partir de evidências pictóricas das


próprias obras. Cada um deles dedica-se a narrar momentos de maior diálogo de
Flávio de Carvalho com a agenda artística das vanguardas do seu tempo. O primeiro
grupo indica a adesão ao Surrealismo, nos anos 1930, através das obras A
inferioridade de Deus (1931), Ascenção definitiva de Cristo e Composição (1932). O
segundo contextualiza a resposta de Flávio de Carvalho ao debate dominante da
abstração geométrica, na década de 1950. A tendência aparece no fundo de Estudo de
Nossa Senhora da noite e de Velame do destino (1954) e evolui para o plano todo de
Paisagem mental (1955). Depois desta breve incursão o artista volta a praticar e
defender a figuração.

As quatro seqüências supracitadas são repetidas por Rui Moreira Leite em sua
curadoria de 2010. Passam-se os anos e mantêm-se algumas das categorias e leituras
formuladas em 1983. Mantém-se um raciocínio de pesquisa ancorado
majoritariamente no levantamento e na verificação de dados e, por isso, regido por
uma dinâmica de tempo dilatada e acumulativa. A retrospectiva do MAM configura-
se como mais uma etapa da trajetória de Rui Moreira Leite pela obra de Flávio de
Carvalho. Um percurso maturado ao longo de 27 anos de íntima convivência do
pesquisador com suas fontes.

Apesar da continuidade, este intervalo, no entanto, já pressupõe mudanças


relativas ao contexto da mostra. Trata-se agora de outro meio crítico, outro público,

  100  
outra instituição, apesar da trama histórica que conecta Bienal e MAM. Neste novo
contexto, impõem-se o perfil e a missão institucional do museu, impõem-se seu
acervo e as narrativas possíveis a partir dele. Não existe uma representação expressiva
da obra de Flávio de Carvalho na coleção do MAM, apenas alguns nus em nanquim109
e o óleo Autorretrato, de 1965. Portanto, pode-se dizer que a realização da
retrospectiva não se baseia na necessidade de mostrar a coleção do museu, mas sim na
pertinência que a obra do artista possui para um debate crucial para a instituição: a
passagem do moderno para o contemporâneo.

Este debate nasce do histórico do MAM e de como, a partir da doação de todo


o seu patrimônio para a USP, em 1963, para a criação do MAC, é levado a recomeçar
seu acervo e, para isso, atualizar seu estatuto110. Nesta ocasião, o “moderno” que o
museu leva no nome passa a conviver com o “contemporâneo”, termo que designa a
possibilidade presente de reconstruir uma história, a partir tanto do acompanhamento
da produção corrente quanto da revisão de cânones.

A obra de Flávio de Carnalho torna-se pertinente para este debate pois


concerva a peculiar habilidade de revisar o cânone moderno (como artista e como
teórico) e, ao mesmo tempo, antecipar nos anos 1930 e 1940 aspectos de uma
produção contemporânea à década de 1960 e à atualidade. No texto de apresentação
do catálogo da retrospectiva, Rui Moreira Leite afirma que “o artista representava
uma ponte entre estes dois momentos fundamentais: o início da renovação nos anos
1920 e a vanguarda dos anos 1960” (LEITE, 2010, p. 33).

A exposição chega ao MAM em decorrência de dois marcos importantes da


história recente do museu, o colóquio internacional História e(m) movimento, em
novembro de 2008, e a coletiva MAM 60, curada por Luiz Camillo Osório e
Annateresa Fabris, entre outubro e dezembro do mesmo ano, na Oca. Ambos os

                                                                                                               
109
São nove nus ao total: quatro da série Mulheres, sendo um de 1961, dois de 1966 e dois de
1968; Retrato de Glória, de 1965; Sem título, de 1966; Rosto de mulher, de 1969 e Pássaro
Cibernético, de 1969.
110
Em assembléia na Rádio Eldorado, sócios do MAM como Paulo Mendes de Almeida e
Mário Pedrosa, redigem a ata de um novo estatuto para o museu. Este documento diz que “O
Museu de Arte Moderna de São Paulo, sociedade civil sem fins lucrativos, políticos ou
religiosos, tem por objetivo constituir um acervo de artes plásticas modernas, principalmente
brasileiras, incentivar e difundir a arte contemporânea”. A partir dai, ainda sem sede própria,
recomeça a história do MAM.

  101  
eventos integram as comemorações dos 60 anos do MAM e consolidam uma política
institucional que estabelece a transversalidade entre o moderno e contemporâneo.

Como veremos no terceiro capítulo, Flávio de Carvalho é um artista-chave da


exposição MAM 60. Sua inserção como elemento organizador de um núcleo de
artistas contemporâneos coincide com a política de transversalidade que já
caracterizava a rotina do MAM desde a gestão de Tadeu Chiarelli (1995 - 2001) e que
foi discutida meses antes no colóquio111.

Desde 2008, portanto, crescia o desejo do conselho consultivo112 do museu de


evidenciar a trajetória de Flávio de Carvalho. Conforme modelo anteriormente
adotado, em exposições sobre Marcel Duchamp113 (2008) e Roberto Burle Marx114
(2009), dentre outras, a proposta levada adiante em 2010 ocupa toda a extensão do
espaço expositivo do MAM. Na galeria principal, a chamada Grande Sala, Rui
Moreira Leite organiza uma visada panorâmica da atuação do artista. Na Sala Paulo
Figueiredo, o colombiano Inti Guerreiro desenvolve uma relação ensaística e poética
entre duas obras de Flávio de Carvalho (Experiência n°3 e o texto “A cidade do
homem nu”), documentos e trabalhos de artistas contemporâneos. Voltarei ao tema
desta mostra no próximo capítulo.

A expografia da Grande Sala, como a da Sala Especial de 1983, evolui a partir


de um conjunto de critérios, de modo a tentativamente abraçar a complexidade de
temas e áreas de interesse que compõem a trajetória do artista. Desenhada por Caio
Guimarães Machado, a arquitetura sugere, no entanto, três fases principais para a obra
de Flávio de Carvalho: o “período de busca”, de 1928 a 1934; a “maturidade”, entre
as décadas de 1940 e 1950 e a “fase final”.

                                                                                                               
111
O colóquio aconteceu nos dias 7 e 8 de novembro de 2008. A exposição foi inaugurada no
dia 16 de outubro e seguiu aberta para visitação até 14 de dezembro do mesmo ano.
112
Em 2007, já com a curadoria-geral de Felipe Chaimovich, foram nomeados para o
conselho consultivo de arte do MAM os críticos Annateresa Fabris, Luiz Camillo Osório e
Lisette Lagnado.
113
Exposição Marcel Duchamp: uma obra de arte que não é uma obra de arte, em cartaz de
15 de julho a 21 de setembro de 2008, na Grande Sala. Na Sala Paulo Figueiredo, durante o
mesmo período, foi exposta a mostra Dicuamp-me, com curadoria de Felipe Chaimovich.
114
Exposição Roberto Burle Marx 100 anos: a permanência do instável, em cartaz de 17 de
julho a 13 de setembro de 2009, na Grande Sala. Na Sala Paulo Figueiredo, durante o mesmo
período, foi exposta a mostra Jardim da infância: os irmãos Campana visitam o MAM.

  102  
Comparada à Sala Especial de 1983, a mostra retrospectiva dispõe de menos
obras e maior documentação acerca delas115. Esta mudança é conseqüência do acesso
dificultado às coleções, ao longo dos anos, e também do desgaste de alguns originais,
como o blusão utilizado na Experiência n°3, que estava na Bienal e, em 2010, já não
mais existia. As reproduções e documentos, contudo, permitem a tematização de
conteúdos inacessíveis e, principalmente, enriquecem a abordagem de projetos e
vivências de natureza imaterial.

Este é o caso das Experiências, que figuram na última porção da mostra, em


vitrine com fotos, livros de referência, cópias de estudos e do texto apresentado no
Seminário de Tropicologia de 1967, além de duas imagens dos índios xirianãs
(Experiência n°4) tiradas por Raymond Frajmond, um dos participantes da expedição
amazônica, e slideshow das ilustrações feitas para o livro da Experiência n°2.
Também são representados por meio de vitrines documentais o ambiente de debates
do CAM e a as interlocuções feitas na viagem à Europa, em 1934. Em ambas as
vitrines são empregados títulos da biblioteca pessoal do artista, alocada no Cedae-
Unicamp.

Imagem 17 - Slideshow de imagens da Experiência n°2. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.

                                                                                                               
115   No
texto do catálogo, Rui Moreira Leite define os elementos que compõem a exposição:
“ao lado das obras em suporte tradicional, ampliações fotográficas documentam sua obra
arquitetônica, registram seus projetos em decoração de interiores, cenografia e monumentos.
As vitrines exibem volumes da biblioteca do artista, revistas e documentos originais que
permitem reconstruir seus interesses e ligações”. (LEITE, 2010, p. 25)

  103  
Imagem 18 - Fotografias da Experiência n°4 e retratos do artista (1965) e dos psicanalistas Julian Philips
(1972) e Wilfred R. Bion (1973). Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.

 
Algumas das palestras do CAM aparecem na forma de publicações posteriores, como
Onde o proletariado dirige, de Osório César, A União Soviética, um novo mundo, de
Caio Prado Júnior e Xangai, de Nelson Tabajara de Oliveira. Já os livros e registros
da temporada européia indicam as origens dos Salões de Maio, que também são
referendados a partir da inclusão de três pinturas participantes da edição de 1939:
Retrato de Mário de Andrade, Retrato de Oswald e Julieta Barbara (1939) e Mulher
Esperando (1937).

Imagem 19 - Vitrine com livros da temporada do artista na Europa. Fotografia: Rochelle Costi. Fonte:
MAM-SP.

  104  
No conjunto de obras em suportes tradicionais, há duas inclusões inéditas, segundo
revela o curador em visita guiada documentada por Cacá Vicalvi116. A primeira delas
é o Retrato de Jorge Amado, de 1945, nunca antes exposto por restrições impostas
pelo modelo e proprietário. Os escritor morreu em 2001 e seus herdeiros passaram a
permitir o empréstimo. Rui Moreira Leite pontua esta obra como pertencente ao
momento (a década de 1940) de maior expressividade no desenho e na pintura de
Flávio de Carvalho. Suas claras “linhas de força” a aproximariam da consagrada Série
Trágica, mas a promessa de abertura da nova sede do MAC no prédio do antigo
Detran-SP117 mantiveram a obra reservada e, por isso, indisponível.

Outra descoberta da pesquisa que ganha visibilidade pública na mostra é


Projeto para o viaduto do Chá, vista do Anhangabaú, de 1934. Feita em guache sobre
papel, nas proporções de 96,6 x 190cm, a pintura estava arquivada na mapoteca da
Escola Politécnica da USP e, dado à sua importância na atualização do levantamento
realizado por Rui Moreira Leite, foi eleita como obra de abertura da exposição.
Ladeando o texto curatorial, o Projeto... reúne as habilidades de Flávio de Carvalho
como artista e arquiteto, tem qualidades tanto pictóricas quanto projetuais. Em meio
ao ecletismo do entorno, impõe-se a hipótese de uma construção austera e arrojada.

Imagem 20 - Entrada da mostra retrospectiva do MAM, com Projeto para o viaduto do Chá... de 1934.
Fotografia: Rochelle Costi. Fonte: MAM-SP.
                                                                                                               
116
A visita guiada foi documentada a pedido do MAM e consta na biblioteca do museu para
consulta.
117
A sede começou a ser reformada em 2008 e teve vários anúncios frustrados de abertura.
Nesta ocasião, ela não aconteceria, mas, mesmo assim, não houve tempo hábil para efetivar o
empréstimo.

  105  
Se comparado com a vista bucólica do Viaduto Santa Efigênia à noite, do mesmo ano
de 1934 e também presente na mostra, o projeto revela as ambições de modernização
de Flávio de Carvalho. Sua visada como partido inicial da retrospectiva de Rui
Moreira Leite indica que, a despeito de todas as diacronias e discordâncias, é aquela
cidade, ainda pacata e provinciana, o eixo de criação do artista, lugar por onde transita
e em relação ao qual se posiciona, público que deseja atrair e provocar ao longo de
toda a sua vida e obra.

  106  
CAPÍTULO 3
FLÁVIO DE CARVALHO EM CURADORIAS CONTEMPORÂNEAS

“‘Revolucionário romântico’” (Denise Mattar)


“Exemplar para a articulação do moderno para o contemporâneo”
(Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris)
“Afeito às atitudes limites e à ação” (Victoria Noorthoorn)
“Artista crítico e político” (Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias)
“Artista-arquiteto”, “precursor de estratégias de deriva” (Lisette
Lagnado)
“Homem nu”, “artista contracultural” (Inti Guerreiro)

  107  
3.1 Da história das exposições às exposições históricas

Após versar, no capítulo anterior, sobre a incorporação da curadoria como um recurso


para a investigação de Rui Moreira Leite, voltada principalmente para o levantamento
e para a sistematização das obras e textos de Flávio de Carvalho, vale agora atentar
para um conjunto de iniciativas que, entre 1999 e 2010, propõem novas leituras sobre
o trabalho do artista valendo-se do meio e da linguagem de uma exposição.

Ao todo, serão analisadas sete mostras e, quando pertinentes, seus pontos de


contato com outras plataformas discursivas, como seminários, livros e revistas
especializadas. Em todas essas mostras e publicações, o exercício da curadoria é
abordado como um “campo prático da atividade crítica” (Cf. LAGNADO, 2008), ou
“discurso de leitura inventiva e poética de arte” (Cf. HERKENHOFF, 1998, p. 23).
No circuito institucional, que engloba demandas desde a mediação pedagógica até a
guarda e a catalogação de obras e projetos artísticos, a curadoria de exposições torna-
se “o principal lugar de trocas na economia política da arte, onde as significações são
construídas, mantidas e ocasionalmente desconstruídas” (FERGUSON,
GREENBERG, NAINE, 1996, p. 2)

Por isso, cresce na historiografia da arte um panorama de pesquisa vinculado à


história das exposições. Conforme apontam os editores de Thinking about exhibitions,
uma das obras de referência sobre o tema, “esta tática pode ser um dispositivo
compensatório, uma tentativa politizada de considerar os significados dos trabalhos de
arte de maneira interrelacionada e não como entidades individuais e absolutas”118
(Ibid., p. 2).

A história das exposições permite identificar estruturas de poder e ideologias


contidas nos enunciados da arte. Dá subsídios para a compreensão de como
instituições e principalmente museus arregimentam agendas públicas, constituem
acervos e promovem (ou não) reavaliações críticas da produção artística e intelectual.
Na perspectiva de Manuel J. Borja-Villel119, para quem “não existe apenas uma

                                                                                                               
118
Tradução livre da autora.
119
Diretor do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia e Presidente do International
Committee for Museums and Collections of Modern Art (Cimam).

  108  
modernidade, mas modernidades múltiplas e interrelacionadas” (Cf. BORJA-VILLEL
in WALLACE, 2010, p. 257), no “Sul geopolítico” do mundo, “onde as instituições
são frágeis” e ainda marcadas por reminiscências do eurocentrismo modernista,

(…) os museus [e a história da arte] têm a responsabilidade política


de propor e promover perspectivas outras, a partir de três aspectos:
narrativas alternativas à história moderna, novos meios de
intermediação e uma visão do espectador como agente, como um ser
político, nem passivo nem consumidor. (Ibid., p. 258)

A tomada de posição proposta permite que trajetórias como as de Flávio de Carvalho,


cuja radicalidade tensionou premissas artísticas e institucionais vigentes e por isso foi
freqüentemente negada no contexto do modernismo, sejam reconsideradas na
contemporaneidade. A conjuntura que estigmatizou e excluiu o artista, enquanto ele
produzia, e a incidência de seu vanguardismo sobre as gerações subseqüentes, que
levam críticos com Walter Zanini a identificá-lo como precursor de um debate
contemporâneo, são postas em perspectiva e motivam abordagens outras para
apresentá-lo e historiografá-lo no presente. A história das principais exposições
compostas por obras de Flávio de Carvalho, ou mesmo inspiradas nelas, nas últimas
quatro décadas, indica como todos esses significados foram paulatinamente
assimilados e alargados.

Eliane Robert Moraes associa Flávio de Carvalho à “parte maldita da


vanguarda brasileira” da primeira metade do século XX, dotada de características
como o ateísmo120, a “escatologia” e o “informe”121. A autora aponta que, assim como
as obras de Ismael Nery, Maria Martins e Oswaldo Goeldi, por exemplo, a produção

                                                                                                               
120
“Não é difícil identificar, na atitude do autor da Série Trágica, uma adesão irrestrita aos
princípios do ateísmo. Vale lembrar que, desde os primórdios, o pensamento ateu empreende
uma crítica radical da exploração do medo no momento da morte, com forte impacto nas
representações fúnebres” (Cf. MORAES in LAGNADO, 2009, p. 9) afirma Eliane Robert
Moraes no artigo “Mãe, medusa”, publicado no Caderno Videobrasil Clio, pátria, editado em
2009 por Lisette Lagnado.
121
Características como o ateísmo, a “escatologia” e o “informe” levam a autora a associar
Flávio de Carvalho a George Bataille, escritor de cujo livro A história do olho foi tradutora e
sobre quem publica artigos e apresenta trabalhos desde os anos 1990.

  109  
do artista foge à “tradição interpretativa do nosso modernismo à luz do nacional” e,
por isso, demanda a constituição de “outras chaves de leitura”122.

Além da Sala Especial da 17a Bienal de São Paulo (1983), outras mostras
foram escolhidas aqui para cobrir o período de 1999 a 2010. O conjunto, sempre
redutor em relação a um universo maior, considerou aspectos da dissidência de Flávio
de Carvalho em relação ao modernismo “oficial” brasileiro. Boa parte das exposições
apresenta a obra do artista como precursora de práticas e debates afinados com o
sentido de contemporaneidade. São elas: 100 anos do revolucionário romântico,
(1999); Da Antropofagia a Brasília (2002), MAM na Oca (2008); Grito e Escuta, 7a
Bienal do Mercosul (2009), A cidade do homem nu; Desvios de la deriva:
Experiencias, travesías y morfologías e Há sempre um copo de mar para um homem
navegar, 29a Bienal de São Paulo (2010). A abordagem crítica destas mostras ao
longo do capítulo, no entanto, não obedece a critérios cronológicos e sim a afinidades
conceituais.

Cabe a este tópico de abertura articular 100 anos de um revolucionário


romântico, curada por Denise Mattar no Centro Cultural Banco do Brasil, e MAM 60,
por Luiz Camillo Osório e Annateresa Fabris na Oca. Apesar de separadas por quase
uma década, ambas revertem efemérides em oportunidades para uma discussão sobre
a história da arte brasileira. Deste modo, apostando em estruturas e léxicos
radicalmente distintos – uma acessando Flávio de Carvalho desde uma perspectiva
monográfica e outra conectando-o a outros artistas modernos e contemporâneos –, as
duas curadorias mantêm-se dentro de uma perspectiva historiográfica.

A retrospectiva de Denise Mattar pertence a uma sequência de três mostras


realizadas pela autora por ocasião de centenários de morte de artistas modernistas.
Além da exposição dedicada a Flávio de Carvalho, a autora realiza homenagens
póstumas a Di Cavalcanti (Di – meu Brasil brasileiro e As mulheres de Di, Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro e CCBB do Rio de Janeiro, 1997) e Ismael Nery (A
poética de um mito, CCBB-RJ e Museu de Arte Brasileira da Faap, 2000).

                                                                                                               
122
No artigo “‘Sulrealismo’ à vista”, publicado no caderno “Ilustríssima”, da Folha de S.
Paulo, em 20 de fevereiro de 2011.
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2002201105.htm) (visualizado em 17/12/11).

  110  
No ano do centenário de Flávio de Carvalho, 100 anos de um revolucionário
romântico é a única mostra a ser concretizada123 com fins retrospectivos. Além da
exposição, o projeto promove também uma remontagem da peça O Bailado do Deus
Morto. Dirigida por José Possi Neto, seguindo o roteiro de 1933, a peça ganha um
preâmbulo em que o ator Cláudio Mamberti, no papel de Flávio de Carvalho, lê um
trecho do ensaio “A origem animal de Deus”, publicado em 1973 junto com o texto
do Bailado.

Para a reencenação, que aconteceu no teatro da Faap, em paralelo à abertura


da exposição124, são concebidas réplicas dos cenários e figurinos da peça que
inaugurou o Teatro de Experiência. Além de usados nos palcos, esses elementos
(máscaras de alumínio, por exemplo) são incorporados à exposição. Podemos dizer
que tal mistura entre obras originais e uma cenografia vincula 100 anos… a uma
matriz de “exposição como experiência estética e não como depositário de objetos”
(POINSOT in FERGUSON, GREENBERG e NAIRNE, 1999, p. 47)

É curioso notar, que, no entanto, talvez pela precariedade dos acervos da obra
do artista, os elementos cênicos – concebidos com a finalidade de promover uma
“experiência” de acesso e não substituir os objetos originais – terminaram sendo
incorporados à coleção do MAB-Faap. Ao final da retrospectiva e de sua itinerância,
o conjunto de máscaras, uma maquete da Fazenda Capuava e um saiote do New Look
passam a integrar a coleção do museu, tornando-se intermediários do legado
conceitual do artista.

A retrospectiva de Denise Mattar assume a galeria de arte como palco. Sua


leitura de Flávio de Carvalho não apenas remete ao ambiente de criação do artista,
mas reproduz elementos de sua configuração. A partir de uma “cenografia que vem de
dentro da obra”125, a curadora desenha a única exposição voluntária e radicalmente
cenográfica do conjunto analisado. O trânsito de Flávio de Carvalho entre diversas

                                                                                                               
123
Rui Moreira Leite teria sido convidado pelo Centro Cultural Fiesp, mas não dá
continuidade ao projeto e a sua retrospectiva acaba não acontecendo. Este cancelamento e a
ausência de iniciativas em homenagem ao centenário de Flávio de Carvalho em São Paulo
levam a Faap a itinerar “100 anos...” para a cidade.
124
Foram quatro dias de espetáculo, 19, 20, 26 e 27 de outubro. A mostra ficou em cartaz na
Faap entre 19 de outubro e 29 de novembro. Antes disso, passou pelo CCBB-RJ de 4 de
agosto a 26 de setembro.
125
Em entrevista à autora desta dissertação, em São Paulo, em 12/12/11.

  111  
linguagens, enspecialmente entre a arte, a arquitetura e o teatro, inspiram o projeto
expográfico de Gláucio Ribeiro126.

Ao chegar no CCBB-RJ127, a partir da escadaria central do edifício, podiam


ser avistadas as duas salas opostas ocupadas pela mostra. De um lado, uma grande
cortina colorida, inspirada na paleta usada na Fazenda Capuava, demarcava o limite
para a primeira sala. Do outro, um tótem feito em tamanho real a partir de uma
imagem do artista inaugurando a roupa do homem dos trópicos e um cenário similar
ao do Bailado Dorinha Costa (1951)128 anunciavam o conteúdo do segundo espaço.

Imagem 21 - Entrada de 100 anos de um revolucionário romântico, 1999. Fonte: Arquivo Denise Mattar.

Ao atravessar a cortina colorida e entrar na primeira sala, alcança-se o início da


exposição. Duas paredes diagonais feitas em alumínio – uma clara referência ao
apreço do artista pelo material e ao seu emprego nos ambientes da Fazenda Capuava –
                                                                                                               
126
O arquiteto também fez a cenografia de O Bailado do Deus Morto e os projetos
expográficos das retrospectivas de Di Cavalcanti e Ismael Nery.
127
As referências de montagem aqui utilizadas condizem com a exposição do CCBB. A
itinerância para a Faap ganha outro desenho arquitetônico, a partir da mesma lista de obras.
128
Feito para sinfonia de Camargo Guarnieri (Cf. MATTAR, 1999, p. 38).

  112  
recebem o texto curatorial e criam uma convergência visual para uma única obra
exposta neste ambiente de entrada, o Auto-retrato de 1965.

Imagem 22 – Primeira sala da mostra 100 anos.... Fonte: Arquivo Denise Mattar.

A obra antecipa um conjunto de treze pinturas das primeiras décadas de atividade do


artista. Dentre elas estão alguns retratos e os nus Anteprojeto para Miss Brasil e De
manhã cedo (1931). Em um dos extremos desta seqüência, figuram três obras
(Pensando, 1931; Retrato do arquiteto e pintor Carlos da Silva Prado, 1933 e
Viaduto Santa Ifigênia à noite, 1934) que integraram a primeira exposição individual
do artista, em 1934. Uma imagem de época que mostra Flávio de Carvalho em frente
a elas (Cf. MATTAR, 1999, p. 19) motiva a curadora a alinhá-las na parede da mesma
forma. O tipo de montagem irregular e fora do nível do olho do espectador (entre
1,4m e 1,5m, segundo a estatura de um adulto mediano) foge às convenções de uma
expografia de arte moderna e contemporânea mas, no esteio do vestígio histórico, é
aplicado sobre todo o conjunto.

  113  
Imagem 23 - Detalhe da expografia que cita a montagem da primeira individual de Flávio de Carvalho.
Fonte: Arquivo Denise Mattar.

 
A segunda sala da retrospectiva aborda a cenografia e a arquitetura de Flávio de
Carvalho e as vincula com sua produção pictórica e com as Experiências. As
presenças da Série Trágica (1947) e da escultura Auto-retrato psicológico (1930), e
também a menção à Experiência nº3, todas elas causadoras de grande repercussão na
imprensa, aparentemente desviam do assunto principal mas terminam por contribuir
com a noção de um pensamento espacial da ordem do acontecimento, da atuação
individual e da provocação de uma esfera pública de convívio e embate. Esta noção
teria a ver com uma “arquitetura quase virtual”129 ou, nas palavras de Rui Moreira
Leite, uma “arquitetura midiática”. O autor é apontado por Denise Mattar como uma
das fontes principais de sua pesquisa, junto com Luiz Carlos Daher e o biógrafo J.
Toledo130, que presta uma consultoria para a curadoria da mostra.

A montagem evolui em torno do cenário do Bailado Dorinha Costa e de suas


faixas de tecido retorcido. Além de contar com imagens dos únicos projetos do artista
construídos (a Vila América e a Fazenda Capuava), com uma maquete inédita da
Fazenda Capuava e com algumas plantas arquitetônicas, a sala dispõe de uma extensa
cronologia, na sua área mais iluminada, e de uma parede escura com quatro máscaras
do Bailado do Deus Morto com luz dramática vindo de trás delas.

                                                                                                               
129
Cf. MATTAR, 1999, p. 9.
130
No texto de apresentação do catálogo, Denise Mattar diz ter usado como fontes Volúpia da
forma e Arquitetura e Expressionismo, de Luiz Carlos Daher; o catálogo da Sala Especial da
17a Bienal de São Paulo, de Rui Moreira Leite e Walter Zanini, e o livro O comedor de
emoções, de J. Toledo.

  114  
Imagem 24 - Réplica do cenário de Bailado Dorinha Costa com máscaras do Bailado do Deus Morto ao
fundo. Fonte: Arquivo Denise Mattar.

Imagem 25 – Totem de Flávio de Carvalho lançando o New Look, detalhe do cenário do Bailado Dorinha
Costa e cronologia ao fundo. Fonte: Arquivo Denise Mattar.

A partir da pesquisa para a retrospectiva, que, conforme mencionado, apoia-se na


leitura dos três principais intérpretes do artista mas também em visitas à Fazenda
Capuava e acesso a arquivos nunca abertos131, Denise Mattar aproxima-se da família
Crissiúma e torna-se uma das intermediárias mais recorrentes entre a mesma e futuros
curadores e instituições interessados na obra de Flávio de Carvalho. A curadora volta
a expor sua obra em 2001, no contexto de uma mostra internacional sobre o
                                                                                                               
131
Estes arquivos permaneciam guardados em caixas na Fazenda Capuava. Segundo a
curadora, eles continham escritos, recortes de jornal e fotos de Flávio de Carvalho.

  115  
Surrealismo132. Na ocasião, agencia a reedição do livro Experiência nº2: uma possível
teoria e uma experiência: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi, pela Nau
Editora.

A versão que Denise Mattar concebe para a trajetória de Flávio de Carvalho


combina, portanto, sua leitura curatorial e a promoção de acesso a obras originais do
artista, como o livro supracitado e a peça Bailado do Deus Morto. No catálogo da
retrospectiva, a autora também dá visibilidade para uma seleção de artigos curtos133
do artista e para as considerações de outros cinco críticos convidados sobre aspectos
da carreira de Flávio de Carvalho. Ligia Canongia descreve “o artista plástico”; Tadeu
Chiarelli observa as experiências e “sua arte de ação”; Maria Izabel Branco Ribeiro
aborda o polemista e sua relação com a história oficial da arte; Valeska Freitas detém-
se sobre a relação de Flávio de Carvalho com as teorias psicanalíticas e
antropológicas. Um excerto do trabalho de Luiz Carlos Daher sobre a arquitetura
expressionista do artista é editado por Denise Mattar e Ana Maria Belluzzo e incluído
postumamente na compilação.

Entre as revisões extensivas deste autor e de Rui Moreira Leite e um crescente


processo de valorização do artista nos últimos anos, pode-se afirmar que Denise
Mattar cumpre o papel de estabelecer elos, mediar e divulgar arquivos e fontes de
pesquisa tendo como alvo não apenas o meio profissional da arte mas também o
público em geral. Semelhante missão define a coleção Espaços da arte brasileira (Ed.
Cosac Naify), composta por livros monográficos sobre artistas exponenciais134 do
século XX no país. Por isso, convém citar ainda a edição de um volume sobre Flávio
de Carvalho em 2000, com caderno de imagens e texto de Luiz Camillo Osório.

O autor elenca aspectos da atuação interdisciplinar de Flávio de Carvalho, mas


principalmente de sua obra plástica, que qualifica usando atributos como
“experimental”, dotada de “intensidade”, “ansiedade gráfica”, “expressividade”,

                                                                                                               
132
A mostra foi realizada nos CCBB do Rio de Janeiro e de São Paulo.
133
Selecionados e apresentados por Valeska Freitas.
134
Até 2009, a série havia publicado volumes sobre Milton Dacosta, Oswaldo Goeldi, Mestre
Valentim, Neoconcretismo (um movimento, única exceção), Alfredo Volpi, Joaquim Guedes,
Marc Ferrez, Sergio Camargo, Vital Brazil, Vilanova Artigas, Burle Marx, Franz Weissmann,
Jorge Guingle, Lucio Costa e Mira Schendel.

  116  
“concentração na figura humana e ênfase no gesto cromático”135. Pela
interdisciplinaridade e pelo vanguardismo em antecipar estratégias de trabalho e
debates contemporâneos, Luiz Camillo Osório reconhece a trajetória do artista como
uma “poética em trânsito”136.

Sua obra deve ser vista como parte de um passado indeterminado


que vem ganhando, com o passar dos anos, uma atualidade
renovada. Por mais isolada que fosse sua atuação, as pinturas, os
desenhos e, especialmente, o atrevimento experimental que
caracterizaram sua produção devem ser revistos no sentido de
ampliar nossas leituras do modernismo. (OSÓRIO, 2009, p. 11)

Passados oito anos, esta interpretação do autor sobre Flávio de Carvalho e sobre uma
necessidade de, à luz dele e de outros artistas, “ampliar nossas leituras do
modernismo”, é projetada na exposição MAM 60, da qual Luiz Camillo Osório é
curador junto com Annateresa Fabris137. Realizada em comemoração aos 60 anos do
Museu de Arte Moderna de São Paulo, a mostra parte do acervo e da história da
instituição, marcada por investimentos, hiatos e uma “complexidade intrinsicamente
moderna, que recusa modelos padronizados” (OSÓRIO, 2008, p. 101).

Refletir sobre a história do MAM é indiretamente refletir sobre o cenário da


arte brasileira dos últimos 60 anos, sobre políticas ou circunstâncias para a
constituição de acervos e sobre critérios cabíveis a uma separação ou a uma
continuidade entre os conceitos de moderno e o contemporâneo. Criado em 1948, por
Ciccilo Matarazzo, e sobrevivente a momentos de crise e mudanças estruturais, o
museu acumula hoje cerca de 5 mil obras. Este acervo atual reflete as
descontinuidades por que o MAM passou, uma vez que perdeu a propriedade e a
guarda das cerca de 2.000 obras modernas138 que, em 1963, foram doadas por seu
fundador para o MAC-USP. Com isso, dispõe apenas de um núcleo contemporâneo
iniciado em 1969, com a fundação do primeiro Panorama de Arte Brasileira.

                                                                                                               
135
Cf. OSÓRIO, 2009, p. 10.
136
O termo dá titulo ao texto de Luiz Camillo Osório (Cf. OSÓRIO, 2009, p. 7)
137
Ambos, a esta altura, eram membros do conselho consultivo do Museu de Arte de São
Paulo, junto com Lisette Lagnado.
138
Foram levadas para o MAC-USP 419 obras de Ciccilo, 19 obras de Yolanda Penteado e
1.234 obras adquiridas depois da constituição do MAM (Cf. TEIXEIRA DA COSTA in
FABRIS e OSÓRIO, 2008, p. 91).

  117  
Por meio desse breve histórico, vê-se que o MAM fez uma opção pela
contemporaneidade. Opção esta que terminou encurtando a travessia do moderno para
o contemporâneo na instituição e vinculando-os definitivamente dentro de sua prática
reflexiva. No colóquio internacional Histórias e(m) movimento, realizado também por
ocasião do aniversário do museu, durante o período da exposição MAM 60139, esta
travessia e estes vínculos são discutidos por críticos em quatro painéis temáticos. A
iniciativa enfatiza a especulação teórica que o museu deseja, mas, mais ainda, precisa
fazer para compreender e repertoriar criticamente sua história. Além disso, o colóquio
demarca o posicionamento do MAM em um debate maior sobre o estatuto e os
desafios do museu na contemporaneidade.

A mostra MAM 60 cumpre a função de contar a história do museu de modo a


tensionar suas narrativas canonizadas (principalmente através dos tombamentos
praticados em seu acervo) e “legitimar o risco experimental”140, tanto no campo
artístico quanto no curatorial. Trata-se de uma exposição histórica que, além de
elencar conteúdos, versa também sobre a tarefa de sintetizar a história de maneira
instável e temporária, pelo seu curto período de funcionamento, ante a permanência e
a solidez das narrativas de uma coleção. Ao reinvidicar um território de ação
vinculado à “lógica poética de produção de diferenças”, os curadores sinalizam o
interesse em provocar o convívio e o “enfrentamento” entre o “já dito” e o “não-
dito”141 daquela história institucional.

O fato de a mostra acontecer na Oca, espaço onde funcionou o museu


temporariamente, em 1958, e o fato de dispor de obras “emblemáticas” do seu
                                                                                                               
139
A exposição ficou aberta a visitação de 16 de outubro a 14 de dezembro de 2008. O
colóquio internacional aconteceu no auditório do MAM, nos dias 7 e 8 de novembro do
mesmo ano. Foi dividido em quatro mesas: “É tudo contemporâneo?”, coordenada por Lisette
Lagnado, com participações de Cristina Freire e Zdenka Badovanic; “Declinações do
moderno: América Latina”, de Annateresa Fabris, com Maria Lúcia Bastos Kern e Iclea
Maria Borsa Cattani; “O moderno hoje: desafios e dilemas”, de Luiz Camillo Osório, com
Delfim Sardo e Antonio Cícero; e “Arte contemporânea e Naura: a expansão do território do
museu”, de Felipe Chaimovich, com Laurent Le Bon e Teresa Luesma. Todas as palestras
foram publicadas em livro.
140
Cf. OSÓRIO in FABRIS e OSÓRIO, 2008, p. 109.
141
Luiz Camillo Osório defende que “neste espaço de liberdade, de exploração do ainda não
sabido, deveria ser possível transformar o padrão mimético (...) na lógica poética da produção
de diferenças”. O museu, para ele, deveria ser um “espaço, portanto, em que o já dito e o não-
dito estão se enfrentando sem se excluírem, demandando do público discernimento e
disponibilidade para o novo, tão próprios à função produtiva do espectador (e do juízo
estético)”. (Cf. Ibid., p. 113).

  118  
“primeiro acervo”142, doado para o MAC, em 1963, rememoram o passado
“subtraído” do MAM. O início da exposição aborda este período de instabilidade,
entre final dos 1950 e meados dos 1960, a partir de uma linha do tempo e de um
conjunto de documentos, como cartas, cartazes e catálogos originais da época.
Algumas obras do acervo do MAC já aparecem nesta abertura, outras vão sendo
inseridas ao longo da expografia da mostra, desenhado por Felipe Tassara, Maria
Moon, Iara Terzi Ito e Tânia Mara Menecucci.

A escolha de Flávio de Carvalho e Alfredo Volpi como artistas-chave da


exposição é mais um indício de uma aposta curatorial no dissenso e na pluralidade,
em uma abordagem compatível com a ideia de “moderno(s) e contemporâneo(s)”.
Nenhum dos dois artistas têm grande representatividade da coleção do MAM143, mas,
segundo Luiz Camillo Osório no texto do catálogo, são “exemplares para se pensar
‘ressonâncias’ do primeiro moderno no contemporâneo” (Ibid., p. 113). Tendo
atravessado os limites do modernismo histórico sem aderir a uma “racionalidade
poética” dominante nos anos 1950, ambos são “fundamentais para discutir-se a
precariedade e a experimentação poética que tanto nos singularizou” (Ibid., p. 109).

O segundo e último andar da Oca é ocupado por núcleos de obras articuladas a


partir de Flávio de Carvalho e Alfredo Volpi. Além deles, também arregimentam
agrupamentos curatoriais, em menor escala e todos concentrados no primeiro andar,
os artistas Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, Germano Lorca, Lívio Abramo,
Leonilson, Léon Ferrari, Mira Schendel e Almir Mavigner. No material gráfico da
exposição, que inclui catálogo e folder144, uma espécie de constelação de datas
espacializadas em torno dos nomes destes artistas sugere uma quebra da leitura
cronológica e ilustra parte imprescindível do argumento curatorial definido por
Annateresa Fabris e Luiz Camillo Osório.

                                                                                                               
142
Em ensaio extenso publicado no catálogo da mostra, a curadora Annateresa Fabris analiza
o que chama de “primeiro acervo” do MAM. (Cf. FABRIS in FABRIS e OSÓRIO, 2008, pp.
15 – 90).
143
De Flávio de Carvalho, o acervo do MAM possui a pintura Auto-retrato, de 1965; quatro
desenhos em nanquim intitulados Mulheres, sendo dois de 1966 e dois de 1968; os desenhos
Sem título (1966) e Pássaro Cibernético (1969). De Alfredo Volpi, a coleção dispõe de duas
têmperas e dois óleos: Mastros (1970), Portais e Bandeirinhas (déc. 1960), Mulata (1927) e
Mogi das Cruzes (1932 / 1933).
144
De autoria de Carlito Carvalhosa (Duas águas) e João Doria (Editora Anônima).

  119  
A proposta é que se vejam essas obras inseridas dentro de uma
temporalidade heterogênea, assumidamente desencantada, não
obstante a crença na possível instauração de censuras na história,
que fundam, no indivíduo e na sociedade, uma potência nova
relativa à capacidade de tornar-se outro. (p. 121)

Deste modo, dois aspectos da obra de Flávio de Carvalho são designados como
geradores de “potências” que se projetam sobre o presente e aderem à produção
contemporânea. Primeiro, o “estranhamento figurativo” do artista e características
como a “materialidade” e a “sensualidade” motivam uma aproximação de desenhos
seus145 com trabalhos de Wesley Duke Lee (A zona: preparation drawing for a
drawing, 1966 e Retrato de Lydia ou A respeito do filho, 1969 / 1970), Roberto
Magalhães (Pandora libertando os males do mundo, 1963 e Auto-retrato, 1965),
Marcelo Grassman (Incubus Sucubus nº2, 1953 e Noturno, 1955), Marcelo Solá (Sem
título, 1997) e Ernesto Neto (O tempo e o sono vazio, 2000).

O conjunto cultiva afinidades relativas à prática ou ao menos à noção de


desenho e promove deturpações da forma ou do assunto tratado. Quebrado o
naturalismo da mímese, torna-se comum entre elas a indicação de um gesto exterior à
obra, de um corpo inquieto para executá-la. Isso também acontece nas oito pranchas
da Série Trágica – minha mãe morrendo, que ganha especial destaque na montagem e
conecta este grupo ao anterior.

Algumas leituras da obra permitem uma especulação sobre o conceito de


“estranhamento figurativo”, apenas sugerido pela curadoria, mas não desenvolvido
textualmente. No livro monográfico sobre o artista, Luiz Camillo Osório aponta uma
submissão da representação formal ante a apresentação de uma simbologia e de um
estado de espírito, ao afirmar que “esses desenhos não representam a morte, (…) é ela
mesma que está na nossa frente, entranhada silenciosamente no papel” (Cf. OSÓRIO,
2009, p. 40).

                                                                                                               
145
Todos pertencentes ao acervo do MAM, exceto a Série Trágica, que integra a coleção do
MAC.

  120  
Verônica Stigger146, no ensaio Retratação da morte: a Série Trágica de Flávio
de Carvalho, destaca a inconclusividade da cena narrada147 e o foco no processo em
detrimento da composição final de uma imagem. Já a interpretação dada por Eliane
Robert Moraes associa o ateísmo de Flávio de Carvalho a gestos, como o da Série
Trágica, de confronto dos “imutáveis dogmas cristãos [o medo da morte sendo um
deles] valendo-se de uma escandalosa lucidez.” (Cf. MORAES in LAGNADO, 2009,
p. 10)

Considerando princípios como os apontados pelas autoras, relativos à conduta


do artista e à forma como participa da agenda pública de seu tempo, pode-se atrelar
este trabalho também ao segundo núcleo que a obra de Flávio de Carvalho origina na
exposição. Pensado a partir da “atuação experimental a contrapelo das convenções”, o
agrupamento vincula menções das Experiências, marcadas pela “hibridização dos
meios” e pela “inserção do artista na cidade” 148, com uma genealogia de intervenções
urbanas, como Classificados (Paulo Bruscky e Daniel Santiago, 1977), e gestos de
ruptura simbólica, como Repressão outra vez, Eis o saldo (Antonio Manuel, 1968) e
Ato Único I e II (Iran do Espírito Santo, 2001).

Nos trabalhos acima, segundo Luiz Camillo Osório, “a estética, a ética e a


política misturam-se e potencializam-se” (Cf. OSÓRIO in FABRIS e OSÓRIO, 2009,
p. 119). O termo “poéticas em trânsito” que o curador usara para identificar a obra de
Flávio de Carvalho no livro de 2000 é agora empregado no plural para designar
também aqueles que, na exposição, tangenciam sua problemática artística. No âmbito
da mostra, estes “trânsitos” denotam deslocamentos espaciais e metodológicos, mas,
principalmente, temporais. Esta abertura cronológica para a inscrição de personagens
e sentidos outros na história da arte brasileira – do modo como ela é contada e
armazenada no acervo da instituição, sobretudo – inspira, ou ao menos antecede,
iniciativas a serem analisadas a seguir neste capítulo.

                                                                                                               
146
A autora concluiu em 2010 pós-doutorado no MAC-USP sobre as Experiências de Flávio
de Carvalho. Já publicou artigos sobre o artista, como Retratação dentro da morte: a Série
Trágica de Flávio de Carvalho (Revista Crítica Cultural, vol. 4, N°2, 2009) e “A vacina
antropofágica” (Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: Realizações
Editora, 2011).
147
“A pequena narrativa criada por Flávio de Carvalho – em que cada desenho é o registro de
um instante – se exime de chegar a seu termo. (STIGGER, 2009, p. 6)
148
Cf. OSÓRIO in FABRIS e OSÓRIO, 2009, p. 119.

  121  
3.2 Correspondências latino-americanas

Entre 2009 e 2010, dois dos principais eventos do meio artístico brasileiro, a 7a Bienal
do Mercosul (2009) e a 29a Bienal de São Paulo (2010), inserem Flávio de Carvalho
em seus partidos curatoriais. Antes mesmo de versar sobre os motivos de inclusão
específicos a cada um dos casos citados, vale notar que sua presença em ambas as
mostras denota o desejo de afirmar sua extemporaneidade como moderno e seu
vanguardismo em relação à arte contemporânea. Mais ainda, vale perceber a forma
como Flávio de Carvalho é situado como deflagrador e participante de discussões
relativas à identidade latino-americana que mobilizam, principalmente durante os
regimes ditatoriais dos anos 1960 e 1970, a constituição de focos de criação e
resistência no continente.

Tanto a Bienal do Mercosul quanto a Bienal de São Paulo investem na


conexão entre estes focos e constituem, através de aproximações expográficas e
editoriais, uma rede interligada de artistas, obras e eventos de diferentes países
desarticulados pela história política da América Latina. Resguardadas as diferenças
temáticas e metodológicas entre estas duas exposições, vale observar como ambas
enfatizam uma integração político-cultural latino-americana e defendem a
contextualidade das categorias e urgências locais na escritura curatorial e histórica149.

Na origem deste debate, é possível localizar o projeto da Bienal Latino-


Americana, de 1978, e o encontro de críticos, de 1980, ambos formulados por Aracy
Amaral. Também podemos mencionar as duas Bienais de São Paulo organizadas por
Walter Zanini, em 1981 e 1983, e fortemente influenciadas pelo ambiente de
discussão e as “recomendações” do evento de 1980 no que concerne a estimular
“aportes dos países latino-americanos” (ZANINI, 1981, p. 19).

                                                                                                               
149
Este assunto é largamente abordado pelo artista e crítico uruguaio Luis Camnitzer em
Didactica de La liberación: arte conceptualista latinoamericano, publicado em 2008. Outra
autora dedicada a esta discussão é Mari Carmen Ramirez, em ensaios como “Tactics for
Thriving on Adversity: Conceptualism in Latin America, 1960-1980" e “Brokering Identities:
art curators and the politics of cultural representation”, publicados no livro da exposição
Global Conteptualism: points os origin 1950s – 1980s, de 1999 (ALBERO, CAMNIZTER e
WEISS, 1999), e na coletânea Thinking about exhibitions, de 1996 (FERGUSON, NAIRNE e
GREENBERG, 1999), respectivamente.

  122  
Por fim, é preciso mencionar o papel da recente criação da Rede Conceitualismos
do Sul, plataforma de cerca de 45 artistas e pesquisadores150 de todo o continente,
criada no fim de 2007 devido à “necessidade de intervir politicamente nos processos
de neutralização do potencial crítico de um conjunto de ‘práticas conceituais’ que
passaram a acontecer na América Latina a partir de 1960” (CANAL
CONTEMPORÂNEO, 2007), como afirma um documento assinado por 25 de seus
membros e publicado no site da organização.

Não existem vínculos diretos entre a Rede Conceitualismos do Sul e a 7a Bienal


do Mercosul ou a 29a Bienal de São Paulo. A organização e os eventos mencionados
estão unidos apenas por alguns interlocutores em comum – como o artista Paulo
Bruscky que proferiu palestra no seminário promovido pela Rede no MAC-USP, em
abril de 2008151, e depois apresentou obras nas duas Bienais – e, talvez, acima de
tudo, um mesmo “espírito do tempo”, em que mantêm-se latentes questões sobre as

                                                                                                               
150
Em texto publicado no site Canal Contemporâneo em 2009, em que se comentava o
episódio do incêndio do acervo de Helio Oiticica, são apresentados os seguintes integrantes
da Rede Conceitualismos do Sul: “Halim Badawi (Bogotá), Joaquín Barriendos (México),
Assumpta Bassas (Barcelona), Patricia Bentancur (Montevidéu), Marcus Betti (São Paulo),
Carina Cagnolo (Córdoba), Fernanda Carvajal (Santiago/Buenos Aires), Graciela Carnevale
(Rosario), Jesús Carrillo (Madri), María Fernanda Cartagena (Quito), Helena Chávez Mac
Gregor (México), Lía Colombino (Assunção), María Clara Cortés (Bogotá), Fernando Davis
(La Plata/Buenos Aires), María de los Ángeles de Rueda (La Plata), Felipe Ehrenberg (São
Paulo), Marcelo Expósito (Barcelona/Buenos Aires), Fernando Fraenza (Córdoba), Cristina
Freire (São Paulo), Pilar García (México), Cristián Gómez Moya (Santiago do Chile), David
Gutiérrez (Bogotá), María Iñigo (Madri), Jens Kastner (Viena), Syd Krochmalny (Buenos
Aires), Ana Longoni (Buenos Aires), Miguel López (Lima/Barcelona), William López
(Bogotá), Octavio Mercado (México), André Mesquita (São Paulo), Fernanda Nogueira (São
Paulo/Barcelona), Soledad Novoa (Santiago do Chile), Luisa Ordóñez (Bogotá), Clemente
Padín (Montevidéu), Juan Pablo Pérez Rocca (Buenos Aires), Alejandra Perié (Córdoba),
Júlia Rebouças (Minas Gerais), Cristina Ribas (Rio de Janeiro), Suely Rolnik (São Paulo),
Juan Carlos Romero (Buenos Aires), Sylvia Suárez (Bogotá), Mabel Tapia (Paris/Buenos
Aires), Emilio Tarazona (Lima), Paulina Varas (Valparaíso), Ana Vidal (Bahía Blanca),
Jaime Vindel (León/Madri), Rafael Vital (São Paulo), Isobel Whitelegg (Londres)”. (CANAL
CONTEMPORÂNEO, 2009)
(http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/002592.html - visualizado em 21 de
novembro de 2011)
151
O primeiro encontro da Rede aconteceu entre 23 e 25 de abril de 2008, no auditório do
MAC-USP, sob a coordenação das Profa. Cristina Freire (USP) e da Profa. Ana Longoni
(Universidade de Buenos Aires). Dentre os palestrantes, estavam as coordenadoras; os artistas
Felipe Ehrenberg, Clemente Padin, Graciela Carnevale (Tucuman Arde) e Paulo Bruscky; e
os pesquisadores Fernando Davis, Soledad Navoa Danoso, Miguel López, Emílio Tarazona,
Antoni Mercader e Suely Rolnik. Os anais do seminário foram publicados em 2009 pela
Annablume Editora. Neste mesmo ano, aconteceu um segundo seminário, no Centro Cultural
Parque de España, em Rosário, Argentina.

  123  
quais debruça-se o meio crítico do qual fazem parte seus principais autores e
articuladores.

Essas questões concernem à retomada de um projeto de América Latina e, com


isso, à “emancipação” simbólica (cultural e política) do continente em relação às suas
antigas metrópoles e/ou aos centros hegemônicos do mundo. Nesse momento, a
projeção internacional de uma “reconquista” dos modelos institucionais e da história
da arte latino-americanas aparece como missão primordial e estruturante de inúmeras
iniciativas teórico-práticas no continente, como as curadorias das Bienais do Mercosul
e de São Paulo. Segundo pontua Mari Carmem Ramírez, a globalização e o
multiculturalismo deslocam a função do curador de “árbitro estético de bastidor” para
uma espécie de mediador de padrões identitários remotos, “um personagem
fundamental no cenário da política global” (RAMIREZ in FERGUNSON,
GREENBERG e NAIRNE, 1999, p. 22)

A trajetória artística de Flávio de Carvalho alimenta esse ideal de “mediação”


e “reconquista” de diversas maneiras, devido a sua constante proposição de uma
cidade e de um homem vanguardistas latino-americanos libertos das heranças da
colonização. Vale apenas relembrar que nos casos das duas Bienais aqui analisadas —
assim como na Sala Especial de 1983, precursora deste modelo, e na mostra MAM 60,
que o adota —, a periodicização acurada da obra do artista, em sua condição limítrofe
em relação ao fim do moderno, dá espaço às articulações que sustenta por afinidade e
“empatia”152 com o contemporâneo.

As “vizinhanças” criadas nas Bienais de 2009 e 2010, especificamente, são


enfáticas na sugestão de um Flávio de Carvalho de cunho “conceitualista”, visto que
exposto ao contato com exponentes da geração que motivou a criação deste termo
pela crítica local em diferenciação ao norte-americano e inglês “arte conceitual”.

El conceptualismo, no siendo un movimiento formalista, es mucho


más amplio que el arte conceptual o que cualquier movimiento que
lo procedió. (…) El conceptualismo empezó en forma borroza y
mucho antes, y fue una trama enorme de influencias y fuerzas
históricas, culturales, políticas y economicas (CAMNITZER, 2008,
p. 46)

                                                                                                               
152
Cf. MEIJERS in FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1996, p. 8

  124  
O postulado de Luis Camnitzer ratifica a inscrição contextual do termo e suas
conseqüentes filiações aos movimentos mútuos de cooperação e resistência de um
artista em relação ao seu lugar, seja ele físico ou simbólico, de estada ou de fala. Esta
definição de “conceitualismo” também representa significativa flexibilização para
uma discussão que, em sua origem, denota um alinhamento teórico, ou até
características de um estilo, circunscritos à Inglaterra e aos Estados Unidos dos 1960 -
1970. Apresentado no plural (“conceitualismos”) e de maneira relativa, o termo
ampara e, de certo modo, inspira a aproximação com a obra de Flávio de Carvalho,
mesmo quando ela desloca a discussão para um passado mais remoto, para o anos
1930, para a São Paulo da Experiência nº2.

A 7a Bienal do Mercosul utiliza o marco teórico dos “conceitualismos” para, a


partir deles e do “experimentalismo” por eles praticado, principalmente durante os
regimes ditatoriais deflagrados nos anos 1960 e 1970, adensar suas hipóteses sobre a
abertura e a valoração dos processos de criação do artista. O projeto, apresentado
pelos curadores Victoria Noorthoorn e Camilo Yáñez, e selecionado via concurso
aberto dentre 67 propostas de 24 países153, intitula-se Grito e escuta. Segundo texto de
apresentação do catálogo, a edição apóia-se num “giro metodológico” que posiciona
“o olhar artístico no centro de cada uma das exposições e programas”154
(NOOTHOORN e YÁNEZ, 2009, pp. 21-22)

Na prática, esse “giro” motiva a constituição de uma equipe de curadoria


composta por teóricos e artistas. Além da dupla de curadores gerais – ela argentina e
ele chileno –, participam os artistas brasileiros Arthur Lescher, Laura Lima e Lenora
de Barros; o professor, desenhista e escritor colombiano Bernardo Ortiz; o artista
                                                                                                               
153
Estes dados relativos ao concurso da 7a Bienal do Mercosul foram divulgados pelos
veículos de imprensa e pelo site da própria instituição à época. A fonte aqui usada é a
entrevista concedida por Victoria Noorthoorn e Camilo Yáñez ao Aplauso
(http://www.aplauso.com.br/site/portal/entrevista_bienal_pop.htm), portal de internet
dedicado à agenda cultural de Porto Alegre.
154
Para dar contexto a esta matriz metodológica, vale apenas pontuar a iniciativa do curador
Jens Hoffmann, que, após visitar a Documenta 11 em companhia do artista Carsten Höeler,
formulou o projeto The next documenta should be curated by an artist. Concebido como uma
plataforma discursiva baseada no E-Flux, o projeto envolveu depoimentos de 25 artistas de
todo o mundo, entre junho e outubro de 2003, e teve seu resultado impresso num livro editado
pela Revolver, em novembro do mesmo ano. (http://www.e-flux.com/projects/next_doc/)
(vizualizado em 25 de novembro de 2011)

  125  
mexicano Erick Beltran; o professor e artista chileno Mario Navarro; e os artistas
argentinos Marina de Caro e Roberto Jacoby.

Cada um deles envolve-se com um ou no máximo dois itens do programa


geral, que integra o Projeto Pedagógico (Marina del Caro), a Curadoria Editorial
(Erick Beltran e Bernardo Ortiz), a Radiovisual (Lenora de Barros e Arthur Lescher) e
sete mostras: Absurdo (Laura Lima), Árvore Magnética (Mario Navaro), Biografias
Coletivas (Camilo Yáñez), Projetáveis (Roberto Jacoby), Texto Público (Arthur
Lescher), Ficções do Invisível e Desenho das idéias (Victoria Noorthoorn).
Naturalmente, além de assinar exposições específicas, os curadores gerais também
acompanham o desenvolvimento dos demais programas e exposições e balizam o
decorrer de uma Bienal que, apoiada em sua compartimentação espacial155, autoral e
expográfica, enuncia sua vocação ensaística e especulativa.

A despeito do modelo de “grande exposição” que comumente associa as


Bienais à transparência e à universalidade de espaços monumentais, o partido
curatorial de Grito e escuta reinvidica as relações de alteridade e o ambiente de trocas
(entre artistas/pesquisadores de países latino-americanos diferentes, entre artistas e
pesquisadores) que o constituem. Este esforço de desnaturalização da mecânica de
trabalho que costuma reservar ao artista a tarefa de criar obras e ao curador a de
conceber mostras resulta numa ampliação da linguagem expográfica. O conjunto
cobre desde mostras convencionais até a “instalativa” Absurdo, de Laura Lima, em
que o projeto de montagem pode ser considerado uma obra da artista/curadora.

Desenho das ideias, curada por Victoria Noorthoorn no espaço do MARGS,


está no extremo “convencional” desta tipologia de exposições. A mostra ocupa os
dois andares do museu sem o intuito de promover rupturas ou inovações na forma de
apresentar obras. Segue, portanto, um vocabulário expográfico tradicional para reunir
cerca de 30 nomes e suas referências basilares para uma história recente da relação
dos artistas com os projetos, entre a formulação utópica e as intervenções sociais
reais. Segundo a curadora, a mostra “funciona como uma caixa de ressonância que

                                                                                                               
155
O evento ocupou cinco galpões desativados às margens do Rio Guaíba e pôde extender-se
por demais equipamentos culturais, como o Santander Cultural e o Museu de Arte do Rio
Grande do Sul (MARGS), além de mobilizar o espaço público da cidade.

  126  
buscou amplificar o som de uma multiplicidade de ideias e questionamentos
plasmadores sobre nossa mesa de trabalho”.

O sentido de “desenho” sugerido no título é naturalmente ampliado de modo a


abarcar outras categorias da produção artística e a mimetizar o que ora sintetizei em
torno da noção de projeto, mas que o texto curatorial opta por definir como “veículo
portador de ideias” (NOORTHOORN, 2009, p. 23). Ao longo das sete salas de
exposição, vê-se claramente o esforço de promover “conversas”156 entre artistas de
origens e gerações diferentes e confrontar seus processos de criação. Para Victoria
Noorthoorn, essas aproximações tornam-se pertinentes uma vez que existe em comum
entre todos “o convite aos deslocamentos da percepção e aos questionamentos das
categorias estabelecidas – de tempo, espaço e conhecimento –, assim como o
oferecimento de perspectivas alternativas ao status quo” (Ibid., p. 50).

Imagem 26 - Mostra Desenho das ideias, 7a Bienal do Mercosul. Fonte: Fundação Bienal do Mercosul.

O percurso iniciado no piso térreo com aproximações entre Cildo Meireles, Leon
Ferrari, Jorge Carballo, Abraham Cruzvillegas, Magdalena Jitrik e Johanna Calle ou
Anna Maria Maiolino, Maria Lúcia Cattani, Elisa O’Farrell & Javier Bustos, Linda
Matalon, Juan Downey, Delcy Mirelos e Henri Michaux culmina nas vizinhanças
pontuais das salas menores do primeiro andar, dentre elas a que aproxima Flávio de
Carvalho a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Dado como precursor da
performance na América Latina, em sua especificidade de “comentar a realidade
imperante” (Ibid., p. 68), Flávio de Carvalho é representado pela Experiência n°2
                                                                                                               
156
Na 6a Bienal do MERCOSUL, em 2007, os curadores Gabriel Perez-Barrero e Alejandro
Cesarco realizaram a exposição Conversas, estruturada a partir da escolha de nove
artistas/obras chave e da constituição, a partir deles, de núcleos de obras com os quais
potencialmente dialogavam, segundo indicações dos artistas e curadores.

  127  
(1931), no catálogo, e inserção de réplica do traje e de fotografias de registro da
Experiência n°3 (1956), na exposição.

Imagem 27 - Sala dedicada a Paulo Bruscky e Edgardo Antonio Vigo. Fonte: Fundação Bienal do Mercosul.

A categoria performance – mesmo que o artista não adotasse essa terminologia – e a


ocupação dos veículos de comunicação de massa, como os jornais em que fora
articulista ou os programas de TV em que apareceu vestindo o New Look, conectam
Flávio de Carvalho aos dois artistas da geração 1960-1970157, escolhidos por
desenvolverem seus “conceitualismos” em cidades for a dos centros hegemônicos.
Paulo Bruscky nasceu e trabalha até hoje em Recife e Edgardo Antonio Vigo
produziu até sua morte, em 1997, em La Plata.

Estar “à margem”, tanto geográfica quanto simbolicamente, no que concerne


aos procedimentos, à “atitude” e à “ação”158 aplicadas ao trabalho, é mais uma
condição a partir da qual se pode estabelecer vínculos entre os três artistas. Ambos
                                                                                                               
157
Esta geração teria começado a produzir um pouco antes ou simultaneamente aos regimes
ditatoriais latino-americanos. Dentre artistas que pertencem a ela e são mencionados no texto
de Victoria Noorthoorn sobre Desenho das idéias, podem ser citados: Anna Maria Maiolino,
Antonio Manuel, Artur Barrio, Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape (Brasil); Alberto
Greco, Eduardo Costa, Marta Minujin, Pablo Suarez, Raul Escari e Roberto Jacoby
(Argentina). Vale notar que vários destes nomes integram as listas de artistas da 7a Bienal do
Mercosul e também da 29a Bienal de São Paulo.
158
Uma passagem de Edgardo Antonio Vigo, citada no catálogo de Grito e Escuta, aponta sua
oposição a uma idéia de obra fechada e postula uma noção de arte ligada primeiro a uma
“atitude limite” e logo a uma necessidade de “ação” (NOORTHOORN, 2009, p. 68).

  128  
promovem, ou ao menos almejam promover, “mudanças radicais em seus contextos”,
sustentando a atitude não resiliente e provocadora dos vanguardistas, mas, ao mesmo
tempo, considerando sua responsabilidade e seu comprometimento com o lugar e com
a coletividade da qual fazem parte. (Ibid., p. 69)

Na exposição, vê-se um único exemplo de ação de Flávio de Carvalho, a


Experiência nº3, abrir espaço para uma ocupação profusa de obras de Edgardo
Antonio Vigo e Paulo Bruscky. A performance coletiva Poesia Viva, articulada pela
primeira vez em 1977, ladeia a caminhada de apresentação do traje de verão numa
espécie de ante-sala. Os registros das duas ações, além de dispor de afinidades
categóricas e processuais – afinal, trata-se de duas performances públicas a partir de
uma roupa não convencional e do ato de vesti-la –, evidenciam um intervalo caro à
argumentação da curadoria entre uma formulação individual e sua vivência em escala
social.

Victoria Noorthoorn declara, portanto, seu interesse por uma atividade


artística interdisciplinar, estendida desde a criação até a produção, a gestão, a
curadoria e a edição159. É em torno dessa característica que a curadora promove o
convívio entre Flávio de Carvalho e o que já conhecemos de sua “arte total”, Edgardo
Antonio Vigo e sua definição de um artista “projetista-programador”160 e Paulo
Bruscky, que, conforme os demais, desdobra sua atuação em diversas mídias e
disciplinas. A sala dedicada a ele e a Edgardo Antonio Vigo abarca um pouco de
poesia visual, arte sonora, performance, “arte classificada”161 e de exposições
organizadas por cada um deles.

No centro da sala, uma grande mesa com documentos de arquivos e cadeiras


para leitura reúne originais das correspondências trocadas ao longo de vários anos
pelos dois artistas. “Arte correio e a grande rede: hoje a arte é esse comunicado” (Cf.
BRUSCKY in COTRIM e FERREIRA, 2006, p. 374), diz o título de um texto
divulgado por Paulo Bruscky em 1976. Por meio de uma rede de intercâmbios
estendida pela América Latina e pelo mundo, artistas como Edgardo Antonio Vigo e

                                                                                                               
159
NOORTHOORN, 2009, p. 69
160
VIGO in NOORTHOORN, 2009, p. 43
161
Intervenções e propostas realizadas no caderno dos Classificados de um jornal de grande
circulação.

  129  
Paulo Bruscky puderam retomar as “principais funções” da arte: “informação,
protesto e denúncia” (Ibid., p 374).

Os atos de comunicação, interpessoais ou mesmo públicos, como a


performance O que é arte? Para que serve? (Paulo Bruscky, 1978) ou a série de
Señalamientos (Edgardo Antonio Vigo, 1968), demonstram o desejo de estabelecer e
ocupar um espaço social, sem, para isso, incorrer em prescrições ou didatismos. Nessa
trajetória de interpelações entre ambos os artistas, assim como em Flávio de Carvalho,
a dúvida e a inconclusividade propiciam um espaço para reações ou respostas
individuais às premissas dos trabalhos.

Pela suspeita sobre hierarquias de fala e escuta (entre indivíduo e coletividade;


entre artistas da periferia e do centro) e pelo constante postulado de uma tomada de
posição na esfera pública, os três artistas de fato contribuem para um projeto de
integração e conseqüente soberania política e cultural na América Latina.

Semelhante afirmação de um conteúdo ideológico comparece na curadoria da


29a Bienal de São Paulo, nas inserções que promove de trabalhos tanto de Flávio de
Carvalho quanto de Paulo Bruscky, dentre 78 artistas e grupos latino-americanos162
dos 158 totais163. Em comum nos dois eventos, além de Flávio de Carvalho e Paulo
Bruscky, figuram, com obras “históricas”, Anna Maria Maiolino, Milton Machado
(Brasil) e Marta Minujin (Argentina); e, com obras inéditas, Ana Gallardo, Eduardo
Navarro (Argentina), Henrique Oliveira e Jonathas de Andrade (Brasil).

Há, no entanto, uma diferença fundamental entre ambas as iniciativas,


decorrente das especificidades de suas missões e áreas de alcance. Esta provém dos
estatutos das fundações que as promovem. Enquanto a Bienal do Mercosul tem seu
perfil vinculado à criação de um acordo commercial e econômico intra-continental

                                                                                                               
162
Destes 78 artistas e grupos latino-americanos, 51 são brasileiros.
163
Este número – 158 artistas – refere-se à quantia divulgada pela Fundação Bienal de São
Paulo para designar os participantes com ocupações permenentes na expografia da mostra.
Além deles, devem ser contabilizados artistas de diversas áreas que integraram a programação
de eventos dos Terreiros.

  130  
(entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), a Bienal de São Paulo nasce e edifica-
se a partir de uma “vocação internacional”164.

Espelhada no modelo da Bienal de Veneza, a única anterior a ela no mundo, a


exposição criada por Ciccillo Matarazzo como evento maior do Museu de Arte
Moderna165, contou até 2006166 com o sistema de representações nacionais em sua
estrutura. Isso significa que até muito pouco a Bienal de São Paulo reproduziu,
através da quantidade de artistas de cada país e da sofisticação material das obras que
os mesmos apresentam167, a ordem de grandeza dos países e de suas produções
artísticas no “tabuleiro” da geo-política da arte.

À luz desse percurso histórico, a decisão dos curadores gerais Agnaldo Farias
e Moacir dos Anjos de assumir, para a 29a edição do evento, seu caráter “alternativo
aos centros de difusão mais consolidados da Europa e da América do Norte” (DOS
ANJOS e FARIAS, 2010, p. 18) torna-se determinante para o embasamento de uma
postura institucional afeita ao criticismo e ao protagonismo locais. Vale pontuar que
esta atitude conecta-se com reflexões legadas pelas duas Bienais anteriores168. A
presença expressiva de artistas brasileiros e oriundos dos demais países da América
Latina, portanto, configura uma aposta no vocabulário e nos “sotaques”169 brasileiros

                                                                                                               
164
Segundo Cristina Freire, no texto “O inconsciente moderno do museu de arte
contemporânea no Brasil”, apresentado no seminário História e(m) movimento, no MAM-SP,
em novembro de 2008, a Bienal de São Paulo foi criada em 1951, com o espírito
desenvolvimentista da época, “para converter São Paulo na capital do mundo” (FREIRE in
CHAIMOVICH, FABRIS, LAGNADO e OSÓRIO, 2008, p. 38).
165
Para fundar o MAM, Ciccilo contou com o apoio de Nelson Rockefeller, então vice-
presidente norte-americano, colecionador de arte e presidente do MoMA, responsável pela
primeira doação de obras de artistas das vanguardas históricas para a coleção do museu (Ibid,
p. 37)
166
Na 27a edição, o projeto curatorial de Lisette Lagnado, selecionado via concurso, extinguiu
as representações nacionais da estrutura da Bienal. Todos os artistas participantes foram
convidados pela curadoria do evento, e não mais pelas embaixadas de seus países de origem.
Estas embaixadas, ou as agências de fomento e divulgação, deslocaram o aporte de verba que
disponibilizavam para o artista de seu país e passaram a contribuir com a Bienal num regime
de apoio e/ou patrocínio internacional.
167
Dados definidos pelas embaixadas nacionais e que, por isso, muitas vezes, fugiam ao
controle da equipe curatorial.
168
A 27a (Como viver junto), mencionada na nota acima e concebida em torno do programa
ambiental de Hélio Oiticica, e a 28a (Em vivo contato), curada por Ivo Mesquita e Ana Paula
Cohen, em 2008, que instaurou a presença e a simbologia de um “vazio” para discutir a
economia das Bienais e a crise institucional da Fundação Bienal de São Paulo.
169
Cf. DOS ANJOS, Moacir. “Contraditório” in Panorama da arte brasileira: Contraditório.
São Paulo: MAM, 2008.

  131  
e latino-americanos, na sua posição distintiva neste lugar de fala (e de promissores
intercâmbios culturais) que é uma Bienal internacional.

A ênfase no léxico local é dada tanto visando a atingir um público


especializado estrangeiro, como a confrontar o eurocentrismo dos cânones da história
da arte, quanto, também, a agregar repertório para a maioria de visitantes não-
especializados (estudantes e interessados por arte), de São Paulo e outras cidades do
Brasil. Ante a precariedade dos acervos públicos170 e da historiografia da arte no
continente, a exposição de obras consagradas, mesmo que pelo curto período171 do
evento, torna-se rara oportunidade para o grande público acessá-las presencialmente e
educar-se a partir delas.

Assim, a curadoria da 29a Bienal, intitulada Há sempre um copo de mar para


um homem navegar172, espalha por todo o espaço da mostra obras e discussões
fundamentais para a história da arte contemporânea latino-americana, de modo a
torná-las âncoras geolocalizadoras, capazes de provocar suas vizinhanças imediatas e
circunscrevê-las, a despeito da multiplicidade de suas origens173, num espectro
aproximado mas sempre ruidosos de discussão.

As inúmeras visadas de uma impossibilidade de “consensos” formais ou


contextuais, ou a positivação do “dissenso” conforme descrevera Jacques Rancière174,

                                                                                                               
170
Estes acervos de arte moderna e contemporânea, quando não são inexistentes ou mantidos
inacessíveis por seus colecionadores privados, encontram-se em vias de exportação ou
correndo riscos devido às condições precárias de conservação a que são submetidos. No
contexto brasileiro, alguns casos notórios são a venda da Coleção Adolfo Leirner, em março
de 2007, para o Museum of Fine Arts, de Houston (EUA); e o incêndio que destruiu parte da
reserva técnica de obras de Hélio Oiticica mantida por sua família, em outubro de 2009.
171
As Bienais de São Paulo geralmente duram entre 2 e 3 meses. A 29a edição foi inaugurada
em 21 de setembro de 2010 e funcionou até 12 de dezembro do mesmo ano.
172
Segundo verso do poeta alagoano Jorge de Lima, em sua obra maior, A invenção de Orfeu
(1952).
173   Entre espelhamentos e ruídos possíveis, foram promovidos diálogos entre os contextos do
brasileiro Miguel Rio Branco (no filme Nada levarei qundo eu morrer, aqueles que me devem
cobrarei no inferno, de 1979 – 1981) e da norte-americana Nan Goldin (no slide-show The
Ballad of sexual dependency, 1981 – 1996); da argentina Marta Minujin (no happening La
Menesunda, de 1965) e do dinamarquês Palle Nielsen (na experiência Modellen - en modell
för ett kvalitativt samhälle, ou Model for a Quantitative Society, de 1968), dentre outros.
174
O pensamento de Jacques Rancière embasa o partido curatorial de Há sempre um copo de
mar... Sua definição de “dissenso” ou de “desentendimento” é “um tipo determinado de
situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não
entende o que diz o outro. (...) Os casos de desentendimento são aqueles em que a disputa

  132  
são indicativos do imbricamento que a mostra propõe entre arte e política. Segundo
texto de apresentação dos curadores no catálogo, lançado na abertura175 da Bienal:

“A mostra vai por seus visitantes em contato com maneiras de


pensar e habitar o mundo para além dos consensos que o organizam
e que o tornam ainda lugar pequeno, onde nem tudo ou todos
cabem. Vai pôr seus visitantes em contato com a política da arte.
(...) Para a 29a Bienal de São Paulo, a arte faz política quando, em
vez de gerar sentimentos de segurança e conforto, produz
conhecimento que desestabiliza certezas há muito assentadas; ou
quando leva aquele que é tocado por ela a desaprender o que
convencionalmente se chama de política. (DOS ANJOS e FARIAS,
2010, pp. 20-21)

Neste acepção de “política da arte”, certamente cabem exemplos da geração de


artistas que reagiu aos regimes totalitários do continente e engajou-se através da
criação, mas não apenas. A subversão dos acordos e convenções sociais, em uma
escala micro-política, lateral, portanto, a uma problemática partidária, corresponde ao
ideário apropriado de Rancière e norteia as inclusões de artistas e obras pela equipe
curatorial176.

Dentre estas inclusões, a mais divulgada como paradigma para a discussão de


uma “arte crítica”177 é a de Flávio de Carvalho. Ela é feita a partir de registros das
Experiências n°2 e 4 (1931 e 1958, respectivamente), o Retrato de Sérgio Buarque de
Holanda (1970), a Série Trágica (1947) e a peça O Bailado do Deus Morto (1933).
Em dois momentos da expografia, no programa de apresentações e no catálogo da

                                                                                                               
sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação da palavra.”
(RANCIÈRE, 1996, p. 12)
175
Por haver sido lançado na abertura do evento, o catálogo não dispõe de imagens de registro
da exposição pronta nem de um texto curatorial apoiado nos resultados alcançados e em
reflexões que eles tenham suscitado.
176
A equipe curatorial da 29a Bienal de São Paulo, além de Agnaldo Farias e Moacir dos
Anjos, contou com Chus Martínez (Espanha), Fernando Alvim (Angola), Rina Carvajal
(Venezuela – EUA), Sarat Maharaj (África do Sul – Inglaterra) e Yuko Hasegawa (Japão).
177   No texto de apresentação do catálogo, os curadores alegam que a “arte critica nao é

somente reativa a uma situação de restrição dada [como a ditadura militar], mas que é capaz
de ampliar ou ao menos problematizar, desde ela mesma e valendo-se de procedimentos
formais os mais variados, o repertório de posições, movimentos e falas que a cada momento é
pactuado e partilhado por uma coletividade”. (DOS ANJOS e FARIAS, 2010, p. 23)

  133  
mostra178, somam-se evidências da “política da arte” encampada pelo artista em sua
atuação interdisciplinar e sempre radicalmente transgressiva.

Com exceção da Série Trágica179, localizada na área climatizada do Pavilhão


Ciccillo Matarazzo, que, por motivos de conservação, termina por reunir obras
pertencentes a coleções de museus e a emular o ambiente de uma “sala histórica”, os
demais trabalhos do artista foram integrados à tessitura de assuntos e contextos a que,
junto com obras contemporâneas, podiam remeter. A atuação de Flávio de Carvalho, e
o marco de sua obra mais antiga, a Experiência n°2, assinalam o início da cronologia
da Bienal, tornando a vivência de 1931 problema para a arte contemporânea e para o
presente.

Imagem 28 - Série Trágica na área climatizada da 29a Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo.

                                                                                                               
178
Em que um excerto do texto A cidade do homem nu é publicado na porção dedicada a
obras textuais, o chamado “rio literário” (CARVALHO in DOS ANJOS e FARIAS, 2010, PP.
195 – 204).
179
Os desenhos da Série Trágica: minha mãe morrendo (1947, col. MAC-USP) foram
montados na área climatizada da 29a Bienal, no terceiro andar do prédio, pelos mesmos
motivos que levaram para este espaço o conjunto de nove xilogravuras de Oswaldo Goeldi
(1930 – 1970, col. Museu Nacional); o B 33 Bólide caixa 18 “Homenagem a cara de cavalo”
(1966, col. MAM-Rio), de Helio Oiticica; Fotografia anonima de Venezuela (1979, col.
Galeria de Arte Nacional de Venezuela); obras do Grupo Rex (1964 – 1967, col. MASP e
particulares); a pintura Cri Du Coeur (2005, col. Galerie Lelong); e as litografuras e desenhos
arquitetônicos do Superstudio (1973, col. Archivo Superstudio). Em vários casos essas obras
trazem consigo agrupamentos de obras. A Série Trágica, apesar de não trazer trabalhos
relacionados, serve-se de uma paridade cronológica (e indiretamente temática) com a obra de
Oswaldo Goeldi e com a sala do Grupo Rex, cuja mobilização na São Paulo de 1966 e 1967
tem notória referência no trabalho precursor de Flávio de Carvalho, inclusive prestando-lhe
homenagem em palestra e edição do jornal do grupo em 1967.

  134  
Nota-se, a partir da integração de trabalhos do artista com produções recentes, o
desejo da curadoria de estabelecer “vínculos temporais” e defender uma
“temporalidade” própria, “fraturada”, “porosa” e “urgente”, nem afeita às demandas
de ineditismo impostas pelo mercado nem às valorações prematuras estabelecidas
pelos mecanismos de legitimação dos museus e coleções. (Ibid., p. 22) Afeita, sim, a
“entender a complexidade do momento”. Exercer esta temporalidade seria a tarefa do
“contemporâneo”, não exatamente cronológico (do presente), mas condicional (com o
presente), conforme Moacir dos Anjos defende180 e dentro de cuja defesa localiza
Flávio de Carvalho.

A vizinhança criada a partir das Experiências e do Retrato de Sérgio Buarque


de Holanda, no segundo andar do prédio, mobiliza questões relativas à “psicologia
das massas” e à antropologia. A vida na cidade, a formação de um corpo coletivo e a
resistência do indivíduo à homogeneização nas massas são pontuadas a partir da
Experiência n°2181 e encontram ecos na projeção da performance O divisor (1968), de
Lygia Pape, no painel de pintura Come give us a speech (2008), do indiano NS
Harsha, e na videoinstalação Communitas (2010), do holandês Aernout Mik.

Imagem 29 - Documentação da Experiência n° 2. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.

                                                                                                               
180
Em entrevista à Revista Bravo! de setembro de 2010, que apresentou uma matéria especial
dedicada à 29a Bienal, o curador afirma: "Tomamos por contemporâneo aquilo que nos faz
entender melhor a complexidade do momento. Nesse sentido, Flávio de Carvalho, um artista
da década de 1930, é contemporâneo". A afirmação ecoa um ideário apresentado ao curador
principalmente através do conjunto de aulas O que é o contemporâneo? E outros ensaios, do
filósofo Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2009).
181
A Experiência n°2 é documentada através de depoimento de Flávio de Carvalho em áudio
(MIS-Rio, 1971), reproduções gráficas de diagramas e passagens do livro homônimo e fac-
similes de matérias de jornais da época colecionadas pelo artista e hoje mantidas no arquivo
do Cedae-Unicamp.

  135  
Imagem 30 – Registro da performance Divisor, de Lygia Pape, projetado ao fundo. Fonte: Arquivo
Histórico Wanda Svevo.

A busca de uma identidade primitiva indígena e a memória de um debate sobre a


formação do povo brasileiro, por sua vez, relacionam os registros da Experiência
n°4182 e o retrato fluorescente do autor de Raízes do Brasil (1936) a um entorno do
qual fazem parte a série fotográfica Cacique de Ramos (1972 - 1976), de Carlos
Vergara, e o projeto de Maria Thereza Alves em parceria com os índios Krenak, On
the importante of words, a holy (stolen) mountain and the ethics of the nations (2009
– 2010). Enquanto o primeiro documenta o bloco carnavalesco Cacique de Ramos e
ressalta imageticamente seu lema de coletividade e soberania (“aqui não há índios, só
caciques”), a segunda comenta a falta de memória dos povos indígenas no Brasil.
Maria Thereza Alves expõe 1.000 exemplares do dicionário krenak-português que
ajudou a editar, a partir de uma tradução krenak-alemão realizada no século XIX.

                                                                                                               
182
A Experiência n°4 aparece na exposição por meio de fac-simile do anúncio de jornal que
anuncia a expedição e promove o lançamento de uma busca pela “Deusa Branca”, 25 fotos e
fac-simile de matéria sobre o fracasso e o fim da viagem. A documentação ainda conta com
imagens brutas de uma filmagem em 8mm que permanecia nos rolos originais (arquivo
Cedae-Unicamp) e que, por iniciativa da Bienal, com apoio da TV Cultura, foi transferida
para o sistema digital e pode ser exibida.

  136  
Imagem 31 - Fotografias da Experiência n°4 e Retrato de Sérgio Buarque de Holanda ao fundo. Fonte:
Arquivo Histórico Wanda Svevo.

Imagem 32 - Cacique de Ramos, de Carlos Vergara. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.

Em ambas as temáticas, apesar de a curadoria ter evidenciado a presença


transgressora e propositiva de Flávio de Carvalho, e, a partir delas, permitido
compreender a atitude de um “antropófago” de ambições teóricas e também
empíricas, a materialidade dos documentos históricos impôs uma distância no que
tange à sua fruição mais “imediata”. Pode-se supor que a natureza textual e/ou
referencial de seus componentes e a sua leitura mantiveram seu alcance silencioso e,
em alguma medida enigmático. Talvez tenha faltado contexto ou clareza nos
enunciados, talvez seja o caso de assumir que os arquivos perdem visibilidade em
mostras grandiosas e dispersivas como costumam ser as Bienais.

A apresentação feita pelo Teatro Oficina, no primeiro sábado da Bienal (24 de


setembro), no entanto, interferiu neste “silêncio” ao reencenar a peça inaugural do
Teatro de Experiência do artista, O Bailado do Deus Morto (1933). O diretor José

  137  
Celso Martinez Corrêa – aproximado de Flávio de Carvalho na pesquisa de Luiz
Carlos Daher, vale lembrar – conduziu 50 atores e bailarinos183 semi-nus por um
cortejo que evoluiu do primeiro pavimento até a sala documental de Flávio de
Carvalho, no segundo andar, depois desceu para o térreo e saiu do edifício, deixando
no espaço expográfico apenas os vestígios da trama do amor de deus com a “mulher
menor” e o desconcerto momentâneo de um acontecimento de cerca de duas horas.

Imagem 33 - Encenação da peça Bailado do Deus morto na 29a Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo
Histórico Wanda Svevo.

Durante este intervalo, a Bienal inteira virou “o labirinto de Teseu”, nesta


“(in)versão” do texto original, que, apesar de ter decorrido de um convite feito pela
curadoria para que o grupo ocupasse uma espécie de teatro de arena (o Terreiro O
outro, o mesmo), torna-se uma “contracena com as obras expostas”184. A estratégia
faz alusão ao modo como Flávio de Carvalho pensava a rua como um teatro (dotada
de audiência natural e, idealmente, liberdade de atuação) e desmonta a hipótese de

                                                                                                               
183
O grupo contou com atores da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona; dançarinos do
Bando Cavallaria, dirigido por Lu Brites; e estudantes de teatro oriundos das oficinas do
Movimento Bixigão. A iniciativa e a concepção do cenário e do figurino da peça foram de
Fábio Delduque, que também coordenou uma série de leituras e apresentações de textos de
Flávio de Carvalho (O Bailado do Deus Morto e A cidade do homem nu) ao longo do período
de mostra.
184
A terminologia usada deriva do texto de apresentação divulgado pelo grupo em seu site.
(http://teatroficina.uol.com.br/menus/45/posts/381 - visualizado em 30 de novembro de
2011).

  138  
concepção de seis espaços contidos, os Terreiros, para ativação da mostra e quebra
da contemplação costumeira no cubo branco.

Os Terreiros foram desenhados por artistas e/ou arquitetos para cumprir


programas específicos e receber uma programação ou ocupações espontâneas do
público durante a Bienal. Seus títulos correspondem a temas trabalhados na
exposição, sempre segundo citações a obras literárias. Além do O outro, o mesmo,
concebido por Carlos Teixeira, havia a biblioteca Longe daqui, aqui mesmo de Marilá
Dardot e Fábio Morais; o auditório Eu sou a rua, do UN Studio; o repouso
Lembrança e esquecimento, de Ernesto Neto; o cinema A pele do invisível, de Tobias
Putrih; e o portal / tribuna Dito, não dito, interdito, de Kboco e Roberto Loeb.

A encenação do Teatro Oficina extrapolou os limites do palco (ou, neste caso,


o Terreiro O outro, o mesmo) para mistura-se às obras, perturbar as regras de
manutenção e vigilância do espaço (“não toque”, “não ultrapasse”) e interpelar o
público presente. Desta maneira, a performance envolveu toda a ambiência e o
público da Bienal em uma mesma marcha, num confronto direto corporal e moral. De
alguma maneira reviveu-se ali, num contexto outro, embora também dotado de
tensões latentes e acessado a partir delas, a ideia de contra-caminhada inaugurada pela
Experiência n°2.
O Bailado... do Teatro Oficina contribui para a formulação e para a discussão
de uma Bienal que, ao constituir uma grade de programação interdisciplinar e
assimilá-la dentro de sua área expositiva, almeja ser um lugar para a “celebração da
arte como prática política” (DOS ANJOS e FARIAS, 2010, p. 29).

Por “celebração” pode-se entender engajamento, mutirão, assembléia ou


festejo de interesse e autoria coletivos. O termo, no entanto, também pode conter
outros significados, referentes ao contexto da Fundação Bienal de São Paulo àquele
momento. Após uma crise administrativa, em 2008, e um período de dúvidas sobre o
acontecimento da mostra em 2010, tornara-se missão primordial de uma nova
presidência e da equipe curatorial convidada reafirmar a saúde da instituição,
apoiando-se em seu legado, na função da arte na sociedade e na importância da Bienal
de São Paulo como principal exposição internacional de periodicidade regular no país.

  139  
Na conjuntura executivo-criativa sobre o qual se edifica a grande exposição,
“celebrar”, portanto, também quer dizer comemorar a “retomada”185, projetar a visita
de 400 mil estudantes e 1 milhão de visitantes186, arriscar-se na equação entre a
“opacidade”187 dos projetos estéticos e a grandiloqüência de qualquer texto ou obra
baseada na escala e na história do edifício e da exposição.

Em suma, posso verificar que a 29a Bienal de São Paulo e a 7a Bienal do


Mercosul partem de premissas análogas, no que concerne não só a uma aposta na
integração cultural latino-americana, como na elucidação de sombras que a história
(da arte) do continente pode projetar sobre o presente. Elas coincidem ainda na defesa
da prática artística como contaminadora e rearranjadora das estruturas institucionais,
conforme os exemplos das curadorias de artistas e do programa dos Terreiros,
abrigados em espaços desenhados por artistas e/ou arquitetos.

Suas hipóteses são obviamente desdobráveis em virtude dos contextos e


tipologias de exposição de arte distintas, como já mencionado. No entanto, tornam-se
complementares uma vez que, dentro de um período tão curto, perceberam que a
curadoria pode cumprir o papel de revelar urgências e protagonismos, além da
formação de redes no momento em que, conforme a dinâmica da economia, o mundo
volta-se para os países latino-americanos e para sua produção artística. É nesse
sentido que a memória da militância artística e institucional de Flávio de Carvalho
entre 1930 e 1970 parece indicar caminhos para uma tomada de posição no presente.

3.3 A partir da antropofagia, pela concepção de uma cidade do futuro

                                                                                                               
185
Como o jornalista Fábio Cypriano divulgou em matéria no jornal Folha de S. Paulo, no dia
da abertura da Bienal, sugerindo uma espécie de apelido para a edição do evento.
(http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/801599-apos-uma-decada-de-crise-bienal-recupera-
prestigio-nacional-e-internacional.shtml - visualizado em 30 de novembro de 2011)
186
Segundo divulgam os primeiros releases oficiais da 29a Bienal, sua meta de público era 1
milhão de visitantes, dos quais 400 mil deveriam ser trazidos pelo agendamento do programa
educativo.
187
O termo “opacidade” é formulado em Thinking about exhibitions. (Cf. POINSOT in
FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1999, p. 40).

  140  
As curadorias que compõem este tópico apresentam certa proximidade com as duas
Bienais apresentadas anteriormente, no que tange à discussão de uma relação da arte
brasileira e latino-americana com matrizes hegemônicas européias e norte-
americanas, mas ganham densidade à medida em que adotam como partido a
Antropofagia e as suas metáforas de “apropriação e hibridização cultural”188. Entre
tantas formuladas no Manifesto de 1928, poderíamos apontar a deglutição do
inimigo189, o desnudamento da sociedade190, e o engajamento dos artistas e
intelectuais de vanguarda na invenção de um vocabulário próprio e de perspectivas de
ação191 derivados da realidade geográfica e histórica local.

Com o apoio conceitual da Antropofagia (mas obviamente não restritas a ele),


podemos levantar aqui as seguintes exposições coletivas Da Antropofagia a Brasília:
Brasil 1920 – 1950, curada por Jorge Schwartz para o Instituto Valenciano de Arte
Moderna (Valência, 2000 – 2001192) e o Museu de Arte Brasileira da Fundação
Armando Álvares Penteado (São Paulo, 2002 – 2003193); Desvíos de la deriva:
experiências, travesías y morfologias, por Lisette Lagnado194, para o Museo Nacional
Centro de Arte Reina Sofia (Madri, 2010195); e A cidade do homem nu, por Inti
Guerrero, para o Museu de Arte Moderna (São Paulo, 2010196).

Trata-se de um grupo heterogêneo, se consideradas as escalas das exposições,


as curadorias e a realidade espaço-temporal das instituições que as comissionam. No
                                                                                                               
188
Cf. SCHWARTZ, 2002, p. 12.
189
“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”, escreve Oswald
de Andrade no Manifesto Antropófago, de 1928 (ANDRADE in SCHWARTZ, 2002, p. 473)
190
“O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo
exterior”. (Ibid., p. 473)
191   “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca

soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-mundi


do Brasil.

Uma consciência participante, um rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida.” (Ibid.,


p. 473)
192
De outubro de 2000 a janeiro de 2001. A iniciativa de comissionar a pesquisa e realizar a
mostra partiu do museu espanhol, no qual ela era denominada Brasil 1920 – 1950. De la
Antropofagia a Brasília.
193
De novembro de 2002 a março de 2003. Na ocasião, eram comemorados 80 anos da
Semana de Arte Moderna de 1922.
194
Com curadoria adjunta de Maria Berríos, socióloga e pesquisadora de arte chilena.
195
De 5 de maio a 23 de agosto de 2010.
196
De 15 de abril a 13 de junho de 2010.

  141  
entanto, a presença de Flávio de Carvalho e as temáticas que, como signatário da
vanguarda brasileira da primeira metade do século XX, suscita sobre uma relação
outra entre modernidade e identidade nacional, justifica a aproximação das iniciativas
para fins de análise. De partida, pode-se notar o alcance interdisciplinar e cultural
(não apenas artístico ou estético) do conteúdo das três mostras. Vale também perceber
a relevância da perspectiva dos projetos de arquitetura e urbanização neste amplo
espectro.

A arquitetura e o urbanismo, disciplinas que ganharam status de “linguagem


oficial”197 dos governos federais brasileiros pré-ditadura militar198, situam-se na
interseção de duas orientações antagônicas, ou, no mínimo, distintas: de um lado, o
debate de um espaço social e/ou cívico (e, por isso, não apenas estética ou
tecnicamente implicado); do outro, a consolidação de estruturas e dispositivos
subservientes ao controle estatal.

No contexto brasileiro, Brasília, a capital federal projetada por Lúcio Costa e


Oscar Niemeyer e construída “do nada”199 no Planaldo Central, na confluência das
bacias hidrográficas do Amazonas, do Paraná-Prata e do São Francisco, apresenta-se
como o cume desta discussão. Fundada em 1960, a cidade representa um momento da
história do Brasil em que a política de Estado dedica-se a divulgar e literalmente
construir a imagem de um “país do futuro”.

No Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, que levou


intelectuais de várias partes do mundo a debaterem a vocação e as implicações do
projeto antes mesmo dele ser concluído, em 1959, Mário Pedrosa considerou Brasília
um “ensaio de utopia”. E explicou-se: “não receio o uso a palavra ainda porque nossa
época a repôs em voga. Nossa época é a época em que utopia se transforma em plano”
(PEDROSA, 1981, p. 356). Para o crítico, aquele plano de uma cidade como “obra de
arte coletiva”, ou “síntese das artes”, era capaz de contornar o individualismo e o

                                                                                                               
197
Segundo Carlos Martins no texto Construir uma arquitetura, construir um país, que
integra o catálogo da exposição Da Antropofagia a Brasília. (MARTINS in SCHWARTZ,
2002, p. 379)
198
Desde Getúlio Vargas (1930 – 1945) a Juscelino Kubitschek (1956 – 1961), presidente
responsável pela construção de inúmeros edifícios públicos modernistas e pela realização de
Brasília (1956 – 1960), nova capital federal entregue como cume do projeto
desenvolvimentista de “50 anos em 5”.
199
Cf. PEDROSA, 1981, p. 356.

  142  
isolamento que instauravam um estado de crise na arte e na sociedade. O projeto de
Brasília traz o pensamento artístico para o foco de um empreendimento
governamental que objetiva não só a construção de uma “cidade nova” mas uma
“reforma total, completa, humana, do centro do país”200.

Por incorrer por estas promessas e, em suas cinco décadas de existência,


consolidar as controvérsias e “irracionalidades”201 do desenvolvimentismo político-
econômico que a comporta, Brasília incita o posicionamento dos curadores aqui
mencionados e aparece direta ou indiretamente em suas exposições e/ou livros. O
esforço dos autores das três mostras parece ser o de interpelar a história desta cidade-
monumento, um dos principais ícones da cultura brasileira fora do país, a partir de
dados do seu contexto e das narrativas que ofusca.

Se, por um lado, Jorge Schwartz, articula a exposição com fotos e plantas de
Brasília (além do repertório de trabalho dos seus três autores principais – Lúcio Costa,
Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx) a um mosaico de referências análogas e
correspondentes a ela, como é o caso do disco Sinfonia da Alvorada, de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes (1961), por outro, Lisette Lagnado e Inti Guerrero enfatizam
personagens outros e mantêm abertas suas alternativas de interpretação da história
“vencedora” e oficial. Nesta perspectiva, ao invés de reiterar a figura de Flávio de
Carvalho como um polemista, “diletante”202, incompreendido ou fracassado, devido
às suas consecutivas derrotas em concursos públicos, o mesmo recebe o mérito de
“utopista”, conectado a uma matriz de pensamento radical, idealista e por isso mesmo
não concluída.

Ao atravessar o limite entre o moderno e o contemporâneo no Brasil, a atuação de


Flávio de Carvalho como “artista-arquiteto”203 abarca desde o período de militância
antropofágica do fim dos anos 1920 e começo dos 1930 até as décadas de divulgação
de uma cultura brasileira com ambições internacionalistas, nos anos 1950 e 1960. Seu
percurso permite, portanto, uma mudança (ou, ao menos, um acréscimo) de
                                                                                                               
200
Cf. Ibid., p. 359.
201
Cf. LAGNADO, 2010, p. 53.
202
Como Mário Pedrosa denominou o artista.
203
Após utilizar o termo “artista-arquiteto” na conceituação de Desvios de la deriva (Cf.
LAGNADO, 2010, p. 52), Lisette Lagnado o descreve no editorial da Revista Marcelina 6:
“Entende-se na figura do “artista-arquiteto” a potência de encaminhar utopias artísticas no
espaço comum sem entretanto negar-lhe a tensão do real” (MARCELINA, 2011, p. 6)

  143  
perspectiva sobre um panorama artístico e arquitetônico comumente vinculado à
aceitação gradual das tendências abstracionistas e à formação da “geração Brazil
Builds”.

A pesquisa da mostra Da Antropofagia a Brasília foi dividida entre vários


segmentos, sendo cada um deles realizado por um curador especialista numa
disciplina artística ou tema: artes plásticas (Annateresa Fabris), literatura (Jorge
Schwartz), cinema (Jean Claude Bernardet, música (José Miguel Wisnik), arquitetura
e urbanismo (Carlos Ferreira Martins) e “Presenças estrangeiras” (Carlos Augusto
Calil). O resultado desta pesquisa segmentada, no entanto, foi integrada em 10 salas
de “linguagem multidisciplinar”204 pelas mãos do curador geral Jorge Schwartz205.
Dentre as mais de 600 obras havia nove trabalhos de Flávio de Carvalho.

Na visada cronológica organizada expograficamente por Pedro Mendes da Rocha,


o “artista-arquiteto” começa a ser referendado a partir de seus projetos e esboços para
o Palácio do Governo de São Paulo (1927) e para o Farol de Colombo (1931),
responsáveis por deflagrar uma arquitetura de cunho antropofágico. Tais
características endereçam estes dois projetos e um exemplar do livro Experiência nº2
(1931) a um núcleo de obras dedicado ao primeiro momento do modernismo no país.
Nele aparecem projetos de Gregori Warchavchik206, livros de Oswald de Andrade207 e
Raul Bopp208 e um conjunto de 12 pinturas e desenhos de Tarsila do Amaral209, dentre
elas o Abaporu (1928).

                                                                                                               
204
Cf. SCHWARTZ, 2002, p. 12.
205
Professor titular de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo desde 1971
e diretor do Museu Lasar Segall desde 2008.
206
Do arquiteto, são incluídas reproduções da pintura Retrato de Mário de Andrade (1945) e
dos projetos Casa Modernista, Rua Itápolis (1929), Residência do arquiteto (Casa da Rua
Santa Cruz) (1928), Residência de Luiz da Silva Prado (Casa da Rua Bahia) (1930),
Residência Nordshild (Casa Modernista do Rio de Janeiro) (1931). Também aparecem na
mostra sua parceria com Lúcio Costa no Conjunto de casas operárias da Gamboa (1934).
(SCHWARTZ, 2002, PP. 456 – 457)
207
A crise da Filosofia Messiânica (1950), A estrella do absyntho (1927), Memórias
sentimentais de João Miramar (1924), Pau Brasil (1925), O perfeito cozinheiro de almas
deste mundo... (Diário coletivo da garçonnière de Oswald de Andrade) (1918 – fac-simile de
1987), Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade (1927).
208
Cobra Norato (1931) e Urucungo. Poemas Negros (1933).
209
Abaporu (1928), Antropofagia (1929), Auto-retrato (1924), A Caipirinha (1923), Esboço
para o cartaz da conferencia de Blaise Cendars (III) (1924), Estudo para A Negra (1923),
Operários (1933), Retrato de Oswald de Andrade (1923), Saci-Pererê (1925), Sol poente
(1929), Sono (c. 1928), Tribunal de menores (1932).

  144  
O texto curatorial aponta a possibilidade desta obra-símbolo da Antropofagia ter
sido instalada sobre o cavalete de vidro criado por Lina Bo Bardi para o Museu de
Arte de São Paulo em 1963 e exposta na abertura da mostra, criando um efeito de
quebra cronológica. Apesar desta montagem não ter acontecido210, a aproximação
textual211 entre as obras da artista e a da arquiteta, e o que as duas propuseram para o
debate modernista em 1928 e em 1963, respectivamente, indica a intenção de
Schwartz de filiar a atuação extemporânea de Lina Bo Bardi às matrizes do
modernismo de 1922 e às suas repercussões diretas na arquitetura de Flávio de
Carvalho e de Gregori Warchavchik em diante. A “sobreposição” formulada faz
pensar nos momentos de sincronia e diacronia que os vanguardismos estabelecem
com seu presente e com a história que os sucede.

Imagem 34 - Abaporu na montagem final de Da Antropofagia a Brasília, no MAB. Fonte: Arquivo do Museu
de Arte Brasileira - Faap.

 
Se, por um lado, o “diálogo” entre Tarsila do Amaral e Lina Bo Bardi demonstra uma
sincronia entre suas proposições, mesmo que distanciadas em quase quatro décadas,
por outro, o “convívio” da pintura Viaduto Santa Ifigênia à noite (1934), de Flávio de
Carvalho, com o filme São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de R.R. Lustig e A.
Kemeny, indica uma relação diacrônica entre a paisagens de São Paulo que ambas as
                                                                                                               
210
Esta montagem não aconteceu no MAB. Os documentos de registro desta itinerância da
mostra inicialmente realizada no Museu Valenciano de Arte mostram a obra de Tarsila do
Amaral exposta sobre painéis expográficos brancos.
211
Segundo afirma o texto curatorial, “a intersecção é proposital, uma vez que nos permite
antecipar em três décadas e meia a presença da arquiteta italiana no Brasil e também projetar
– com a cronologia invertida – um diálogo entre sua obra e as linhas de trabalho existentes
nos projetos de Warchavchik, de Le Corbusier, de Burle Marx e do próprio Niemeyer”. (Ibid.,
p. 12)

  145  
obras observam. Enquanto a “cidade futurista” narrada no cinema mudo movimenta-
se com a coreografia das máquinas industriais e com cenas do lazer burguês, a São
Paulo registrada pelo artista-arquiteto, apesar de já verticalizada, permanece pacata e
melancólica, ainda aquém da metrópole modernista que àquela altura ambicionava
promover.

O Viaduto... é eficaz em mostrar o sentimento de Flávio de Carvalho em relação à


São Paulo dos anos 1930, mas não pode ser considerado um trabalho exemplar de sua
dinâmica de pintura. Traços característicos como a insistência no gênero do retrato e a
expressão de “linhas de força”212 do modelo através de pinceladas vigorosas e
demarcadas aparecem no Retrato do poeta italiano Ungaretti (1941) e no desenho em
nanquim Sem Titulo (1947), dispostos nas salas da mostra dedicadas aos anos 1940 e
1950.

Por meio de Paisagem mental (1955), também é exemplificada a breve incursão


do artista-arquiteto pela abstração. Ladeada com obras de expoentes desta discussão,
como Lothar Charoux (Abstrato Geométrico, 1952), Luiz Sacilotto (Vibrações
verticais, 1952), Antônio Maluf (Progressões, 1953) e Waldemar Cordeiro (Idéia
invisível, 1955), a pintura diferencia-se das demais por sua aparente resistência. Ela
sugere em seu título referenciais de figuração e subjetividade que pouco interessam a
esta parcela da geração de Flávio de Carvalho.

O final da exposição dá a ver que, nesta segunda metade de década de 1950, em


que artistas e arquitetos organizam-se em torno de tendências racionalistas e de ampla
vocação internacional, Flávio de Carvalho busca o que sociologicamente definiria um
“novo homem” e dedica-se, para isso, a uma pesquisa teórico-prática no campo da
moda. Esta pesquisa culmina na Experiência n°3 (1956), única iniciativa desta
natureza a ser incluída na mostra, através do desenho Moda de verão para um novo
homem e de um manequim com o blusão e a saia que compõem o traje.

                                                                                                               
212
Cf. CARVALHO in MATTAR, 1999, p. 71.

  146  
 

Imagem 35 - Imagem do New Look ao fundo da sala, por trás da maquete de Brasília. Fonte: Arquivo do
MAB - Faap.

 
A vestimenta deste “novo homem”, o “homem dos trópicos” ou o “homem nu”, e,
mais ainda, o gesto de desfilá-la para a audiência da cidade, desdobram o ideário
modernista por uma via individual e imaterial. Isso acontece justamente no mesmo
ano em que, aprovado em concurso, o plano-piloto de Brasília começa a ganhar
colaboradores e concretude. Para estes dois caminhos extremos, a para a série de
matizes e narrativas contidas entre eles como resultantes de um processo de quatro
décadas (1920 – 1950) de modernização no Brasil, Jorge Schwartz emprega a
seguinte leitura:

É possível perceber as diversas etapas que conduziram à definição


de uma “arte brasileira” a qual, ao longo das quatro décadas
mencionadas, conseguiu superar a espinhosa questão da
dependência cultural e criar sua tradição por meio de uma
linguagem própria, que abriu caminhos em prol de uma arte genuína
e autônoma. (SCHWARTZ, 2002, p. 11)

Quatro anos após o statement curatorial de Paulo Herkenhoff na 24a Bienal de São
Paulo, calcada na metáfora oswaldiana lançada sobre a arte contemporânea brasileira
e mundial, a mostra Da Antropofagia a Brasília213 volta às bases desta questão e
apresenta de maneira didática os principais testemunhos desse percurso da
                                                                                                               
213
A mostra acontece na Espanha dois anos depois da 24a Bienal de São Paulo (1998), e vem
ao Brasil quatro anos depois. Sua realização certamente relaciona-se com o debate instaurado
pela “Bienal da Antropofagia”, quando, ao inaugurar esta abordagem contemporânea do tema,
Paulo Herkenhoff sinaliza: “estranhamente, o Brasil nunca realizara uma grande mostra sobre
a antropofagia para discutir sua pluralidade cultural” (HERKENHOFF, 1998, p. 22)

  147  
“dependência” à “autonomia” na história da cultura no país. A iniciativa demarca a
efeméride dos 80 anos da Semana de 22 e apóia-se nela para dar visibilidade e
divulgar internacionalmente o tema de uma modernidade (ou de uma vanguarda
moderna) brasileira.

Parte imprescindível deste projeto retrospectivo e “enciclopédico” –


semelhante àqueles que misturam intenções cronológicas mas também estéticas,
segundo Nathalie Heinich e Michael Pollak214 – é a visada crítica que proporciona,
não só através da maneira como estas quatro décadas são narradas curatorial e
expograficamente, mas também de como são consideradas através de ensaios teóricos
comissionados para o livro da exposição. Além dos curadores setoriais, colaboram
com textos inéditos Rubens Fernandes Junior e Eduardo Subiratis.

Este último dedica-se a problematizar uma associação comum entre a


Antropofagia e o Surrealismo francês – associação esta creditada principalmente à
presença do inconsciente e do irracional no repertório de ambos os movimentos –,
afirmando que a “Antropofagia é a superação dos limites que definem negativamente
o Surrealismo e seus degradados produtos finais” (SUBIRATIS in SCHWARTZ,
2002, p. 30). Se para o Surrealismo, e as vanguardas européias em geral, “a abstração
e a eliminação do passado” permitem o alinhamento da arte com o novo original, o
progresso das máquinas e a soberania do homem sobre a natureza, para a
Antropofagia, segundo o raciocínio do autor, seriam preponderantes “a reconstrução
das memórias culturais, a recriação, a partir de seus símbolos e conhecimentos, de
uma relação não hostil entre natureza e civilização”. (Ibid., p. 29).

Encontramos semelhante esforço de posicionar o que caracterizaria as


manifestações das vanguardas modernas brasileiras em relação aos cânones europeus,
mais especificamente ao Surrealismo, no texto de apresentação de Desvíos de la
deriva: experiencias, travesías, morfologías, de Lisette Lagnado. A autora, que inicia
esta pesquisa sobre Flávio de Carvalho e sua utopia antropofágica em busca de
indícios anteriores ao “além da arte”215 defendido por Hélio Oiticica, cita Glauber
                                                                                                               
214
No texto From museum curator to exhibition auteur. (HEINICH e POLLACK in
GREENBERG, FERGUSON e NAIRNE, 1996, p. 236)
215
Cf. LAGNADO, 2010, p. 53. O interesse pelo “mais além da arte” advém da pesquisa
prévia da curadora sobre Helio Oiticica e seu partido artístico, político e ético expresso em
textos como “Posição e programa”, de 1966. Após dois anos de levantamento da obra do

  148  
Rocha para afirmar que “o nosso [Surrealismo] não é o Surrealismo do sonho e sim o
da realidade”. O entendimento adotado aqui, portanto, não seria o da superação da
matriz hegemônica, como apontara Subiratis. Seria, por sua vez, o de uma
recaracterização da mesma segundo valores e urgências da vanguarda brasileira. Para
o cinema-novista, o Surrealismo europeu teve importante papel na motivação de uma
“liberação anárquica” no continente, e, aqui, teria aderido ao nosso meio e às nossas
condições de vida (história, economia, clima, topografia…). Tornar-se-ia, a partir
deles, o nosso “tropicalismo”. (Cf. ROCHA in LAGNADO, 2010, p. 54)

Esta perspectiva de uma vanguarda sempre pautada e modificada pelo seu


lugar físico e simbólico atende à discussão que a mostra almeja estabelecer na
fronteira poética entre a arte e a arquitetura216. Tecida por iniciativas de ambos os
campos, que “têm em comum a vontade de converter o espaço público em áreas de
experimentação livre, ou, pelo menos, em cidades menos tristes” (Ibid., p. 54), a
exposição reúne cinco artistas/arquitetos (ou “poetas-arquitetos”217) e uma escola se
não originários ao menos atuantes no Brasil e no Chile, entre os anos 1920 e os 1970.

Flávio de Carvalho, Sérgio Bernardes, Lina Bo Bardi (Brasil), Roberto Matta,


Juan Borchers e alunos e professores da Escola de Valparaíso (Chile), junto com o
mestre suíço Le Corbusier218, “convivem” no espaço expográfico desenhado por
Aurora Herrera para comportar tanto obras em suportes tradicionais (como pinturas e
desenhos) quanto elementos de um arquivo para consulta, documentos, plantas,
cadernos e lousas de aulas, registros em vídeo, maquetes e réplicas de objetos e
dispositivos utilizados nas inúmeras ações empreendidas e ali referendadas.

                                                                                                               
artista como coordenadora do Arquivo Helio Oiticica, alocado no Itaú Cultural, Lisette
Lagnado concluiu tese de doutorado (O mapa do programa ambiental de Hélio Oiticica, com
orientação do Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto, 2003) e desenvolveu o partido curatorial da
27a Bienal de São Paulo (Como viver junto, 2006) em cima de seu “Programa ambiental”.
216
Para a curadora Lisette Lagnado, em visita guiada gravada e editada pelo MNCARS, a
mostra cultiva uma visão fronteiriça, uma “visão nem de arte nem de arquitetura”.
(http://blip.tv/museo-reina-sofia/desv%C3%ADos-de-la-deriva-conversaci%C3%B3n-entre-
lissette-lagnado-y-mar%C3%ADa-berrios-3747952) (Visualizado em 08/12/11)
217
O termo é usado no texto de apresentação da mostra para o site do MNCARS.
(http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-deriva.html) (Visualizado
em 08/12/11)
218
Le Corbusier esteve no Brasil por duas vezes, em 1929 e em 1936 e, embora nunca tenha
ido ao Chile, projetou no país o escritório de Roberto Dávila Carson e a residência Errázuriz.

  149  
Imagem 36 - Desvios de la deriva. Fonte: Flickr Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.

Diferentemente de Da Antropofagia a Brasília, calcada no propósito de compor um


panorama cultural através do qual, entre iniciativas de maior ou menor repercussão e
oficialidade, a história do Brasil pudesse ser contada, “Desvíos de la deriva” aborda
propostas utópicas, que, mesmo havendo sido formuladas e de alguma maneira
exemplificadas publicamente, pouco são assimiladas pelo meio da arte e pela
sociedade de seu tempo. Isso porque representam uma ideologia de modernidade
contrária à vigente, tanto no Brasil quanto no Chile e seguramente em outros países
do continente. Suas formulações de “futuro” denotam não uma aspiração
desenvolvimentista mas uma atitude crítica e digressiva ante o contexto daquele
presente.

Reunidos em uma expografia transparente – que assume a materialidade da


madeira aparente e incorpora no mobiliário referências da Casa Alta (1958), de Sérgio
Bernardes –, os projetos e obras incluídos na mostra promovem uma perspectiva “não
usual”219 sobre o tema da modernização da América Latina (empreendido
principalmente no período 1920 – 1970), tanto expográfica quanto socialmente. A

                                                                                                               
219
A curadora considera que a reunião de personagens da mostra empreende um “desajuste”.
Ela afirma que “este desajuste justificaria a eleição não usual dos protagonistas da exposição
(...) junto com o universo de Le Corbusier. Ao seu lado, o expressionismo de Flávio de
Carvalho e as “morfologias psicológicas” de Roberto Matta provocam mal-estares reais; uma
interlocução com Juan Borchers e a Escola de Valparaíso carece de afinidade ideológica; Lina
Bo Bardi Sérgio Bernardes admitem convergências mais seguras embora com perspectivas
mais ancoradas ao território onde se pratica a arquitetura. (LAGNADO, 2010, p. 54)

  150  
coletiva, neste sentido, cria visibilidade para a antítese do projeto moderno oficial220,
enfatiza uma agenda que permaneceu restrita e, talvez por isso, até hoje em estado
latente.

Imagem 37 - Mobiliário de Desvios de la deriva e lousas de aula da Escuela de Valparaíso ao fundo. Fonte:
Flickr MNCARS.

Esta agenda baseia-se numa orientação situacionista e na crença de que a “sociedade


deveria mudar a arquitetura e o urbanismo” e não o oposto, como defendeu a
arquitetura e principalmente o urbanismo modernos, com seus anseios por uma
“cidade pré-definida” (JACQUES, 2003, p. 19). A aproximação das iniciativas
brasileiras e chilenas com o movimento francês da segunda metade dos anos 1950 (o
Situacionismo) é uma aposta de Lisette Lagnado, fundamentada na observação de
afinidades eletivas entre pares geograficamente distanciados e também na sugestão de
que, uma vez verificadas as bases para esta afinidade e/ou filiação, desponta como
precursor das estratégias de “deriva” urbana não Guy Débord ou Constant
Nieuwenhuys, mas Flávio de Carvalho221.

                                                                                                               
220
Conforme aponta o texto de Lisette Lagnado, na exposição “se entende que a não
coincidência de um projeto moderno com um programa de Estado permita esboçar outro
argumento para compreender procedimentos artísticos abortados ou em estado inoperante”.
(Ibid., p. 54)
221
Em 1923, há registros de caminhadas empreendidas por surrealistas franceses. Apesar de
não pertencerem ao escopo de Desvios de la deriva, elas poderiam ser apontadas como
supostos antecedentes à idéia de “deriva”. Guy Debord, em sua Teoria da deriva, refuta essa
associação por julgar a iniciativa demasiadamente previsível. “Por pouco desconfiar do acaso
e de seu uso ideológico sempre reacionário, fracassou a Celebre deambulação tentada em
1923 por quatro surrealistas a partir de uma cidade que eles sortearam: caminhar por

  151  
A Experiência nº2 (1931) teria antecipado o “urbanismo unitário”222 e práticas
“efêmeras de apreensão do espaço”, como a “psicogeografia”223 e a “deriva” (Ibid., p.
15), formulados para definir o Situacionismo, na Europa do fim da década de 1960. A
curadora observa que neste contexto havia uma urgência pela reconstrução de cidades
inteiras devastadas pela Segunda Guerra. Sem o quadro de bombardeio e destruição,
talvez não tivesse existido Situacionismo. Esta correspondência não procede na
América Latina, mas, a tirar pelos impulsos experimentais de Flávio de Carvalho e de
outros personagens mencionados em Desvios de la deriva, pratica-se a deriva.

Na mostra, a ação do autor das Experiências é representada através da


exibição de um original do livro homônimo e de sete reproduções de desenhos que o
ilustram224. Também remete ao evento da procissão de 1931 o dispositivo criado pela
artista Dominique Gonzalez-Foerster para “espacializar” o traje de verão da
Experiência nº3 de maneira não-convencional.

                                                                                                               
descampados é sem Duvida deprimente, e as possíveis intervenções do acaso, em tais
circunstâncias, são raríssimas”, afirma o autor. (Cf. DEBORD in JACQUES, 2002, p. 88)
222
  Diz-se “unitário” conforme prescrito por Constant Nieuwenhuis,     por ser contra a
separação moderna de funções, prescrita pela Carta de Atenas, divulgada após o IV
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em 1933. (Cf. Ibid., p. 15)  
223
Uma passagem do livro Experiência Nº2 demonstra a proximidade da argumentação de
Flávio de Carvalho com a ideia situacionista de “psicogeografia”. Neste relato a posteriori, o
artista declara ter desejado “apalpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva,
registrar a liberação desta emoção, provocar uma revolta para ver algo do inconsciente.
(CARVALHO in LAGNADO, 2010, p. 62)
224
As ilustrações reproduzidas por Leonardo Crescenti e exibidas na mostra são “A
insegurança do velho”, “...como bonecos sem vida suspensos no espaço”, “... e os homens
pareciam pigmeus sacudidos por uma força estranha”, “...o Cristo, o padre, o Buda, o Moisés,
o político esquecido, o recluso, o mendigo, a prostituta amorosa... o homem de gênio”, “O
som da multidão veloz que sumia” e “Uma criatura estranha completamente diferente de tudo
que eu costumava ser... Era a imagem do terror”.

  152  
Imagem 38 – Em primeiro plano, o New Look instalado com o dispositivo criado por Dominique Gonzalez-
Foester. Fonte: Flickr MNCARS.

Nele, uma estrutura vestindo blusão e saiote225 desliza sobre um trilho fixado no teto.
O deslocamento em dois sentidos (para frente e para trás) contrários garantido por um
pequeno motor recupera “a analogia existente entre as duas caminhadas pelas vias
públicas” (LAGNADO, 2010, p. 63). Segundo a lógica curatorial, a ida citaria a
“atitude provocadora” da Experiência nº2, enquanto a volta mimetizaria a situação de
“desfile” que caracteriza a Experiência nº3.

Imagem 39 - Desenho e foto da Experiência nº3. Fonte: Pablo Leon de la Barra.

                                                                                                               
225
O blusão exposto é original e o saiote é uma réplica feita em 1999, para ocasião da
retrospectiva curada por Denise Mattar. Ambas as peças pertencem à coleção de James
Lisboa.

  153  
A Experiência nº3 ainda é documentada através de um desenho de projeto do traje226
e de cinco fotos em que aparece o próprio artista como modelo de sua invenção227. A
caminhada de lançamento do New Look é contemporânea à Teoria da Deriva, escrita
por Guy Debord em 1956 e publicada na segunda edição da revista da Internacional
Situacionista, em 1958. É importante pontuar que, apesar de podermos empregar
também ao contexto da Experiência nº2 o sentido de deriva prescrito neste manifesto
como um “comportamento lúdico-construtivo” motivado pelo gesto de “entregar-se às
solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar” (DEBORD in
JACQUES, 2002, p. 87), só nestes meados da década de 1950 ele passa a
corresponder a algo fundamental para a sua formulação, a crescente
“espetacularização das cidades”.228

A deriva seria uma um ato de resistência contra os mecanismos de controle e


alienação da “sociedade do espetáculo” européia na iminência dos anos 1960, como a
“padronização”, a “automatização” e os “pseudojogos sem consciência” (Ibid., pp. 75
– 77), entre eles o entretenimento e o turismo industrialmente normatizados.
Semelhante resistência ocorre no contexto latino-americano, caracterizando uma
“poética de investigação do tecido urbano” de orientação comunista e humanista, pela
participação e pelo engajamento coletivos.

A apreciação curatorial nota que aqui no continente, no entanto, a deriva adere


ao vocabulário e aos “fenômenos vitais” (Cf. LAGNADO, 2010, p. 66) de seus
proponentes locais. O ideário ora corresponde às “experiências” de Flávio de
Carvalho, ora às “morfologias psicológicas” de Roberto Matta, ora às “travessias” e
“rondas” da Escola de Valparaíso. Em todas elas, mantém-se o desejo de instaurar
uma “dimensão lúdica” para o convívio na cidade, vislumbrar o espaço urbano como

                                                                                                               
226
Intitulado Desenho para o New Look, pertence à família de Flávio de Carvalho.
227
As imagens pertencem ao arquivo de Leonardo Crescenti e à coleção do MAB-FAAP.
Várias de suas cópias de exibição foram feitas na ocasião da retrospectiva de 1999. Outras,
feitas em 2010 para a mostra Desvios de la deriva, ficaram na coleção do MNCARS.
228
Ao apresentar a compilação Apologia da deriva, Paola Berenstein Jacques afirma que o
“pensamento urbano situacionista” deve ser visto como “um apelo contra a espetacularização
das cidades e um manifesto pela participação efetiva – não apenas para parecer
“politicamente correto” como vem ocorrendo –, da população nas decisões urbanas.
(JACQUES, 2002, p. 30) O termo “espetáculo” aparece nos escritos de Guy Débord já no
período em que engajou-se na Internacional Situacionista. Em 1967, o autor escreve A
sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo e em 1973 lança um
filme homônimo.

  154  
propício para o jogo e para as inúmeras formas de “atuação” e “emancipação” de seus
habitantes229.

Interessa aos “poetas-arquitetos” de Desvíos de la deriva assumir a cidade


como extensão da casa, palco para os protagonismos individuais alçados às
repercussões e negociações da vida pública e em sociedade. Esta vocação comum é
sinalizada expograficamente com a escolha de abrir uma das entradas da mostra230
com dois exemplares da revista Habitat. Editada no Brasil entre 1950 e 1954, a
publicação foi criada por Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi. Esta última, além de
fomentar na revista o debate sobre a síntese das artes (em seu caso, desenvolvida em
torno do convívio entre as formas artesanais e industriais, vernaculares e modernas),
perseguiu em sua prática projetual um desenho correspondente à “terra onde é
praticado”231 e à concepção de espaços sociais e lúdicos.

Para Lisette Lagnado232, esta é a razão para a sua inclusão na coletiva, com
projetos como o Sesc Pompéia (1977), os Espaços de Uso Público (1951), a Casa de
Vidro (1955), o Museu de Arte de São Paulo (1957 – 1968), o Trem das Artes do
MAC-USP (1969), dentre outros233. Apesar de não exatamente poder ser considerada
uma “utopista”, pois conseguiu construir obras de grande relevância ao longo de toda
a sua carreira no Brasil, Lina Bo Bardi difere da geração de arquitetos que também
construia à época, à luz da cartilha de Le Corbusier.

O mestre do modernismo cartesiano e funcionalista é trazido para o contexto


da exposição para que, de alguma maneira, as espectativas sobre a sua produção mais
notória e sobre o seu papel de grande influenciador da arquitetura moderna brasileira

                                                                                                               
229
Esta idéia é formulada por Lisette Lagnado (Cf. LAGNADO, 2010, p. 62) a partir da
leitura do livro Homo Ludens, de Johan Huizinga.
230
A mostra podia ser acessada pelos edifícios Sabatini ou Nouvel. Ambos compõem o
conjunto arquitetônico do MNCARS.
231
http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-deriva.html (visualizado
em 13/12/11)
232
Em video institucional realizado pelo MNCARS para apresentar a exposição, com
depoimentos dela e da curadora-adjunta Maria Berríos.
(http://www.museoreinasofia.es/archivo/videos/2010/desvios-deriva.html) (visualizado em
13/12/11)
233
Ao todo, são incluídos através de esboços, plantas, cortes e fotografias, 16 projetos de Lina
Bo Bardi. O conjunto abarca a sua atuação nas áreas de arquitetura, design de mobiliário e
editorial.

  155  
sejam frustradas. Vê-se assim um Le Corbusier “específico”, “afetado por”234 suas
duas visitas ao Brasil, em 1929 e 1936. Pelos esboços de suas conferências235 e pelo
desenho Poesia, dispostos dissociadamente – ora sobre o mobiliário vazado ora sobre
as paredes e sempre confrontados com obras de outras autorias –, vê-se as curvas e as
errâncias da topografia carioca insidirem no traçado de Le Corbusier, a exemplo de A
lei do meandro (1929). Vê-se a cultura e a geografia brasileiras tensionarem suas
ambições arquitetônicas e urbanísticas, como demonstra Perspectiva sobre a baía do
Rio, da mesma data.

Imagem 40 - Perspectiva sobre a baía do Rio, Le Corbusier. Fonte: Pablo Leon de la Barra.

O desenho e a memória da fala do arquiteto suíço em conferência representam suas


ideias para uma intervenção urbanística do Rio de Janeiro, através da construção de
uma “imensa auto-estrada que ligaria, a meia-altura, os dedos dos promontórios
abertos sobre o mar, de modo a unir rapidamente a cidade”236 (CORBUSIER, 2004, p.
235). A proposta confronta-se na galeria do MNCARS com o Projeto Rio do Futuro
(1963) e o For you (s.d.), em que Sérgio Bernardes “adquire conotações de ficção

                                                                                                               
234
Segundo o relato da curadora-adjunta Maria Berríos no video institucional do MNCARS.
235
As conferências são “Conferência”; “Cidade histórica e cidade moderna, funcionamento
dos serviços comuns”; A lei do meandro”; “Perspectiva desde a baía do Rio” (1929); “O
prolongamento dos serviços públicos”; “Grandeza de visão na época dos projetos de futuro”;
Ócio e ocupação na civilização das máquinas”; Programa de ua faculdade de arquitetura”
(1936). O desenho Poesia não possui data.
236
No texto “Corolário brasileiro”, escrito em 1930, a posteriori à primeira visita e ao
sobrevôo da cidade proporcionado ao arquiteto na ocasião. O texto foi publicado na
compilação Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, cujo original
data de 1930 e a edição brasileira de 2004.

  156  
cientítica" ao vislumbrar bairros verticais e “um continente unido por aquedutos”
(LAGNADO, 2010, p. 65). Apesar do caráter intervencionista que poderia aproximar
as obras237 de Sérgio Bernardes das de Le Corbusier, sobressai nestas primeiras sua
visão macro-estrutural, humanista e geopoliticamente orientada. Por estes aspectos, a
pesquisa de Sérgio Bernardes nas áreas de arquitetura, design de mobiliário e de
soluções construtivas e ecologia significa um “desvio de rota”238 com relação à matriz
corbusiana.

Outras trajetórias desviantes a partir de Le Corbusier são as de Juan Borchers


e Roberto Matta. O primeiro, atuante entre os anos 1940 e os 1970, é trazido para a
exposição com uma série de cadernos em que anota e analiza o que encontra pelo
caminho (desde pequenas vegetações até grandes estruturas) nos quase dez anos em
que vive como um viajante pela Europa. Em sua “teoria orgânica da arquitetura”, o
desenho figura não apenas como forma final ou plano de execução, mas elemento
constituinte em si mesmo de um processo de investigação. Por isso a importância dos
cadernos – e a sua instalação numa vitrine em que, por estarem semi-abertos e
dispostos sequencialmente, assemelham-se a borboletas – no conjunto que ainda
contém o dispositivo para a intervenção efêmera Los Canelos (1957 – 1958) e alguns
desenhos e plantas arquitetônicas.

Imagem 41 - Vitrine com cadernos de Juan Borchers. Fonte: Flickr MNCARS.

                                                                                                               
237
Além dos dois projetos mencionados, apresentados através de esboços originais e
reproduções de desenhos e fotografias em slide-shows, também figuram na exposição plantas
do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Bruxelas (1958).
238
Segundo Maria Berríos no video institucional do MNCARS.

  157  
Já a trajetória do desvio empreendido por Roberto Matta começa por uma ruptura
concreta. No começo de sua carreira, o artista deixa o Chile para trabalhar no
escritório do mestre suíço entre 1934 e 1936, quando rompe com o modernismo
racionalista e passa a dedicar-se a “investigações atentas ao papel do inconsciente na
conquista da felicidade”239. Seu agrupamento de desenhos, pinturas e projetos
expostos cobre o intervalo de 1936 (Architectural study) a 1954 (Oeufficiency),
justamente o período de sua transição rumo às Morfologias psicológicas e a uma
concepção de espaço sensível e “erotizado”.

Imagem 42 - Morfologia, de Roberto Matta. Fonte: Pablo Leon de la Barra.

Esta concepção o aproxima de Flávio de Carvalho, pelas “linhas de força”, pelo


“apalpar da alma coletiva” na Experiência nº2, pela metáfora de um “laboratório de
erótica” em A cidade do homem nu, ou seja, pelas inúmeras formas de empreender
uma investigação psicológica e surrealista em sua prática artística240 e arquitetônica.
O texto curatorial observa que em lugar de Le Corbusier – que o estigmatizara em
encontro em São Paulo, em 1929, como um “revolucionário romântico”241 –, Flávio

                                                                                                               
239
Cf. LAGNADO, 2010, p. 60.
240
Especificamente nas pinturas A inferioridade de Deus (1931), Ascensão definitiva de
Cristo (1932), Retrato ancestral (1932), que configuram uma tendência surrealista na início
da trajetória do artista e aproximam-se da temática tratada nas ilustrações do livro
Experiência nº2. As três pinturas estão presentes na mostra.
241
O apelido é citado por vários dos autores que escrevem biografias e trabalhos teóricos
sobre Flávio de Carvalho. Em 1987, ele dá nome a livro escrito por Sangirardi Jr.

  158  
de Carvalho teria eleito Sigmund Freud como principal norte teórico para seus
projetos, dos quais Desvíos de la deriva mostra substancial recorte242.

Por almejar a “elevação de sua singularidade a um plano de interesse


social”243, e para isso mobilizar disciplinas como a arte, a arquitetura, a moda, o
teatro, a psicologia, a antropologia e o jornalismo, Flávio de Carvalho é apontado
como “artista total” e autor de uma “arquitetura midiática”244. Os termos,
primeiramente empregados por Rui Moreira Leite, aparecem referendados e validados
na argumentação teórica de Lisette Lagnado.

Outra iniciativa prévia que a curadora incorpora no seu vocabulário (e na


constelação de autores e interlocutores mobilizados em seu processo de pesquisa) é a
apresentação da réplica da máscara do Bailado do Deus Morto no espaço expográfico,
como um elemento cênico dotado de iluminação posterior dramática. O display foi
concebido para a retrospectiva de Denise Mattar e para a reencenação do Bailado do
Deus Morto, ambas em 1999.

Como já não havia – ou ao menos não se tinha notícias de – máscaras originais


da peça no espólio ou nos acervos institucionais de Flávio de Carvalho, a curadora
confeccionou um conjunto delas245 e, após utilizá-las, doou-as para o MAB-FAAP.
Lisette Lagnado escolheu duas delas neste acervo e instalou-as sobre o mobiliário
vazado da mostra, entre fotografias da Vila América, de modo a instaurar naquele
ambiente a dimensão teatral que o artista-arquiteto procurou agregar ao
desenvolvimento de uma cidade simultaneamente antropófaga e moderna.

O elemento cênico faz juz à concepção do Teatro de Experiência (1933) na


origem do pensamento de Flávio de Carvalho, o que alimenta de maneira irreversível
                                                                                                               
242
Ao todo, são 13 projetos, documentados através de livros, plantas, esboços, fotografias e
maquetes, e montados sobre paredes, mobiliário expográfico e dentro de vitrines. Destacam-
se entre eles Eficácia (1927), o projeto para o Farol de Colombo (1928), a Fazenda Capuava
(1936 - 1939, fotografada por Leonardo Crescenti em 2000) e a Vila América (1936 - 1938).
Representam a produção de Flávio de Carvalho em desenho industrial e em cenografia,
respectivamente, a publicidade das persianas em alumínio Tropicalalumínio (1939) e o
esboço decoração de carnaval do Teatro Municipal (1936).
243
Cf. LAGNADO, 2010, p. 61.
244
Ibid., p. 61. Em Rui Moreira Leite, o termo “arquiteto midiático” é apresentado no artigo
“Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre” (Revista Leonardo, 2004) e “artista total”
aparece só no livro homônimo, lançado em 2008 (Ed. Senac).
245
Sete aparecem na encenação do Bailado do Deus morto e quatro são instaladas sobre a
parede da mostra retrospectiva que fez para o CCBB-RJ e para o MAB-FAAP.

  159  
sua prática. É curioso pensar a proximidade que o conceito de “experiência”
desdobrado do palco para o espaço social estabelece com a premissa da Escola de
Valparaíso de “arquitetura da experiência”. Registros em super-8 de aulas e viagens
para o interior do continente, a partir da costa, além de “travessias” e “rondas”,
ilustram como no cotidiano desta espécie de “Bauhaus dos trópicos” constrói-se
conhecimento artístico, arquitetônico e urbanístico a partir da experiência do sujeito
comum. Na Escola, vivencia-se a “arquitetura como ato poético”246, segundo indica a
curadora-adjunta María Berríos, encarregada da seção chilena da mostra.

Além dos registros audiovisuais, maquetes, quadros negros com registros de


aulas247, cadernos e notas documentam uma dinâmica pedagógica que, de 1952 até
hoje, aproxima arquitetura e urbanismo de arte e poesia e, deste forma, assume “o
mundo como lugar de continua aprendizagem arquitetônica”248. O projeto Ciudad
Abierta, fundado em 1970, sobre as dunas249 de Ritoque, nasce a partir do
estabelecimento de uma “constelação de ágoras”, materializando, assim, os ideais
pedagógicos e políticos dos alunos e professores da Escola.

Sermos de origem americana – sul-americana – significa estarmos


em um constante estado de formação: desenvolvendo-nos, vivemos
em uma tradição que nasce por plasmar constantemente a idéia que
informa seu próprio desenvolvimento (CRUZ e IOMMI in
TEIXEIRA, 2003).

O depoimento dos fundadores da Escola de Valparaíso, o artista chileno Alberto Cruz


e o poeta argentino Godofredo Iommi, estabelece a dialética sobre a qual edifica-se o
desafio de conceber o “novo mundo”. Vistos como “utopia sem eco”, por alguns, ou

                                                                                                               
246
No video institucional no MNCARS.
247
Foram expostos 18 de 59 quadros negros, feitos na ocasião da exposição de 20 anos da
Escola em 1972.
248
Segundo Maria Berríos no video institucional do MNCARS.
249
Segundo Carlos Moreira Teixeira, no artigo “Cooperativa Ciudad Abierta, Chile”
(Arquitextos, março de 2003), as dunas representavam para o grupo de fundadores do projeto
um “lugar da inocência”, onde o conhecimento e a experiência seriam constantemente
apagados pelas tempestades de areia em favor do novo.
(http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.034/698) (visualizado em 14/11/11)

  160  
como dotados de reais “condições de mudar o mundo”250, por outros, os exercícios
poético-arquitetônicos da Escola de Valparaíso e do conjunto de protagonistas
reunidos em Desvíos de la deriva ao menos conspiram contra uma “profecia
racionalista” e especulam sobre maneiras de ser moderno e sul-americano.

Esta é a modernidade que interessa à exposição, uma modernidade desviante e


“antropofágica”, tanto do cânone europeu (de modernidade, de deriva…) quanto dos
efeitos e influências da realidade climática, topográfica e cultural do continente. Uma
modernidade que pode ser vislumbrada na América do Sul por ser este um lugar
passível de converter-se “em um laboratório fértil de múltiplas heterotopias ou contra-
modelos”251.

A ideia de um laboratório estendido à escala social é justamente a metáfora


definida por Flávio de Carvalho na conferência “A cidade do homem nu” (1930), a
partir da qual o curador colombiano Inti Guerrero organiza no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, entre abril e junho de 2010252, uma exposição homônima, a
terceira e última a ser aqui analizada. A presença do artista nesta coletiva, que ocupa a
Sala Paulo Figueiredo em paralelo à retrospectiva curada por Rui Moreira Leite na
Grande Sala253, deve-se mais à criação de uma plataforma de debate do que à exibição
de um corpo extenso de obras.

Da trajetória de Flávio de Carvalho, além de “A cidade do homem nu”, que é


referendada no título, publicada no catálogo e usada como baliza para toda a
curadoria – o que perpassa a escolha dos temas discutidos e dos trabalhos, projetos e

                                                                                                               
250
Segundo Lisette Lagnado, no video institucional do MNCARS. O depoimento da curadora
indica que, naquela segunda metade dos anos 1950, “o arquiteto tinha as condições de
transformação do mundo”. Dai vem seu interesse por abordar iniciativas entre a arte e a
arquitetura, do contexto latino-americano da época.
251
Do site do MNCARS. (http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/2010/desvios-de-la-
deriva.html) (visualizado em 14/12/11)
252
O período de exibição de A cidade do homem nu coincide parcialmente com o de Desvios
de la deriva. Enquanto a primeira permaneceu aberta para visitação de 15 de abril a 13 de
junho de 2010, no MAM-SP, a segunda funcionau de 5 de maio a 23 de agosto do mesmo
ano, no MNCARS, em Madri, Espanha.
253
Esta associação temática entre as exposições da Sala Paulo Figueiredo e da Grande Sala é
uma prática constante do MAM-SP, conforme anteriormente mencionado. Esta é a maneira
que o museu encontrou de cumprir sua missão institucional (dedicada a discutir a passagem
entre o moderno e o contemporâneo) articulando visadas históricas e retrospectivas sobre
obras de artistas modernos (Grande Sala) com especulações e recorrências encontradas na
produção contemporânea (Sala Paulo Figueiredo).

  161  
documentos expostos –, só figura na exposição a Experiência nº3, através de uma foto
da caminhada de apresentação do traje e de uma vitrine com matérias de jornais e
revistas, entre elas a Manchete e a norte-americana Time, anunciando o curioso
episódio.

A figura deste “novo homem”, que porta saiote e blusão e, segundo as linhas
do texto apresentado em 1930, vive “sem tabus escolásticos”, “livre para raciocinar e
pensar” (CARVALHO in GUERREIRO, 2010, p. 7), elucida sobre a radicalidade das
propostas de Flávio de Carvalho. Sua identidade visionária e “contracultural”254,
demonstrada em algumas aparições públicas no ano de 1956, concretizaria a imagem
de um futuro até hoje inconcebível, ou, no mínimo estranho para uma maioria
conservadora da população.

Inti Guerrero percebe como o artista-arquiteto “feminiliza e também sexualiza


o corpo”255 ao vestir-se com saias curtas quando nem a minissaia feminina existia
ainda. Na composição de “A cidade do homem nu”, esta atitude confronta-se com
“artefatos culturais”256 contemporâneos ao New Look e abre possibilidades de
diálogos com iniciativas e contextos outros, seja de 1949, no caso isolado de um
protesto da juventude carioca, ou do período de 1970 a 2007, que abarca obras de
Cláudia Andujar (1970), Miguel Angel Rojas (1974 – 1980), Ney Matogrosso (1974-
1975), Daria Martin (2004), Eglé Budvytyté (2006), Cristina Lucas (2007) e Santiago
Monge (2007). Posteriormente à exposição, foi incluído no projeto o grupo teatral Dzi
Croquettes257 (1972 – 1976).

Nesta primeira chave de leitura, que réune “artefatos culturais” temporalmente


próximos à Experiência nº3, destaca-se uma fotografia tirada por autor

                                                                                                               
254
O termo “contracultural” é usado pelo curador numa visita guiada registrada em vídeo por
Cacá Vicalvi.
255
Em depoimento dado durante visita guiada da exposição, documentada em video por Caca
Vicalvi.
256
Cf. GUERRERO, 2010, p. 10.
257
No site do curador, o Dzi Croquettes consta na lista de artistas de A cidade do homem nu.
Esta inclusão é posterior à abertura da exposição, por isso o documentário Dzi Croquettes
(2009, direção Tatiana Issa & Raphael Alvarez), que conta a história do grupo teatral, não
figura nem na expografia nem no catálogo da mostra. Um trecho do filme, no entanto, foi
exibido no debate promovido pelo MAM sobre a exposição, com a presença de Inti Guerrero
e Luiz Camillo Osório. (http://intiguerrero.blogspot.com/2011/05/city-of-naked-man.html)
(visualizado em 15/12/11)

  162  
desconhecido258 na inauguração de Brasília259 em 1960. Ante os pilares do Palácio da
Alvorada parcialmente encobertos por algo como uma neblina ou uma luminosidade
forte, aparecem convidados da festa trajando smoking e cartola. O “dress code” de
fato anacrônico frente ao arrojamento de Brasília e, mais ainda, à moda proposta por
Flávio de Carvalho poucos anos antes, quando do início da construção daquela que
tornar-se-ia a “cidade do futuro”, símbolo do governo desenvolvimentista brasileiro,
leva o curador a enxergar uma atmosfera do passado, uma ambiência como a “Paris
dos anos 1930, no inverno”.

Sob a camada de mistério e dúvida de um fenômeno climático sobre o qual


não se sabe ao certo, vê-se aqui como Inti Guerrero tece uma narrativa curatorial
capaz de, simultaneamente, ancorar-se em evidencias históricas resultantes de um ano
de residência no Brasil260 e flertar com a ficção em diversos momentos.

Cultivada no contexto de um exposição que versa sobre utopias individuais


mas principalmente sociais, visto que calcada na metáfora do plano diretor de uma
cidade (a suposta “Cidade do homem nu”), esta ambigüidade torna-se um possível
comentário sobre a associação comum entre a validade de um projeto e a sua
concretização. Na sequência da mostra, o ruído de entendimento gerado pelos
elementos ficcionalizáveis da cena da festa de Brasília resvala pela sua vizinha, uma
série de sete imagens publicadas na Revista Cruzeiro, com o título A verdade andava
nua. As fotografias mostram jovens cariocas vestindo fraques e casacos de pele na
praia de Copacabana, em dezembro de 1949, em contestação à lei que proibira o uso
de roupas de banho nas ruas da cidade. O próprio absurdo da situação, neste caso,
suscita dúvidas: seria mesmo um protesto ou encenação, realidade ou ficção?

                                                                                                               
258
A informação sobre uma autoria desconhecida para esta fotografia aparece na lista de
obras da exposição.
259
Além da imagem mencionada, há outra fotografia da inauguração de Brasília na exposição.
Esta segunda retrata um grupo de candangos, com vestes pobres e fisionomias castigadas,
comemorando a conclusão do trabalho.
260
Durante o ano de 2008, o curador participou do programa de residências do Capacete.
Durante este período, freqüentou aulas na Universidade de São Paulo e iniciou o
levantamento de documentos que aparecem na exposição.

  163  
Imagem 43 - Documentação da Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.

Imagem 44 - Fotos de Brasília, A verdade andava nua e Experiência nº3. Fonte: MAM-SP.

O debate “histórico” que réune A verdade andava nua, Brasília e Experiência nº3
concentra-se no coração da expografia que a arquiteta Marta Bogéa estrutura em torno
de uma disposição triangular de painéis. Uma opção de desenho que, além de criar
ambientes contidos e proporcionar uma circulação completa pelo espaço, também
pode sugerir simbologias sexuais e religiosas cabíveis ao contexto da mostra.

Dentre todos os equipamentos e núcleos urbanos descritos por Flávio de


Carvalho para definir o plano diretor do que seria a Cidade do homem nu, a “zona
erótica” provoca especial interesse de Inti Guerreiro. Sua concepção como “um
imenso laboratório onde se agitam os mais diversos desejos”, sem “nenhuma

  164  
restrição” ou “sacrifício”261, motiva a busca do curador por analogias contemporâneas
para os temas da liberação sexual e da transgressão de padrões de gênero e
sociabilidade.

Disposta na parede de abertura da mostra, a série Rua direita, feita por Cláudia
Andujar em 1970 – coincidentemente na mesma rua de São Paulo onde ocorreu a
Experiência nº2 –, inicia a espiral de obras e discussões de “A cidade do homem nu”
documentando o tenso “encontro” da câmera fotográfica da artista com os pedestres
que atravessam a calçada e que, naquele momento de ditadura militar, carecem de
liberdade para auto-representarem-se.

Imagem 45 - Rua Direita, de Claudia Andujar. Fonte: MAM-SP.

Resguardadas as diferenças de contextos, a iniciativa encontra ecos em Faenza262


(1979 – 1980), de Miguel Angel Rojas e em Secta (2006), de Eglé Budvytyté. Sendo
a primeira o registro fotográfico de uma situação real – encontros gay nos cinemas de
Bogotá – e a segunda um video documentário que cultiva a falácia de uma
comunidade alternativa, ambas criam visibilidade para transgressões cotidianas, ou
“maus usos do espaço público”263.

Um outro grupo de trabalhos desloca essa narrativa de transgressões e “maus


usos” para o tema da sexualidade, dos padrões e crises de um corpo biológico e

                                                                                                               
261
Cf. CARVALHO in GUERRERO, 2010, p. 29.
262
A série também foi exposta, com uma edição diferente, na 29a Bienal de São Paulo, poucos
meses depois de A cidade do homem nu.
263
Segundo o curador no depoimento dado a Cacá Vicalvi.

  165  
também social. Enquanto Santiago Monge (Burlesque: fotografia de archivo, 2007)
intervém sobre uma publicidade impressa de cuecas de modo a literalmente revelar as
camadas da doutrina cultural que, através das roupas e dos hábitos, encobrem o corpo
masculino do modelo, Cristina Lucas ironiza a emancipação da mulher na sociedade e
o enfrentamento de sexismos persistentes, a partir do video You can walk too, 2007. A
dupla ainda relaciona-se com Soft materials (2007), de Daria Martin. A video-
projeção exibe uma espécie de namoro entre uma máquina industrial e um garoto que
a descobre e deseja.

Seriam estas narrativas artísticas formas de, respondendo às supressões e


potencialidades do presente, atualizar a utopia “contracultural” de Flávio de
Carvalho? A curadoria faz suas apostas, e, ao encerrar a narrativa expográfica com
fotografias, figurino e videoclip de Ney Matogrosso, elege o cantor e performer como
um célebre signatário da ideologia legada pelo artista-arquiteto de uma vida livre e
despojada. Levando sua nudez andrógina para o mainstream da música brasileira, Ney
Matogrosso apontaria, desde os anos 1970, caminhos para uma “nova
tropicalidade”264.

Imagem 46 - Videoclip e figurino de Ney Matogrosso. Fonte: MAM-SP.

Seguindo as hipóteses traçadas por Inti Guerrero, somos levados a perceber a atuação
de Ney Matogrosso e dos demais artistas participantes da exposição como

                                                                                                               
264
Ibid.

  166  
“selvagerias individuais”265, gestos de cunho antropofágico que, conforme o texto de
Flávio de Carvalho, “procuram a ressurreição do primitivo” e mobilizam “todos os
seus desejos, toda a sua curiosidade inata não reprimida (...) em busca de uma
civilização nua” (CARVALHO in GUERRERO, 2010, p. 7).

A trajetória do artista prescreve que o êxito do antropófago dá-se pela


capacidade de confrontar e conviver com modelos estabelecidos, afirmar divergências
ante a “irracionalidade” comum às massas (“multidão”). Embora se possa perceber
que, ao declarar a Antropofagia como “única lei do mundo”, Flávio de Carvalho
almejava à “conversão de todos em antropófagos” (Cf. STIGGER, 2011, p. 608), o
emprego dessas termos e associações no contexto da mostra demanda ressalvas.

Isso porque, ao contrário da noção de utopia, que remete ao irresoluto e


imaginário, e assim permanece como uma fresta espaço-temporal sempre possível, a
Antropofagia denota uma estratégia de “emancipação cultural” brasileira em relação
às matrizes hegemônicas européias. Traz consigo, portanto, as especificidades de um
lugar e de seus personagens históricos. Mesmo que flexibilizado para realidades
outras que não apenas o centro econômico do Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) pós
Semana de 22, o termo mantém imperativa em sua definição o desejo de reverter uma
relação de subserviência/dominação cultural.

Flávio de Carvalho escrevera que Antropofagia é a “transformação


permanente de tabu em totem”, postulado que Verônica Stigger interpreta como sendo
“a transformação do valor oposto – o tabu, isto é, o proibido, o intocável – em valor
favorável – o tótem, isto é, o que é adorado” (STIGGER in OLIVEIRA FILHO, 2011,
p. 604). Sem que se reconheça os valores opostos, numa visada orientada
majoritariamente por afinidades eletivas e, por isso, muitas vezes distituída de
ambiências e fricções conjunturais, a mostra corre os riscos de, mirando a
Antropofagia, ter incorrido por prática irmã, porém politicamente divergente, o
canibalismo.

Segundo Paulo Herkenhoff, “diferenciamos antropofagia, como tradição


cultural brasileira, de canibalismo, prática simbólica, real ou metafórica de devoração
do outro” (HERKENHOFF, 1998, p. 23). As articulações feitas pela curadoria entre
                                                                                                               
265
Ibid.

  167  
artistas europeus e latino-americanos amortizam as especificidades de seus léxicos e
de suas posições geopolíticas de fala. Sem que estas especificidades definam os
termos e os riscos de convívio destes historicamente “diferentes”, sem que seja
atualizada uma dinâmica de alteridade e um projeto coletivo para a mesma, momentos
da mostra põem em prática uma “necrofagia visual” (Ibid., p. 24). Em tempos de
multiculturalismo e desterritorialização, esta operação tem os méritos de promover a
abertura de obras de arte para leituras diversas e originais, mas pode, com isso, tornar-
se ato celebratório de uma diferença despolitizada.

Situando-se neste limiar entre a antropofagia e o canibalismo, entre os


documentos históricos e as narrativas utópicas e ficcionais que se pode construir a
partir deles, A cidade do homem nu encerra o quadro de três exposições finais deste
capítulo. Calcadas em possíveis desdobramentos do marco teórico da Antropofagia,
todas elas acontecem em museus dotados de coleções e de iniciativas para pensá-las
criticamente. São realizadas com o ímpeto de promover “sentidos provisórios em
espaços museológicos permanentes”266 e, desta maneira, contribuem para a ampliação
das formas de acessar e perceber o legado de Flávio de Carvalho na
contemporaneidade.

                                                                                                               
266
Cf. HEINICH e POLLAK in FERGUNSON, GREENBERG e NAIRNE, 1996, p. 237)

  168  
4. Considerações finais

Todas as ideias expostas, todas as conclusões


são tentativas para atingir uma suposta verdade.
Algumas das exposições se apresentam de uma
maneira aparentemente exagerada, é uma
ampliação da vida normal, uma espécie de visão
microscópica da vida anímica, fenômeno
ilusório e imperceptível a olho nu”
Flávio de Carvalho, 1932.

Este trabalho revisou as principais leituras da obra de Flávio de Carvalho de modo a


encontrar nelas apontamentos que indiquem de que maneira o legado do artista incide
sobre o nosso presente. Considerá-lo contemporâneo envolveu observar como, a
despeito de estar cronologicamente circunscrito em um contexto moderno, o artista
antecipou questões da arte contemporânea e, mais ainda, relacionou-se com o seu
tempo de modo a “não coincidir perfeitamente com este” (Cf. AGAMBEN, 2009, p.
58).
Destoando do debate dominante em seu meio século de atividade artística e
intelectual, Flávio de Carvalho formulou temas que permaneceram em suspensão até
depois de sua morte. A capacidade e a urgência do meio crítico – de Luiz Carlos
Daher, no fim dos anos 1970, até curadores e ensaistas atuantes nos anos 2000 – para
acessar o artista e sistematizar trabalhos sobre sua obra indicam outro aspecto de sua
contemporaneidade: a disponibilidade crítica e interpretativa, que mobilizou uma rede
de “conversas” entre interlocutores extemporâneos.
No epílogo do livro Experiência nº2, Flávio de Carvalho anuncia sua “visão
microscópica da vida anímica”, sua perspectiva sobre o “fenômeno ilusório e
imperceptível a olho nú” que presenciou no embate com a procissão. A habilidade é
compatível com a descrição que Giorgio Agamben faz dos atributos do
“contemporâneo”:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente


contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,
nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido,
inatural; mas, exatamente por isso, exatamente através desse
deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os

  169  
outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2008,
pp. 58 – 59)

Cabe ao contemporâneo perceber o que o “olho nu” não alcança, apreender não
apenas o que se anuncia de um tempo mas também o que permanece nas suas
“sombras” (Ibid., p. 73), fora de suas narrativas hegemônicas. Esta habilidade,
aferível na escrita e na conduta de um artista como Flávio de Carvalho, certamente
pode ser estendida para a prática (ou, ao menos, para a tarefa) do crítico de arte.
Nos trabalhos teóricos e curatoriais revisados ao longo desta dissertação, são
comuns a reflexão sobre noções previamente convencionadas e o foco no alargamento
de vocabulário crítico e de possibilidades de leitura do objeto de pesquisa. A partir
deste conjunto de trabalhos, pudemos acessar como Flávio de Carvalho posicionou-se
ante seu tempo (1899 – 1973), e, numa segunda camada, como o nosso tempo (1979 –
2010267) formulou um espectro de versões para definir o artista.
Ao considerar e tematizar a atividade crítica e interpretativa como foco
principal desta dissertação, vivenciamos o que Roland Barthes denomina “fantasia de
concomitância”. O filósofo pergunta-se: “de quem sou contemporâneo? Com quem é
que eu vivo? O calendário não responde bem. É o que indica nosso pequeno jogo
cronológico – a menos que eles se tornem contemporâneos agora?” (Cf. BARTHES,
2003, pp. 11-12). Através da cadeia de proposições artísticas, teóricas e curatoriais
aqui consideradas, Flávio de Carvalho e seus intérpretes tornam-se contemporâneos,
mesmo que suas atividades permaneçam cronologicamente distanciadas e que suas
“conversas” não tenham chegado a acontecer de fato.
Para Luiz Carlos Daher, Rui Moreira Leite, Denise Mattar, Luiz Camillo
Osório, Annateresa Fabris, Victoria Noorthoorn, Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos,
Jorge Schwartz, Lisette Lagnado e Inti Guerreiro, além de outros teóricos ou
curadores mencionados, a história de Flávio de Carvalho apresenta-se como uma
oportunidade de “voltar a um presente em que jamais estivemos” (Cf. AGAMBEN,
2008, p. 70). Estas diferentes condutas de pesquisa retrospectiva demonstram que, ao
acessar o passado desde urgências e faculdades de análise atuais, destituímos a
narrativa histórica de uma apreciação consolidada e canônica e a envolvemos em
novos ímpetos de revisão e enunciação.

                                                                                                               
267
Se consideradas as datas dos trabalhos revisados.

  170  
Num país como o Brasil, cuja historiografia da arte é escassa e em vários
aspectos ainda vinculada a uma matriz européia e norte-americana, o exercício
narrativo e interpretativo sobre o nosso passado é preponderante também para se
entender as aspirações políticas que se tem no presente. Segundo Walter Benjamin, o
passado deixa “rastros e reminiscências” que nos alcançam, “traz consigo um índice
misterioso que o impele à redenção”.

Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que
emudecem? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não
chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto,
marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra
está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos
concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige
um apelo. (BENJAMIN, 1994, p. 223)

O passado narrado nesta dissertação recorrentemente apontou para projetos ou


ideários que, desde a atualidade, sabemos terem sido abortados ou vencidos no
processo histórico. A arquitetura “expressionista” de Flávio de Carvalho, descrita por
Luiz Carlos Daher, é uma notória dissidente de uma vertente do modernismo que
resultou num estilo amplamente construído e ainda hoje constituinte da arquitetura
brasileira. Os Salões de Maio, descritos principalmente por Rui Moreira Leite,
demarcam um início outro para a internacionalização institucional da arte brasileira
que costumamos vincular à Bienal de São Paulo. O Bailado do Deus Morto e o New
Look rememoram marcos nunca convencionados para o início de uma modernidade
no teatro e na moda do país.

O somatório de falas reunidas nesta dissertação configurou um Flávio de


Carvalho em diversos momentos lateral às agendas artísticas dominantes em seu
tempo. Talvez por isso, e por sua natural dissociação das iniciativas oficiais que
incamparam, através de investimentos nos campos da arquitetura e da arte, uma
imagem de Brasil em desenvolvimento nos anos 1950 e início dos 1960, o artista
manteve-se como alternativa aos padrões e premissas que vimos serem saturados pelo
tempo. Seu conteúdo crítico e utópico permaneceram latentes até a atualidade. Em
uma época de crescimento econômico e profissionalização do circuito e do mercado
da arte brasileiro – fatores que, além de suscitar promessas de investimentos no

  171  
sistema da arte, evocam tomadas de posição de seus agentes –, vimos que o artista
suscitou crescente interesse do meio crítico.

Segundo Manuel J. Borja-Villel, a conjuntura presente “não nos permite narrar


a história a partir de uma voz única, mas demanda nossa imersão na multiplicidade de
micro-narrativas que geram uma nova cartografia da arte.” (Cf. BORJA-VILLEL in
WALLACE, 2010, p. 260). A constatação do autor, baseada numa crítica ao caráter
eurocêntrico da história (da arte) moderna, evoca uma tomada de posição neste
momento do século XXI em que o mundo passa por uma “crise sistêmica” e seu “Sul
geopolítico” (Cf. Ibid., p. 256) vislumbra a possibilidade de soberania econômica e
cultural.

Neste momento em que paradigmas históricos encontram-se na iminência (ou


ainda na urgência) de serem recriados – como demonstram iniciativas como a 7a
Bienal do Mercosul, a 29a Bienal de São Paulo e Desvios de la deriva – trazer para a
contemporaneidade um interlocutor como Flávio de Carvalho, responsável por
adensar o debate de uma modernidade brasileira desde meados dos anos 1920, tem
ampla validade política. A divergência sempre expressa do artista contribui para a
formulação de um repertório que problematiza a noção de “totalidade” e propõe em
seu lugar a ideia de “exterioridade”.

Interpelação – o ato de fala que permite ele/ela que está fora das
estuturas discursivas, isto é, fora do sistema de inteligibilidade, que
fale – é o momento desta exterioridade, de um ser diferente,
diferente da comunidade institucional oficial que protege somente
seus interesses. Essa exterioridade não nega a comunidade, mas a
assume como um lugar de convergência de pessoas e grupos livres
para estarem em desentendimento. (Ibid., p. 256)

Pode-se concluir que, muito anteriormente ao advento do multiculturalismo, que


fundamenta o argumento de Borja-Villel, Flávio de Carvalho praticou a
“interpelação”, colocou-se e colocou sua obra em diversas situações de
“exterioridade”. Instaurando embates indivíduo x multidão, artista x sociedade,
brasileiro x internacional, ele incorporou a vivência política em sua prática e ressaltou
a multiplicidade de vozes (a existência de uma “comunidade”, diria o autor) na
construção dos processos históricos.

  172  
A atitude de Flávio de Carvalho inspira e embasa a opção deste trabalho por
abordar sua trajetória através da composição de um painel multifacetado de leituras e
autorias. Ora somando-se, ora confrontando-se entre si, o conjunto de interpretações
aqui reunidas constitui um debate do campo acadêmico e curatorial e indica como,
entre conflitos e acordos, são gerados marcos teóricos e bibliografias da obra do
artista na história da arte brasileira.

O esforço coletivo de repretentantes do meio crítico do país de, entre 1979 e


2010, revisar as bases e escrever a história da arte moderna, dando-lhe a dimensão de
origem e contraponto para a discussão contemporânea268, refuta uma ideologia de
progresso e descarte que cresce na indústria cultural. Como contraponto de iniciativas
dedicadas a sempre prospectar novidades (o jovem artista, a nova obra/mercadoria, o
“espetáculo”, o contemporâneo como uma tautologia de um presente celebratório269),
sem responsabilizar-se por contextualizá-las ou acompanhar a longo prazo seus
desdobramentos, esta dissertação posiciona-se em favor da inscrição da reflexão
histórica na atividade crítica e curatorial.

Boris Groys explica a dissociação entre presente e história observando que:

(…) sob as condições de nossa civilização contemporânea focada


em produtos, o tempo tem de fato problemas quando ele é
concebido como improdutivo, desperdiçado, sem sentido. Tal tempo
improdutivo é excluído das narrativas históricas, colocado em risco
de extinção pela perspectiva de total apagamento. (GROYS in
OLIVA, 2010, p. 124)

                                                                                                               
268
A October 130, lançada no outono de 2009, publicou o dossiê “Questionnaire on ‘The
Contemporary’”, uma coletânea de textos curtos em que críticos e curadores baseados nos Estados
Unidos e na Europa respondem a questões colocadas por um dos editores da revista, Hal Foster: “is this
floating free [do contemporâneo, da contemporaneidade] real or imagined? A merely local perception?
A simple effect of the end-of-grand-narratives? It it is real, how can we specify some of its principal
causes, that is, beyond general references to “the market” and “globalization”? Or is it indeed a direct
outcome of a neoliberal economy, one that, moreover, is now in crisis? What are some of its salient
consequences for artists, critics, curators, and historians – for their information and their practice alike?
Are there collteral effects in other fields of art history? Are there instructive analogies to be drawn
from the situation in other arts and disciplines? Finally, are there benefits to this apparent lightness of
being?” (FOSTER, p. 3)
269
“É tudo tão contemporâneo, tão contemporâneo, tão contemporâneo...”, afirma Lisette
Lagnado na sua participação no seminário História e(m) movimento, no MAM-SP, em 2009.
Citando o tema de uma performance do artista Tino Sehgal, a curadora demonstra sua crítica
a uma relação tautológica com o presente e com a arte contemporânea na indústria cultural.

  173  
Na lógica do mercado, este “tempo excedente” (Cf. Ibid., p. 125) seria o passado
aparentemente concluso e desarticulado da atualidade; um tempo, por isso,
“improdutivo” e “desperdiçado”, como define o autor. No entanto, para o
“contemporâneo”, é justamente este “tempo excedente” a instância em que se pode
buscar a dilatação das nossas capacidade de apreender criticamente a história. Groys
defende que este é o tempo de “reescritura”, de trazer a compreensão histórica para a
experiência do intérprete e, com isso, habilitá-lo a tornar-se agente da história.

Esse movimento de “reescritura” resulta em “proliferações constantes das


narrativas históricas” (Cf. Ibid., p. 122), compatíveis com a necessidade de inclusão
de outros autores e narrativas nos arquivos de um mundo pós-colonial. Ele também
instaura a possibilidade de se politizar o processo histórico. Se Walter Benjamin diz
que, na modernidade, “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (Cf. BENJAMIN, 2008, p.
229), em uma contemporaneidade crítica, Agamben defende que existem condições e
urgências para “desomogeneizar” as narrativas históricas e “interpolá-las” espaço-
temporalmente, segundo a subjetividade e a posição de fala de seus intérpretes.

Apesar de, no escopo desta dissertação, esse quadro teórico não constar
exatamente como um fim, ele motivou e paramentou ideologicamente a investigação
sobre a obra de Flávio de Carvalho. Isto porque, ao fazê-lo através da identificação e
da costura de uma rede de autores que teceram versões do artista desde contextos tão
diversos, eu naturalmente cultivava um interesse não só nos assuntos de suas
interpretações mas também no ato de interpretar.

Desejava distanciar-me dos apelos do meu presente imediato para vislumbrar


em perspectiva mecanismos de narração e valoração na história da arte. E, a partir
deles, pensar criticamente o meu presente. O sentido de crítica aqui empregado
inspira-se na atitude de Flávio de Carvalho de ser “contemporâneo”, ou “inatural”
ante seu tempo, conforme a definição agambeniana. Numa segunda instância,
criticidade também tem a ver com a aposta na historicidade da pesquisa e da produção
artísticas, ao modo como concebem, à revelia da ideologia do descarte, o próprio
Flávio de Carvalho e seus intérpretes.

Pela relevância do artista e de sua obra na história da arte brasileira, e pela


distância entre sua trajetória e o presente, é natural que o universo de autores e

  174  
escritos que o tematizam seja maior do que esta dissertação conseguiu cobrir.
Certamente, o trabalho aqui iniciado poderia envolver outros objetos de estudo.
Poderia também aprofundar os tópicos abordados através da realização de entrevistas
e da análise da repercussão das curadorias na imprensa, por exemplo, ou versar mais
extensivamente sobre problemáticas que o tangenciam, como a definição de um
estatuto para o contemporâneo, a história das exposições e a historiografia crítica da
arte.

Entretanto, este trabalho se encerra enquanto dissertação de mestrado. Sua


realização foi fundamental para minha apropriação de uma sistemática de escrita e
publicação orientada para a comunidade acadêmica, com a qual espero contribuir a
partir do desenho deste mapa de fontes e ideias acerca da obra de Flávio de Carvalho.
A dissertação também deixou claros caminhos para a continuidade de uma pesquisa
teórica, que espero realizar junto a um programa de Doutorado.

 
 

  175  
ANEXO A – Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do
Mercosul, MARGS
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP

  176  
ANEXO A: Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP
ANEXO A – Planta arquitetônica da mostra Flávio de Carvalho, MAM-SP

177

  177  
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP
ANEXO B: Planta arquitetônica da mostra MAM 60, MAM-SP

178

  178  
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal
ANEXO C: Planta arquitetônica da 29a Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal

2º Piso

3º Piso

179

  179  
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do
Mercosul, MARGS
ANEXO D: Planta arquitetônica da mostra Desenho das ideias - 7a Bienal do Mercosul, MARGS

181

  180  
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP
ANEXO E: Planta arquitetônica da mostra A cidade do homem nu, MAM-SP

181

  181  
Bibliografia

Bibliografia Geral

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