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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

TERESINHA DE OLIVEIRA CARMO

Os provérbios e as expressões populares nos contos de João Antônio

São Paulo
2019
TERESINHA DE OLIVEIRA CARMO

Os provérbios e as expressões populares nos contos de João Antônio

Doutorado em Língua Portuguesa

Tese apresentada à banca examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutora em Língua Portuguesa, sob
orientação da Professora Doutora Ana Rosa
Ferreira Dias.

São Paulo
2019
Banca Examinadora:

_______________________________

_______________________________

_______________________________

_______________________________

_______________________________
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes), código de financiamento 88887.150530/2017-00.
AGRADECIMENTOS

A Deus, primeiramente, porque, até aqui, ajudou-nos o Senhor.


À professora doutora Ana Rosa Ferreira Dias, pela paciência e pela dedicação a mim
dispensadas durante o desenvolvimento desta tese.
Às professoras doutoras Sueli Cristina Marquesi e Jahilda Lourenço de Almeida, que
compuseram a banca do exame de qualificação e apresentaram valiosas contribuições para esta
pesquisa.
Aos meus amigos da PUC e da E. E. Roberto Mange, que sempre me apoiaram; em especial à
minha amiga e companheira, professora Rita de Cássia de Deus, pelo precioso apoio ao meu
trabalho.
Ao meu querido amigo João Alves Almeida (in memoriam), que não partiu sem antes me
mostrar o caminho a ser seguido.
À minha amada família, por ter suportado com muito carinho as minhas ausências.
Ao meu amado esposo Denis do Carmo, pelo apoio e pela paciência nas horas mais difíceis.
Aos meus filhos Beatriz e Gustavo, razões da minha vida.
À Igreja de Cristo, situada em Jardim Itajaí, pelo grande incentivo à minha pesquisa.
Bem-aventurado o homem que acha sabedoria, e
o homem que adquire conhecimento.

Provérbios 3: 13
RESUMO

Esta tese trata-se de um estudo linguístico-discursivo de contos de João Antônio e está


vinculada à linha de pesquisa Texto e discurso nas modalidades oral e escrita, do Programa de
Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. De modo a desenvolvermos este estudo, estabelecemos a seguinte pergunta de pesquisa:
Como João Antônio se vale de provérbios e de frases feitas, assim como de figuras de linguagem
para dar expressividade à voz dos personagens no processo interacional? Essa questão nos levou
a definir o seguinte objetivo geral: estudar as relações entre língua e sociedade na prosa de João
Antônio. Já os objetivos específicos são: identificar, descrever e analisar os elementos
linguístico-discursivos presentes na obra de João Antônio, na caracterização dos personagens;
verificar a função dos recursos linguístico-discursivos na interação entre os personagens;
analisar as estratégias persuasivas presentes nos provérbios e nas expressões populares que
compõem os contos do autor que ora apresentamos. O aporte teórico que nos embasa é
constituído principalmente por Maingueneau (2013), Obelkevich (1997), Preti (2004; 1977;
2002), (1960) Cascudo (2012), Pinto (2003), Almeida (2009), Marcuschi (2001), Nóbrega
(2008) e Brait (1999). O corpus é composto por nove contos escritos por João Antônio, a saber:
Busca, Afinação da arte de chutar tampinhas, Fujie, Retalhos de fome numa tarde de G.C,
Natal na cafua, Frio, Visita, Meninão do Caixote, Malagueta, Perus e Bacanaço. Os resultados
obtidos indicam que os provérbios, frases feitas e expressões populares estão a serviço da
dinâmica interacional entre os personagens, conferindo aos mesmos autoridade de voz e força
argumentativa.

Palavras-chave: Interação. Provérbios. Frases feitas. Expressões populares.


ABSTRACT

This thesis is a linguistic-discursive study of short stories by João Antônio and it is linked to
the line of research Text and speech in the oral and written modalities, of the Postgraduate
Studies in Portuguese Language Program at the Pontifical Catholic University of São Paulo. In
order to develop this study, we established the following research question: How does João
Antonio rely upon proverbs and clichés, as well as figures of speech to give expression to the
characters' voice in the interactional process? This question led us to define the following
general objective: to study the relationship between language and society in prose of João
Antônio. The specific objectives are to: identify, describe and analyze the linguistic-discursive
elements present in the work of João Antônio, in the characterization of the characters; verify
the function of the linguistic-discursive resources in the interaction between the characters;
analyze the persuasive strategies present in the proverbs and popular expressions that composes
the short stories of the author that we present. The theoretical contribution that supports us is
made by Maingueneau (2013), Obelkevich (1997), Preti (2004, 1977, 2002), Cascudo (2012),
Pinto (2003), Almeida (2009), Marcuschi (2001), Nóbrega (2008) and Brait (1999). The corpus
is composed of nine short stories written by João Antônio, namely: Busca, Afinação da arte de
chutar tampinhas, Fujie, Retalhos de fome numa tarde de G.C, Natal na cafua, Frio, Visita,
Meninão do Caixote, Malagueta, Perus e Bacanaço. The results obtained indicate that the
proverbs, clichés and popular expressions are at the service of the interactional dynamics
between the characters, giving them voice authority and argumentative force.

Keywords: Interaction. Proverbs. Clichés. Popular expressions.


SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................................... 10
1 Contextualização da pesquisa e constituição do corpus.............................................. 12
1.1 Vida e obra de João Antônio............................................................................. 12
1.2 Constituição do corpus..................................................................................... 23
2 Fundamentação teórica................................................................................................ 24
2.1 Provérbios......................................................................................................... 24
2.1.1 Captação e subversão nos provérbios............................................................. 32
2.1.2 Enunciação proverbial irônica....................................................................... 32
2.2 Figuras de linguagem........................................................................................ 34
2.2.1 Expressões metafóricas.................................................................................. 34
2.2.2 Expressões comparativas............................................................................... 36
2.2.3 Expressões metonímicas................................................................................ 37
2.3 A propósito das frases feitas e expressões populares........................................ 38
2.3.1 Expressões populares como forma de interação............................................. 41
2.4 O papel da interação nos contos de João Antônio.............................................. 42
3 Análise do corpus........................................................................................................... 46
3.1 Busca................................................................................................................ 46
3.2 Afinação da arte de chutar tampinhas................................................................ 51
3.3 Fujie.................................................................................................................. 59
3.4 Retalhos de fome numa tarde de G.C................................................................ 67
3.5 Natal na cafua................................................................................................... 72
3.6 Frio................................................................................................................... 78
3.7 Visita................................................................................................................ 85
3.8 Meninão do Caixote.......................................................................................... 93
3.9 Malagueta, Perus e Bacanaço.......................................................................... 106
Considerações finais........................................................................................................ 142
Referências....................................................................................................................... 144
Anexos............................................................................................................................... 147
10
10

INTRODUÇÃO

Esta tese está vinculada à linha de pesquisa Texto e discurso nas modalidades oral e
escrita, do Programa de Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, e faz um estudo linguísticos-discursivos de contos
de João Antônio.

A prosa ficcional de João Antônio trata dos excluídos, dos marginalizados. Por meio da
linguagem, o autor caracteriza seus personagens e lhes dá força expressiva, busca uma
aproximação com a realidade conversacional cotidiana, bem como o rompimento de
preconceitos. Nesse sentido, este estudo justifica-se pelo valor literário e social da obra
de João Antônio.

Para desenvolvermos este trabalho, estabelecemos a seguinte pergunta de pesquisa: Como


João Antônio se vale de provérbios e de frases feitas, assim como de figuras de linguagem
para dar expressividade à voz dos personagens no processo interacional? Essa questão
nos levou a definir tanto o objetivo geral, qual seja, estudar as relações entre língua e
sociedade na prosa de João Antônio como os objetivos específicos, a saber: identificar,
descrever e analisar os elementos linguístico-discursivos presentes nos contos de João
Antônio, na caracterização dos personagens; verificar a função dos recursos linguístico-
discursivos na interação entre os personagens; analisar as estratégias persuasivas
presentes nos provérbios e nas expressões populares que compõem os contos do autor que
ora apresentamos.

Os provérbios são vistos como fonte de inspiração e conhecimento e destacam-se por


pertencerem à sabedoria popular, ao conjunto cultural e de conhecimentos de um povo,
transmitidos de geração a geração. Apesar de serem tratados, muitas vezes, como
expressões antigas, trazem em seu contexto ensinamentos atemporais. Além disso, sua
essência, o ensinamento que um provérbio carrega, dá-nos alicerce para sustentar
argumento, reconhecimento e autoridade para comprovar nossas opiniões e ideias.

João Antônio emprega os provérbios e as expressões populares não somente como


preocupação estética ou como forma de interação nos diálogos que ocorrem entre seus
personagens, mas também como forma de convencer os leitores de que as opiniões
emitidas por eles são fundamentadas em verdades.
11

Nesta pesquisa, acreditamos poder constatar que os provérbios e as expressões populares,


além das figuras de linguagem, constituem mecanismos de persuasão e estratégias
interacionais linguísticas que estão a serviço de um conhecimento que, por ser assertivo
e por gozar de credibilidade, não é contestado e atribui a seu usuário status de autoridade
e poder.

A fim de constituirmos o corpus, selecionamos os nove contos que compõem o livro


Malagueta, Perus e Bacanaço que integram a obra Contos reunidos, escrita pelo
pesquisador Rodrigo Lacerda, publicada em 2012, edição que reúne os principais contos
de João Antônio, assim como dois contos dispersos e um conto inédito.

Em relação ao aspecto metodológico, optamos pelos seguintes procedimentos: leitura dos


nove contos do livro Malagueta, Perus e Bacanaço; identificação de provérbios,
expressões populares e figuras de linguagem; análise dos elementos linguísticos e
discursivos que promovem a interação nos contos analisados, conforme as categorias de
análise selecionadas; discussão dos resultados obtidos na análise.

De maneira a apresentarmos o estudo desenvolvido, organizamos esta tese em três


capítulos, além da Introdução, das Considerações finais e das Referências. No Capítulo
1, explicitamos a constituição do corpus e contextualizamos a pesquisa, com atenção a
aspectos importantes da obra de João Antônio. No Capítulo 2, elencamos o aporte teórico
selecionado, especialmente aquele relacionado à interação, aos provérbios e às expressões
populares, suas origens e concepções. Já no Capítulo 3, analisamos os contos e discutimos
os resultados.
12

1 Contextualização da pesquisa e constituição do corpus

Neste capítulo, a fim de compreendermos a produção bibliográfica de João Antônio,


apresentamos, em um primeiro momento, aspectos de sua vida, assim como de sua obra,
uma vez que muitos elementos da realidade experimentada pelo autor estão retratados em
seus contos, fazendo com que eles constituam uma unidade de sentido. Posteriormente,
tratamos dos contos selecionados para análise e de como ocorreu sua seleção.

1.1 Vida e obra de João Antônio

A vida foi me dando porradas, me dando, até que aprendi a


escrever em qualquer canto. Sem precisar de casa ou de quarto.
Qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega a gana
de transmitir. Gana é um fato sério que dá convicção (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 14).

João Antônio Ferreira Filho nasceu no bairro Presidente Altino, Osasco, em 1937. Sua
mãe era Irene Gomes Ferreira, dona de casa, fluminense, descendente de escravos e
semianalfabeta; seu pai era João Antônio Ferreira, comerciante português, que, aos 32
anos, chegou ao Brasil. Teve uma infância pobre e viveu grande parte de sua vida em
meio à malandragem paulistana, era frequentador assíduo de bares e inferninhos noturnos.
Desde muito jovem ajudava o pai, trabalhava de dia e estudava à noite, e assim como as
pessoas com quem convivia, lutava pela sobrevivência.

Em 1944, mudou-se com a família para o bairro Pompeia, em São Paulo, e iniciou seus
estudos no Externato Henrique Dias. Essa época de sua vida foi relatada na obra Lambões
da Caçarola (Trabalhadores do Brasil)1, publicada em 1977. Nela, João Antônio expõe,
por meio de lembranças, a vida da população marginalizada da periferia da cidade de São
Paulo, a adoração pelo Corinthians e a admiração pela figura do presidente Getúlio

1
O bordão “Trabalhadores do Brasil”, repetido constantemente pelo autor, era uma expressão usada por
Getúlio Vargas em época de campanha eleitoral e que, posteriormente, tornou-se parte da abertura do
programa A voz do Brasil, transmitido todas as noites pelo rádio.
13

Vargas. O autor recorda o período getulista e sua repercussão na Vila Pompeia, no


chamado Beco da Onça, onde passou os primeiros anos de sua infância. Como Zeni
observa (2016: 49), tais relatos trazem “um retrato afetivo da comunidade do Beco da
Onça, a partir dos olhos do menino que passou a infância naquela área pobre da cidade,
enfatizando a relação entre o dia a dia dos moradores do Beco, a realidade política do país
e a figura de Getúlio”.

Ainda pequeno, João Antônio desenvolveu um gosto excepcional pela leitura, que, para
ele, era uma forma pela qual podia ver o mundo. Ornellas (2011) nota que o pai fazia João
Antônio ler jornais em voz alta, para que pudesse verificar sua aprendizagem. Isso fez
com que o menino apurasse o ouvido à sonoridade e ao sentido das palavras. Tanto quanto
a leitura, a escrita se fez presente na vida de João Antônio ainda muito cedo. Na pré-
adolescência, começou a publicar textos na revista infantojuvenil O Crisol e passou a
receber livros como pagamento pelas publicações.

Aos 17 anos, participou de um concurso literário organizado pelo jornal O Tempo, com
um conto intitulado Um preso. Ele venceu o concurso e teve como prêmio a publicação
de seu texto. Nessa época, estava terminando os estudos secundários, ao que se seguiu o
ingresso no curso noturno de jornalismo.

Em 1958, como relata Lacerda (2012: 17), João Antônio começou a ser reconhecido como
escritor: o jovem simples e de família humilde que vivia uma vida de boemia – haja vista
o pseudônimo que usava, Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha – passou a ser
reconhecido pela qualidade literária de suas obras.

Em 12 de agosto de 1960, já com Malagueta, Perus e Bacanaço terminado, os originais


dessa obra foram destruídos em um incêndio provocado por um ferro elétrico, que
consumiu a casa do autor por completo. Sua vida foi reduzida a cinzas. A família se
dividiu e João Antônio teve de viver, por muito tempo, às custas dos amigos de boemia.
Passava noites nos bares, nos hotéis da boca do lixo e, eventualmente, na casa em que os
pais, com extrema dificuldade, haviam conseguido alugar. O próprio autor relata o
impacto de sua perda:

Naquela casa, naquele meu quarto, eu trazia guardadas as coisas que me


acompanhavam desde os cinco anos de idade. Eu não escrevia em outro
lugar que não fosse o meu quarto porque fora dele eu não sabia escrever.
A vida foi me dando porradas, me dando, até que aprendi a escrever em
qualquer canto. Sem precisar de casa ou de quarto. Qualquer boteco é
14

lugar para escrever quando se carrega a gana de transmitir. Gana é um


fato sério que dá convicção (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 14).

O autor, depois de muito esforço, conseguiu reaver algumas cópias de Malagueta, Perus
e Bacanaço que havia enviado aos amigos para que o texto fosse analisado. Por sorte, ele
tinha o costume de sempre proceder dessa forma.

João Antônio vivia uma época em que não apenas problemas pessoais, mas também
políticos, o afligiam. A crise do governo Jânio Quadros havia prejudicado a publicação
de suas obras em razão do aumento do custo do papel. Apesar da tristeza que se fez
presente na vida do autor, ele sabia que o importante era escrever. Com esforço e graças
ao incentivo dos amigos, conseguiu um espaço na Biblioteca Municipal Mário de
Andrade para continuar Malagueta, Perus e Bacanaço. Lacerda (2012: 571) destaca o
relato de João Antônio, publicado apenas na terceira edição dessa obra, em 19802:

Para reescrever Malagueta, Perus e Bacanaço empreguei quase dois


anos, que não tinha quarto e quase nem casa. Rodei pensões,
bibliotecas, apartamentos de amigos, quartos mesquinhos de hotel;
enquanto, durante o dia, trabalhava em escritórios de mil coisas para
remendar dívidas e empenhos familiares. Aproveitei intervalos,
sacrifiquei domingos, mandei amigos andarem, desertei de muitas
coisas. Gramei sobre o papel, o livro veio vindo, vindo e está aí (grifo
do autor).

Em 1963, aos 26 anos, publicou seu primeiro livro, Malagueta, Perus e Bacanaço, com
o qual alcançou destaque no cenário literário ao ser reconhecido pela crítica. Essa obra
lhe rendeu diversos prêmios: o prêmio Fábio Prado e dois prêmios Jabuti, um como Autor
Revelação e outro como Melhor Livro de Contos.

Com essa publicação, João Antônio conferiu representatividade ao submundo da cidade


de São Paulo, sua gente, sua linguagem e seu modo de ser. Ao utilizar com maestria a
técnica do monólogo interior, “revela em profundidade a angústia dos personagens,
configurando também momentos de intenso lirismo que desnudam a alma de seres em
constante conflito com suas realidades” (ORNELLAS, 2011: 152).

O sucesso alcançado pelo livro, conferiu a João Antônio, três anos depois, um convite
para trabalhar no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, para onde se mudou. Assim, iniciou

2
Essa edição foi publicada pela editora Círculo do Livro.
15

sua carreira como repórter. Por não conseguir sobreviver exclusivamente da escrita de
contos, recorreu ao jornalismo, que combinou com a literatura. O diálogo que explorou
entre essas duas esferas de linguagem tornou-se tão intenso que podemos notar a presença
do jornalista João Antônio nos contos que produzia, e vice-versa; muitos dos contos
publicados na revista Realidade compuseram algumas de suas obras.

João Antônio sempre dividiu sua carreira entre o jornalismo e a literatura. Contudo, ao
contrário de outros autores que também realizavam uma literatura jornalística, como é o
caso de Lima Barreto, ele valorizava a pequena imprensa pelo fato de que nela teria
autonomia maior para atuar, mesmo que de forma mais discreta, contra as forças
opressoras, pois, para ele, a literatura não existia apenas no mundo ficcional.

Nesse sentido, Ornellas (2011: 90) destaca que, para João Antônio, o papel dos veículos
de imprensa alternativos era manter “o espaço para combater a ditadura política e a
liberdade para a realização de um jornalismo diferente daquele praticado pelos grandes
jornais”, assim, ao abordar a relação ditadura-imprensa, o autor, que criou a expressão
“imprensa nanica”, deu destaque à “opressão ao jornalista como um dos fatores mais
prejudiciais, independente de se tratar de pequena ou grande imprensa”.

No Brasil, as primeiras discussões a respeito da fusão entre literatura e jornalismo


surgiram na década de 1960 e se intensificaram no período da ditadura militar, entre 1964
até meados de 1980. Tratava-se de uma forma de driblar a censura e a repressão que
tentavam impedir que as informações chegassem aos meios de comunicação.

João Antônio sempre se identificou com a classe dos menos favorecidos, que, por terem
uma vida simples, passavam despercebidos aos olhos daqueles que se julgavam melhores.
Não era um escritor ausente, envolto apenas pela ficção; pelo contrário, tinha como fonte
de inspiração um submundo em que ele próprio esteve envolvido. Assim, suas obras não
poderiam permanecer neutras diante dos problemas políticos e sociais do país.

Em 1965, casou-se com Marília Mendonça, estudante de Comunicação, com quem teria
o único filho, Daniel Pedro, dois anos mais tarde. O casamento se deu não apenas pela
paixão, mas também “por imposição da família dela, de condição próspera e moral
conservadora, residente em Jaú, no interior de São Paulo” (LACERDA, 2012: 24).

Em 1966, regressou a São Paulo para compor um respeitável quadro de jornalistas que
iniciaram a revista Realidade, um dos marcos da imprensa brasileira e referência na
16

história da reportagem no Brasil. Na época, o padrão de jornalismo que a Realidade


adotava era diferente não só em relação aos elementos visuais, mas também em relação à
pauta e ao estilo das reportagens. Lacerda (2012: 25) relata que a revista

[...] reunia uma elite de jornalistas e adotava propostas bastante


modestas e ousadas, tanto na parte gráfica e na seleção das pautas
quanto na confecção dos textos. Naqueles anos difíceis para o país, em
que o governo pós-1964 degringolava de vez em direção à ditadura
militar, Realidade era o oásis de liberdade. Não foi difícil para João
Antônio aproximar-se dos jornalistas que trabalhavam lá. Um deles,
Milton Severiano da Silva, era seu vizinho, e dali em diante seria
também seu grande amigo (grifo do autor).

Essa publicação esteve no auge ao repercutir temas como divórcio, juventude e


sexualidade, questões pertinentes à mulher e pautas sugeridas pelos leitores. João Antônio
acreditava ser a pessoa certa para a revista: uma vez que o país passava por um momento
complicado, era necessário que não houvesse tanto distanciamento por parte do repórter
em relação aos fatos que deviam ser relatados, o que ele sabia fazer como ninguém. Para
o autor, a literatura produzida na época não refletia a situação que o povo estava vivendo.

Em 1968, a Realidade publicou o primeiro conto-reportagem de João Antônio, Um dia


no cais, dando início a um novo gênero de texto jornalístico, que reunia elementos
extraídos do dia a dia e elementos da literatura (LACERDA, 2012: 25).

Nesse mesmo ano, retornou ao Rio de Janeiro em meio ao caos político e tendo de
enfrentar a censura. Trabalhou na revista Manchete, no jornal O Globo, no Diário de
Notícias, no Pasquim e em outros órgãos da imprensa alternativa. Ainda que a ditadura
não o tenha atingido diretamente, passou grande parte da sua vida sem publicar obras
literárias, como esclarece Zeni (2016: 16):

O ambiente político desfavorável que se seguiu ao golpe militar de


1964, um ano depois do lançamento de Malagueta, Perus e Bacanaço,
deve ter contribuído para os doze anos sem livros de João Antônio,
mesmo sem notícias de algum tipo de censura ao autor. Apesar de
publicação durante a ditadura, a obra de João Antônio traz poucas
referências ao regime militar, ainda que o tema dos marginalizados e a
atividade do escritor como jornalista na imprensa nanica permitam
situá-los como um autor dissonante em relação ao regime (grifo do
autor).
17

O ano de 1974 foi marcado pela publicação da segunda edição de Malagueta, Perus e
Bacanaço, a partir da qual, João Antônio passou a homenagear Lima Barreto, por quem
nutria profundo respeito e admiração, com dedicatórias em todos os seus livros.

Em 1975, após mais de uma década sem publicar algo novo, João Antônio lançou Leão-
de Chácara, obra aguardada com expectativa em razão do sucesso do livro anterior e que
lhe rendeu o prêmio de ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Nesse
mesmo ano, publicou Malhação do Judas Carioca.

De acordo com Macedo (2012), foram vários os motivos que levaram o autor a manter
tamanho intervalo nas publicações de livros. Nesse sentido, Lacerda (2012: 583)
esclarece:

Até hoje não se sabe ao certo a razão de um tão grande intervalo de


publicação entre o primeiro e o seu segundo livro, já que o próprio João
Antônio apresentou em suas entrevistas, contraditoriamente, em
oportunidades diferentes, motivos diversos para esse fato: a difícil
situação editorial brasileira para o jovem escritor, a sua mudança para
o Rio de Janeiro (que seria responsável por um grande impacto no
escritor), o trabalho em vários jornais, na revista Manchete, o
internamento em um sanatório. Provavelmente cada um desses motivos
tenha tido o seu peso nesse silêncio (grifo do autor).

A causa principal da interrupção entre as duas publicações, como observa Macedo (2012),
não se deu por nenhum motivo entre os expostos anteriormente; houve uma lacuna
somente em relação à publicação, pois nesse ínterim, João Antônio produziu outras obras,
como Corpo a corpo, posteriormente lançada com o título de Malhação do Judas
Carioca, Casa de loucos e Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima
Barreto, além do conto Paulinho Perna Torta. Segundo a estudiosa, o grau de exigência
de João Antônio no que concerne à sua produção era elevado e intensificou-se ainda mais
em razão do sucesso de Malagueta, Perus e Bacanaço.

João Antônio destacou-se como representante não só do gênero conto, mas também do
gênero conto-reportagem e do gênero crônica, além do que escreveu alguns poemas.
Segundo Ornellas (2011: 230), em algumas de suas obras podemos destacar “a presença
de lirismo poético em todos os textos através de vozes narrativas que apreendem no
contexto adverso a humanidade desses seres não reconhecidos socialmente”. Ademais,
foi comparado aos grandes clássicos da literatura e reconhecido por autores renomados,
como Jorge Amado, que expressa: “João Antônio trabalha com o lixo da vida e com ele
18

constrói beleza e poesia. Porque esse escritor soma ao talento e à experiência, o amor, a
paixão pela gente que povoa seus livros admiráveis”3 (LACERDA, 2012: 592).

Em 1976, Malagueta, Perus e Bacanaço, que conta a história de três amigos que vivem
no submundo paulistano e ganham a vida jogando sinuca, foi adaptado para o cinema
com o título O jogo da vida. O longa-metragem teve direção de Maurice Capovilla, e no
elenco estavam Lima Duarte, como Malagueta, Gianfrancesco Guarnieri, como Perus, e
Maurício do Valle, como Bacanaço. O próprio João Antônio assinou-o como roteirista.
Nesse mesmo ano foi publicado o livro Casa de loucos.

No ano seguinte, publicou pela primeira vez Lambões de caçarola (Trabalhadores do


Brasil), obra cujo gênero foi impossível descobrir, pois ao mesmo tempo em que o autor
faz um relato autobiográfico, combinando história em quadrinhos com fatos históricos,
trabalha a composição literária que compreende elementos característicos de uma
realidade ficcional. Assim, como Zeni (2016: 54) relata,

[...] é um pequeno livro de quarenta páginas (não numeradas). O


formato, quadrado, é pouco usual, assim como seu tratamento gráfico:
o volume traz, além de texto, ilustrações e fotografias. As ilustrações
do livro são de Edgar Vasques que representam cenas da narrativa. Em
alguns momentos os desenhos se integram ao texto, lembrando a
linguagem das histórias em quadrinhos. As fotos, em sua maioria, são
retratos de Getúlio Vargas, um dos ‘personagens’ centrais do livro [...].

Além dessa publicação, João Antônio, nesse mesmo ano, publicou o romance Calvário e
porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto, em homenagem a Lima Barreto.
Em 1978, publicou Ô Copacabana, que retrata a vida no bairro carioca onde residiu na
década de 1970; a dedicatória é endereçada a Lima Barreto. Em 1982, foi publicado o
livro Dedo-Duro, que mostra a poesia no lixo da vida. Particularmente o conto Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha talvez seja o texto autobiográfico mais
conhecido do autor, um relato dos tempos de sua juventude (ZENI, 2016).

Após voltar de uma viagem a Cuba, João Antônio lançou, em 1986, o livro Abraçado ao
meu rancor, relato autobiográfico na forma de contos-reportagem que mostram o lado
amargo da personalidade do autor. Após esse livro, não publicou nenhuma obra relevante

3
O texto de Jorge Amado foi orginalmente publicado como apresentação à primeira edição de Dedo-duro,
pela editora Record, em 1982.
19

de ficção, o que, de acordo com Zeni (2016: 363), indicou um momento “de chegada e
uma parada na criatividade e na carreira” que acabou por ser definitivo.

Em 1987, recebeu uma bolsa de estudos e mudou-se para Berlim. A partir daí, o que temos
como relatos do autor são cartas aos amigos, além de pequenos resumos de algumas obras
não publicadas, as quais João Antônio fazia questão, como de costume, de enviar aos
amigos para serem analisadas.

Em fevereiro de 1988, em uma carta ao amigo Caio Porfírio Carneiro, mencionou a morte
do pai. Zeni (2016: 364) nota que, em sua pesquisa ao acervo do autor, identificou essa
carta, cujo excerto é reproduzido a seguir:

Berlim, nevando, 23 de fevereiro de 1988.

Faz hoje seis meses que estou na Alemanha [...]


A 13 de fevereiro, sábado de Carnaval, morreu meu pai em São Paulo.
Eu soube com dez horas de diferença. Foi uma porrada seca, rente,
grossa e redonda como poucas levei em vida. Tive que parar o que
estava fazendo e chorar. [...]

(assinatura)
João Antônio

João Antônio explicou que a partir desse momento teria de conviver com dois dramas: “a
perda de um pai inesquecível” e a “impossibilidade de viajar imediatamente para o Brasil”
Silva (2009: 276). Ele destacou que, apesar de não poder falar com os alemães sobre o
acontecido, recebeu, por telefone, muito carinho e alento dos amigos.

O excesso de ocupações levou o autor a prosseguir em sua trajetória no exterior.


Entretanto, não conseguiu conciliar o trabalho com suas produções, principalmente em se
tratando das cartas aos amigos. Silva (2009: 92/107-108) esclarece-nos a respeito das
correspondências do autor trocadas com o amigo Jácomo Mandatto:

As cartas do contista paulistano enviadas a Mandatto nos primeiros


anos desta década somam, aliás, mais de oitenta por cento do volume
total deste período. A partir de 1985, quando se tornam mais constantes
as viagens internacionais do escritor, é possível notar que os hiatos entre
as cartas vão ficando maiores. João Antônio que tinha driblado tão bem
a falta de tempo acarretada pelo excesso de trabalho, agora encontra
dificuldades para manter a correspondência com o amigo em dia.
[...]
20

A primeira carta de João Antônio a Mandatto remetida da Alemanha é


de dezembro de 1987, alguns meses depois de sua chegada ao país.
Trata-se, na verdade, de um cartão-postal, em que, de maneira sumária,
o autor relata sua rotina de trabalho e pede que o amigo lhe envie jornais
e revistas brasileiras. Em todas as cartas desse ano em que João Antônio
permanece na Europa, suas reclamações em relação ao povo e ao clima
locais são constantes.
Contudo, ele se mostra bastante satisfeito com os frutos logrados por
suas palestras:
‘Aqui tenho viajado muito – estive em Hamburgo, Munique,
Heidelberg, além de Varsóvia e Cracóvia – e falado de literatura e
cultura nossas. Agora, muito me convidam para falar sobre Lima
Barreto, pois, é centenário da Abolição da escravatura’.

Carta datada de 24 de abril de 1988.

Em maio de 1988, João Antônio escreveu, da Alemanha, sua última carta a Mandatto. De
acordo com Silva (2009: 108), quatro meses depois, o contista envia um bilhete ao amigo
informando sobre seu regresso ao Brasil: “De volta à terra, depois de mais de um ano
fora, nas Alemanhas e Europas. Coração cheio de alegrias e vibrações” (Carta datada de
26 de setembro de 1988). Nessa correspondência, João Antônio acrescentou um pedido a
Mandatto: que o levasse a Itapira novamente: “Aliás, quando v. me convidará para uma
conferência refletindo a minha experiência cultural na Alemanha?”. A resposta do amigo
chegou alguns dias depois:

Dracular e ex-habitante do mundo europeu João Antônio, meu abraço


pelo retorno e pelo aviso de sua chegada num bilhetinho muito
chinfrim. Você tem muito que falar desse tempo todo de Alemanha e
outras terras européias. Gostaria de ouvi-lo aqui, mas isso só poderia
ser após 15 de novembro, quando este aqui se livrar do espinhadeiro em
que se enfiou novamente, tentando a dificílima reeleição numa cidade
e num país onde o povo está totalmente descrente dos políticos, mesmo
quando esse político seja um Jácomo Mandatto.

Carta de Mandatto a João Antônio, datada de 01 de outubro de 1988


(SILVA, 2009: 107).

As cartas enviadas a Mandatto em 1989 não foram muitas: “As poucas cartas do ano de
1989 trazem sempre um lembrete acerca da possibilidade de uma conferência em Itapira:
‘Mande-me sempre suas notícias. E me diga quando me levará novamente a Itapira’”
(Carta datada de 06 de junho de 1989) (SILVA, 2009: 108).

Já na década de 1990, João Antônio escreveu ao amigo sobre o Prêmio Jabuti obtido em
razão da coletânea Guardador, publicada em 1993. Segundo Silva (2009: 110), o tom
21

dessa correspondência era de profunda angústia pela falta de reconhecimento por parte
dos organizadores:

Mas v. encontra o meu ‘Guardador’ em alguma livraria? Nunquinha.


Nem pra remédio. É o Brasil do cruzeiro irreal. Meus livros não são
encontráveis nem no sebo. Os jornais noticiaram o Jabuti? Necas de
pitibiribas. O país chega à escrotidão ampla, total e irrestrita. E aqui vou
– sem aposentadoria – nesta profissão de marginalizado. Tomando no
rabo.

Carta datada de 31 de agosto de 1993.

Na próxima correspondência ao amigo, o contista reclamou dos problemas políticos


observados no país e demonstrou certa indignação em relação aos editores:

Vejo que falta mentalidade empresarial neste país pré ou subcapitalista.


O Brasil carece de uma revolução brutal para chegar ao capitalismo [...]
Nossos editores não estão preparados nem para o sucesso, estão fora do
tempo e do espaço.

Carta de 17 de setembro de 1993.

Por anos, João Antônio e Mandatto trocaram correspondências, o que constituiu um


acervo importante relacionado à vida do escritor. O período no qual houve menos cartas,
pouco mais de uma dezena, foi entre 31 de agosto de 1990 e 25 de setembro de 1993.

Silva (2009: 103) afirma que a publicação da obra Guardador foi o marco para o
distanciamento entre os amigos: “E é assim, com a notícia de que ganhara o terceiro
Prêmio Jabuti de sua carreira, que João Antônio encerra a sua longa correspondência com
Jácomo Mandatto”.

Em 1996, João Antônio publicou Dama do Encantado, conto-reportagem que completaria


sua bibliografia antes de sua morte, nesse mesmo ano.

Silva (2009: 113) destaca os hiatos em relação à publicação de obras do autor:

Guardador não é o último livro de João Antônio. Em 1996, ano de sua


morte, ele ainda lançaria outros dois títulos: Dama do Encantado e Sete
vezes rua, sendo que este último também não era propriamente uma
obra inédita, tratando-se de uma edição escolar, com alguns textos
literários já consagrados em obras como Malagueta, Perus e Bacanaço
e Abraçado ao meu Rancor. Em Dama do Encantado, encontramos
22

textos sobre personalidades como Lima Barreto, Noel Rosa, Nelson


Rodrigues, Garrincha, Aracy de Almeida entre outros.
Apesar de tais lançamentos, não há nenhuma missiva de João Antônio
a Mandatto nesse período. Esses são os únicos títulos lançados pelo
escritor sobre os quais, aparentemente, o amigo itapirense não é
convidado a participar do trabalho de divulgação. Pelo que se pode ver,
não só a gana de João Antônio por promoção de sua literatura rareava,
mas a própria produção literária do escritor vinha rareando há algum
tempo. Tanto é assim, que seus últimos títulos não apresentavam caráter
de ineditismo, ao contrário, traziam, em sua maioria, textos reciclados,
em alguns casos, por mais de uma vez. Vê-se, desta forma, que se trata
de um momento de refluxo, não só de vendas, como também, e talvez
principalmente, de produção. João Antônio, pelo que as cartas – ou a
ausência delas – deixam ver, vivia um período de profunda desilusão.
Todavia, mesmo vivendo essa retração e já um tanto enfraquecido
fisicamente, lançaria nessa década os três títulos aludidos acima.

Em 31 de outubro de 1996, João Antônio deixou o “jogo” e saiu de cena como se fosse
um dos personagens jogadores de sinuca de seus contos ou como se fosse a última bola
que acabava de encaçapar. Lacerda (2012: 13) faz um relato desse momento e destaca
que João Antônio, assim como suas obras, haviam caído no esquecimento:

Em outubro de 1996, o escritor João Antônio sofreu um enfarto dentro


de casa e morreu. Como morava sozinho, levou alguns dias até ser
encontrado. Chamada pelos vizinhos e pelo zelador do prédio, a polícia
arrombou a porta do apartamento 702 e encontrou o corpo em avançado
estado de decomposição.
Seus livros, antes festejados, na época encontravam-se esgotados nas
editoras e longe da lembrança do público. Seus contos, dispersos em
antologias desimportantes, feitas sem nenhum critério, pareciam
retratos amarelados esquecidos no fundo da gaveta.

João Antônio Ferreira Filho, ou simplesmente João Antônio, como gostava de ser
chamado, teve um importante papel no cenário de nossa literatura. Apesar de pouco
reconhecimento do público, alguns de seus contos foram agraciados com diversos
prêmios e o conjunto de sua obra foi reconhecido pela crítica por conta de seu valor
literário. O autor deixou-nos o seu legado em relação à proximidade com seus
personagens e em relação à sua paixão pela literatura.
23

1.2 Constituição do corpus

Em uma primeira etapa da busca por textos de João Antônio que fossem representativos
no que se refere à presença de provérbios, identificamos os contos que compõem o livro
Contos reunidos, organizado por Lacerda (2012), dos quais procedemos à leitura. Dessas
produções, escolhemos os contos pertencentes à obra Malagueta, Perus e Bacanaço,
formados por nove contos paulistanos que expressam mais claramente as estratégias
interativas presentes nos provérbios e nas expressões populares utilizados pelos
personagens criados por João Antônio. Na obra citada, esses nove contos4 estão
subdivididos em três grupos, conforme segue:

– Contos gerais: Busca, Afinação da arte de chutar tampinhas e Fujie;

– Caserna: Retalhos de fome numa tarde de G. C. e Natal na cafua;

– Sinuca: Frio, Visita, Meninão do Caixote e Malagueta, Perus e Bacanaço5.

De modo mais específico, Contos gerais mostra o isolamento social de diferentes


personagens ligados pela busca de autoconhecimento e a violação de uma amizade
causada por um amor impossível, como ocorre em Fujie. Já Caserna refere-se a dois
relatos ocorridos no interior de uma corporação militar; os personagens são soldados que
buscam a liberdade, mas são compelidos a permanecerem em um quartel, local onde
sofrem humilhações. Por fim, Sinuca apresenta exímios jogadores, que são autoridades
no mundo da malandragem e da boemia; ao mesmo tempo, contrapondo-se à prepotência,
alguns personagens demonstram certa pureza e ingenuidade, como podemos observar nos
contos Frio e Meninão do Caixote.

Neste capítulo, procedemos à contextualização da pesquisa e apresentamos o corpus por


nós selecionado. A seguir, discutimos aspectos teóricos relacionados aos provérbios, às
frases feitas e às expressões populares, objetos deste estudo.

4
Os referidos contos são apresentados integralmente, na seção de anexos, ao final desta tese.
5
O título desse conto é o mesmo do livro publicado em 1963. Embora alguns autores o caracterize como
novela, optamos por chamá-lo de conto, termo utilizado por Lacerda (2012).
24

2 Fundamentação teórica

Este capítulo é destinado à apresentação da fundamentação teórica que nos embasa na


análise do corpus que empreendemos mais adiante. Em um primeiro momento,
abordamos os provérbios segundo Maingueneau (2013), Obelkevich (1997), Vellasco
(2010), Nóbrega (2008), Coutinho (1980), entre outros; em seguida, tratamos das frases
feitas segundo Preti (2004), Carmo (2013) e Ribeiro (1960); posteriormente, exploramos
as expressões populares conforme postulado por Cascudo (2012) e Pinto (2003). Por fim,
abordamos aspectos relacionados à interação de acordo com Almeida (2009), Reis
(2011), Preti (1977; 2002), Marcuschi (2001), Nóbrega (2008) e Brait (1999).

2.1 Provérbios

O termo provérbio deriva do latim proverbium e significa dito, adágio, máxima.


Geralmente, trata-se de uma frase anônima, curta, de fácil memorização, que mantém a
mesma forma ao longo do tempo. De acordo com Houaiss e Villar (2009: 1568), há duas
acepções para esse vocábulo: 1) frase curta, habitualmente de origem popular, com ritmo
e rima, que sintetiza um conceito relacionado à realidade ou a uma regra social ou moral,
como no caso da frase Deus ajuda a quem cedo madruga; 2) na Bíblia, frase breve que
constitui um conselho, um pensamento, uma exortação, uma máxima, como no caso das
frases que compõem o Livro dos provérbios.

Apesar de parecer relativamente fácil estabelecer definições, Succi (2006: 16) destaca
que podemos acrescentar

[...] à primeira característica de um provérbio, ‘unidade mínima de


significação’, a classificação de ‘expressão fraseológica’, mas isso não
basta, já que nem aos maiores dicionaristas é tarefa fácil estabelecer
limites rígidos para delimitarem com precisão a diversidade de
expressões fraseológicas.

Na mesma direção, Obelkevich (1997) destaca que a natureza oral que caracteriza os
provérbios faz que eles se apresentem de variadas formas quanto ao estilo e à temática, o
25

que dificulta sua apreensão como objeto de pesquisa, para lhe determinar uma definição
absoluta.

Além disso, devemos considerar que nem sempre é possível identificar a autoria dessas
expressões fraseológicas. Nesse sentido, cada pessoa que faz uso de um provérbio acaba
se sentindo um pouco autor da expressão e, ao mesmo tempo, reveste-se da autoridade
que a frase sugere, pois não se trata de algo dito apenas por uma pessoa, mas por várias
outras pessoas ao longo do tempo.

Vellasco (2000: 127) salienta que os provérbios, por serem constitutivos do folclore de
uma comunidade, frutos da experiência de seus indivíduos, sedimentam-se como
verdades gerais expressas de forma concisa e impessoal, “sua formulação é genérica e o
seu valor de verdade é universal, atemporal e alocativo”.

De acordo com Nóbrega (2008), as expressões cristalizadas, como é o caso dos


provérbios, acabam por incorporar a memória coletiva, o inconsciente cultural de um
povo, que passa a usá-las sempre que o contexto permitir. A autora ressalta que o

[...] emprego de expressões cristalizadas em suas formas originais ou


recriadas demonstra significativamente que a prática de uma linguagem
popular [...] é uma forma de disseminar as informações e de alcançar a
compreensão de todas as camadas sociais, da popular à culta.
Na verdade, esse tipo de frase se harmoniza com a praticidade e
fugacidade da vida moderna e é uma forma de sobrevivência da
linguagem em uma época em que tudo se tornou descartável. São as
experiências de uma geração que são transmitidas às gerações seguintes
e essas vivências são fixadas na língua (NÓBREGA, 2008: 107).

Alguns provérbios mantêm intactas suas formas originais independentemente do tempo,


mas existem expressões que, de tanto passar de pessoa para pessoa, acabam sofrendo
alterações.

As transformações que alteram as expressões podem resultar também da lei do menor


esforço, que promove o encurtamento das palavras, e da semelhança de sons entre partes
dos vocábulos. Assim, no caso dos provérbios, especificamente, temos, por exemplo,
Quem pariu Mateus, que o embale, originariamente Quem pariu mal os teus, que os
embale. A semelhança entre “Mateus” e “mal os teus” gerou a confusão sonora.

Outros exemplos são Quem muito se abaixa, mostra o c..., originariamente Quem muito
se abaixa, mostra o oculto, que sofreu mudanças ao longo do tempo e acabou se tornando
26

popular, e Quem não tem cão caça com gato, originariamente Quem não tem cão, caça
como gato, em que temos uma alteração de sentido em relação a agir com o que se tem,
na primeira frase, e agir de forma ardilosa, atenta, como um gato, na segunda frase.
Observamos que, além do tom cômico que envolve alguns provérbios, sempre há um
sentido de ensinamento.

Notamos que existem expressões populares que, por não carregarem um caráter de
ensinamento, não são consideradas provérbios, mesmo assim, são empregadas com certa
frequência e por isso também acabam sofrendo mudanças em sua composição. Como
exemplo, temos Cor de burro quando foge, originariamente Corro de burro quando foge.
A segunda forma tem significado diferente em relação à primeira: quando um burro
consegue escapar do cativeiro, torna-se muito perigoso, então, surgiu a expressão que
significa fugir de situações difíceis. Já na primeira, a indicação é de cor indefinida, difícil
de ser reconhecida entre as cores usuais. As modificações foram ocorrendo e causaram
mudanças também em relação ao contexto de uso de uma e de outra expressão.

Por se tratar de ditos ou expressões populares, isenta-nos da responsabilidade de


comprovar a fonte ou a veracidade do que está sendo dito, deixam de carregar o peso de
ser uma “verdade” a ser seguida. Muitas vezes, uma sentença considerada certa para
determinada pessoa pode não ser para outra. Assim, seu entendimento depende da
interpretação que lhe é atribuída. Nesse sentido, Cascudo (2012: 10) observa que uma
“interpretação não é uma atitude imóvel e definitiva, como é possível nas artes plásticas”,
assim, até mesmo uma questão simples de interpretação não pode ser precisa e inerte
como uma tela de pintura, visto que a vida não é estática.

Os provérbios são construções que servem de elementos de socialização em situações


variadas, incluindo aquelas que envolvem conflitos. Tais construções podem, por
exemplo, elevar a autoestima das pessoas nos momentos de tensão ou ser um meio de
compartilhamento de valores comuns entre integrantes de uma comunidade. Para
Obelkevick (1997: 48), os provérbios são aliados em diferentes momentos da vida das
pessoas, pois podem estar presentes tanto em situações de cordialidade, como em
situações de conflito:

[...] ao expressar desaprovação de forma indireta, eles atenuam a crítica


e fazem que uma reação mal-humorada seja menos provável. Em
algumas sociedades, os provérbios são um método consagrado de
administração de conflitos, ajudando as pessoas a lidar com fontes
crônicas de tensão [...].
27

Já na ausência de situações de tensão, os provérbios constituem meios de expressão da


vontade de estabelecer vínculos com o outro, pois as pessoas, “ao trocarem provérbios
conhecidos [...] indicam boa vontade, asseguram umas às outras que compartilham
valores comuns e apreciam a sociabilidade em si (OBELKEVICH, 1997: 49).

Não só os provérbios, mas também as expressões populares carregam um peso semântico


próprio de pessoas simples. Preti (2004: 171) ensina que “essas fórmulas, em geral,
indicam um falante de cultura modesta, que fala por lugares-comuns, facilmente
compreensíveis e admitidos na sociedade em que vive”. De acordo com Obelkevich
(1997), as pessoas cultas, de modo a valorizar a individualidade e demonstrar seu
letramento, tendem a não utilizar provérbios ou expressões populares, que representariam
a coletividade. O autor explica que

[...] as pessoas cultas têm muitos motivos para não usar provérbios,
mesmo se raramente tenham de decifrá-los [...] Os provérbios colocam
o coletivo acima do individual, o recorrente e estereotipado acima do
excepcional, as regras externas acima da autodeterminação, o senso
comum acima da visão individual, a sobrevivência acima da felicidade.
E a realização pessoal é acompanhada pela auto-expressão: as pessoas
instruídas pressupõem que todos têm (ou deveriam ter) sua própria
experiência de vida, singular e inconstante, e que essa experiência
deveria ser expressa por palavras novas, escolhidas para cada ocasião.
Usar os provérbios seria negar a individualidade do falante e a do
ouvinte (OBELKEVICH, 1997: 72).

Essa perspectiva se confirma em alguns dos textos de João Antônio. Em Malagueta,


Perus e Bacanaço, por exemplo, o personagem Malagueta, o mais simples dos amigos, é
o que mais utiliza provérbios em seus diálogos, o que lhe permite encobrir sua dificuldade
em argumentar e a escassez de palavras em seu vocabulário.

Rocha (1995), por sua vez, afirma que o significado de provérbio como um processo de
construção de valores sociais em sua própria formulação independe de cultura ou região.
Cada um pode criar ou entender o teor de seu ensinamento de uma forma, apesar de ser
universal, é bastante particular, pois pode ser associado ao próprio modo de vida do
indivíduo.

Um provérbio pode fazer parte da vida de qualquer pessoa e em qualquer época, sem que
ela mesma perceba. Por exemplo, em uma conversa entre amigos, podemos observar que
28

os provérbios exercem o papel de mediadores nos diálogos, pois são capazes de


estabelecer formas de interação, de autoafirmação, de autoridade.

Quando ouvimos ou citamos provérbios, podemos ter a impressão de que estamos


utilizando expressões de séculos passados ou falares regionais que não caberiam no dia a
dia dos centros urbanos. Contudo, ao utilizarmos um provérbio, estabelecemos relação
com tradições e valores culturais, fazemos com que o passado, muitas vezes imemorial,
esteja presente em nossos enunciados, independentemente de conhecermos ou não sua
autoria.

No âmbito da literatura, os provérbios, como fontes de cultura popular, de tradições, são


elementos que ligam um artista ao seu local originário e o distinguem de outros artistas,
assim, conferem-lhe identidade. Nesse sentido, Coutinho (1980: 70-71) esclarece que

[...] o material que constitui o fundo comum de tradições, pode


transformar-se nos ‘materiais primários da literatura’ [...]. A crítica
literária de base folclórica é hoje um dos desenvolvimentos dos estudos
antropológicos [...]. E ela intenta analisar a arte literária em termos de
suas raízes na tradição folclórica, das relações da arte com os rituais
primitivos, nos heróis arquétipos, nos mitos e símbolos, portanto com o
lençol comum de tradições (lendas, provérbios, festivais, mitos,
cerimoniais, formas de lirismo, contos, fábulas, etc.). Essa é a raiz que
mais fortemente prende os artistas de um país ao seu solo pátrio, e que
os distingue dos de outros países (grifo nosso).

O autor refere-se à literatura como sendo o berço do provérbio, pois ela se apropria da
realidade do homem dando uma representação simbólica às concepções que faz de uma
visão estética daquilo que está sendo representado. Dessa forma, há um “paralelismo”
entre a literatura e as outras artes. Ainda segundo o autor, a literatura reforça a
argumentação, assim como o provérbio, de forma mais amena.

Teixeira (2015) explica que o provérbio exerce um importante papel nos diálogos,
tornando-se um aliado na elaboração de justificativas e até mesmo na preservação da face,
contudo, corre o risco de perder sua essência no texto escrito, ainda assim, é um
mecanismo eficiente que contribui para enriquecer os textos literários e torná-los mais
expressivos.

Outro viés pelo qual podemos considerar os provérbios é o religioso. Como Teixeira
(2015: 58) esclarece, provérbio e sagrado caminham juntos em diversas culturas, “seja no
mundo tradicional africano, seja no texto bíblico; expressando sempre uma instrução de
29

prudência ou crença em forças superiores divinas”. A evidência disso, completa o


estudioso, está “nos provérbios que revelam a existência de forças imateriais que regem
o destino humano, e que zelam por ele” (TEIXEIRA, 2015: 58).

De acordo com Succi (2006: 35), a palavra provérbio, provavelmente, tem origem na
esfera religiosa. Nessa direção, seu significado seria “no lugar da palavra de Deus”, uma
vez que a partícula pro significa em vez de, no lugar de, e a palavra verbo significa
palavra de Deus. Entendemos que há coerência nessa perspectiva, pois os provérbios
sempre trazem um conselho, uma advertência.

A estudiosa assinala que muitos dos provérbios que conhecemos hoje são originários da
Bíblia, “provavelmente porque, assim como as doutrinas religiosas existem para orientar
os cristãos, os provérbios pretendem explicitar uma orientação” (SUCCI, 2006: 51). Pelo
que se sabe, um dos livros que compõem a Bíblia, o Livro dos Provérbios, foi escrito pelo
Rei Salomão, homem cuja sabedoria, segundo as escrituras bíblicas, era inigualável.
Succi (2006) observa que Salomão era conhecido por seu senso de justiça e pela sabedoria
proverbial, evidenciada no julgamento de um pedido de guarda de uma criança por parte
de duas mulheres.6

A fundamentação do provérbio como forma de sustentação da razão, segundo destaca


Succi (2006), está na Bíblia, assim, vários provérbios bíblicos se tornaram populares,
como A voz do povo é a voz de Deus, É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus e Nem só de pão vive o homem, e se
mantêm em uso ainda hoje.

Conforme ressalta Barnett (2013), o Livro dos Provérbios exerce certa influência em
diferentes áreas da vida e traz revelações sobre o interesse de Deus em que as pessoas

6
Essa é uma história relatada no livro I Reis 3, 16-28. Durante o reinado do rei Salomão, duas mulheres
que haviam se tornado mães são levadas à sua presença para serem julgadas. Ninguém sabia como proceder
em uma situação em que uma das crianças havia morrido e ambas as mulheres diziam que o filho que estava
vivo era o seu. O fato é que, durante a noite, duas mães, prostitutas, com seus respectivos bebês dormiam.
Ao acordar, na manhã seguinte, uma delas percebeu que seu filho havia morrido e rapidamente trocou as
crianças. A outra, cujo filho havia sido trocado, notou que o que estava ao seu lado, não era o seu. Elas
começaram a discutir e ninguém conseguia provar qual mãe falava a verdade. A solução foi levá-las ao Rei
Salomão para que fosse tomada uma providência. O rei, então, pediu que a criança sobrevivente fosse
trazida à sua presença. Ele a segurou com uma das mãos e com a outra pegou um instrumento cortante,
dizendo que iria cortá-la ao meio. Assim, cada mulher poderia ficar com uma parte da criança. A falsa mãe
concordou com o que o rei propôs, mas a verdadeira mãe não aceitou e revelou ao rei que poderia entregar
o bebê à outra mulher, porque preferia vê-lo vivo, nos braços de outra pessoa, a vê-lo morto. Diante dessa
atitude, o rei entregou a criança viva à verdadeira mãe.
30

tenham uma vida melhor e mais equilibrada. Além disso, traz “orientações para diversos
assuntos como amizades, más companhias, preguiça, lascívia, cobiça, carnalidade, mau
uso da língua, etc.” (BARNETT, 2013: 3). O objetivo era orientar as pessoas, desde a
infância, ao que era considerado correto, ao zelo, ao trabalho, à retidão de caráter, à
sabedoria. Por exemplo, um dos aspectos que tornaria uma pessoa bem-sucedida seria o
senso de responsabilidade, que nos provérbios bíblicos está relacionado à ideia de
progresso:

20 Assim, andarás pelo caminho dos bons, e guardarás as veredas dos


justos.
21 Porque os retos habitarão a terra, e os íntegros permanecerão nela.
22 Mas os ímpios serão exterminados da terra, e os infiéis serão dela
eliminados (BÍBLIA, 1993: 570).

De acordo com a Bíblia (2011: 721), o Livro dos Provérbios evidencia a sabedoria dos
antigos israelitas em relação a como as pessoas deveriam agir em determinadas ocasiões,
assim, certos

[...] provérbios são a respeito das relações de famílias; outros, sobre o


comportamento nos negócios. Alguns tratam de boa educação nas
relações sociais; outros da necessidade de a pessoa agir corretamente,
de acordo com os princípios da moral. Nos provérbios são severamente
condenadas a imoralidade sexual, a bebedeira, a glutonaria, a preguiça
e a ganância. De outro lado, os provérbios ensinam a dedicação ao
trabalho, a prudência, o autocontrole, a humildade, a lealdade para com
amigos e parentes e a prontidão para ajudar os pobres e os necessitados.

Em última instância, os ensinamentos do Livro dos Provérbios, se seguidos, seriam


capazes de conduzir o homem à felicidade, à riqueza e à honra, como pontuado em
Provérbios 3:13, 14: “13 Feliz é a pessoa que acha sabedoria, e que consegue
compreender as coisas, 14 pois isso é melhor do que a prata, e tem mais valor do que o
ouro” (BÍBLIA, 2011: 724).

Considerando o que foi exposto, os provérbios bíblicos têm um caráter pedagógico


marcante na orientação da mente para a construção da vida física. Nesse sentido,
Obelkevich (1997: 52) salienta que

[...] os provérbios têm um caráter cognitivo, quase metafísico; o


discurso que apresentam em relação a temas como a mente e corpo,
estabilidade e mudança, otimismo e pessimismo eleva-se à condição de
uma filosofia proverbial, ainda que isso possa surpreender a muitos de
seus usuários comuns.
31

Succi (2006) acredita que os provérbios, inicialmente ligados à esfera religiosa, foram
elaborados por autores conhecidos, como o Rei Salomão, mas ao serem passados de
pessoa para pessoa ao longo do tempo, caíram no domínio público e sua autoria foi
desaparecendo. Como a autora sublinha, o próprio provérbio “A voz do povo é a voz de
Deus”, parece confirmar a crença de que o pensamento pertence à coletividade, não ao
indivíduo (SUCCI, 2006: 35).

Cohen (1991: 22), por sua vez, assevera que a autoria dos provérbios é desconhecida, pois
se trata de um “pronunciamento natural provocado por um incidente ou uma experiência
estimulante. [...] O provérbio se origina com o povo, ganhando circulação e autoridade
através da aceitação universal de sua verdade”.

Quando fazemos uso de um provérbio, não estamos preocupados em conhecer sua origem
ou sua autoria. Acabamos nos apropriando dele de forma natural. Contudo, não podemos
pensar no particular; na verdade, a ideia chega-nos por meio do coletivo, da sociedade, e
não do individual.

Seguindo essa abordagem, Salomão (2001: 38) ressalta que é impossível determinar a
autoria de um provérbio, pois ele é “passado de geração a geração; pais aos filhos; avós
aos netos”. A sabedoria popular, assim como a cultura popular, encaminha-se para um
“aspecto social de folclore, articulado a um conjunto de atividades diversas”
(SALOMÃO, 2001: 37). Não temos como identificar, no folclore, os autores de
modinhas, parlendas, cantigas de roda, danças, mitos e lendas.

Os provérbios, na maioria das vezes, são compostos por pequenas frases, nem sempre
curtas e sérias; podem estar presentes em comédias e em fábulas. Como Barnett (2013:
8) salienta, não importa a forma como o provérbio é apresentado “o importante mesmo é
a sentença moral ou a lição moral que ele ensina”.

Embora o provérbio pareça fazer parte do universo individual, é impossível defini-lo


como de uso exclusivo ou pessoal. Utilizar um provérbio é preservar nossa cultura e
nossas raízes, e mesmo pertencendo a um universo antigo, permanece atemporal. Tentar
revelar seu verdadeiro significado não é tarefa fácil, porém não nos deixa dúvidas o fato
de que ele traz ensinamentos que são passados de geração a geração.
32

2.1.1 Captação e subversão nos provérbios

Segundo Maingueneau (2013), um provérbio pode sofrer alterações não apenas em razão
do passar do tempo, mas também em razão de o usuário da língua utilizá-lo para conferir
autoridade ao seu dizer.

Em relação às mudanças pelas quais um provérbio pode passar, o autor as denomina


estratégias de captação e estratégias de subversão. A primeira é mais utilizada e aceita,
pois pode ocorrer algum tipo de mudança em relação ao provérbio original para uma
possível adaptação, muitas vezes, levando em consideração o contexto em que o
provérbio é aplicado. O propósito da subversão é ridicularizar um discurso cristalizado,
pronto; ironizar ou fazer uso de um provérbio em sentido contrário de sua forma original.

A captação, de acordo com o autor, diz respeito à imitação de determinado provérbio. Em


muitos casos, isso acontece porque o locutor deseja conferir credibilidade a seu dizer;
credibilidade que tem determinado provérbio em razão do tempo de existência. Um
exemplo dessa estratégia é a imitação do provérbio original “Jogar verde para colher
maduro”, que em Malagueta, Perus e Bacanaço se transforma na frase “E jogou o verde
à espera do maduro” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 213).

Já a subversão, em alguns casos, é considerada ironia, por se tratar de algo com valor
negativo. Maingueneau (2013) esclarece que a ironia pertence ao campo da incerteza, por
isso dá margem à dupla interpretação, ao passo que o provérbio, apesar de guardar certa
semelhança com a ironia, não gera dúvidas. A título de exemplo, temos uma das
expressões populares utilizadas por João Antônio no conto Afinação da arte de chutar
tampinhas: “Ele, a camisa; eu, o avesso” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 41), cuja forma
original é “Um, o martelo; o outro era o cabo”. O autor faz uso de uma expressão que
seria de cunho positivo e a inverte, mostrando que, em vez de um completar o outro, um
é o oposto do outro.

2.1.2 Enunciação proverbial irônica

Maingueneau (2013) observa que, apesar de a subversão ter esse aspecto de caçoar ou
parodiar negativamente, um provérbio, em se tratando da ironia, pode assumir outra forma
de distinguir essa imitação sem que haja a “contestação”:
33

A enunciação irônica apresenta a particularidade de desqualificar a si


mesma, de subverter no instante mesmo em que é proferida. Classifica-
se tal fenômeno como um caso de polifonia, uma vez que esse tipo de
enunciação pode ser analisado como uma espécie de encenação em que
o enunciador expressa com suas palavras a voz de uma personagem
ridícula que falasse seriamente e do qual ele se distancia, pela entonação
e pela mímica, no instante mesmo em que lhe dá a palavra
(MAINGUENEAU, 2013: 222).

O autor esclarece que há semelhanças e diferenças entre a ironia e o provérbio. Tanto um


quanto o outro sugerem um enunciador que mostra, em sua própria voz, a voz do outro à
qual confere a responsabilidade pelo que está sendo dito. Assim, o provérbio valoriza o
outro.

Segundo Maingueneau (2013: 222), “o provérbio pertence a um estoque estabelecido, a


um patrimônio cultural, ao passo que, por definição, qualquer enunciação pode ser
irônica, inclusive a definição de um provérbio”. A ironia, por natureza, já tem um caráter
ambíguo, dando margem à dupla interpretação e, em muitos momentos, ela se apresenta
no campo da incerteza. Em contrapartida, o provérbio não traz em sua essência nada além
do que ele realmente apresenta.

Em se tratando de enunciação proverbial irônica, o autor remete a três vozes:

 a voz anônima representada pelo ‘nós’ da sabedoria popular;


 a voz do personagem ridículo que diria seriamente o provérbio;
 a voz do enunciador que encena, em sua própria fala, a voz
precedente, da qual se distancia (MAINGUENEAU, 2013: 222).

Em alguns dos contos de João Antônio, observamos o trabalho com essas vozes,
enfatizando a polifonia. Em Malagueta, Perus e Bacanaço (JOÃO ANTÔNIO: 2009),
por exemplo, o autor utiliza, nos diálogos entre os personagens, a enunciação proverbial
irônica representada pela sabedoria popular, como podemos notar a seguir:

— A senhora está a jogo ou a passeio? (p. 162)


— Ora, vá lamber sabão, trouxa embandeirado! (p. 162)

Essas expressões referem-se à situação conversacional em que as estratégias discursivas


apresentam-se no decorrer de cada diálogo. Os personagens conduzem situações de
interação mesmo não estando em consonância mútua, pois em se tratando de um
enunciado irônico, uma das partes acaba sofrendo com a situação. Notamos que, no
diálogo anterior, trata-se de um transexual que entra no mesmo bar em que outros homens
34

estão jogando sinuca para utilizar o banheiro. Os jogadores o convidam para uma partida
e recebem uma expressão injuriosa como resposta.

2.2 Figuras de linguagem

As formas cristalizadas da língua utilizadas por João Antônio como recursos linguísticos
metafóricos e comparativos têm uma função clara: tornar a linguagem mais criativa e com
maior expressividade para quem a utiliza nos contos, além de ser empregada também
como instrumento de interação entre o autor e seu leitor.

Nesse sentido, Vereza (2010: 200) afirma:

Expressões como ‘isso é só modo de dizer’, ‘isso é só maneira de falar’,


‘é só uma expressão’, ‘não é para ser entendido ao pé da letra’, entre
outras, marcam essa visão metadiscursiva sobre o uso da figuratividade,
uma reflexão sobre a própria linguagem usada que resultou em algum
desvio. A função desse desvio, ainda dentro da visão do senso comum,
poderia ser a de embelezar, ilustrar, esclarecer ou até mesmo ‘fugir do
assunto’ ou ‘esconder a ignorância’ sobre algo.
O autor esclarece que a linguagem figurada apresenta-nos um segundo sentido da
linguagem que nos permite atribuir à comunicação força expressiva, colorido, ênfase,
beleza. Dessa forma, a figura de linguagem consiste em dar às palavras um valor
conotativo.

As figuras de linguagem adquirem sentidos mais amplos do que geralmente possuem. Na


linguagem conotativa, há uma preocupação com a escolha das palavras e com a
disposição em que são colocadas em um conteúdo escrito, dando vida e beleza ao texto

2.2.1 Expressões metafóricas

A metáfora é considerada, de maneira geral, uma figura de linguagem que produz sentidos
figurados por meio de comparações implícitas e pode gerar dupla interpretação. A
expressão metafórica refere-se a um termo que está sendo usado no lugar de outro. Nesse
contexto, Vereza (2010: 200) explica que, de uma “perspectiva mais teórica, parece haver
um consenso entre pesquisadores, estudiosos e professores de línguas de que a metáfora
representaria, em sua essência, uma transferência de sentido de um termo ‘A’ para um
outro termo ‘B’. Essa visão consensual, que implica necessariamente ‘transporte de
sentidos’”.
35

A autora observa que, apesar de ser considerada “uma importante ferramenta para a
construção de significados, a metáfora, dentro da perspectiva interacional, ainda é
abordada a partir de seu uso na linguagem” (VEREZA, 2007: 489). Entretanto, a autora
comprova, por meio de pesquisa que realizou, que a metáfora é essencialmente uma figura
de pensamento, e não apenas de linguagem:

A verdadeira ruptura com o paradigma tradicional deu-se a partir da


publicação, em 1980, da obra, já clássica, Metaphors we live by
(traduzida para o português e publicada, em 2002, com o título Metáforas
da vida cotidiana), de George Lakoff e Mark Johnson. Nesse livro, os
autores, ao mostrarem, através de evidências lingüísticas, a onipresença
da metáfora até mesmo no discurso cotidiano, introduzem a sua
revolucionária tese de que a metáfora não seria somente uma figura de
linguagem, mas sim uma figura de pensamento, que subjaz não somente
à linguagem como também a nossas ações. Metáforas dessa natureza
surgiriam como um processo de se compreender, legitimar sócio,
cognitiva e lingüisticamente um domínio de natureza abstrata (como
‘discussão’ e ‘tempo’) a partir de outros domínios provenientes de
experiências mais concretas (como ‘guerra’ e ‘dinheiro’,
respectivamente), esses sim já legitimados e reificados sócio e
lingüisticamente. Essa teoria ficou conhecida como Teoria da Metáfora
Conceptual [...] (VEREZA, 2007: 489).

Vereza (2010: 204) esclarece que o fato de a metáfora ser abordada como figura de
pensamento, e não apenas de linguagem, faz que ela passe de um “adorno supérfluo” a
um recurso cognitivo a ser utilizado, de fato, a partir da interação com outro domínio da
experiência, desse modo, “a metáfora não seria apenas ‘uma maneira de falar’, mas sim
de pensar (ou até mesmo de ‘ver’) o real de uma determinada forma e não de outra”.

Filipak (1983: 123) assevera “que a construção das metáforas, tanto linguística quanto
poética, obedece a processos idênticos”. As metáforas são caracterizadas somente pelo
seu emprego: aquelas pertencentes ao campo da linguística (denominativas) “suprem uma
carência lexical” e as pertencentes ao campo da poética “se distinguem por um emprego
livre, opcional e intencional”. O autor esclarece que somente podemos classificar como
metáfora as figuras de significados que se baseiam “na analogia ou na relação de
similaridade” (FILIPAK, 1983: 152).
36

João Antônio faz uso constante da metáfora no decorrer de seus contos. Essa figura de
linguagem é utilizada como recurso semântico para conferir mais expressividade e
argumentatividade às suas palavras dando, assim, mais autoridade a seu discurso, como
podemos observar nos seguintes exemplos:

Este menino é um touro (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 53).


O enfermeiro era um cavalo (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 68).
[...] bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
98).
Meninão do Caixote, um galinho de briga (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
134).

Assim, restringir o uso de uma expressão metafórica apenas como um recurso poético da
linguagem é reduzir a sua eficácia, visto que a metáfora, além de ser empregada no
processo de comunicação, também pode, em determinado contexto, ser empregada no
processo de interação.

2.2.2 Expressões comparativas

A comparação é uma figura de linguagem capaz de estabelecer relações entre dois termos
diferentes em uma mesma oração com o intuito de enfatizar a ideia a ser transmitida.
Lopes (2006: 96) define a comparação como um “recurso coesivo com forte poder
argumentativo muito comum nos provérbios. Dentre os operadores do discurso, é
seguramente o mais abundante”.

Segundo o autor, a comparação se dá pelos mecanismos que instituem a relação entre dois
termos. Considerando o objeto deste estudo, Lopes (2006: 115) destaca que entre

[...] os argumentos quase lógicos, o que vemos com maior destaque em


relação aos provérbios é a comparação. A comparação se instaura
quando entre um termo comparante e um termo comparado, existe uma
relação de inferioridade, superioridade ou igualdade.

O autor acrescenta que “o efeito persuasivo da comparação só se realiza, contudo, por


haver a certeza de que se pode validá-la por uma operação de controle”, podendo esse
efeito persuasivo variar dependendo da escolha do termo a ser comparado, pois o
propósito, por exemplo, de certos provérbios é mais de “impressionar do que informar”
(LOPES, 2006: 116).
37

Dos contos de João Antônio extraímos algumas expressões comparativas, que


apresentamos a seguir:

Suei feito boi ladrão (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 53).


Funcionavam como parelha fortíssima, como bárbaros, como relógios
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 150).
[...] fica sujo como pau de galinheiro (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 150).
E nem se atirassem a qualquer jogo como piranhas famintas (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 150).

Há expressões que estabelecem uma relação comparativa explícita, por isso podem ser
chamadas de símiles, e trazem como elementos característicos os conectivos como, assim
como, tal como, igual a, que nem, feito, entre outros.

O autor emprega em seus contos diversas expressões comparativas em situações


conversacionais para que os argumentos de seus personagens ganhem mais credibilidade
pela força apresentada com o termo que estaria sendo comparado ao outro.

2.2.3 Expressões metonímicas

Podemos entender metonímia como sendo uma figura de palavra que equivale ao uso de
uma palavra empregada além de seu contexto semântico usual. Fiorin (2011: 118) explica
que de acordo com a

[...] a retórica clássica, que considera metáfora e metonímia como


figuras de palavra, esses dois procedimentos retóricos definem-se da
seguinte forma: metáfora é a substituição de uma palavra por outra,
quando há uma relação de similaridade entre o termo de partida
(substituído) e o de chegada (substituinte); metonímia é a substituição
de uma palavra por outra, quando há uma relação de contiguidade entre
o termo substituído e o substituinte.

O autor esclarece que essas definições não são suficientes, pois tanto a metáfora quanto
a metonímia são “procedimentos discursivos de constituição do sentido”, não se trata
apenas de substituir uma palavra por outra, mas de considerar uma “possibilidade criada
pelo contexto” (FIORIN, 2011: 118). Para Lopes (2006:136), a metonímia consiste na
troca de um nome por outro, podendo acontecer quando há uma relação de contiguidade
entre os termos, designando uma coisa com o nome de outra.
38

A título de exemplo, elencamos algumas expressões metonímicas utilizadas em contos de


João Antônio:

[...] três tacos, tinindo para o que desse e viesse (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 201).
Perus não poderia dizer um a (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 217).

No primeiro exemplo, temos o emprego dos instrumentos (tacos) no lugar das pessoas
que os utilizam (homens). No segundo, destacamos o uso de uma letra (a) no lugar de
uma expressão (reclamação).

Essa figura de linguagem surgiu da necessidade de o sujeito dar mais ênfase ao que está
sendo pronunciado. Para que ocorra a metonímia é importante que haja afinidade ou
estreita relação de sentido entre os termos.

Segundo Filipak (1983: 136), a metonímia busca a economia, ou seja, serve “para abreviar
a expressão que preocupa o falante”. O autor esclarece que há uma disposição para poupar
esforços, visando, assim, produzir maior expressividade ao que se pretende comunicar.

O autor acrescenta que a metonímia também serve como um recurso diferente:

Para fuga da economia. Para preencher lacunas e insuficiências do


vocabulário recorre-se muito ao mecanismo metonímico. Se um objeto
não tem nome na língua, ou mesmo que tenha, o falante é levado pelo
espírito eufêmico e disfêmico a recorrer à perífrase mais ou menos
longa, fugindo da economia linguística. Assim conhecemos metonímia
sintagmáticas e perifrásticas como estas: aquela que matou o guarda, a
cachaça; ter urutu no bolso, ser miserável [...] (FILIPAK, 1983: 136-
137).

Assim, temos metonímia quando, além de apenas ocorrer a substituição de um termo por
outro, amplia-se o seu sentido baseado em uma relação já existente, mas fora de seu
contexto semântico normal.

2.3 A propósito das frases feitas e expressões populares

Carmo (2013), em consonância com Preti (2004), esclarece que “as frases feitas, assim
como os provérbios são expressões idiomáticas que facilitam a comunicação e promovem
interação entre os falantes”. A autora afirma que essas expressões são “carregadas de
oralidade, dessa forma, acabam fazendo parte do cotidiano das pessoas por se tratar de
uma linguagem simples, direta e objetiva” (CARMO, 2013: 41).
39

Assim como os provérbios, as frases feitas ou expressões populares transmitem uma


sabedoria popular que é passada de geração a geração. Contudo, apesar de tênues, existem
diferenças entre eles. A expressão popular é mais comum, de fácil compreensão e, às
vezes, é apresentada de forma mais vulgar e menos severa que o provérbio.

Ribeiro (1960: 24), a respeito das frases feitas, esclarece-nos que estas

representam na orientação filológica uma renovação de métodos. A


rigidez dos fonetistas desaparece diante das confluências verbais, dos
processos analógicos, dos elementos psicológicos e principalmente da
análise da fraseologia como estilística do idioma.

O autor observa que bem mais que o significado das palavras, a frase feita retrata a índole
da língua nos seus estereótipos tradicionais. Tentar explicá-la constitui alto objetivo
filológico. Notamos, dessa forma, que para cada idioma existe um estilo próprio, uma
forma específica de fixar um pensamento por meio de uma expressão popular ou uma
frase feita.

O dito popular ou as expressões populares demonstram uma expressividade da própria


linguagem falada, além de traduzir a sabedoria popular. Podemos observar que, mesmo
com o objetivo de instruir, na maioria das vezes, não há rigor em sua composição. Dessa
forma, as expressões tornam-se livres e espontâneas, assemelhando-se à própria língua
falada.

De acordo com Urbano (1999: 115), qualquer que seja a

[...] linha de estudo sobre língua falada, há de se reconhecer que a


expressividade é um ingrediente da sua própria natureza, quer da
linguagem culta ou popular, quer da linguagem formal ou informal;
naturalmente em graus, motivações e propósitos diferentes.

O autor acrescenta que, em geral, a linguagem já é expressiva e aumenta ainda mais


quando se trata, em particular, da língua falada, e, por se tratar do seu estado natural,
dizemos que a expressividade não está presente apenas nas expressões orais. Urbano
acrescenta que em termos de recursos expressionais, alguns ocorrem com maior
frequência e recorrência na língua falada, outros ocorrem com maior frequência e
recorrência na língua escrita, inclusive nos trocadilhos.
40

João Antônio emprega constantemente frases feitas na maioria de seus contos, mas em
especial em Malagueta, Perus e Bacanaço, talvez por se tratar de personagens mais
experientes, com mais idade que os demais personagens dos demais contos. Essas
expressões são marcadas por situações contextualizadas por eles de forma extremamente
natural.

Carmo (2013:70) esclarece-nos acerca das frases feitas empregadas no conto Malagueta,
Perus e Bacanaço:

O palco de atuação dos malandros está definido por uma rica sabedoria
popular produzida pelo autor. As frases correspondem a provérbios
populares que facilitam a comunicação das personagens.
As frases feitas enriquecem o conto e, algumas vezes, são utilizadas
pelo autor como estratégia de aproximação, interação ou, até mesmo,
como autodefesa.

Tentar explicar com precisão uma expressão popular ou até mesmo a origem de uma frase
feita não seria possível. Assim como é difícil entender o início, por exemplo, de
determinados hábitos de um povo, por se tratar de sua própria cultura. Cascudo (2012)
explica-nos a respeito da cultura popular brasileira que poderia, se fosse o caso, indicar o
“Dicionário do folclore brasileiro como suficiente fonte de informações se o tempo não
trouxesse ao raciocínio pessoal as modificações que a observação capitaliza”
(CASCUDO, 2012: 11).

Ele ainda acrescenta que existem expressões populares, proferidas por nós, que da mesma
forma de “expor e concluir, como andamento em música lida ao piano, corre por conta
do ocasional intérprete”. Tomamos posse daquilo como se fôssemos verdadeiros donos,
“como dizem em Luanda, o muenhu uala moxi a mutu, a alma está dentro da pessoa. O
mensageiro não é, espiritualmente, o mandante. Faz de conta” (CASCUDO, 2012: 11).

Mesmo as expressões populares não estão livres de certos regulamentos ou princípios,


como é o caso de determinadas expressões regionalistas que perderiam o sentido se
pronunciados em outros países que não o Brasil.

Pinto (2003: 11-12) cita alguns exemplos de expressões puramente regionalistas:

Deus é brasileiro; Baiano burro nasce morto... Muitos são óbvios,


outros se contradizem, outros ainda são machistas... racistas ou
politicamente incorretos em geral. Podem ser curtos... longos... Têm
41

que ver com política... mercado..., família..., culinária..., entre outros...


Alguns temas são mais presentes que outros.

A autora acrescenta que os ditos populares são compostos de conceitos idealizados pelas
pessoas e que, de alguma forma, acabam sendo fixados na memória do povo. As pessoas,
de tanto exteriorizarem suas ideias acabaram por torná-las verdades. Nesse sentido, Pinto
(2003: 13) ressalta: “Coisas que foram ditas e que, por razões diversas, se tornaram
exatamente isso: ditos populares, conhecidos, inesquecíveis, às vezes universais”; além
disso, os ditos populares são “menos elitistas que as máximas e os aforismos”, além de
nos divertirem, nos fazem refletir e até nos ensinam.

2.3.1 Expressões populares como forma de interação

Os personagens de João Antônio são marcados pelos traços acentuados de sofrimento


que, muitas vezes, eram de ordem social. Contudo, notamos que esses personagens,
fortemente caracterizadas pelos transtornos ocasionados pela injustiça social, tornam-se
cada vez mais preparados para enfrentar esses problemas. A comunicação entre os amigos
de noitadas, por exemplo, acaba possibilitando uma maior interação entre os pares, visto
que unidos são menos vulneráveis.

João Antônio faz uso de táticas conversacionais que tornam as conversas dos personagens
mais naturais, de forma que os aproximam, ao máximo, da realidade conversacional. O
autor consegue ser autêntico nas representações das falas, além de nos transmitir com
clareza o estado emocional desses personagens.

Almeida (2009) assevera que a interação social tem na linguagem uma aliada fiel. A
autora comenta que por meio da comunicação podemos manifestar opiniões, desejos e
crenças e que a

[...] necessidade de interagir no meio em que vive faz com que o ser
humano procure munir-se de recursos que lhe possibilitem atuar no
contexto de situações comunicativas munido de recursos condizentes
com suas necessidades expressivas. Nesse intercâmbio interacional, a
forma linguística se destaca como recurso mais eficiente. Com ela, o
homem se reveste de um poder que lhe é exclusivo: o dom de
comunicar-se por meio da palavra. Todavia, isso não é suficiente. Não
42

basta ser dotado do poder de comunicar-se; é preciso saber comunicar-


se (ALMEIDA, 2009: 171).

Ela esclarece, ainda, que não basta apenas se comunicar, é importante saber usar as
palavras de forma adequada, dar-lhes um “direcionamento adequado”, isto é, “é preciso
ter o domínio da expressão verbal” (ALMEIDA, 2009: 171).

No caso dos contos de João Antônio, objeto de nosso estudo, o autor faz uso das frases
feitas com muita propriedade. Seus personagens são marcados por características muito
específicas, expressas pelo linguajar próprio. Utilizar as frases feitas, nos momentos de
cordialidade, por exemplo, é algo bastante comum no dia a dia de seus personagens, pois
elas retratam a realidade, mostrando a afetividade entre os amigos, mesmos nos
momentos de adversidade.

Reis (2011) esclarece que o emprego de

[...] frases feitas e dos provérbios além de facilitar a comunicação,


agiliza a interação num ato conversacional. Essas expressões, fruto da
sabedoria popular, são utilizadas pelas mais diversas comunidades
linguísticas nas mais variadas situações de fala. Na linguagem oral do
dia a dia, os falantes não apresentam muitas variantes para expressar as
mesmas ideias, por isso, acabam utilizando com frequência as
expressões formulaicas − frases feitas.
A força expressiva e a dinâmica, que a utilização desse expediente de
linguagem atribui à fala distensa do dia a dia, tornam seu uso muito
comum. Não raro, encontramos em uma conversa o uso de formas fixas
– expressões formulaicas – como ‘dá com os burros n’água’, ‘conversa
pra boi dormir’ entre tantas outras frases feitas das quais nos valemos
para tornar o ato conversacional mais fluido (REIS, 2011: 60).

O autor comenta que o uso dessas expressões é muito comum, não importando a situação
de comunicação, uma vez que possibilita interação entre os indivíduos. E mesmo com o
passar do tempo as formas fixas continuam expressivas.

2.4 O papel da interação nos contos de João Antônio

Para Preti (1977: 2), a língua, “manifestação da vida em sociedade”, funciona como
elemento de interação entre indivíduo e sociedade e possibilita a transformação da
43

realidade em signos “pela associação de significantes sonoros a significados arbitrários,


com os quais se processa a comunicação linguística”.

Nessa direção, Marcuschi (2001: 125) afirma que a língua pode ser tratada como “um
fenômeno sociocultural que se determina na relação interativa e contribui de maneira
decisiva para a criação de novos mundos e para nos tornar definitivamente humanos”. A
interação faz-se necessária para que haja entendimento, pois a sociedade só existe por
causa da língua. Nesse sentido, Nóbrega (2008: 72) esclarece que o “homem é, por
natureza, um ser interativo e a comunicação entre seus semelhantes é imprescindível para
a sua plena convivência social. Dessa forma, a interação é fundamental para que atos de
fala se desenvolvam totalmente”.

Preti (2002) ressalta que a interação entre duas pessoas, às vezes, é confundida com
concordância, mas nem sempre essa interação se dá apenas pela aceitação de uma ideia
ou de um ponto de vista, ela pode acontecer também pela não aceitação, pois ambas
podem discordar do que está sendo transmitido. Nesse sentido, o autor esclarece que o

[...] conceito de interação pode ser entendido em sociedade sob o ponto


de vista da reciprocidade do comportamento das pessoas, quando em
presença uma das outras, numa escala que vai da cooperação ao
conflito. De uma maneira geral, pode-se partir desde uma simples co-
presença em que dois indivíduos se cruzam na rua e que, mesmo sem
se conhecerem, se observam, guardam distância e desviam-se para não
se chocarem, o que já demonstra uma ação conjunta e socialmente
planejada, até a interação com um único foco de atenção visual e
cognitiva, como a conversação, em que os falantes por um momento se
concentram um no outro e se ligam, não só pelos conhecimentos que
partilham, mas também por outros fatores socioculturais, expressos na
maneira como produzem o seu discurso e conduzem o diálogo (PRETI,
2002: 45).

O autor acrescenta que um dos problemas a respeito da interação, que não depende apenas
de um conhecimento partilhado, em particular na fala, está justamente na dificuldade em
se manter a interação, o que ocorre, muitas vezes, pela falta de argumento ou pelo
desconhecimento do assunto tratado, fazendo com que um diálogo, por exemplo, seja
interrompido.

Em se tratando da relação de interatividade, notamos que o ser humano tem a capacidade


inata de se comunicar com o outro de várias maneiras. Contudo, para que isso aconteça
44

de forma clara e eficaz, é necessário haver reciprocidade por parte de cada um dos falantes
(NÓBREGA, 2008).

A pesquisadora acrescenta que a interação ocorre somente

[...] se os interlocutores tiverem cumplicidade, o mesmo interesse pelo


assunto abordado, concordância em vários aspectos ou discordância
negociada. Desse modo, a interação se caracteriza por situar os
interlocutores, durante o ato conversacional, no mesmo contexto em
que se manifestam iniciativas favoráveis ou desfavoráveis sobre o tema
em questão.
Assim, uma intensa interatividade se instaura no texto falado quando
ambos os interlocutores compartilham as mesmas ideias, apresentam
nível cultural semelhante e possuem papéis sociais específicos que os
fazem ter os mesmos interesses temáticos (NÓBREGA, 2008: 75).

Nesse sentido, pensando especificamente nos provérbios, seu uso em uma conversa pode
promover ou não a interação, que só ocorrerá se os participantes entenderem o teor
daquilo que está sendo articulado, se o provérbio que está sendo dito fizer parte da
realidade deles. Por exemplo, citar um provérbio regional a um indivíduo que sempre
viveu nos centros urbanos e que tem pouco contato com pessoas que vivem no campo ou,
da mesma forma, citar um provérbio relacionado à cidade grande a alguém que vive no
campo e que não tem muito contato com a mídia, por exemplo, seria uma situação em
que poderia não haver completa interação. A conversa poderia não fluir com tanta clareza
e entendimento. Para que houvesse interação seria necessário que o conhecimento fosse
compartilhado.

Brait (1999) esclarece que o processo interacional entre falantes só pode ser analisado se
considerado o contexto, situação dos participantes da interação, além das estratégias
apresentadas por eles durante o diálogo. A autora esclarece que a interação faz parte do

[...] processo de comunicação, de significação, de construção de sentido


e que faz parte de todo ato de linguagem. É um fenômeno sociocultural,
com características linguísticas e discursivas passíveis de serem
observadas, descritas, analisadas e interpretadas.
A abordagem interacional de um texto permite verificar as relações
interpessoais, intersubjetivas, veiculadas pela maneira como o evento
conversacional está organizado. Isso significa observar no texto verbal
não apenas o que está dito, o que está explícito, mas também as formas
dessa maneira de dizer que, juntamente com outros recursos, tais como
entoação, gestualidade, expressão facial etc., permitem uma leitura dos
pressupostos, dos elementos que mesmo estando implícitos se revelam
e mostram a interação como um jogo de subjetividades, um jogo de
45

representações em que o conhecimento se dá através de um processo de


negociação de trocas, de normas partilhadas, de concessões (BRAIT,
1999: 194).

Segundo a autora, a interação se dá também em decorrência de fatos que agregam


questões culturais e sociais de um mesmo grupo. Essas questões, muitas vezes, estão
relacionadas a fatores ligados à linguagem e que são constituídos por mecanismos
compartilhados por pessoas pertencentes a uma mesma comunidade, permitindo, assim,
uma comunicação mais eficaz. Da mesma forma, o provérbio está ligado a esse fenômeno,
pois estabelece uma relação de interatividade por meio de seus ensinamentos e por uma
correspondência mútua, fazendo com que cada participante desse processo possa
compartilhar de suas ideias e, às vezes, confrontá-las com pontos de vistas diferentes.

No próximo capítulo, passamos à análise do corpus selecionado.


46

3 Análise do corpus

Neste capítulo, analisamos o corpus, constituído pelos contos Busca, Afinação da arte de
chutar tampinhas, Fujie, Retalhos de fome numa tarde de G.C., Natal na cafua, Frio,
Visita, Meninão do Caixote, Malagueta, Perus e Bacanaço, em que buscamos identificar
os elementos linguísticos, bem como figuras de linguagem e expressões de cunho
religioso responsáveis pelo estabelecimento da interação em provérbios e frases feitas
utilizados por João Antônio.

Observamos que os provérbios e as expressões populares ocupam um importante espaço


no estabelecimento da interação e no desenvolvimento de diálogos, tanto em momentos
de confraternização ou de compartilhamento de opiniões quanto em momentos de embate
e de defesa de um ponto de vista. A fim de evidenciarmos esse aspecto, passamos à análise
das expressões utilizadas por João Antônio em seus contos.

3.1 Busca7

Andando tão devagar.


Procurava alguma coisa na tarde.
O vento esfriou.
Não sabia bem o que, era um vazio tremendo.
Mas estava procurando.
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 31)

Iniciamos esta seção com a análise do conto Busca, que abre o volume de estreia da obra
intitulada Malagueta, Perus e Bacanaço, constituindo, assim, “uma espécie de marco
inaugural da ficção do autor” e um dos contos preferidos de João Antônio (ZENI, 2016:
133).

7
Esse conto foi publicado em 1958 e reeditado em 1996, ano da morte de João Antônio.
47

O conto, narrado em primeira pessoa, traz Vicente, narrador-protagonista, um rapaz


solitário, trabalhador bem-sucedido que mora com a mãe. Em uma tarde de domingo, sai
de casa com um sentimento de intensa nostalgia e vai em busca de algo que possa
preencher o vazio deixado pelo pai. O ócio do domingo, “principalmente depois do
almoço” intensificava ainda mais sua solidão.

Vicente, olha a galinha na rua!


Abri o portão, a galinha pra dentro. Mamãe tinha o avental molhado do
tanque. Um balde pesava no braço carnudo.
— Deixa qu’eu levo.
Derramei, fiquei olhando a água no cimento. Aquilo estava era
precisando duma escova forte. Começo de limo nas paredes. Sujeira.
Quando voltasse daria um jeito no tanque. As manchas verdes
sumiriam.
— Vai sair já? Espera o sol descer um pouco.
Que sol, que nada... Queria sair. Um domingo tão chato! (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 27)

O conto inicia com uma situação em que prevalece o diálogo entre o narrador-
protagonista e sua mãe, o que evidencia a interação, a relação de cordialidade entre
ambos. É o momento em que ele se dirige ao portão e resolve sair. Vai visitar o amigo
Luís. A princípio, pensa em pegar o trem, mas não quer esperar trinta minutos. Então,
segue a pé, passando a limpo seus pensamentos:

Fui caminhando para a Lapa. Mesmo a pé. Os lados da City, tão


diferentes, me davam uma tristeza leve. Essa que sinto quando como
pouco, não bebo, ouço música. Ou fico analisando as letras dos antigos
sambas tristes – dores de cotovelos, promessa, saudade [...] Essas
coisas.
Garotas novinhas, calças compridas, passaram-me em bicicletas.
Bochorno. Tudo parado, morto. Se eu fosse à casa de Luís, na Lapa,
beberia café. Vive me convidando. Sujeito diferente. Meteu-se com
estudo à noite, esforça-se. Lá na oficina me fazem uma adulação
nojenta, porque sou chefe da solda. Ora desde menino nesta ocupação,
é claro que entendo da coisa. Por isso certos fulanos se encostam,
agrados para pedir isto e aquilo. Mas Luís é ótimo, não adula. Só abre
a boca para coisa aproveitável. Se os tipos que fazem adulação
soubessem como são parecidos com cachorro quando quer comida
[...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 28, grifo nosso).

Enquanto caminha, Vicente relembra algo que o incomoda em seu ambiente de trabalho:
pessoas que não são sinceras com ele costumam agradá-lo com o intuito de obter alguma
vantagem. Seu amigo Luís não era como essas pessoas, por isso o narrador-protagonista
nutre certa admiração por ele. À medida que avança em seu percurso, as lembranças do
pai se tornam mais presentes.
48

Os pensamentos do narrador-protagonista o remetem ao passado, então, um sentimento


de indignação é manifestado por meio da expressão comparativa “Se os tipos que fazem
adulação soubessem como são parecidos com cachorro quando quer comida...”,
determinada pela relação de similaridade entre dois segmentos: “os tipos que fazem
adulação” e “cachorro quando quer comida...”, o que evidencia a opinião do narrador-
protagonista em relação aos bajuladores. Segundo Filipak (1983: 32), essa expressão
comparativa é denominada “Comparação taxemática (táxis = ordem) que introduz
mediante um taxema o segundo membro ou eventualmente os dois membros da
comparação: como, quanto, assim como, tanto... quanto, tal...qual, etc.”. Dessa forma, o
autor esclarece que a comparação é responsável pela prova, além da argumentação, e
também pela demonstração que se processa no campo do intelectual, do lógico, e até
mesmo no campo denotativo.

O narrador-protagonista segue por uma rua desconhecida e deixa-se atrair pelas imagens
que o fazem esquecer o vazio da solidão. De repente, é surpreendido por um garoto
brincando com uma bola, que o faz lembrar a infância. Para alguém que não sabe
exatamente o que está buscando, esse momento simboliza o reencontro com o passado.
Ele continua em sua trajetória, relembrando os tempos em que seu sonho era participar
do campeonato amador de boxe:

— Desta vez ele vai!


Girei para a esquerda, soltei o direto. Caprichava tanto, tanta certeza eu
tinha. Aquele mulato não aguentaria mais um round.
Um sujeito lá embaixo:
— Desta vez ele vai!
O mulato defendeu, deu uma gingada, ganhou a brecha. Largou o braço.
Que técnica! Quem é que poderia esperar aquilo?
Golpe, dor, choque, sangue, escuridão, zoeira, lona. Cara na lona, eu
jamais esqueceria! Doze disputas perdidas, tudo perdido. Escuridão,
zoeira nos ouvidos, barulho dos caras lá embaixo. Fossem para a casa
do diabo. Não enxergava nada. Provavelmente a mão do juiz subia. E
desceu todas as vezes Eu não vi nada (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 29,
grifo nosso).

Ao se relembrar do momento em que acaba o sonho de participar do campeonato, o


narrador-protagonista reconstitui mental e emocionalmente o cenário de derrota. No
retorno à cena, revive o sentimento de raiva, manifestado pela expressão “Fossem para a
casa do diabo”.

Notamos que ao reviver aquele momento, o narrador-protagonista sente um intenso


desgaste físico e espiritual, pois reconstitui o sentimento de humilhação. Ao empregar a
49

expressão de cunho religioso “Fossem para a casa do diabo”, aproveita-se da crença


popular, do poder do sobrenatural, como forma de vingança. Nesse sentido, Almeida
(2009:190) assevera que “a recorrência a expressões da linguagem injuriosa acontece com
a finalidade de extravasar emoções”. No caso, essa expressão desmascara o sentimento
de desprezo e de descaso em relação a tudo que o incomodava no local de trabalho. Dessa
forma, mesmo que nenhuma atitude fosse tomada em relação a esse sentimento, sua raiva
não ficaria contida.

Ao chegar à casa de Luís, fica admirado com o que vê. Não imaginava que o amigo
morava em um lugar tão agradável. Sai para um conhaque no boteco e se diverte um
pouco com o amigo, mas não tem paciência, pois o vazio ainda permanece em seu peito:

Fingira atenção nas tacadas, um capricho que não é meu. Sorrira, pegara
no giz, insinuara aposta. Mas por dentro estava era triste, oco, ânsia de
encontrar alguma coisa. Não parede verde de tinhorões e trepadeiras,
nem bola sete difícil, nem Lídia, nem [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
31).

Mesmo o narrador-protagonista estando em uma situação interacional com o amigo, essa


interação não ocorre por meio de diálogos, mas podemos percebê-la pelo contexto e pela
relação amigável que há entre eles.

Logo Vicente retoma a caminhada e suas recordações, uma busca incessante por algo que
lhe custa saber. No percurso de volta, resolve sentar-se em um banco, quando é
surpreendido por uma garotinha que lhe toca o joelho. Naquele instante, teve vontade de
brincar com ela. Ficam ali por algum tempo, conversam, ele oferece um sorvete à menina,
até os “aventais muito brancos da empregada surgirem na praça”, e a conversa precisou
ser interrompida (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 31). Notamos a presença de metonímia nesse
relato feito pelo narrador-protagonista no instante em que substitui o termo babá por
“aventais brancos”. Segundo Fiorin (2011: 118), essa figura de linguagem consiste na
utilização de um termo no lugar de outro com o qual haja uma relação de sentido.

Nessa caminhada, pensa que chegaria em casa e sairia outra vez. Relembra os bons
momentos que teve ao lado da garotinha e algo muda dentro de si: “A garotinha do jardim
público poderia ser filha minha. Este pensamento agradou-me, jogou-me uma ternura”
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 32). A partir desse momento, passa a cogitar a ideia de ceder
às investidas de Lídia, uma amiga da família que ajuda sua mãe nas costuras: “Lídia
50

maneira, pequenina, talvez boa mulher” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 32). Ele começa a
perceber que Lídia tinha qualidades que não havia notado antes.

Sua mente é invadida por um turbilhão de pensamentos relacionados aos funcionários da


oficina que tentavam agradá-lo por interesse e que ainda lhe causavam um profundo
sentimento de indignação, naquele momento, talvez necessário para que pudesse
extravasar suas emoções e se libertar. Dessa forma, segue seu caminho remoendo a raiva
que sente dos funcionários que o bajulam por conta de seu cargo:

Pensei com raiva nos sujeitos que me bajulam na oficina. Tontos! A


prática que tenho, terão também se quiserem. Mas ficam com
amabilidades falsas, favores bobos – ‘tenha a bondade’, ‘Vicente, só
você pode resolver’. Murmurei entre os dentes:
– Ora, fossem plantar batatas [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 32).

Nesse trecho, destacamos a expressão “Ora, fossem plantar batatas”8, que evidencia o
desejo de Vicente de que os bajuladores o deixassem em paz e se ocupassem de outras
coisas.

Ao extravasar, de forma audível “entre os dentes”, o narrador-protagonista faz um


desabafo. Apesar da expressão ter uma conotação irônica no conto, não se trata de
menosprezar os cultivadores de batatas, e sim de dar a entender a seus bajuladores que
eles deveriam se preocupar com outra coisa, pois a bajulação não teria nenhum resultado
positivo.

A constatação de que as lisonjarias não teriam consequências favoráveis recai sobre a


expressão popular “Vá plantar batatas”. Notamos a presença da metáfora na expressão
popular “fossem plantar batatas”, que o narrador-protagonista emprega com conotação
ofensiva, porém a utiliza para extravasar, pois durante sua caminhada ele apenas conversa
consigo mesmo.

Na continuidade do texto, notamos que, após esse momento de desabafo, Vicente começa
a criar outras perspectivas em relação às suas caminhadas. Não abre mão de suas manias,
ou melhor, das “manias de seu pai”, que ele faz questão de manter, mas agora não mais

8
A expressão “Vá plantar batatas” surgiu em Portugal, provavelmente na época das navegações. Seu
sentido irônico vem do fato de que, naquele país, não se diz “plantar batatas”, mas semear batatas; plantar
só se usa para a muda das árvores; legumes, grãos, abóboras, melões se semeiam porque se lança ou enterra
a semente na terra. Assim, mandar alguém “plantar batatas” significa pedir que alguém o deixe em paz e
vá fazer algo impossível ou sem pés nem cabeça. Disponível em: <https://www.dicionarioinformal.
com.br/significado/v%C3%A1%20plantar%20batatas/3130/>. Acesso em: 30 ago. 2018.
51

sozinho, pois cogita a possibilidade de repetir os passeios que fazia com o pai em
companhia da mãe:

Julguei muito necessário recomeçar os passeios a Santos, a Campinas


[...] Eu e mamãe. Talvez as semanas começassem melhores, menos
compridas. Segunda-feira, não parecendo já o cansaço de quarta [...]
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 32).

Vicente perde-se em seus pensamentos e, quando se dá conta, já é noite. Assim, esse conto
termina de forma cíclica, pois temos a mesma situação contextual observada no início da
narrativa entre o narrador-protagonista e sua mãe: “Lembrei-me de que precisava passar
uma escova no tanque” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 33).

3.2 Afinação da arte de chutar tampinhas

Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que


para acertar, é necessário pequenas erradas. Mas é muito
desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. [...]
Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 41-42).

Em Afinação da arte de chutar tampinhas, temos uma história narrada em primeira pessoa
por um cidadão oprimido socialmente e que se vê forçado a se enquadrar nos padrões de
uma sociedade da qual não faz parte. Sem conseguir aceitar as normas a ele impostas,
escolhe aperfeiçoar-se na arte de chutar tampinhas e dedica-se ao prazer de ouvir música.
Essas duas ações configuram momentos de encanto e completude para ele.

Apesar de haver poucos provérbios ou frases feitas nesse conto, a narrativa se estabelece
pela semelhança entre a vida e a arte descrita pelo narrador e pode ser analisada da
perspectiva de um provérbio.
52

Sampaio (2008) leva-nos a refletir a respeito do título Afinação da arte de chutar


tampinhas. Segundo a autora,

[...] a afinação de que fala o protagonista, que não tem um nome, parece
apontar para uma afinação do sensível, uma busca por aprofundar-se
naquilo que faz pela investida no conhecimento de si expressa pela
tessitura das lembranças do passado e pela escolha de uma narrativa em
primeira pessoa (SAMPAIO, 2008, s.p.).

O ato de chutar tampinhas, que parecia algo simples, comum, um ato impensado e
corriqueiro, era algo capaz de manter o equilíbrio do narrador-protagonista, fazê-lo
voltar-se a si mesmo e levá-lo à reflexão, na verdade, um ato complexo de se rever.

O narrador-protagonista inicia o conto traçando um paralelo entre três momentos: os dias


atuais, presente da narrativa, em que relata como está hoje; sua infância em Presidente
Altino; a época em que prestou serviço militar:

Hoje meio barrigudo.


Mas já fui moleque muito bom centro-médio. Pelo menos Biluca
assegurava que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de
U.M.P.A. — queria dizer: União dos Moços de Presidente Altino. [...]
[...] Aos domingos a gente trepava num caminhão e ia jogar noutras
vilas. Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes,
voltávamos de cabeça baixa, maldizendo juiz, campo que a gente não
conhecia, tudo para justificar a derrota.
Por esse tempo, comecei a prestar atenção nas letras dos sambas, e vi,
mesmo sem entender, que o tamanho de Noel era outro, diferente,
maior, tocante, não sei. [...]. Hoje, quando a melodia me chega na voz
mulata do disco, volta a tristeza de menino e os pelos pretos do braço
se arrepiam.
Sobraram restos de memória dos jogos suados na U.M.P.A (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 37).

Sem revelar seu nome, o narrador-protagonista relata as aventuras vividas na infância, o


prazer em estar com outros garotos e sua paixão por futebol. Relembra, com angústia, os
momentos do passado, considerando o momento presente “Hoje meio barrigudo”.

Outro fato marcante que o narrador-protagonista utiliza para contrapor presente e passado
é a lembrança de Aldônia, de quem recorda como alguém com quem teve “uma espécie
de namoro”, que acabou não seguindo em frente:

[...] — um dia, ela me pilhou fumando escondido, na maior folga,


perfeitamente um macaco trepado num abacateiro.
53

Contou. Danada! Em casa me bateram porque ela contou. Raiva —


escrevi-lhe num bilhete palavrões infamantes, muito piores do que
aqueles que escrevíamos nos armários do vestiário da U.M.P.A. ‘Sua
isso, sua aquilo’. Tolice enorme. Surra dobrada, em casa. Papai me
esperando com o bilhete na mão. A diaba contava tudo porque sabia
que eu apanhava mesmo. Aquilo já era me fazer de palhaço.
— Não fala mais comigo.
Engraçado — Aldônia até hoje não presta (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
39-40, grifo nosso).

Em um contexto de indignação, o narrador-protagonista relata um fato ocorrido entre ele


e sua namorada, ou quase namorada, Aldônia, que o deixou triste. Notamos a ocorrência
de uma expressão comparativa empregada pelo narrador-protagonista, “perfeitamente um
macaco trepado num abacateiro”. Essa expressão indica a forma como Aldônia o
encontrou: em cima de uma árvore, trepado no galho como um macaco. Houve, nesse
momento, uma fala de injúria pelo fato de Aldônia ter relatado à mãe dele que ele estava
fumando. Isso o deixou irado a ponto de utilizar um termo ofensivo de cunho religioso,
“diaba”: “A diaba contava tudo porque sabia que eu apanhava mesmo”.

A narrativa segue com uma retrospectiva de um outro tempo vivido pelo protagonista.
Trata-se da fase que marca o início da vida adulta para os meninos: a época do serviço
militar que, como narrado, foi o momento mais difícil. Nesse contexto, por não ter
liberdade de escolha, as atividades do dia a dia se tornavam cada vez mais árduas e
entediantes para o narrador-protagonista. Por onze meses, teve a responsabilidade de
cuidar dos filhos do capitão. Isso mostra que o comandante nutria por ele certa confiança:

E eu aturando onze meses os filhinhos do comandante.


— Sim senhor, seu capitão.
Porque, segundo ele, os garotos tinham irrefreável aptidão para lutas.
De acordo com o homem, eram gênios em tudo o que faziam.
Para mim, o comandante era bom. Eu não tinha queixa. Favores,
dispensas, o homem me dava um fio de liberdade. Porém, um defeito
sem remédio. Eu nunca rasguei o verbo. Senão, cafua. O mal maior
do capitão era não reconhecer a verdadeira vocação dos garotos —
plantar batatas [...] Na horta do pai, ou onde bem entendessem. Para
jiu-jítsu, garanto que não haviam nascido (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 40-
41, grifo nosso).

Apesar de o comandante ser uma pessoa boa, o narrador-protagonista não estava feliz,
pois havia sido impedido de praticar seu esporte preferido, futebol, e estava sendo
obrigado a ensinar o pouco que sabia de jiu-jítsu aos dois filhos do capitão.
54

Notamos que, nesse conto, o narrador emprega a expressão metafórica “Eu nunca rasguei
o verbo” para dizer que achava melhor se manter calado. A metáfora, segundo Vereza
(2007), em uma perspectiva interacional, é abordada considerando-se seu uso na
linguagem. Para o estudioso, a

[...] metáfora não seria somente uma figura de linguagem, mas sim uma
figura de pensamento, que subjaz não somente à linguagem como
também a nossas ações. Metáforas dessa natureza surgiriam como um
processo de se compreender, legitimar sócio, cognitiva e
linguisticamente um domínio de natureza abstrata (como ‘discussão’ e
‘tempo’) (VEREZA, 2007: 489).

Por meio da metáfora, o protagonista mostra a necessidade de tomar uma atitude, nesse
caso, dizer algo que fizesse com que as coisas pudessem ter um novo rumo.

O protagonista desabafa consigo mesmo, em um momento de indignação, utilizando parte


da expressão popular “Vá plantar batatas!” para extravasar sua raiva, dizendo que a
verdadeira vocação dos garotos era “Plantar batatas... Na horta do pai, ou onde bem
entendessem”, pois as aulas de jiu-jítsu eram desnecessárias, já que eles não tinham
aptidão para o esporte. O autor utiliza-se dessa expressão popular para ressaltar uma
enunciação proverbial irônica que, segundo Maingueneau (2013: 221), tem o propósito
de subverter uma palavra no momento em que é proferida.

Em se tratando da escrita, como é o caso desse conto de João Antônio, o leitor deve ficar
atento para não tomar o enunciado “plantar batatas… Na horta do pai, ou onde bem
entendessem” em seu sentido literal, pois, segundo o autor, não dispõe dos recursos da
mímica ou do tom da voz, que facilitariam o entendimento.

A vontade do narrador-protagonista diante de uma tarefa tão exaustiva e sem perspectiva


de mudança é de abandonar tudo e dar outro rumo à vida, bem diferente daquela situação
que estava vivendo. Todavia, sua condição de militar o impedia de “chutar o balde”,
expressão popular utilizada para demonstrar a falta de resignação quando alguém já
chegou ao limite da paciência e procura viver o que almejava para a própria vida. Dessa
forma, pela impossibilidade de fazer o que desejava, acaba transferindo para as tampinhas
aquilo que gostaria de fazer em relação a seu modo de viver: “chutar tampinhas”:

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava


tudo o que achava. A vontade era chutar. [...] É só ver tampinha. Posso
diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. [...] Errei
55

muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar,


necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo
desaparecer antes do chute. Sem graça.
Meu irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso.
Meio burguês, metido a sensato. Noivo…
— Você é um largado. Onde se viu essa, agora! (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 41-42, grifo nosso)

O prazer que sentia nos jogos de futebol com os garotos do U.M.P.A, em Presidente
Altino, transfere ao chutar tampinhas que encontra pelas ruas da cidade. Segue
aperfeiçoando “sua arte” ao mesmo tempo em que extravasa a raiva e a vontade de chutar
tudo a sua volta. É nas tampinhas que encontra refúgio e alívio para suas angústias.

É necessário absorvermos a leitura por completo desse conto, para que possamos superar
uma possível sensação inicial de estranhamento ao lê-lo para, só então, descobrirmos o
significado da expressão “chutar tampinhas”.

A ação de “chutar tampinhas” é análoga à ação de “chutar o balde”, esta expressão popular
trata-se também de uma metáfora do tipo “associação de similaridade” (FILIPAK, 1983:
87). Nessa projeção denotativa e conotativa “chutar tampinhas” refere-se à expressão
“chutar o balde”, assim, podemos afirmar que ambas passam pelo mesmo processo
metafórico de construção.

Na sequência da narrativa, o narrador-protagonista comenta sobre o irmão, um “tipo sério,


responsabilidades”, o oposto daquilo que ele se tornou: “Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio
burguês, metido a sensato. Noivo…”, ou seja, ao contrário de seu irmão, o narrador-
protagonista não era confiável, não tinha responsabilidades, era um sujeito medíocre e
insensato. Não bastasse isso, não tinha nenhum relacionamento sério. Dessa forma, o
narrador vê no irmão a figura de um homem que merecia todo respeito: “Meu irmão só
pensa em seriedade” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 46).

Podemos entender a expressão “Ele, a camisa; eu, o avesso” como um exemplo de


subversão (MAINGUENEAU, 2013: 220), pois se trata de uma ironia, ou seja, algo de
valor negativo que imita outra expressão: “Um, o martelo; o outro era o cabo”. Segundo
o autor, na subversão, com o propósito de desqualificar uma pessoa, o falante “imita” um
ditado ou uma expressão, muitas vezes, hostilizando a pessoa que se tornou seu alvo.
Nesse caso, o narrador-protagonista utiliza-se desse recurso linguístico para difamar a si
próprio.
56

Apesar de o narrador-protagonista não merecer confiança, por ser uma pessoa com
comportamentos infantis e imaturos, o comandante confiava nele a ponto de fazê-lo tomar
conta das cervejas pretas, tão cobiçadas por todos no quartel:

Havia no quartel uma caixa delas. Reservadas para sargentos do dia.


Cada um tinha direito a uma. Na geladeira do aprovisionamento sempre
havia. Difícil cavar cerveja preta. O comandante me encarregou de
tomar conta do aprovisionamento, ajudando o sargento Cunha. Pagar o
mantimento ao pessoal do rancho. Boa vida. Meu lugar bem que era
outro, lá na secretaria
Datilografando, esquentando a cabeça com números e preços na
máquina de calcular. Mas eu ensinava jiu-jítsu aos filhos do
comandante, era peixe… As cervejas pretas eram inacessíveis. Todos
queriam. Os homens viviam de olho naquilo.
— Se sumir, desconta-se na folha de pagamento.
Na minha folha de pagamento, é claro. Ordem de não sei quem.
Eu não era tão trouxa nem tão caxias. Guiava, saía com o caminhão,
apareciam virações.
— Você não é praça? Se vira (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 44-45, grifo
nosso).

Em relação à expressão popular “Os homens viviam de olho naquilo”, temos a ocorrência
da metáfora no segmento “viviam de olho”, que indica a ação de cobiçar, desejar algo.

Fiorin (2011) chama de percurso figurativo a possibilidade de se trabalhar um termo em


diferentes contextos. No caso da palavra “olho”, empregada no texto de João Antônio, a
metáfora ocorre porque, segundo Fiorin (2011), foi criada uma forma diferente de
empregar a palavra “olho”, ou seja, em uma situação diversa daquela de uso habitual.

Temos outra metáfora na expressão popular “era peixe”, empregada para demonstrar que
o narrador-protagonista, apesar de estar na mesma posição que os demais, vivia uma
situação privilegiada, por ser mais próximo do comandante e ser seu protegido.

O narrador-protagonista sentia-se lisonjeado por ser digno da confiança do capitão, apesar


de ser grande a responsabilidade que estava em suas mãos: se faltasse alguma cerveja
seria descontado em sua folha de pagamento. No entanto, mesmo com tantas
recomendações para que tomasse cuidado, ele se achava à altura para realizar esse
trabalho e se sentia merecedor da confiança, afinal das contas, ele era professor de jiu-
jítsu dos filhos do capitão, “era peixe”.

A posição de que usufruía não o impedia de ludibriar o capitão e tirar proveito da situação:
57

Agora, com as cervejas pretas foi sopa. Os sacos de cebolas, que fui
buscar à subsistência, eram ralos e muito fáceis de costurar-se. Uma
canja. Fiz o contrário em dois deles, escondi doze garrafas. Pequeninas,
sumidas entre cebolas, quem poderia dar pela coisa? Espumavam
pretas, gostosas. Ia bebericando uma hoje, outra amanhã. E dando
sumiço nas vazias.
— Você não é praça? Se vira.
Eu me defendia.
Memória triste — um dia me pilharam jogando vinte e um no picadeiro,
onde se guardavam caminhões e outras viaturas. Três homens do rancho
e eu no quente do jogo. Cafua. Perfeitamente naquele dia houve uma
inflamação num dente do comandante…
— Cambada de folgados!
Cadeia. Não perdoou ninguém (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 45-46, grifo
nosso).

As expressões populares “foi sopa” e “Uma canja” referem-se a recursos expressivos que,
no texto, adquirem um sentido novo, diferente do convencional. Tanto a primeira
expressão quanto a segunda são metáforas usadas no conto para descrever a facilidade do
narrador-protagonista no momento em que engana o capitão em relação às cervejas pretas.

Apesar da esperteza, a façanha de esconder as cervejas foi descoberta, o que acabou com
todas as regalias. O narrador-protagonista se achava no direito de resolver as coisas do
seu jeito pelo fato de ter sido chamado de praça: “— Você não é praça? Se vira”.

Ele comenta que essa fase ruim passou e veio o momento de tomar juízo. Então, quem
lhe dá um voto de confiança é o irmão, que o emprega em seu escritório de contabilidade.
Ele explica que já era hora de tomar outro rumo na vida:

Arranjei umas escritas à noite, para defender uns cobres extras. O


emprego dá pouco. Perto de casa, um escritório de contabilidade. Meu
irmão:
— É, já era hora de tomar juízo.
Meu irmão só pensa em seriedade.
Cá no bairro minha fama andava péssima. Aluado, farrista, uma porção
de coisas que sou e que não sou. Depois que arrumei ocupação à noite,
há senhoras mães de família que já me cumprimentam. Às vezes,
aparecem nos rostos sorrisos de confiança. Acham, sem dúvida, que
estou melhorando.
— Bom rapaz. Bom rapaz.
Como se isto estivesse me interessando…
Faço serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas. Dez, onze
horas.
De quando em vez levo cerveja preta e levo Huxley. (Li duas vezes o
Contraponto e leio sempre.) Não parei na várzea da U.M.P.A, nas lições
de distribuição de passes e centros que Biluca me dava. Deixando o
escritório. A madrugada costuma enegrecer tudo. Casas e homens. Só
as minhas tampinhas reluzem na calçada. Contraponto debaixo de um
58

braço. Garrafa vazia de cerveja preta no outro. Assobiando, mãos nos


bolsos (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 46-47, grifo nosso).

Apesar da mudança de atitude, depois que arrumou emprego e de todos no bairro o


considerarem “— Bom rapaz. Bom rapaz.”, ele continuava fiel às suas tampinhas. Mesmo
trabalhando até tarde e voltando para casa já pela madrugada, prestava atenção às
tampinhas reluzentes na calçada.

Notamos a presença da frase feita “— É, já era hora de tomar juízo”, empregada em uma
situação interacional entre o narrador-protagonista e o irmão, que lhe chamou a atenção
pelo fato de que já era tempo de levar a vida mais a sério. Nesse processo interacional,
percebemos que havia empenho por parte do irmão para que tudo caminhasse da forma
correta.

O propósito do narrador-protagonista nunca foi estudar. No início do conto, ele comenta


que só ia à escola porque o pai ameaçava castigá-lo; caso contrário, jamais apareceria por
lá. Em razão disso, ele rejeitou um possível romance com uma “professorinha” por ter
transferido para ela o sentimento de repulsa que sentia pela escola desde os tempos de
criança:

Mamãe costuma dizer que eu não sou dos mais feios. Bem — veio
morar cá no bairro uma professorinha solteira, muito chata. [...]
Dias desses, no lotação. A tal estava a meu lado querendo prosa.
Tentava, uma olhadela, nos cantos os olhos se mexendo. Um enorme
anel de grau no dedo... Parece-me que procurava conversa, por causa
dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e
tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem.
Perguntou o que eu fazia na vida. [...]
— Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel
com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito
mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não conheço chutador mais fino
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 47).

Não obstante tantos esclarecimentos negativos, dispensando a moça e frustrando qualquer


expectativa que porventura pudesse surgir, o narrador-protagonista tinha um gosto
refinado, tanto para a música quanto para a leitura. Aliás, foi exatamente o livro de
“Huxley” que chamou a atenção da professora. Contudo, ele tratou logo de dispensá-la,
alegando que era uma pessoa com vários pontos negativos, mas que chutava tampinhas
como ninguém.
59

Entendemos que houve uma interação entre os dois, apesar de não chegarem em um
acordo. Preti (2002: 45) afirma que nem sempre uma situação interacional é tratada
somente pelo viés da aceitação, ela pode acontecer também pela não aceitação. O autor
esclarece que a interação, às vezes, é confundida com concordância ou amizade, mas
basta que haja um entendimento em relação ao que está sendo tratado por ambas as partes
para que haja o processo interacional. Brait (1997: 193) esclarece que a interação não
envolve somente cumplicidade e solidariedade, mas também algum tipo de embate, de
confronto, entre participantes de um mesmo “jogo”.

3.3 Fujie

Gostei. Como quem descobre uma maravilha, gostei. Não me


arredava daqueles ambientes. Gostei demais, judô, folclore
japonês, depois teatro, fotografia.
Aquilo sim meu Deus era um mundo! (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
54)

Esse conto trata da ligação afetiva entre dois amigos inseparáveis que se conheceram por
meio do judô. Essa amizade tornou-se algo tão bonito que aparentemente nada
conseguiria abalá-la. A narrativa inicia-se com um deslumbramento, por parte do
narrador, em relação às coisas do Japão. Ele conta com entusiasmo as novas descobertas
proporcionadas pelo amigo Toshi.

O conto é narrado em primeira pessoa e o narrador-protagonista não se identifica. O autor


revela-nos uma história que se desenvolve por meio de várias figuras de linguagem que
fazem com que o conto passe a adquirir um tom poético. O narrador-protagonista comenta
que o seu primeiro contato com o judô deu-se por causa da paixão do pai por lutas:

— Este menino é um touro. Se eu fosse você, Antônio, botava ele num


esporte.
E Antônio, meu pai, adorava lutas. Comprou-me quimono, me levou ao
barbeiro que eu andava cabeludo que nem urso, me enfiou umas ideias
60

na cabeça de moleque, me carregou para a academia de judô. Tombos


tremendos. Suei feito boi ladrão. Dolorido, quebrado. Moleque, botei
a boca no mundo numa revolta danada. O tal judô não me servia.
Desistiria.
— Que nada! Desistir nada! É só para você não ficar mole (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 53, grifo nosso).

Seu Antônio, influenciado pelos amigos e já fascinado pelo esporte, acabou transferindo
para o filho seu entusiasmo: “— Este menino é um touro”. A metáfora, dita por um amigo,
mostra o entusiasmo não era apenas do pai; o garoto, de fato, era forte. Eles, tanto os
amigos quanto o pai, acreditavam no potencial do jovem para o judô.

Vereza (2007: 498) afirma que a expressão metafórica pode ter um caráter argumentativo,
uma vez que, do ponto de vista cognitivo, estão

[...] inter-relacionadas, ajustam-se no todo, funcionando como


elementos construtores da argumentação. Os desdobramentos
colaboram, assim, na formação da tessitura argumentativa, ressaltando,
do domínio da vida animal/selvagem, o aspecto que parece ser mais
relevante da argumentação.

De acordo com a autora, a metáfora pode funcionar como uma estratégia de argumentação
para justificar a opinião em relação ao que está sendo explicitado. João Antônio utiliza-
se dessa figura de linguagem para comprovar que o fato relevante dessa argumentação
seria a força do garoto comparada à força do animal. Explicação dada pelos amigos ao
pai para convencê-lo de que valeria a pena investir na carreira de lutador.

Mesmo com tanto empenho por parte do pai e dos amigos, o narrador, anônimo a
princípio, pensa em desistir, pois não era o que desejava para si. O sonho de se tornar um
lutador não era dele, e sim do pai. Os treinos eram estressantes, “Suei feito boi ladrão”,
tudo era motivo de sofrimento, como ele expressa. Até que não resiste: “botei a boca no
mundo”. Acabou perdendo a paciência e, com seu temperamento intempestivo, tentou
encerrar tudo, pois não acreditava que o judô lhe daria alguma coisa.

Notamos que os enunciados “— Este menino é um touro” e “Suei feito boi ladrão”
referem-se a uma expressão metafórica e a uma comparação, respectivamente, com
significados contraditórios. Ao mesmo tempo em que os amigos de Seu Antônio faziam
elogios, comparando o jovem a um “touro”, ou seja, julgando-o forte, robusto e
destemido, ele se sente como um “boi ladrão”, desprotegido, cansado e com uma enorme
vontade de sair daquele ambiente. Ele reforça esse desejo por meio da hipérbole que,
61

segundo Lopes (2006:137), consiste em exprimir uma ideia pelo exagero de certos
elementos: “botei a boca no mundo” como forma de anunciar seu descontentamento.

Seu Antônio não dá importância para as lamúrias do filho e começa a levá-lo às


competições para que pudesse ter contato com outras pessoas que praticavam o esporte.
Por meio da insistência do pai, ele acaba tomando gosto não só pelo judô, mas também
por tudo relacionado ao Japão:

Assim, eu achei muito amigo. Entre judocas, camaradagem. Muito bom


o convívio com japoneses cá de São Paulo. Sujeitos dóceis, cordatos,
bem-educados a ponto de parecerem moças. E quem os vê não avalia
o que podem na briga...
Academia, disputa, camaradagem, mais coisas. Lá na Liberdade achei
o ótimo Toshitaro. Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o
sujeito que não se der com Toshitaro não presta. Ou não conhece Toshi.
Eu nunca havia sentido nada pelas coisas do Japão. Levou-me a beber
saquê nos restaurantes da Liberdade, mostrou-me cinema. Depois
gravuras, depois pinturas, tatuagens. Fui atingindo a dimensão mística
[...]
Gostei. Como quem descobre uma maravilha, gostei. Não me arredava
daqueles ambientes. Gostei demais. Judô, folclore japonês, depois
teatro, fotografia.
Aquilo, sim, meu Deus, era um mundo! (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
53-54, grifo nosso)

Notamos o deslumbre por parte do narrador-protagonista pelo Japão na expressão


“Sujeitos dóceis, cordatos, bem-educados a ponto de parecerem moças”. Ao empregar
esse comparativo, ele revela que aqueles homens do judô, um esporte que exige força e
agressividade, eram capazes de ter sensibilidade e de se relacionarem bem com os outros.

Em um contexto interacional, o narrador emprega as expressões comparativas cujo


objetivo é enfatizar a ideia que se pretende transmitir para afirmar determinada
característica com a finalidade de explicar como os japoneses são gentis e cordiais.
Segundo Lopes (2006: 95), a “comparação se estabelece quando entre um termo
comparante e um termo comparado, existe uma relação de [...] igualdade”. Podemos
observar o quão marcante é o paralelo que ele estabelece entre lutadores de “judô” e o
termo “moça”. Nesse caso, essa comparação não consiste em aproximar dois seres pela
semelhança, mas pela diferença.

O narrador conhece Toshitaro, ou Toshi, uma pessoa adorável, que por se tratar de alguém
com mais idade e mais experiente que ele, colocava-o em uma posição privilegiada no
62

judô e lhe dedicava tanta atenção que acabou por conquistá-lo e levá-lo a conhecer um
universo desconhecido: “Aquilo, sim, meu Deus, era um mundo!”.

Ele descreve, por meio de um monólogo, a forma carinhosa como era tratado pelo amigo.
Toshi, além de excelente lutador, era um grande amigo. O narrador, cada vez mais, nutria
profunda gratidão pelo companheiro. Por meio da expressão “Sujeito espetacular, enorme
no tatame e fora dele”, o narrador ressalta que o valor de Toshi excedia os ringues de luta
e que sua admiração pelo lutador era grande. Toshi tornou-se um amigo inseparável do
narrador anônimo:

Pois um dia falávamos. Uma patrícia de Toshi nos cumprimentou,


passando. Grandiosa!
— Você viu? Parece que suas maçãs do rosto são de pêssego.
Toshitaro ria. Ria.
— E você já sabe tudo o que é bom...
Agora, íntimos. Eu não sei se estou certo – mas dois sujeitos ganham
mesmo intimidade, quando entra mulher na história. Vinha à minha
casa, ia à casa dele. Amigão. Unha e carne (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
54-55, grifo nosso).

A utilização de uma frase feita nesse contexto interacional da narração dos fatos relatados
mostra o nível de proximidade que o narrador demonstra ter pelo amigo. A expressão
“Amigão. Unha e carne” reforça a ideia de algo que jamais poderia andar em desacordo.
Havia, nessa relação, uma verdadeira cumplicidade. As marcas de interação que
antecedem a expressão “Amigão. Unha e carne” sintetizam o grau de afeição e intimidade
entre ambos. Nesse sentido, Carmo (2013: 72) ressalta que a “frase feita também pode
ser utilizada como um recurso linguístico para mostrar a interação entre os amigos”.

O narrador-protagonista destaca que o grau de intimidade entre os dois amigos aumentou


quando passaram a fazer comentários sobre uma mulher. Eles já estavam íntimos pelo
fato de haver uma mulher em suas histórias, o que é expresso no segmento “quando entra
mulher na história”. Essa expressão utilizada pelo narrador reforça, por meio do ato
conversacional, a relação de interação que havia entre eles.

O tempo passa e as coisas vão tomando outra dimensão. O narrador, já com 16 anos,
precisava trabalhar. Tratava-se de uma situação complicada porque o que ele sabia e
gostava de fazer era lutar, mas além disso precisava trabalhar e estudar:
63

Minha vida se complicaria. À noite, escola — que eu queria continuar


estudos. Batente, durante o dia. Por aí, nesses pensamentos, me lembrei
de Toshitaro. Que seu pai era fotógrafo. O estúdio de seu Teikam. Toshi
duro no tatame, tão bom na vida! Estava empregado. Revelar
negativos, ajeitar fotos, aprender a trabalhar com lente e luz, me virar
na vida, que diabo!
Promoção para papai nos Correios e Telégrafos, e se negociou um
apartamento na Liberdade. Pagaria aos poucos, como toda compra que
arranja. Ah, papai e sua conversa...
Para mim, uma sopa. O estúdio de seu Teikam, meu trabalho, a quinze
minutos do apartamento. A escola no centro da cidade. E judô onde eu
quisesse. Tinha Toshitaro bem perto de mim (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
55, grifo nosso).

A vida foi tomando a direção que o narrador havia imaginado, principalmente, no que se
referia a continuar próximo a Toshi, porque ele sempre foi um motivo de inspiração:
“Toshi duro no tatame, tão bom na vida!”. Essa expressão, em que compara a vida do
amigo com o tatame, mostra-nos a dimensão da admiração do narrador por Toshi, que
administrava tão bem tanto sua vida particular quanto sua vida profissional.
Identificamos, na expressão mencionada, o paralelismo sintático que, segundo Lopes
(2006: 76), ocorre quando são “reutilizadas estruturas sintáticas semelhantes, mas com
conteúdo diferenciados”; há uma relação entre o esporte, que é levado a sério, e a forma
digna de levar a vida.

O fato de seu pai ter sido promovido e o fato de ter comprado um apartamento na
Liberdade contribuíram para a realização dos projetos do narrador. Ele sabe de suas
responsabilidades e manifesta isso por meio da expressão “me virar na vida, que diabo!”,
referindo-se a seus planos. Reconhecendo suas responsabilidades e diante de uma
situação de apreensão, faz uso de uma expressão de cunho religioso, que serviria para
ofender uma pessoa, como forma de desabafo.

A expressão metafórica “Para mim, uma sopa”, utilizada pelo narrador, indica a
oportunidade que teria para dar andamento a seus planos, principalmente por estar
próximo de Toshi, pois poderia trabalhar junto com o amigo no estúdio de Seu Teikam,
localizado próximo de onde moraria, continuar com o judô e estudar à noite.

A metáfora utilizada pelo narrador, em que emprega o termo “sopa”, revela a facilidade
que teria em executar o que havia programado. Essa figura de linguagem, segundo Fiorin
(2011: 118), não diz respeito a substituir uma palavra por outra; indica possibilidades que
64

são criadas pelo próprio contexto. Dessa maneira, a expressão foi utilizada pelo narrador
como forma de tornar clara a definição a respeito do que almejava, pois agora tudo seria
mais fácil, “uma sopa”.

Na sequência da narrativa, após quatro anos, muitas mudanças e transformações


ocorreram: “a primeira barba, dezoito anos, casamento de Toshi, minha faixa marrom.
[...] Três semanas sem ver Toshi e eu fiquei vazio. Zanzei pelas ruas da Liberdade
como um errado” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 56, grifo nosso). Essas mudanças trouxeram
profundas preocupações para o narrador-protagonista, principalmente o casamento de
Toshi e a viagem após a cerimônia.

O protagonista utiliza a expressão comparativa “Zanzei pelas ruas da Liberdade como um


errado” para expressar a situação de alguém sem objetivos na vida, sem propósito para
seguir adiante. A comparação é utilizada para intensificar a inutilidade da vida sem o
amigo. Procurou algo que, por ser absolutamente inútil, fosse semelhante à sua vida
“vazia”, sem expectativas, caso Toshi não estivesse por perto.

Ele sabia que sua vida sem Toshi seria insignificante. Nada fazia sentido e não havia nada
que pudesse fazer para suprir a ausência do amigo. Foram três semanas, por causa da
viagem de lua de mel, em que amargou a solidão. Sentia receio de que, com Toshi casado,
não teria mais a atenção do amigo. Isso o angustiava ainda mais:

Começava a compreender que eu me completava em Toshi. Tudo de


meu. Uma chapa sem a opinião dele... Passeio sem Toshi, a mesma
coisa. Teatro também, sakê também, judô também. Tudo valendo
nada.
Voltaram. Dupliquei a amizade. Interrompi economias, e presenteei
com o que pude. Toshi, que o casamento não o ausentou de nada! Unha
e carne, ainda (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 56, grifo nosso).

Toshi voltou e tudo continuou exatamente como era. A mesma simpatia e cordialidade de
sempre. O narrador compreendeu que Toshi realmente correspondia às suas expectativas
e que a vida só tinha sentido se tivesse o amigo por perto: “Tudo valendo nada”, pois um
completava o outro, eram “Unha e carne ainda”.

Lopes (2006: 138) assevera que ao “confrontar termos ou ideias com sentidos contrários
a fim de obter um efeito expressivo, tem-se uma antítese (do grego antíthesis, anti + tese
= oposição)”. O narrador-protagonista, por meio de antítese, mostra como era a vida sem
65

a presença do amigo “Tudo valendo nada”, utiliza uma afirmação que contraria o senso
comum, mas que resume o sentimento que um sentia em relação ao outro.

Todavia, essa relação não permaneceria sólida por muito tempo. Após o casamento de
Toshi, as coisas começaram a mudar, e a relação que parecia tão estável começou a ficar
abalada por conta de um novo sentimento que, contra sua própria vontade, nutria pela
esposa de seu melhor amigo. O narrador-protagonista tentou resistir a isso e às investidas
de Fujie, esposa se Toshi. Todo o esforço foi em vão, pois o narrador, ao tomar uma
atitude considerada por ele mesmo como “canalhice”, acabou traindo seu fiel
companheiro:

Nossas coisas iam bem.


Por que diabo há de sempre entrar mulher na história?
[...] Não fiz nada, eu não pedi nada! Eu só queria a camaradagem de
Toshi. Será que aquela mulher não entende?
Se vou à varanda do laboratório de revelação. Cada vez que preciso de
alguma coisa. [...] E quando olho para aquela janela... São os seus olhos
que estão me comendo, pedindo.
Medo. Meus olhos viajam pouco (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 56-57,
grifo nosso).

Da mesma forma que iniciou uma grande amizade, distraindo-se com comentários a
respeito de uma mulher, agora era também uma mulher que estava destruindo uma relação
de anos. A expressão “Por que diabo há de sempre entrar mulher na história?” demonstra
um sentimento de angústia, revolta, mas ao mesmo tempo, de desejo. A mistura de
sentimentos fazia que o narrador-protagonista sentisse necessidade de desabafar, de
extravasar sua indignação. Desse modo, apropria-se de uma palavra de conotação forte e
de cunho religioso, “diabo”, para eximir-se de sua responsabilidade, assim, culpa um ser
espiritual.

Por mais que lutasse, seria inútil tentar escapar daquele sentimento porque ele desejava
aquela mulher e, ao que parecia, era correspondido: “São os seus olhos que estão me
comendo, pedindo”. Ele tentava resistir, desviava o olhar, temia por aquela paixão:
“Medo. Meus olhos viajam pouco”. Em relação à essas expressões destacadas, que dizem
respeito à palavra “olhos”, Lopes (2006: 137) esclarece que trata-se de personificação,
pois é “utilizada para atribuir qualidades peculiares aos seres humanos a outros, não-
humanos”. Dessa forma, a utilização dessa figura de linguagem reforça a sensação de
insegurança que o narrador-protagonista estava vivendo.
66

Fujie tentava seduzi-lo. Utilizava de artimanhas para envolvê-lo de todas as formas.


Todas as ações eram provocativas. Por várias vezes, ele pensou em abandonar tudo e fugir
para bem longe para não trair o seu amigo. Contudo, não conseguia ficar distante. Sentia-
se indefeso, sem forças para resistir aos encantos e à sedução daquela mulher. Ele
conhecia todos os riscos que estava correndo e sabia do mal que causaria à pessoa que
mais importava em sua vida:

Os olhos rasgados me pedindo, me comendo. [...]


Primeiro abalo na minha vida. Mas eu não disse nada.
Fujie, Fujie que insiste há meses. Que tenta, que procura, que espera.
Eu, tímido, abobalhado. O calor que se emana dos seios me dá
vontade... fazer uma maluqueira à frente de todos. [...] Minha
vontade é não voltar ao estúdio de seu Teikam. Tomar sumiço da
Liberdade. Fazer uma asneira tremenda.
[...] Diabo de mulher maluca! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 57-58, grifo
nosso).

A situação já tinha saído do controle, não era possível continuar naquela angústia. Os
olhares provocativos da mulher continuaram de forma ainda mais intensa: “Os olhos
rasgados me pedindo, me comendo”. Ele tinha claro que, apesar do medo e de tentar fugir
o tempo todo, havia o desejo: “fazer uma maluqueira à frente de todos”. Talvez a solução
estivesse na tentativa de fugir: “Tomar sumiço”. No entanto, as dúvidas e as incertezas
tomam conta dele: “Eu vivo é tonto”.

As expressões destacadas, em que temos os verbos no infinitivo pessoal “fazer” e “tomar”


expressam o desejo de realizar de forma mais efetiva o que poderia ser o certo naquele
momento, porém ainda não estava decidido. No contexto interacional, o narrador faz uso
do processo metafórico da frase feita “Tomar sumiço”, referindo-se a “Tomar chá de
sumiço”. A expressão, apesar de popular, causa-nos uma sensação se estranhamento,
todavia, segundo Lopes (2006: 197), as “[...] metáforas recriam um certo campo de
informação, estabelecendo, assim, novos efeitos que despertam maior interesse do
receptor, por intermédio de mecanismo de ‘estranhamento’”. O autor esclarece, ainda,
que a metáfora tem a função da persuasão e de tornar o segmento mais expressivo e com
certo poder de encantamento.

As investidas foram se tornando mais frequentes e ganhando outra proporção: “Diabo de


mulher maluca!”. As atitudes provocativas de Fujie eram inconsequentes; ela não tinha
67

noção do perigo iminente. Ele reforça sua indignação, utilizando novamente o termo
“Diabo”, expressão de cunho religioso por meio da qual extravasa sua raiva.

Então, em um momento de desatino, saiu mais cedo da escola e caminhou em direção à


casa do amigo. Entrou em um bar, pediu conhaque. Chovia torrencialmente e fazia muito
calor. Ficou por ali, observando as luzes da fachada do estúdio:

Moscas agitavam-se. Mas só havia no ar o corpo de Fujie que eu adoro.


Dali eu via o luminoso de seu Teikam e adivinhava o quarto dela. Fumei
muito olhando para o luminoso.
Era chuva que Deus mandava. Eu fazia um esforço para me agarrar à
ideia de que não era culpado. Culpada era a avenida, era a noite, era a
chuva, era qualquer coisa.
[...]
Chuva lá fora, zoeira de moscas atribuladas. Dentro do quarto, amor
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 59, grifo nosso).

Em um momento de êxtase, ele desiste de lutar contra seus sentimentos e lança-se a uma
paixão proibida e leviana, deixando a dúvida de quem seria o verdadeiro culpado. O
narrador utiliza-se da expressão popular “Era chuva que Deus mandava” para justificar
sua permanência naquele lugar. Os personagens estavam envolvidos em um contexto
interacional de amor e traição.

3.4 Retalhos de fome numa tarde de G.C.9

̶ Praça é praça. A ordem é ficar por baixo, que acaba levando a


melhor (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 70).

O conto Retalhos de fome numa tarde de G.C. é narrado em terceira pessoa. Nele, temos
um personagem marcado por privações e que vive a época do serviço militar. O autor

9
Grupo de Combate.
68

inicia o conto com Ivo sendo obrigado a passar pela humilhação de comprar cigarros
fiado. Mesmo assim, preferia passar fome a ficar sem alimentar seu vício.

Logo no início da narrativa, notamos a presença da expressão popular “Tem crivo aí?”,
cuja origem está na cultura gaúcha:

Um pardal brincava no fio telegráfico.


— Tem crivo aí?
O homem do rancho lhe passou o cigarro, um Macedônia meio torto
numa ponta. Pediu fósforos.
— Se vira. Acendente eu não tenho.
[...]
— Vai marcando, viu?
— Me deve treze.
Estava bom, que fosse treze, quinze, um maço, o diabo! Devendo,
devendo. [...]
Agora o pardal mais a fêmea faziam festa no fio (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 67, grifo nosso).

O conto é marcado por vários contrastes. Primeiro, no próprio título Retalhos de fome
numa tarde de G.C, que traz o esboço de uma trama iniciada por um personagem faminto,
que escolhe manter o seu vício em vez de se alimentar. Em um contexto de ideias opostas,
o narrador vai traçando antíteses durante todo o conto.

Outro contraponto está no trecho “Um pardal brincava no fio telegráfico”, que remete à
liberdade, oposta à submissão ao serviço militar. O protagonista sentia-se injustiçado e
triste pela família tê-lo abandonado no momento em que mais precisava. Ficou indignado
no instante em que o dono do bar chamou sua atenção por haver completado treze cigarros
fiados. Ele respondeu para si mesmo e, em seu interior desabafou, não querendo saber de
nada: “Estava bom, que fosse treze, quinze, um maço, o diabo!”.

Notamos que a expressão de cunho religioso “o diabo” é usada como forma de o


protagonista aliviar sua raiva, mas ele a guarda para si, não extravasa tal sentimento. Ficou
quieto, observando o pardal, que antes brincava livre nos fios, e que agora não está mais
só: “Agora o pardal mais a fêmea faziam festa no fio”. Outro contraste é revelado por
uma antítese: o pardal fazendo festa com sua fêmea; ele, levando uma vida vazia e de
solidão. Então, lembrou-se de Tila: “Como fêmea do pardal, ela também vivia se
encostando”, uma garota de programas que costumava se aproximar dos soldados. Seguiu
seu caminho pela alameda, observando o que havia mudado por ali:
69

Havia um jeito de preguiça em tudo. Até lá fora, nos autos que comiam
o asfalto da rua Abílio Soares. Duas da tarde, uma sonolência, um sol...
quartel cheio, o bosque cheio. Ivo sentia o vazio na barriga. Não
conseguira engolir a boia que estava fria. Mexia o alumínio, mas o
feijão não se mexia. Duro, feio, cor de cavalo (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
68, grifo nosso).

Ivo não entendia por que tinha de passar por tanta penúria, o que era comum em se
tratando de servir o Exército e de pertencer ao “Grupo de Combate”. Caso acontecesse
uma revolução ou algo que exigisse enfrentar situações difíceis, não padeceria tanto.

Ele reclamava da comida, “Não conseguira engolir a boia que estava fria”, pelo fato de
não ter conseguido comer no momento em que foi entregue; agora estava pior, pois havia
esfriado. O protagonista emprega uma expressão popular utilizando a metáfora “boia”,
para se referir a um alimento simples sem sofisticação, servido todos os dias no quartel.
A metáfora utilizada pelo narrador, por meio da qual denomina o alimento de boia fria,
mostra-nos a preocupação do autor em relatar o desconforto do protagonista ao ter de se
alimentar com algo que, mesmo quente, não era atrativo e que ficava pior frio.

O protagonista analisa tudo a sua volta e faz outro contraponto que serve para enfatizar
mais ainda a fome: “quartel cheio, o bosque cheio. Ivo sentia o vazio na barriga”. Nada o
faz esquecer aquela sensação de desconforto causada pela falta de sustento. Lembra-se de
que tinha no bolso cinco cruzeiros e que faltavam mais dois cruzeiros para completar o
valor de um sanduíche de queijo que alguém da rua poderia lhe comprar:

— Se eu arranjasse mais duas pratas...


Pela manhã julgou que tinha febre, moleza no corpo, dor nas costas.
— Deixa de manha!
O enfermeiro era um cavalo.
Ivo andando, andando. Crescia o vazio na barriga, impossível estar
quieto, a banana não fora o bastante, não havia o sanduíche (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 68, grifo nosso).

O fato de Ivo não ter se alimentado no dia anterior faz que se sinta mal. Assim, recorre
ao enfermeiro do quartel, que o trata com indiferença e grosseria. A metáfora “O
enfermeiro era um cavalo”, empregada pelo narrador, é uma expressão cujo significado
faz referência a uma pessoa mal-educada e insolente. Lopes (2006: 128) esclarece: “Há
metáfora [...] quando a significação imediata (sentido denotativo) de um termo é trocada
por outro (sentido conotativo). Existe uma relação de semelhança entre eles em algum
70

matiz; como uma comparação implícita”. Dessa forma, essa figura de linguagem pode
ser tratada como um recurso semântico utilizado para dar expressividade ao que está
sendo relatado, podendo ser compreendido dentro de um contexto.

Para Ivo, o jeito era caminhar. Lembrou-se do sargento Isaias, uma pessoa boa que o fez
subir de cargo. Pelo fato de ter estudado um pouco mais que os outros soldados, Ivo
passou a exercer outra função. Antes, trabalhava nas construções do quartel, “entre cal e
tijolos”; depois, foi remanejado para outro cargo. Agora trabalhava como datilógrafo na
cantina. O sargento era um bom conselheiro:

— Praça é praça. A ordem é ficar por baixo, que acaba levando a


melhor.
O sargento Isaías cumpriu seu estágio na rua Abílio Soares e foi
transferido para a 4ª. C.R. (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 70, grifo nosso)

A expressão em destaque “— Praça é praça” – enfatiza o termo “praça”, reforçando a


função exercida pelo sargento, um militar sem graduação ou posto definido, mas que era
digno de respeito e sabia exatamente o que estava falando, por isso era preciso considerar
suas palavras. Todavia, o sargento Isaias logo foi enviado para outro posto, e em seu lugar
havia ficado Domício, alguém muito diferente, mas com quem Ivo havia se identificado
pelo fato de terem pontos em comum:

E Domício? Pensou em Domício.


No porão da secretaria morava Domício, ex-expedicionário nem velho,
nem moço, que pouco falava e tinha uma peitaria larga, um touro...
com Ivo se entendia, que os dois eram quietos. Dois faixas (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 70, grifo nosso).

Domício tinha porte grande e musculoso, era “um touro” e tinha fama de ganhar de todos
no braço de ferro. Ivo nutria por ele grande admiração, tanto que se tornaram amigos. Em
um contexto interacional, as expressões em destaque “um touro...” e “Dois faixas”
referem-se a duas figuras de linguagem, metáfora e metonímia. Segundo Fiorin (2011:
119), ambas criam situações por meio do contexto e revelam um vínculo entre os amigos,
Ivo e Domício. Esse contexto leva-nos a entender que os sujeitos, além de amigos, os dois
eram “muito fortes”.
71

O ex-expedicionário acaba se envolvendo com Tila e a engravida. Ivo lamenta o ocorrido,


que traria ao amigo consequências terríveis, pois a garota havia sido abandonada pelos
pais e sofria muito nas mãos de um tio:

Alguém contou, o comandante soube, chamou Domício. Domício


encostou a sunga e o tamanco, foi mandado para a Lapa fazer pão na
subsistência. Ivo sentiu um pouco, eram iguais, o ex-expedicionário era
boa praça.
Não deviam ter engessado Domício (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 71, grifo
nosso).

Ivo tenta amenizar a situação e, em um contexto interacional, aconselha o amigo, mas sua
advertência não surte efeito. Tila teria o bebê sem a presença de Domício. Aquela garota
frágil e desamparada teria de enfrentar sozinha aquela dificuldade.

Muitas lembranças vão passando pela mente de Ivo, e a fome tornava-se implacável: “Era
uma fome danada, sem meios, deveria ter comido a gororoba” (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 72, grifo nosso). Ele utiliza de uma expressão hiperbólica “Era uma fome danada”
para expressar sua condição e lamenta por não ter se alimentado daquela comida do
quartel, a qual ele chama de “gororoba”. O narrador faz uso de uma expressão popular
“boa praça” como recurso expressivo muito utilizado por soldados para enfatizar a
simplicidade vivida pelo narrador-protagonista.

Em meio a seus pensamentos enquanto caminhava, Ivo é surpreendido por uma voz
feminina: “— Ei, moralista! Tá falando sozinho?” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 73, grifo
nosso). Tila estava diferente, nem parecia a mesma pessoa. Carregava o filho no colo e
mostrava-se mais séria.

Antes era uma tonta se entregando a qualquer um. Bem, agora também
se entregava, mas não era uma tonta. Estava até meio humilde no seu
jeitinho de mãe, não tinha aquela afobação de antes. Ivo a olhou nos
olhos, houve um desejo. Uma vergonha, ela adivinhou, os olhos foram
para o chão.
[...]
Ivo sorriu. Então, ela o convidou.
Houve um silêncio. E fome danada, um vazio na barriga que o cinto de
guarnição apertava. Uns apertos que vinham juntos, todos duma vez só
e castigavam.
— Sabe? Eu hoje não comi nada – esfregou as pálpebras. – Anda tudo
ruim e eu sem nenhum (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 74, grifo nosso).
72

Ivo sentiu um desejo, no momento em que seus olhos fitaram os olhos de Tila, mas a
fome falou mais alto e ele foi obrigado a rejeitar a companhia dela. Na expressão “Anda
tudo ruim e eu sem nenhum”, temos uma metonímia. Segundo Filipak (1983: 136), a
metonímia é empregada no sentido de abreviar a expressão, com vistas a transmitir com
maior vigor o que está sendo relatado, o que justifica, além da fraqueza ocasionada pela
fome, o fato de não ter como pagar pelo encontro, pois se trata de um convite de uma
“garota de programas”.

Tila, então, oferece um prato de comida a Ivo. Ele pensa em agradecer e rejeitar, mas a
necessidade o impede de negar a ajuda. Ela saiu e voltou com um prato com arroz e feijão;
para ele, um banquete. Tila sente-se feliz em vê-lo comendo e tem vontade de se sentar a
seu lado. Faz um comentário a respeito do cabelo dele, depois pergunta se quer água e sai
novamente para buscar. Notamos uma situação de interação em que os participantes
promovem um ato conversacional em um contexto de amizade e companheirismo.

No diálogo construído, buscam uma interação mais afetiva, mas o encontro não evolui.
Conversam um pouco e combinam de se encontrarem mais tarde. Ela sai correndo pela
rua de paralelepípedo; ele pega seu segundo cigarro e vai assobiando para acendê-lo no
campo de bocha. O conto é finalizado em um contexto interacional entre o narrador-
protagonista Ivo e sua amiga Tila.

3.5 Natal na cafua

Eu gostava do volante, adorava o volante. E mais, gostava


daquelas idas à Lapa, porque me deixavam sozinho,
atravessando à cidade toda, todinha (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
79).

Natal na cafua é um conto narrado por um protagonista anônimo que teve sua liberdade
ceifada em uma época festiva, em razão de um acidente de trânsito, no qual se envolveu.
73

Ele não teve culpa, mas foi obrigado a passar a noite de Natal longe da família e dos
amigos.

O conto inicia com um recruta sendo advertido pelo subtenente Moraes para ter mais
prudência ao volante:

— Quer me matar, lambão?


Eu moderava a corrida, ajeitava a viatura com todo o juízo.
— Tá dormindo, folgado!
Quem poderia entender aquele homem?
[...]
Agora havia. Ele estava ali, velhote e meio surdo, fumando, berrando,
xingando, com o braço passeando do lado de fora da janela.
...
— Me espera, lambão!
Era o bom dia que me dava. E era com aquele jeito de olhar de lado, de
falar gritado, xingando, o cigarro no bico [...]
Agora me chamando de lambão, espezinhando, procurando chifre em
cabeça de cavalo. Se eu fosse um sujeito encrespado [...] (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 79, grifo nosso).

O narrador-protagonista revela que, durante o período em que esteve no quartel, os


melhores momentos eram quando estava ao volante do caminhão. Todas as manhãs, era
incumbido de buscar pão e carne na subsistência. Nesse momento, sentindo o vento no
rosto, experimentava a liberdade, ainda que só por algumas horas. Ele se sentia realizado
quando estava sozinho, porém nem sempre fazia o trajeto desacompanhado. Na maioria
das vezes, tinha de suportar a presença do subtenente Moraes.

O subtenente acabava com os poucos momentos de liberdade de alguém que não tinha
nenhuma pretensão nem perspectiva na vida. Percebemos que até mesmo as ações de se
mover ou de sair de um estado de acomodação só eram possíveis por meio do caminhão.
Quando Ivo saía, à medida que ia contemplando cada um dos lugares por onde passava,
sua vida ia ganhando sentido.

No momento em que esse sonho de liberdade é interrompido por Moraes, ele passa de um
estado de liberdade para um estado de frustração e insegurança. Isso faz que ele
desenvolva um sentimento de vingança, ainda que camuflada, pelo subtenente. Por meio
da expressão popular “procurando chifre em cabeça de cavalo”, deixa claro esse
sentimento. Essa expressão tem o mesmo sentido de “procurar pelo em ovo”, ou seja,
procurar problemas onde não existem. O narrador utiliza essa expressão popular com o
74

intuito de explicar o que estava acontecendo, pois naquele momento de raiva faltavam
palavras ao personagem. Segundo Pinto (2003), “ditados e adágios, rifões e ditos
populares, com os quais concordamos ou não, nos divertem, nos fazem pensar, e muitas
vezes nos ensinam”.

O narrador-protagonista acrescenta “Se eu fosse um sujeito encrespado [...]”, o que indica


que o soldado tinha vontade de tomar uma atitude, mas preferiu deixar as coisas como
estavam. Era época de Natal, todos estavam em festa:

Nas ruas da cidade, os preparos de Natal, [...]


Um ou outro Papai Noel de propaganda sustentando cartazes nos
braços. [...]
Um especialmente um era triste. [...] O vento lhe batia na cara e
fustigava a barba postiça, sua roupa muito larga, descorada, apalhaçada.
Sentado, parado, parecia pensar e deveria sentir frio (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 81).

O narrador-protagonista analisa o que estava a sua volta. Tudo remetia a festas, alegria,
comemorações. Ele observa que, entre várias pessoas com roupas de Papai Noel, uma
pessoa, em especial, trazia uma expressão triste. Parecia se tratar de alguém que estava
constrangido, mostrava-se meio desengonçado com a vestimenta natalina em cima de um
carro. Essa pessoa estava exposta e os outros a ridicularizavam sem nenhum pudor:

Lá embaixo, crianças morenas riam dele, zombavam, corriam atrás da


perua. Ficava uma zoeira de música de Natal, mais os gritos das
crianças. Tristeza um homem ganhar a vida daquele jeito. Como me
pareciam detestáveis aquelas crianças morenas! (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 81)

A cena chamou-lhe a atenção, pois, de imediato, o recruta identificou-se com o triste


Papai Noel, que se sujeitava a ser usado como se fosse um cartaz ambulante. De repente,
o recruta perdeu o controle por conta de um outro carro vindo na contramão, e por mais
que ele tentasse controlar o caminhão, não conseguiu dominá-lo:

— Toma cuidado, lambão!


Mas não deu tempo. Desguiei, desguiei, as mãos torceram o volante,
torceram, desembraio, breque, não deu tempo. Um Chevrolet veio
contramão, passou-nos direto, nem nos raspou. E eu fui contra a perua
do Papai Noel, o para-choque enterrou-se inteiro na lataria. O Papai
75

Noel estava ajoelhado na poltrona, abobalhado (JOÃO ANTÔNIO,


2009: 81, grifo nosso).

Ele bateu na perua na qual estava o Papai Noel. Poderia ter sido pior; as lesões foram
maiores no próprio recruta, além do subtenente também ter se ferido no braço. A
expressão de injúria “— Toma cuidado, lambão!” revela a falta de empatia entre o
subtenente e o recruta. A expressividade dessa frase traduz esse sentimento e acaba
refletindo-se no jovem. Para Urbano (1999: 117) a expressividade, especialmente na
língua falada, revela as emoções dos falantes e desperta nos parceiros da interação seus
sentimentos.

Após cuidar dos ferimentos, o soldado foi para a cadeia, logo no feriado de Natal. Ficou
com as duas mãos imobilizadas. A vida, que já era difícil com a saúde perfeita, agora
dependia da ajuda de outras pessoas:

O sub botou o braço na tipoia e eu fui parar no xadrez.


[...]
Natal.
Sol lá fora, ruídos se tocam, se combinam, enchem a manhã, e é muito
fácil adivinhar as coisas da rua em frente ao quartel. E não é muito triste
não. A dureza toda está nas mãos que doem [...]
Por esses dias todos vem um cara do rancho, o 9-64, para me botar a
comida na boca (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 82).

A visão que o protagonista tinha da rua, por exemplo, era apenas a de sua imaginação. Na
cadeia, a dor era terrível. Sua dor era física, “Às vezes, a amolação aperta e dói tanto, que
dá até vontade de urinar” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 82); mas também lhe doía a alma,
pois sentia um vazio, principalmente por se tratar de uma data tão especial:

É. Lá em casa devem estar tristes. Papai, mamãe, Natal é coisa séria


para a família que se reúne todos os anos. A gente se reencontra, se
revê, abraços, camaradagem. Sempre aparece um primo que está mais
velho. Este ano papai convidou até padre Pedro, amigo velho da casa.
Eu pouco gosto de padre, mas padre Pedro é excelente; caprichoso,
melhorando em tudo o que faz. Viu a guerra na Alemanha, aguentou
coisas bárbaras. Costuma dizer que as metralhadoras comiam tanto,
por cima e por baixo, que as árvores ficavam sem folhas e sem raízes.
[...]
Aquele homem é um santo (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 82-83, grifo
nosso).

Notamos que a expressão “Aquele homem é um santo”, utilizada para se referir ao padre,
é um recurso linguístico de natureza metafórica. Segundo Fiorin (2011: 118), a metáfora
76

não se trata apenas de substituir um termo por outro, ela pode ser entendida pelo contexto
que está sendo empregada. O padre era um homem bom que sofreu na Alemanha e
costumava repetir sempre a mesma história, “as metralhadoras comiam tanto, por cima e
por baixo [...]”, uma expressão popular relacionada ao funcionamento de uma potente
arma de fogo, que, quando disparada, não tinha uma única direção, o que indicava que o
estrago que provocava podia ser grande.

As lembranças continuavam. Recordou de Isaura, sua namorada, que também sentiria sua
falta:

Também Isaura vai perguntar. Novinha, miúda, mas linda, Isaura tem
me dado domingos tranquilos, sábados tranquilos. Isaura tem uns
olhos claros, mansos, que lhe deixam ver a alma. Um, dois dias por
semana passo meigamente nos olhos de Isaura (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 83, grifo nosso).

As recordações de pessoas queridas são alentos para os momentos tristes e de solidão.


Por exemplo, o sentimento por Isaura é o contrário de tudo que estava vivendo. Só a
lembrança dos olhos da moça já o deixava mais tranquilo. A expressão “seus olhos [...]
lhe deixam ver a alma” remete-nos a outra expressão dita por Leonardo da Vinci “os olhos
são a janela da alma e o espelho do mundo”. Dessa forma, notamos a presença do
fenômeno denominado captação que, segundo Maingueneau (2013: 219), “[...] assume
uma dimensão diferente quando se trata não de copiar um fragmento isolado, mas de imitar
globalmente um texto ou um gênero de discurso.” (grifo do autor). O autor esclarece que fazer
uso da captação é tomar como exemplo uma expressão e tentar imitá-la de forma que
possamos identificar a origem do que está sendo imitado, como é o caso de um “provérbio
paródico”.

Os olhos de Isaura transmitem a ideia de serenidade e de confiança. Dessa forma, os


“olhos” são representados pela metonímia, figura de linguagem que, segundo Fiorin
(2011: 118), trata-se de uma figura de retórica que consiste no uso de uma palavra fora
do seu contexto semântico normal.

A vida do narrador-protagonista, ali, naquela prisão, começa a apresentar contrapontos


em relação à parte externa da cafua: “Aqui é frio, escuro, há fartum de dejetos, mas lá
fora há sol, barulho de automóveis, certamente crianças estarão estreando brinquedos de
Natal”.
77

O personagem vive uma situação contraditória, sente-se feliz ao se lembrar dos amigos e,
ao mesmo tempo, sente dor física e na alma. Sofre naquele ambiente pérfido e sujo;
imagina o quanto estaria alegre e colorida a rua por conta das crianças brincando com os
presentes. Em um contexto de dificuldades vivido pelo jovem, temos uma antítese que,
segundo Fiorin (2011: 120), diz respeito à “instauração de oposições figurativas ou
temáticas num determinado texto”. O autor acrescenta que podemos considerar como
antíteses somente elementos semânticos que tiverem algum traço em comum.

O primeiro dia de prisão foi o mais difícil, porém, aos poucos, ele foi se acostumando
com a situação:

No primeiro dia, as emanações da latrina, nojentos, enchiam toda a


cadeia. Eu sentia enjoo e dor de cabeça. [...] Acredito que vou me
acostumando, crio casca, traquejando, ganhando cheiro de macaco.
[...]
Na cafua a vista se ajeita à escuridão se acomoda, se habitua. Assim
como o corpo se ajeita à imundície e à seminudez das camisetas e dos
calções ordinários. Por isso, quando saímos à luz, o sol nos parece uma
coisa muito boa, que vibra, uma coisa quase nova, que nos aquece e nos
encanta, quase nos assusta [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 84).

Naquele dia, por determinação do sargento Magalhães, almoçaram no rancho, logo


depois, puderam ficar fora da prisão: “Nós respiramos fundo. Nós olhamos para o alto,
para o céu, nós olhamos. Assim os homens saúdam o sol” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 85,
grifo nosso). A expressão destacada reforça a ideia de que existiria algo além do que era
terreno. O autor emprega a personificação que, de acordo com Fiorin (2006: 123), trata-
se de uma figura de linguagem que consiste em atribuir vida a seres inanimados, para
exaltar a importância do sol para aqueles soldados.

Por mais que as coisas parecessem sem solução, todas as manhãs o sol estaria lá,
brilhando, por isso merecia ser homenageado por eles. Naquele momento, para aqueles
homens, o sol representava a própria liberdade, mesmo estando eles na prisão, o que
reforça a antítese que permeia o conto.

Com o tempo, os pensamentos do recruta sofrem uma transformação. Nasce nele um


sentimento de amor. Ele conseguia sentir prazer até mesmo em poder observar o que se
passava do lado de fora do quartel:
78

Ando, ando à toa. As mãos coçam, coçam muito. Às vezes, é um arrepio


fino, que vai até a vontade de urinar. Mas não tem importância, ando.
Natal. Lá na calçada as crianças brincam com presentes novinhos.
— Tem cigarros?
Puxa, como aquilo era bom!
Pensando no sub Moraes. Como seria o Natal do sub?
Teria crianças, uma tarde assim como a minha? E o seu braço na tipoia?
Boto os olhos nas crianças lá fora, as mãos doem, penso no Padre Pedro,
penso em Isaura, nos olhos calmos de Isaura. Olho para a calçada.
Como são lindas as crianças morenas! Vou andado, andando, vou
juntar-me aos outros, ficar aí pela grama, como os outros, até que a tarde
acabe e o Sargento nos recolha à cafua (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 88).

O narrador-protagonista encontra dentro de si a paz que julgava existir somente do lado


de fora do quartel, ou talvez a alcançasse apenas quando aquela situação melhorasse ou,
ainda, quando pudesse fazer suas próprias escolhas. Essa paz já existia, até mesmo as
crianças morenas, que no início da narrativa eram parte de sua raiva, agora podia admirá-
las e sentia-se agradecido por poder contemplá-las ali, naquela tarde.

3.6 Frio

Que bom se tomasse leite quente! Leite quente, como era


bom! Lá na Rua João Teodoro podia tomar leite todas as
tardes. E quente. Mas precisava agora era andar, não
perder a atenção. (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 101)

O conto Frio é narrado em terceira pessoa e apresenta como protagonista um garoto de


dez anos que atende pelo apelido de Nego. Esse garoto vivia com Paraná, um sujeito
envolvido com algo ilícito; Paraná explorava o menino, que o tinha como um pai:

Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as


virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da
sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra Funda [...]. Ensinara-lhe
engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e
coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas [...].
79

Paraná era cobra lá no fim da Rua João Teodoro, no porão onde os


dois moravam. Dono de briga. Quando ganhava muito dinheiro se
embriagava. Não era bebedeira chata, não [...]
Nêgo, hoje você não engraxa.
Compravam ‘pizza’ e ficavam os dois... No quarto. Falava. O menino
se ajeitava no caixãozinho de sabão e gostava de ouvir. Coisas saíam da
boca do homem: perdi tanto, ganhei, eu saí de casa moleque, briguei,
perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote fé, hoje na
sinuca eu sou um cobra [...]. Um falava, outro ouvia. Já tarde, com
muita cerveja na cabeça, é que Paraná se alterava:
- Se algum te põe a mão... se abre! Qu’eu ajusto ele (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 98, grifo nosso).

As frases destacadas “Paraná era cobra” e “bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra”
remetem à metáfora, uma figura de linguagem baseada na relação de analogia e de
similaridade (FILIPAK, 1983: 152), demonstrada pela figura da cobra que, por se tratar
de um animal temido, revela a valentia de Paraná em relação aos adversários no jogo de
sinuca. João Antônio faz uso desse recurso linguístico como forma de criar um efeito de
sentido de força e autoridade, uma vez que o próprio personagem coloca-se como
protagonista da ação. O menino admira a esperteza de seu mestre e o reconhece como
exímio jogador e ótimo na arte de ensinar.

Às vezes, o garoto lamentava o fato de Paraná passar muito tempo no jogo de sinuca e na
casa de Nora: “[...] ele passava os dias fora, girando. Era aquela tal Nora e era a sinuca.
A sinuca, então [...] Paraná entrava pelas noites, varava madrugada, em volta da mesa.
Voltava quebrado, voltava que voltava verde, se estirava na cama, dormia quase um dia,
e não queria que o menino o acordasse” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 98-99).

Nego cumpria à risca às ordens dadas por Paraná, era-lhe grato e tinha receio de
decepcioná-lo. O garoto sabia que sem ele teria de viver na rua; não saberia para onde ir.
Mas a gratidão devia-se não apenas a que o amigo poderia oferecer-lhe, “ele o adorava”.
Tudo o que sabia devia a Paraná.

Paraná também sabia do valor que o garoto tinha. Nego era um menino indefeso, que
atendia prontamente aos pedidos de seu protetor. Vemos nas expressões “Se algum te põe
a mão [...] se abre! Qu’eu ajusto ele”, que Paraná segue no propósito de proteger o garoto,
pois sentia por ele um carinho de pai, apesar de envolver Nego em algo que poderia
prejudicá-lo. Vemos nas expressões destacadas um contexto interacional, pois o emprego
das frases refere-se a uma relação de afetividade que Paraná nutria pelo garoto.
80

O conto inicia com uma missão que deveria ser cumprida por Nego. Não fica claro, mas
a impressão é de que se trata de algo ilícito e muito sigiloso:

O menino tinha só dez anos.


Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas
lembrou-se do embrulhinho branco e benfeito que trazia, afastou a ideia
como se estivesse fazendo uma coisa errada. (Nos bondes, àquela hora
da noite, poderiam roubá-lo, sem que percebesse; e depois? … Que é
que diria a Paraná?)
Andando. Paraná mandara-lhe não ficar observando as vitrinas, [...]
— Olho vivo — como dizia Paraná (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 95).

Nego era um garoto esperto e curioso como todas as crianças de sua idade. Uma das
atividades de que gostava era de ficar olhando as vitrines das lojas. Naquele dia, Paraná
entregou um embrulho para o garoto e recomendou que fosse direto até o local indicado,
que não se distraísse olhando as vitrines, como fazia de costume.

Assim fez o garoto. As recomendações eram tão sérias que Nego teve de dominar os
próprios pensamentos. A expressão destacada “— Olho vivo — como dizia Paraná”,
repetida por ele, reforça a ideia de que não deveria se distrair, precisava estar sempre
atento. No contexto situacional, essa expressão adquire autoridade diante dos fatos, pois
se trata de uma frase feita com valor metafórico que a torna mais expressiva diante de
uma força de expressão proferida por Paraná carregada de várias recomendações.

Era madrugada ainda, o frio, intenso. Foi difícil para o garoto se levantar da cama:

— Nego… Nego!
O menino não queria. Paraná puxou a manta.
— Paraná! Que foi? — acordou chateado.
O homem suado na testa. Barbado. Só explicou que precisava
dele. Levar um embrulho às Perdizes. Muito importante. O menino se
arrumou fora do colchão furado, meteu o tênis.
— Embrulho? Pra quem?
Paraná fez uma coisa que nunca fizera e que ele não entendeu bem. Fê-
lo ficar de pé, pousou-lhe as mãos nos ombrinhos. Sentado na beira da
cama. Disse bem devagar.
Ele tinha que ir às Perdizes, encontrar-se lá com Paraná. E não podia
perder o embrulhinho. Perguntou-lhe se conhecia uma avenida grande
que desce a igreja das Perdizes. Sim. Ele deveria descê-la, três
quarteirões. Sim. Tomar cuidado com os guardas. Sim. Lá encontraria
um ferro-velho. Sim. Pularia o muro.
[...]
— O embrulho é sagrado, tá ouvindo? (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 96,
grifo nosso)
81

O garoto, então, lançando-se à própria sorte, saiu de casa. Durante o trajeto, seguiu com
seus pensamentos; sonhava com algo que nunca havia visto, como o mar. O medo e a
solidão eram seus companheiros, assim como um frio que o incomodava muito.

O narrador utiliza, em uma situação interacional, um termo cujo significado distancia-se


do sentido original “— O embrulho é sagrado, tá ouvindo?”. Trata-se de uma expressão
com valor semântico de personificação, por conferir a uma coisa, o “embrulho”, um
termo, “sagrado”, que só poderia ser atribuído a pessoas ou a algo que apresentasse um
valor acima de um valor material.

A personificação ocorre no momento em que uma pessoa passa a valorizar algo físico,
material, como algo não humano, “sagrado”. Fiorin (1988: 65) esclarece a respeito das
figuras de linguagem: “A mais conhecida pela retórica é a prosopopéia (fictio personae,
personificação), em que se atribuem qualificações ou funções que possuem o classema
/humano/ a um ator que tem o classema/não humano/”. Além disso, podemos afirmar,
pela expressão utilizada por Paraná, que se trata de algo com valor religioso. Uma
expressão que só poderia ser compreendida por meio da fé; caso contrário, não teria a
menor importância. Após incisivas recomendações, Paraná consegue fazer o garoto
entender que o que tem em mãos não é um simples embrulho, mas algo de muito valor.

Mesmo com dificuldade, o garoto sente prazer em poder realizar a missão. Por vezes,
havia ficado sozinho, mas não conseguia se acostumar:

Ele sempre sentia um pouco de medo quando Paraná estava girando


longe. Fechava-se, metia um troço pesado atrás da porta. Ficava até
tarde, olhando os cavalos da revista de turfe de Paraná. Muito alto,
espigados, as canelas brancas, tão superiores ao burro Moreno de Seu
Aluísio padeiro. Só com os soldados, à noite, é que via coisa igual.
Fortes e limpos. Fazendo um barulhão nos paralelepípedos.
— Que panca! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 99)

Nego era muito novo, mas já pertencia ao mundo da malandragem. A esperteza fazia parte
desse universo. No entanto, quando o garoto estava sozinho, não havia sujeito esperto.
Havia, sim, o medo da solidão e a vulnerabilidade de um menino de apenas dez anos que
adorava cavalos, “Muita vez, sonhava com eles” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 99). Contudo,
o mais perto que conseguiu chegar desses animais foi por meio das revistas de Paraná:
82

“olhando os cavalos da revista de turfe de Paraná”. Seu fascínio é expresso no segmento


“— Que panca!”, que revela a imponência e o porte dos cavalos que o faziam sonhar. O
narrador utiliza um recurso expressivo para indicar, por meio de um contexto, que um
menino frágil e indefeso era um admirador fiel dos cavalos, que simbolizavam força e
poder.

Por vezes, notamos o contraste entre um mundo em que a malandragem domina e um


mundo de sonhos, em que há cavalos imponentes, ou seja, temos a contraposição entre o
lado sagaz do menino, disposto a enfrentar os perigos das ruas em uma madrugada gelada,
e o lado pueril e fragilizado de um garoto que sente medo de ficar sozinho. Sua
ingenuidade é expressa quando observamos a amizade entre ele e Lúcia:

Lúcia era menor que ele e brincava o dia todo de velocípede pela
calçada. Quando alguma coisa engraçada acontecia, eles riam juntos.
Depois, conversavam. Ela se chegava à caixa de engraxate. O menino
gostava de conversar com ela, porque Lúcia lhe fazia imaginar uma
porção de coisas suas desconhecidas: a casa dos bichos, o navio e a
moça que fazia ginástica em cima duma balança – que o pai dela
chamava de trapézio. Na sua cabeça, o menino atribuía à moça um
montão de qualidades magníficas (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 100).

As conversas com Lúcia eram agradáveis, o faziam sorrir. Nesses momentos, ele
encontrava sua verdadeira identidade. Contudo, a realidade que vivia não lhe permitia ser
apenas criança. A missão que Paraná lhe havia confiado exigia não um garoto ingênuo,
mas um garoto esperto que havia aprendido a arte da malandragem.

Notamos que, por meio de recordações, Nego sente falta de uma infância real e da
presença de Lúcia, pois se trata de lembranças de uma menina que tinha quase a mesma
idade que ele. Assim, podemos afirmar que os pensamentos do garoto o faziam retornar
aos momentos em que simplesmente brincava com Lúcia, e que era onde ele deveria estar.
Segundo Reis (2011: 40) havia um contexto interacional na relação de amizade entre
Nego e Lúcia, porém a vida que ele levava não era propícia para crianças. Nego era apenas
um garoto, mas ao menos naquele momento, precisava comportar-se como adulto.

Nego tinha uma longa jornada pela frente. Tentava seguir firme, mas não aguentava mais
tanto frio:

Frio. Quando terminou a Duque de Caxias na avenida São João. O


pedaço de jornal com que Paraná fizera a palmilha não impedia a
friagem do asfalto. Compreendeu que os prédios, agora, não iriam tapar
83

o vento batendo-lhe na cara e nas pernas. Andou um pouco mais


depressa. Olhava para as luzes do centro da avenida, bem em cima dos
trilhos do bonde, e pareceu-lhe que elas não iam acabar-se mais.
Gostoso olhá-las (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 101).

Podemos notar alguns contrapontos: o frio e a escuridão da madrugada em contraposição


ao prazer de olhar as luzes da cidade e o leite quente: “Que bom se tomasse um copo de
leite quente! Leite quente, como era bom” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 101). Mesmo com
tanto receio, decidiu parar e comprar, porém não podia perder tempo: “Mas precisava
agora era andar, não perder a atenção [...] — Paraná já deve tá na boca de espera”
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 101).

A expressão popular “tá na boca de espera” é formada por uma expressão metafórica
denominada figura de palavra. Segundo Filipak (1983: 114), essa figura “supre uma
carência lexical”, uma vez que por meio dela são empregados vocábulos caracterizados
por representarem um sentido que não é o real. No conto analisado, essa expressão ganha
força e expressividade em um contexto que gera confiança e expectativa no garoto.

Nego faz uma pausa em sua caminhada, toma o leite e segue adiante. Sua jornada continua
no mesmo ritmo, mas suas lembranças vão em uma velocidade bem maior, em
contraposição a sua realidade: “— Cavalo não tem pé” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 102).
Lembra as conversas com Lúcia, as piadas sem graça de Seu Aluísio, um homem bom
que gostava de brincar com as crianças e que tinha bigodes enormes. Precisa apressar-se,
pois provavelmente Paraná já o aguardava no local indicado. A caminhada estava bem
adiantada, mas o garoto começou a sentir um enorme desconforto:

— E Paraná?
Parou, pensou um pouco. Perplexo, pareceu-lhe a princípio estar
fazendo coisa errada, não indo procurar Paraná noutro canto. Vasculhar
outros lados. E se não estivesse no ferro-velho? [...]
Logo que começou a descer a Água Branca veio-lhe um pouco de fome
e uma vontade maluca de urinar. [...]
Frio. Canseira. As casas enormes esguelhavam a Avenida muito larga.
Pela Avenida Água Branca o menino preto ia encolhido. [...] Tão firmes
que pareciam homens. O menino ia só.
Na segunda travessa, topou um cachorro morto. Longe, já o divisara.
Assustou-se com as deformações daquele corpo na beirada do asfalto.
Analisou-o de largo, depois marchou.
— O coitado engraxou alguma roda.
Ficou com pena do cachorro (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 103).
84

A preocupação com Paraná aumentava à medida que se aproximava do local indicado. O


garoto começou a perceber que estava fazendo algo errado, mas não deu muita
importância a isso. Preferiu afastar os pensamentos negativos.

Nesse ponto, identificamos uma dicotomia na narrativa. O caminho realizado pelo garoto,
“Pela Avenida Água Branca o menino preto ia encolhido [...] numa avenida muito larga”,
revela ideias opostas das do autor, que nos levam a uma reflexão a respeito do quanto
aquele menino frágil estava vulnerável. Outro ponto de contraste está no fato de o menino
de apenas dez anos, que estava à mercê de todo tipo de perigo e necessidade, avistar um
cachorro morto e sentir pena. A expressão popular em destaque “O coitado engraxou
alguma roda” faz referência a como o garoto analisou a cena e à maneira como o cachorro
havia sido atropelado.

Finalmente, Nego chegou ao local indicado por Paraná. Olhou o muro que deveria pular,
não encontrou ninguém. Imaginou que talvez o amigo não conseguisse chegar, “Uma dor
fina apertou seu coração pequeno. Ele talvez não veria mais Paraná. Nem rua João
Teodoro. Nem Lúcia” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 104). Gritou por Paraná. Resolveu,
então, pular o muro e firmou na esperança e na confiança que tinha em seu protetor.
Encontrou um lugarzinho para se aconchegar, enrolou-se na manta verde e ficou por ali,
trabalhando a imaginação:

Onde diabo teria se enfiado Paraná? Ah, mas não haveria de meter
o bico no embrulhinho branco! Nem Nora. Muito importante. Paraná
é que sabia. Nora não. Um arrepio. Que frio danado! Entrava nos ossos.
Embrulhou-se mais no casacão e na manta. Fome, mas não era muito
forte. O que não aguentava era aquela vontade. Lembrou-se de que
precisava se acordar muito cedo. Bem cedo. Que era para os homens do
ferro-velho não desconfiarem. Lúcia, branca e muito bonita, sempre
limpinha. Sono. Esfregou os olhos. O embrulhinho branco de Paraná
estava bem apertado nos braços. Entre o suspensório e a camisa. Que
bom se sonhasse com cavalos patoludos, ou com a moça que fazia
ginástica! Contudo, não aguentava mais a vontade. Abriu o casacão.
Então o menino foi para junto do muro e urinou (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 105).

O conto encerra com uma dúvida em relação a se Paraná chegaria ou não. As expressões
destacadas “Onde diabo teria se enfiado Paraná? Ah, mas não haveria de meter o bico no
embrulhinho branco!” expressam preocupação, além do mundo físico. A situação
contextual em que emprega a expressão de sentido religioso, em que há o termo “diabo”,
leva-nos a imaginar que o garoto acredita que alguma força a mais tem atrapalhado os
85

planos do amigo. Mesmo assim, enfatiza que ninguém, além de Paraná, vai mexer no
“embrulhinho branco”.

Em sua imaginação, o menino brinca com os contrastes: pensava na força de um cavalo


e em sua liberdade, o que se contrapunha à fragilidade e à opressão em que vivia,
concretizadas na imagem do cachorro morto; ainda sentia muito frio e se lembrava do
gosto do leite quente; pensava também que, pelo fato de Nora não ter consciência do que
estava acontecendo, não poderia mexer no embrulho, “Paraná, sim é que sabia”; “Lúcia,
branca e muito bonita”, sempre limpinha; Nego, “Pequeno, feio, preto, magrelo” e sujo
de graxa; sentia fome, mas não muita, a vontade era outra; estava com muito sono, mas
lembrou que tinha de acordar cedo. O garoto, então, vai para junto do muro e descarrega
toda sua tensão.

João Antônio encerra o conto utilizando vários pontos de convergência que vão sendo
relembrados pelo garoto. Podemos entender esses contrastes como antíteses, que, nas
palavras de Fiorin (2011: 120), são “oposições figurativas ou temáticas num determinado
texto. É indispensável lembrar que só podem opor-se elementos semânticos que tiverem
algum traço em comum”.

Os contrastes vão acontecendo no decorrer da caminhada que o garoto percorre. Nego


vive uma situação contextual que oscila entre o frio, o medo e a solidão; além disso, ele
tem de cumprir a missão de não decepcionar o amigo Paraná, a única pessoa que pode
suprir suas necessidades.

3.7 Visita

O mundo para mim não tem dado voltas, rolado como dizem
alguns. Sempre as mesmas tiradas. Meus sapatos furam-se, os
ternos estragam-se, continuo o mesmo sujeito (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 109).

O conto Visita é narrado em primeira pessoa, porém não há identificação do narrador-


protagonista. A narrativa inicia com a revelação de um sonho carregado de nostalgia de
um tempo de boemia em que o protagonista não tinha preocupação em acordar cedo e não
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precisava passar o dia preso a um sistema burocrático e entediante. Nesse sonho, ele, junto
com o amigo Carlinhos, voltava a uma vida descompromissada de malandragem:

Sonhei que voltara às grandes paradas. Eu e Carlinhos.


Desprezando para sempre nossos empregos, sozinhos no mundo e
conluiados, malandros perigosos, agora. Vagabundeávamos finos na
habilidade torpe de qualquer exploração. E fisgávamos mulheres,
donos de bar, zeladores de prédios, engraxates, porteiros de hotel,
meninos que vendem amendoim...
Era quando a branca caía.
No jogo, no quente jogo aberto das parceiradas duras, partidas
caríssimas, eu tropicava, tropicava, repetidamente. Aquilo não se
explicava! A tacada final era dolorosa e era invariável − era a minha
− e eu me perdia. Aquilo, aquilo nos arruinava. Quem me visse e não
soubesse diria que eu estava traindo. O ótimo Carlinhos não se
desnorteava, fazia fé, dava-me o embalo, imprimia moral.
— Firma e joga o jogo!
Mas nada. Ajeitasse giz no taco, estudasse os efeitos das tabelas,
caçasse combinações, lavasse o rosto para a tacada - não me salvava. A
bola branca caía (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 109, grifo nosso).

Em um momento de sonho ou devaneio, a vida do narrador toma uma direção muito


diferente do que ele experimenta na vida real; ele abandona o emprego, deixa o papel do
bom moço e passa a ter uma vida desregrada e de malandragem, de prazer e diversão. O
segmento em destaque “fisgávamos mulheres [...]” refere-se a uma expressão popular
muito utilizada na época para indicar as conquistas nas noites de boemia. Essa expressão
tem valor conotativo e se refere à figura de linguagem prosopopeia ou personificação, por
meio da qual são atribuídas “qualificações ou funções que possuem o classema /humano/
a um ator que tem o classema /não humano” (FIORIN, 1988: 65).

A personificação, nesse caso, tem o sentido de fisgar, em vez de peixes, pessoas. No


conto, foi empregada com o propósito de intensificar o valor semântico da expressão.
Fiorin (1988: 65) observa que em vez de ocorrer a personificação, pode ocorrer a
“animalização dos atores humanos”, nesse caso, acontece ao contrário da personificação,
pois se conferem às pessoas características de animais ou seres inanimados.

Para o narrador-protagonista, o jogo de sinuca era seu maior prazer. Ele realizava com
destreza essa atividade, juntamente com Carlinhos, seu parceiro. No entanto, no sonho,
essa atividade não era concretizada com sucesso: “No jogo, no quente jogo aberto das
parceiradas duras, partidas caríssimas, eu tropicava, tropicava”. A expressão destacada
87

refere-se a uma situação contextual em que o narrador mostra, por meio da expressividade
das palavras, a seriedade do jogo e sua importância na vida dos jogadores.

Por mais que houvesse empenho, o resultado era desastroso, não era o que desejava.
Apesar do incentivo do amigo, dado pela expressão “— Firma e joga o jogo!”, comum
entre os jogadores de sinuca, empregada como forma de incentivar o jogador a não
desistir, o resultado não era favorável e até mesmo no sonho, era obrigado a recuar.

A narrativa, contada pelo próprio protagonista, mostra o desabafo e a revolta de alguém


que está prestes a chegar ao seu limite. Contudo, antes que isso acontecesse, resolveu
espairecer, mudar sua rotina. Assim, decidiu visitar o amigo Carlinhos, que não via há
cerca de dois meses. Quem sabe, poderia se distrair um pouco com o parceiro. Relembrar
os bons tempos de sinuca, tomar café, conversar sobre futebol. O amigo poderia
apresentar-lhe a irmã; se caso tivesse uma, provavelmente seria linda. Lembrou-se de um
cartão que havia ganhado do amigo, e agora poderia retribuir-lhe a gentileza. Teria paz,
ficaria lá por algumas horas, longe das chateações corriqueiras que o faziam perder a
paciência, quando não no escritório, em casa:

Diabos, toda noite esta história. Mal entro em férias, é isto. Não basta
o escritório, não basta. Os chefes, as idiotices. Tudo em promiscuidade
e eu a aturar. Quando a noite chega, hora da gente descansar, cinema,
mulher, qualquer coisa... não. Latinha de flite, sabonete, caixa de
alfinetes, nem sei. Minha mãe tem a mania de me arranjar estes
probleminhas domésticos. Pelo ano inteiro, este tonto trabalha e
aguenta escola noturna. Dorme seis horas, acorda atordoado de sono,
vai buscar dinheiro numa profissão inútil [...]. Os dedos pretos de fumo
são fins de braços sem bíceps, sem tríceps, nada. Pudera! Às vezes, vejo
na expedição homens da sacaria, braços enormes. Imagino-me vivendo
à sombra deles. Parece-me que a vida teria músculos e sossego, não
cálculos e ocupações domésticas (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 110, grifo
nosso).

O narrador faz um relato do dia a dia de alguém aparentemente deprimido e triste. A


expressão iniciada pelo termo “Diabos”, empregado como forma de atribuir a um ser
sobrenatural a culpa por todas as noites serem iguais, causa um efeito catártico, de
extravasamento da raiva de ter sempre a mesma rotina.

Após uma pequena discussão com a irmã por causa de um vestido novo que queria que
ele comprasse para ela usar no Natal, sai rumo à casa de Carlos. Primeiro, pensa em
caminhar, afinal não era tão longe, depois, decide esperar o ônibus. As dificuldades que
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precisa enfrentar no seu dia a dia já eram suficientes. Em relação ao dinheiro que poderia
economizar, pensa que não seria tão vantajoso se privar de pequenas coisas porque o que
ganha mal dá para as pequenas despesas:

O diabo é que não nasci trouxa, aqueles tempos de jogo, quando


desempregado, me ensinaram que eu não nasci trouxa. Agora, o salário
minguado dá para cigarros de vinte cruzeiros e cachaça de quando em
quando. Se o mês aperta, corta-se isso.
Só mesmo vendo aquele vestido.
Calculem. E eu a aturar. Se perco as estribeiras, meto a boca no
mundo, é a velha história – estou dando escarcéu, acordando a boa
vizinhança, mau exemplo (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 112, grifo nosso).

As expressões destacadas “O diabo é que não nasci trouxa” e “Se perco as estribeiras,
meto a boca no mundo [...] estou dando escarcéu” revelam uma situação conflituosa e de
insatisfação por parte do protagonista por ele ter de realizar algo que não deseja. Trata-se
de frases feitas com valor expressivo.

Urbano (1999: 120-121) esclarece que

[...] os fatos expressivos estão, pois, ligados à expressão de elementos


subjetivos e afetivos [...] com a capacidade de o falante exprimir, na
linguagem, os sentimentos de simpatia, entusiasmo ou repulsa que lhe
despertam as idéias enunciadas, bem como a capacidade de despertar nos
ouvintes análogos sentimentos.

O autor acrescenta que, por meio de recursos que produzem efeito expressivos, o falante
é capaz de exteriorizar seus sentimentos atuando sobre seus semelhantes (URBANO,
1999). Dessa forma, protagonista tenta desabafar utilizando essas expressões, que
demonstram sua raiva e indignação em relação à situação que vivencia no momento.

No ônibus, sente uma calma que há muito não sentia. O veículo quase vazio e o vento
batendo-lhe no rosto lhe davam sensação de liberdade. A noite estava linda e, enquanto o
ônibus avançava, ia relembrando de coisas que ouvira, por exemplo, na escola, e que para
ele pouco importavam. Lembrou-se da boa vida dos tempos de desemprego e dos
problemas que teve de enfrentar:

Já curti desemprego, cinco meses que só eu sei... Vida do joguinho. O


dia na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu fumava
cigarros estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engolia um
desaforo. Dinheiro? Eu tinha muita cabeça e era um taco de
verdade. Noites de levantar quatro-cinco contos! Mas jogo é jogo e eu
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não nego – peguei rebordosas medonhas – não foi uma que deixei o
salão sem dinheiro para o ônibus. A casa... a família reunida para as
reprimendas que duravam duas horas. O vagabundo, o ingrato, o
perdido, o isto e o aquilo ouvia sem dizer nem pau nem pedra. [...]
Puxava uma, duas das notas maiores e entregava. Preocupação,
remorso, vergonha? Não, não, nada disso. Era sono, que eu passava a
madrugada em volta da mesa me batendo, jogando, suando, arriscando,
perdendo, ganhando. Por isso aturava o esporro – queria dormir.
Falassem [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 113-114, grifo nosso).

A primeira expressão destacada, “Não engolia um desaforo”, remete-nos à expressão


popular “Não levava desaforo para casa”, cujo sentido é o mesmo: resolver de uma vez o
problema, não ficar “remoendo” ou alimentando um sentimento de raiva do qual não sabia
ao certo quando poderia se livrar. Nessa expressão, identificamos o fenômeno da captação
(MAINGUENEAU, 2013: 219), uma vez que temos uma expressão semelhante, ou até
uma imitação, que faz aumentar a credibilidade diante dos amigos que participavam da
conversa.

Na sequência, o personagem comenta: “Eu tinha muita cabeça e era um taco de verdade”,
ou seja, ele era uma pessoa sensata e agia como profissional. Contudo, lembra: “peguei
rebordosas medonhas”, isto é, experimentou situações de conflito. Em casa, enfrentou
várias críticas e xingamentos sem dizer uma palavra: “ouvia sem dizer nem pau nem
pedra”. O autor utiliza-se da frase feita referindo-se a uma expressão metafórica cujo
significado guarda semelhança com os objetos inanimados, pau e pedra, de forma a
evidenciar que não houve sequer um movimento.

O ônibus para no ponto que ele desejava descer:

Dou o sinal, pulo. Ganho a rua de paralelepípedos, ... A casa era a


última duma fileira de moradas de ferroviários. Na varanda, um casal
em namoro. Um pegadio sem modos. Avistando-me vem a moça
atender.
— Boa noite. Carlos está?
— Não. Saiu. O senhor...
Coço a cabeça. Sempre me desajeito ante mulheres. E esta, agora, me
chamando de senhor! Desespero-me à toa. Deve ser a irmã de
Carlinhos. Namorando ou noivando. Bonita, boas pernas. [...] Tiro o
postal do bolso interno do paletó, vem junto um cigarro amassado que
guardo com atropelo.
— Pode-lhe por favor, entregar isto? (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 114)
90

Ao chegar ao endereço, decepciona-se por dois motivos: primeiro, por não encontrar o
amigo em casa, depois, por ver a irmã de Carlinhos aos beijos com o namorado. Ele se
despede e pega o caminho de volta para casa conformado; aquela hora não era mesmo o
momento apropriado para visitas.

Lamenta-se por ter perdido uma noite agradável. Entra em um bar, pede uma cachaça.
Fica por ali pensando: “— Por que não arranjo uma namorada?” (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 115). Paga a bebida e sai. Observa uma modelo em um cartaz e lembra que ela se
parece com a irmã de Carlinhos. Reclama da demora do ônibus e fica indignado com o
governo:

Minutos de espera, o que me sobrou foi tédio e raiva. Onde se viu uma
linha de ônibus tão relaxada? E ainda querem aumento de tarifa... é,
barriga está cheia, goiaba tem bicho. Abandono a ideia do ônibus,
vou a pé (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 117, grifo nosso).

Em seu momento de revolta, usa o provérbio “barriga está cheia, goiaba tem bicho”,
referindo-se à falta de comprometimento daqueles que poderiam melhorar a situação das
pessoas que utilizam o transporte público e não o fazem. O emprego desse provérbio pode
ser a expressão de descontentamento do autor em relação ao descaso dos políticos com a
população, que só é lembrada em época de eleições.

O narrador resume a situação utilizando-se da ironia em um provérbio que, a princípio,


pode parecer incoerente. Em relação a isso, Xatara e Succi (2008: 43) esclarecem que se
refere “à relação que provérbios apresentam por si só e entre si. Muitos são ilógicos por
si só: ‘Barriga cheia, goiaba tem bicho’”, como no caso do conto analisado, em que é
assinalada a falta de empenho dos governantes para mudar a situação da população. As
autoras utilizam esse provérbio para exemplificar a criatividade e o humor em se tratando
da sabedoria popular.

Em sua caminhada de retorno, o narrador-personagem observa uma das sentinelas que


tomava conta do quartel em uma situação imoral com uma prostituta. Sua indignação
aumenta:

Quis seguir estrada, o atalho me surpreendeu. Uns dez minutos e estaria


na vila. Sapos, nas pocinhas das beiradas do campo de futebol. Até há
pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir
91

acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente


serão usinas de concreto.
Várzea escura, breu. Meu pai disse-me que, quando menino na Europa,
transpunha vales escuros para pastoreio, onde lobos invadiam. Aqui há
mosquitos e fartum do curtume próximo. Luzes ao longe, luzes da
serraria. Posso caminhar olhando-as. Às vezes, faço de conta que são
guias que eu sigo para alcançar a vila. Pena não encontrar Carlinhos,
não estaria tateando este breu (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 117-118).

Chega em casa reclamando do pó em seus sapatos, “Porcaria de vila!”. Percebe que ainda
é muito cedo para dormir, então, sai novamente. Dessa vez, entra em um bar próximo e
pede café. Fica por ali, encostado ao balcão; havia uma mesa de sinuca. Alguns o
reconhecem; outros fingem não conhecê-lo:

— Sujeitos bestas – digo baixinho, para justificar-me de que estou


acima deles.
Logo caio em mim, reconheço que sou pobre-diabo como os que
jogam. Como reconheço que já vivi disto e eles não. Cada um no seu
emprego.
— Vinte-e-um, Gazuza?
O mulato meneou a cabeça. Aquele sim, um bicho, mas sabe o que é e
não é balão.
— Aberto, cinquenta a mão.
— Posso entrar?
Os quatro se entreolharam. Também a sentinela e a maloqueira
entreolharam-se quando apareci. Na várzea havia mosquitos bravos,
não lobos. Um tipo musculoso mediu-me de soslaio, tinha a camisa
apertando braços enormes, uma cara enorme, um queixo enorme de
gringo. Talvez quisesse jogar. Se quisesse, que fosse dizendo. Polidez
com essa gente é tempo perdido (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 118, grifo
nosso).

No início, julgou ser melhor que aqueles homens; depois, chegou à conclusão que não era
superior a nenhum deles: “Logo caio em mim, reconheço que sou pobre-diabo como os
que jogam”. Essa expressão refere-se a uma pessoa que toma consciência de sua
identidade. No conto, o personagem percebe que é tão fraco e carente como qualquer
outro jogador, uma vez que se trata de indivíduos sem personalidade. A frase feita
empregada exprime a tomada de decisão por parte do personagem em relação a mudar
sua opinião sobre os demais jogadores de sinuca.

Pede uma cachaça e entra no jogo, confiante de que seus atributos de exímio jogador de
sinuca permaneciam como antes. Fica muito tempo esperando a sua vez de jogar. Nesse
ínterim, muitos pensamentos lhe vêm à cabeça: a moça do cartaz, a irmã de Carlinhos.
Pensa que nunca teria uma namorada como aquelas moças.
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O mundo para mim não tem dado voltas, rolado como dizem
alguns. Sempre as mesmas tiradas. Meus sapatos furam-se, os ternos
estragam-se, continuo o mesmo sujeito. Escritório, taxa de colégio,
irmã galinha. Vida xepe, porcaria!
Tanto preparei o portal... queria tanto rever o excelente Carlos! Não
tenho jeito para escrever, mas vá lá. ‘vai pras cabeças!’ – como se diz
cá na sinuca (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 119, grifo nosso).

Reclama muito dizendo que não há novidades em sua vida, que nada de bom acontecia e
que sua existência não fazia sentido: “Vida xepe, porcaria!”. Essa expressão popular
sintetiza o que estava acontecendo em sua vida; faltavam-lhe palavras para exprimir o
quanto sua condição o incomodava.

Contudo, em se tratando de jogo de sinuca, acredita que continua sendo o melhor: “Vai
pras cabeças!”. Essa frase feita traz uma expressão metafórica muito utilizada pelos
jogadores de sinuca como forma de incentivo para finalizar de uma vez a jogada. No
momento exato, treme, sente-se amedrontado e tenta provar para si mesmo que não há o
que temer: “Na várzea havia mosquitos bravos, não lobos” (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
118); afinal de contas, não havia ninguém páreo para ele.

Faz planos para que o jogo se torne mais interessante, entretanto, sua jogada não sai como
planejado:

Mas que jogo triste! Fosse outrora e eu fechava este joguinho num
instante. [...] Olho a branca, posso fechar o jogo, acabar com a alegria
desses parceiros. [...] Os parceiros olham-se, olham-me. Na porretada,
a azul. Diabos, não caiu na caçapa em que mirei. Por que veio cair em
cima, na sorte? Mal, péssimo. Eu não queria na sorte. Vejam a que meu
jogo ficou reduzido. Sujo, é só sujeira, só me encontrando na sorte. Vou
é para a casa (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 121-122).

O fato de ter feito uma jogada não prevista faz que o narrador-protagonista, já
desanimado, fique ainda mais angustiado, pois não queria que sua jogada desse certo na
sorte. Ele encerra a jogada, o jeito é ir para casa depois de um dia com tantas desilusões.

Muito cansado, após fazer sua higiene pessoal para um repouso merecido, chega à
conclusão de que a vida é assim mesmo, feita de desilusões, mas também de conquistas,
e que, no dia seguinte, tudo voltaria à mesma rotina.
93

3.8 Meninão do Caixote

Larguei uma, larguei duas, larguei muitas vezes o joguinho.


Entrava nos eixos. No colégio melhorava, tornava-me
outro, me ajustava ao meu nome. Vitorino arrumava um
jogo bom, me vinha buscar. (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 138)

Meninão do Caixote é um conto narrado em primeira pessoa por um garoto que sente falta
do pai, caminhoneiro que passa a maior parte do tempo na estrada. A mãe, muito atarefada
com as obrigações do dia a dia, não tem tempo para se dedicar ao filho. Dessa forma, o
menino acaba encontrando em outra pessoa o carinho e o cuidado de que precisa. Vitorino
é uma pessoa que conheceu em um bar e que o ensinou a jogar sinuca e a ser malandro.

O protagonista inicia o conto narrando, com pesar, a decadência de uma pessoa que teve
um papel muito importante em sua vida e que agora, por sua culpa, tinha se tornado
alguém fracassado e sem rumo certo:

Fui o fim de Vitorino. Sem meninão do Caixote, Vitorino não se


aguentava.
Taco velho quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas
tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para jogar em cavalos. Não
deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha,
mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava [...]
E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho,
foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente
nos bancos dos salões e nos botecos (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 125,
grifo nosso).

A expressão destacada “Taco velho quando piora, se entreva duma vez” indica que, pelo
fato de Vitorino ter parado de jogar sinuca, sua habilidade como exímio jogador estava
comprometida. A expressão popular traduz, por meio da figura de linguagem que Filipak
(1983: 145) denomina de metonímia de instrumento, pelo fato de substituir um termo por
outro com o qual tenha perfeita relação (Taco velho = Vitorino), a situação de Vitorino,
velho amigo do meninão do Caixote e excelente jogador em plena decadência. O narrador
utiliza outra figura de linguagem para resumir a condição de vida de Vitorino: “Tropicava
nas tacadas”. Desse modo, foi obrigado a desistir do jogo de sinuca, “deu-lhe uma onda
94

de azar” porque até a sorte o havia abandonado. Esta frase feita é empregada para
demonstrar de forma mais expressiva como era a vida de jogador de sinuca. Assim, tenta
outros caminhos do mundo da malandragem, que o levam a um rápido declínio.

Meninão do Caixote foi um apelido carinhoso que Vitorino deu ao pequeno garoto que,
aos poucos, foi conquistando, não só o amigo, mas muitas pessoas de diferentes lugares:

Meninão do Caixote [...] Este nome corre as sinucas da baixa


malandragem, corre Lapa, Vila Ipojuca, corre Vila Leopoldina, chega a
Pinheiros, vai ao Tucuruvi, chegou até Osasco. Ia indo, ia indo. Por
onde eu passava, meu nome ficava. Um galinho de briga, no qual
muitos apostavam, porque eu jogava, ia lá ao fogo do jogo e trazia o
dinheiro.
Lá ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino, não
tinha quinze anos.
Crescia, crescia o meu jogo no tamanho novo do meu nome (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 134, grifo nosso).

Seu nome ficou conhecido por ele ser o melhor. A expressão metafórica destacada “Um
galinho de briga” revela que, apesar de pequeno, era um excelente e corajoso lutador.
Notamos que a expressão utilizada pelo narrador-protagonista “ia lá ao fogo do jogo e
trazia o dinheiro” contribui de forma marcante para a expressividade. Segundo Urbano
(1999: 117), uma das características da expressividade está na ênfase, no poder de
transmitir uma informação. Muitos apostavam nele porque sabiam que era destemido a
ponto de desafiar os demais. A situação contextual mostra-nos que o ambiente que o
menino frequentava propiciava sua ascensão no jogo de sinuca.

Ele conta que, além de sentir muita falta do pai, era enorme a dificuldade em se adaptar
a outro lugar que não fosse a Vila Mariana, onde havia morado desde que nascera. Teve
de se mudar para a Lapa e deixar de brincar com o amigo Duda. Difícil mesmo era quando
chegavam em casa:

A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa e com
mãe havia sempre uma complicação. A camisa meio molhada, os
cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a gente acabava
apanhando. Apanhava, apanhava, mas valia. Puxa vida! A gente tirava
a roupa inteirinha, trepava no barranco e ‘tichbum’ – baque gostoso do
corpo na água. Caía aqui, saía lá, quatro-cinco metros adiante. Ô
gostosura que era a gente debaixo da água num mergulhão demorado!
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 125, grifo nosso)
95

A expressão “A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa” indica a rigidez
de uma educação tradicional. O protagonista relembra fatos que significavam momentos
de prazer e de interação relacionados à infância. Ainda que essa expressão tenha
conotação negativa, segundo Reis (2011: 40), isso não impedia que houvesse interação.
Mesmo assim, no contexto interacional, a expressão deixa de ter valor negativo e passa a
ter valor positivo a ponto de fazê-lo sentir saudade daquele tempo. Além disso, por se
tratar de uma educação rígida, era comum os pais educarem os filhos da forma
mencionada.

Foi obrigado a deixar tudo para traz e a viver em um lugar que não tinha atrativos para
uma criança ativa e cheia de vigor. O pai ausente, a mãe muito enérgica e uma professora
que mandava bilhetes; tudo o fazia se lembrar do tempo que viveu na Vila Mariana:

Agora, na Lapa, numa rua sem graça, papai viajando no seu caminhão,
na casa vazia só os pés de mamãe pedalavam na máquina de costura até
a noite chegar. E a nova professora do grupo da Lapa? Mandava a gente
à pedra [...] À saída, naquele meu quinto ano, ela me passava o bilhete,
que eu passaria a mamãe.
– Trazer assinado.
Coisas horríveis no bilhete, surra em casa.
Se Duda estivesse comigo eu não estaria bobeando, olhando a chuva.
A gente arrumaria uns botões, eu puxaria o tapete da sala, armaria as
traves. [...]
– Você está jogando muito.
Mas agora a chuva caía e os botões guardados na gaveta da cômoda
apenas lembravam que Duda ficara em Vila Mariana. Agora, a Lapa,
tão chata, que é que tinha a Lapa? (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 126, grifo
nosso)

O narrador lamenta ter ficado sem as melhores coisas de sua vida, principalmente, sem
seu pai e seu amigo, que o ajudava a se distrair nos dias de chuva. O narrador faz uso do
termo “bobeando” na expressão destacada “Se Duda estivesse comigo eu não estaria
bobeando”, para indicar que o amigo o ajudava a passar o tempo de forma mais produtiva.
Ele também gostava de recordar os tempos que seu pai ficava em casa. Esses momentos
eram muito divertidos:

Papai vivia de brincadeira e de caçoada quando estava em casa, e eu o


ajudava a caçoar de mamãe, do que ele muito gostava. Mamãe ia
aguentando, aguentando, com aquele jeito calmo que tinha. Acabava
sempre estourando, perdia a resignação de criatura pequena, baixinha,
botava a boca no mundo:
— Dois palermas! Não sei o que ficam fazendo em casa [...]
96

Eu achava tão engraçado, me assanhava em liberdades não dadas.


— Exatamente.
Então, o chinelo voava. Eu apanhava e papai ficava sério e saía. Ia ver
o caminhão, ia ao bar tomar cerveja, conversar, qualquer coisa. Naquele
dia não falava mais nem com ela, nem comigo (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 127, grifo nosso).

Era boa a relação com o pai, que se mostrava uma pessoa acessível, apesar dos poucos
momentos que passava em casa; a companhia dele parecia agradável. A mãe, diferente
do pai, apesar de estar sempre por perto, era reservada e de poucas brincadeiras. A
expressão “Acabava sempre estourando [...] botava a boca no mundo” refere-se a uma
hipérbole que o autor utiliza para explicar que a mãe, apesar discreta, tinha um
temperamento que poderia se alterar repentinamente.

Meninão do Caixote relata como iniciou seu envolvimento com o jogo de sinuca e como
se deu o encontro com Vitorino. Em certo dia meio chuvoso, o tédio tomou conta do
garoto; a mãe pediu-lhe para ir comprar leite. Ele questionou o fato de estar chovendo,
mas acabou indo. A mãe, como outras vezes, estava bastante nervosa por causa da
ausência do pai:

Veio uma repreensão incisiva. Mamãe nervosa comigo, por que sempre
nervosa? Quando papai não estava, os nervos de mamãe ferviam. Tão
boa sem aqueles nervos [...]
Peguei o litro e saí (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 128, grifo nosso).

A expressão metafórica destacada em uma situação interacional é notada por meio da voz
do narrador-protagonista: “os nervos de mamãe ferviam. Tão boa sem aqueles nervos
[...]”. A expressão também comprova que não se tratava apenas de um momento de
desabafo por conta de uma situação isolada; o nervosismo da mãe era constante por causa
da ausência do pai. Era nesse contexto que corria o dia a dia do garoto. Ele tenta não
contrariá-la, não deixá-la apreensiva, pois acreditava que ela era bem melhor quando não
estava nervosa.

O garoto sai em busca do leite, porém não o encontra no bar mais próximo. Então, resolve
ir a outro bar:

O remédio era ir buscar ao Bar Paulistinha, onde eu nunca havia


entrado. Quando entrei, a chuvinha renitente engrossou, trovão, trovão,
97

um traço rápido cor de ouro lá no céu. O céu ficou parecendo uma casca
rachada. E chuva que Deus mandava.
— Essa não!
Fiquei preso ao Bar Paulistinha. Lá fora, era vento que varria. Vento
varrendo chão, portas, tudo. Sacudiu a marca do ponto do ônibus,
levantou saias, papéis, um homem ficou sem chapéu. Gente correu para
dentro do bar.
— Entra, entra! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 129, grifo nosso)

O garoto ficou sem ter como sair do estabelecimento por causa de uma tempestade que
se formou: “E chuva que Deus mandava”. Esta frase feita, utilizada pelo autor em outros
contos, tem sentido religioso e chama atenção do leitor para um fato que vai além do
plano físico. Ademais, em outra expressão, o narrador faz uso da personificação, figura
de linguagem que comprova o ocorrido: “era vento que varria”. Para um garoto, era
perigoso sair do local para voltar para casa. Então, resolveu ficar ali, quietinho,
observando alguns homens que jogavam sinuca:

— Posso espiar um pouco?


Um homem feio, muito branco, [...] largou um sorriso aberto:
— Mas é claro, garotão!
Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos,
leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me
pareceu muita.
O homem dos olhos sombreados, sujeito muito feio, que sujeito mais
feio! [...]
Seus olhos iam na pressa das bolas na mesa, onde ruídos secos se batiam
e cores se multiplicavam, se encontravam e se largavam,
combinadamente. [...]
— Larga a brasa, rapaz! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 129-130, grifo
nosso)

Ao pedir permissão para assistir ao jogo de sinuca, foi surpreendido por uma pessoa cuja
aparência não agradou ao menino, era um “[...] sujeito muito feio, que sujeito mais feio”,
mas que ratou menino com respeito e até demonstrou certo carinho a ponto de chamá-lo
de “garotão”. Isso fez com que o garoto ficasse sem graça, pois não estava acostumado a
ser bem tratado. Esse homem era Vitorino, um exímio jogador de sinuca.

Vitorino surpreendia cada vez mais o garoto, que observava a forma como o homem
conduzia a jogada: “— Larga a brasa, rapaz!”. Essa expressão popular, utilizada em um
contexto conversacional de interação entre parceiros de jogo de sinuca, significa siga em
frente, continue, prossiga. Ao final, o garoto não entendeu o que havia acontecido, mas
98

ficou curioso. Aquele lugar, o Paulistinha, tornou-se seu refúgio, apesar de não ser
apropriado para crianças:

As tardes e os domingos no canto do banco espiando a sinuca. Ali, ficar


quieto, no meu canto, como era bom!
[...]
Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou
abespinhado de Vitorino, chapéu, voz, bossa, mãos, seus olhos frios
medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.
Saía, fazia que ia brincar. Ficava lá no meu canto, procurando
compreender. Os homens brincavam:
– O meninão!
Eu sorria, como que recompensado. Aquele dera pela minha presença.
Um outro virava-se:
– O meninão, você está aí?
Meninão, meninão, meu nome ficou sendo Meninão (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 131-132, grifo nosso).

Meninão do Caixote passou a ser frequentador assíduo daquele estabelecimento; cada vez
mais admirava Vitorino: “Vitorino era o dono da bola. Um cobra”. Esta expressão
metafórica é utilizada para expressar o poder e a perspicácia de uma cobra. Em um
contexto interacional, o narrador esclarece, por meio da figura de linguagem, o valor que
tinha o amigo Vitorino no jogo de sinuca. Ele dominava jogadas, intimidava parceiros e
ludibriava o adversário, pois era mestre na picardia e nas falcatruas.

Em casa, a mãe só tem tempo para seus afazeres. O garoto não a julga, nem lhe pede nada,
porém chega a compará-la com Vitorino:

Os pés de mamãe na máquina de costura não paravam.


Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das
mesas, onde passeava sempre, estava em todas, a dolorosa branca, bola
que cai e castiga, pois o castigo vem a cavalo.
Para mim, moleque fantasiando coisas na cabeça...
Um dia peguei no taco.
Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais.
Porque Vitorino era um bárbaro, o maior taco da Lapa e uma das
maiores bossas de São Paulo. Quando nos topamos Vitorino era um
taco. Um cobra. E para mim, menino que jogava sem medo, porque era
um menino e não tinha medo, o que tinha era muito jeito, Vitorino
ensinava tudo, não escondia nada (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 132-133,
grifo nosso).

Vitorino conseguia preencher o vazio que ficara em virtude da ausência do pai e do


distanciamento causado pelo excesso de trabalho da mãe. Contudo, em se tratando de
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jogo, um dia se ganha, outro se perde. Nem sempre são só vitórias. Existia também muitas
derrotas, “pois o castigo vem a cavalo”. O autor utiliza esse provérbio para explicar que,
por mais que alguém seja o maior e o melhor jogador, o castigo vem rápido, quando
menos se espera.

Nesse momento do conto, o provérbio expressa a seriedade em se entregar de corpo e


alma a algo efêmero como é o caso dos jogos de sinuca. Entre suas várias funções, o
provérbio exerce um papel importante nos contos de João Antônio, pois facilita a
compreensão e leva o leitor a uma reflexão a respeito do que está sendo apresentado.
Segundo Obelkevich (1997: 45), “os provérbios são ‘estratégias para situações’, mas
estratégias com autoridade, que formulam uma parte do bom senso de uma sociedade,
seus valores e a maneira de fazer as coisas”.

O garoto estava encantado com seu mais novo “velho” amigo “Porque Vitorino era um
bárbaro, o maior taco da Lapa”, ele o considerava superior aos demais: “Um cobra”.
Então, guiado por ele, inicia-se uma trajetória de fantasias, “moleque fantasiando coisas
na cabeça [...]”. As expressões metafóricas e comparativas são empregadas pelo narrador
como instrumento de argumentação e os termos comparativos demonstram a importância
que o garoto dava ao amigo Vitorino. O garoto o comparava com o maior taco do mundo.
Lopes (2006: 96) explica que a comparação tem força argumentativa e que se estabelece
“quando entre um termo comparante e um comparado, existe uma relação de
inferioridade, superioridade ou igualdade”.

O menino começa a jogar nos bilhares escondidos da polícia porque era apenas uma
criança:

Só joguei em bilhares suburbanos onde a polícia não batia, porque era


um menino. Mas minha fama correu, tive parceirinhos que vinham,
vinham de muito longe à Lapa para me ver. Viam e se encabulavam. E
depois carregavam nas apostas. Fama de menino-absurdo, de máximo,
de atirador, de bárbaro. Eu jogando, as apostas corriam, as apostas
cresciam, as apostas dobravam em torno da mesa. E os salões se
enchiam de curiosos humildes, quietos, com os olhos nas bolas. Era um
menino, jogava sem medo (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 133).

Pessoas de vários lugares vinham para conhecer o garoto. Pelo fato de ser de pequena
estatura, Vitorino providenciou um caixote de leite condensado para que o garoto pudesse
100

visualizar melhor o jogo. Assim, começou a ter outra perspectiva das jogadas e passou a
ser chamado de Meninão do Caixote.

O caixote arrastado para ali, para além, para as beiradas da mesa.


Minha vida ferveu. [...] O trouxa, a marmelada, o inveterado, traição,
traição. O Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o
joguinho? Meus olhos se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas
havendo entusiasmo, minha vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-
me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo
conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava
da minha charla [...]
Na sinuca, Vitorino e eu, duas forças. Nas rodas do joguinho, nas
curriolas, apareceu uma frase de peso, que tudo dizia e muito me
considerava.
– Este cara tá embocando que nem Meninão do Caixote!
Combati, topei paradas duras. Combati com Narciso, com Toniquinho,
Quaresmão, Zé da Lua, Piauí, Tiririca (até com Tiririca!), Manecão,
Taquara, com os maiores tacos do tempo, nas piores mesas de subúrbio,
combati e ganhei (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 134-135, grifo nosso).

Meninão foi melhorando a cada dia e sua fama foi aumentando ainda mais. Jogou com os
melhores e maiores jogadores da época. Realizou façanhas inacreditáveis aos olhos dos
espectadores. O narrador emprega expressão metafórica “Minha vida ferveu” para fazer
referência à mudança que ocorreu de forma repentina, principalmente em se tratando de
um garoto. Em uma situação contextual, por vezes, a metáfora serve de base para elucidar
o que estava, de fato, acontecendo.

Contudo, em casa as coisas não andavam bem:

Umas coisas já me desgostavam.


Jogava escondido, está claro. Brigas em casa, choro de mamãe. Eu não
levantava a crista não. Até baixava a cabeça.
– Sim senhora.
Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando
aulas, pingando safadezas. O colégio me enfarava, era isto. Não
conseguia prender um pensamento, dando de olhos nos companheiros
entretidos com latim e matemática.
— Cambada de trouxas! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 135-136, grifo
nosso)

O relacionamento com a mãe não era bom. Faltavam diálogo e compreensão de ambas as
partes. Apesar disso, ele tentava ser um bom filho, esforçava-se para não lhe responder:
“Eu não levantava a crista não”; ele ouvia tudo quieto, mas era difícil dar ouvidos ao que
a mãe dizia, pois o jogo ocupava grande parte de seu tempo. Apesar de não ter culpa, pois
101

havia sido levado pelas circunstâncias, tentava retroceder, porém era impossível. A frase
feita em destaque diz respeito a uma expressão popular utilizada na época. Ela se refere
a uma posição de humildade diante de uma figura superior, a da mãe. Embora não desse
a devida importância à fala da mãe, ele a respeitava.

Na escola, também não havia empenho por parte do garoto. Seus valores estavam
invertidos. O que poderia ser o ideal para um jovem, tinha se tornado um martírio. Não
conseguia fazer amizades nem se dedicar aos estudos: “– Cambada de trouxas!”. A
expressão injuriosa sintetiza o sentimento de desprezo em relação aos colegas de classe.

A figura da mãe passa a ter outro sentido: antes era vista pelo menino como uma pessoa
repressora; agora a fragilidade dela assim como seu choro o comoviam. A mãe sofria
porque sabia que havia perdido o filho para o jogo, e Vitorino era o responsável:

Vitorino era meu patrão. Patroou partidas caríssimas, partidas de


quinhentos mil réis. Naquele tempo, quinhentos mil réis. Punha-me o
dinheiro na mão, mandava-me jogar. Fechava os olhos que o jogo era
meu. E era.
— Vai firme!
Às vezes, jogo é jogo, a vantagem do adversário era enorme. E havia
três bolas na mesa. Apenas. O cinco, o seis e o sete. Meus olhos
interrogavam os olhos sombreados de Vitorino. Sua mão subia no velho
gesto, o indicador batendo no médio e no ar ficava o estalo. Enviava:
— Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão! – e eu beliscava,
mordia, furtava, tomava, entortava, quebrava.
Vitorino era o patrão, eu ganhava, dividíamos a grana.
Aquilo. Aquilo me desgostava. Ô divisão cheia de sócios [...]
Ganhava um conto de réis, ficava só com duzentos. Estava era
sustentando uma cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas
minas, seus...
— Um dia mando tudo pra casa do diabo.
Não mandava ninguém. Vitorino trocava as bolas, mexia os pauzinhos,
fazia negaça, eu aceitava a sua charla macia (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 136-137, grifo nosso).

Meninão do Caixote não estava feliz com aquela vida. Ele ganhava muito dinheiro, mas
também precisava pagar muitas coisas aos outros, era a regra do lugar; caso contrário,
não seria aceito. O que ganhava mal dava para se alimentar. Por vezes, pagava boas
refeições para os outros e comia sanduíche. Quem mandava era Vitorino. Armava
jogadas: “Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão!”. Ele obedecia à risca ao
comando. Essas frases feitas pertencentes a uma situação contextual são expressões
populares usualmente empregadas nas rodas de sinuca. Trata-se de metáforas que
traduzem a seriedade de uma disputa entre os jogadores.
102

O protagonista tinha vontade de retroceder: “— Um dia mando tudo pra casa do diabo”.
Essa expressão popular de sentido religioso, que revela uma revolta interior por parte do
protagonista em relação à vida que estava levando, traduz a vontade de abandonar tudo e
voltar a ter uma vida simples de filho dedicado e estudioso. Todavia, Vitorino sempre
acabava convencendo-o a mudar de ideia: “eu aceitava a sua charla macia”. Quem mais
sofria era a mãe:

O jogo acabava, eu pegava os duzentos mil réis, tocava para casa. Ia


murcho. Haveria briga com mamãe.
Jogo e minas.
E papai estando fora, eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro. Eu
evoluí um truque para a janela do meu quarto em noite alta eu chegando.
Meter o ferro enviesado, por fora; destravar o fecho vertical...
Mamãe me via chegar, e às vezes fingia não ver. Depois, de mansinho,
eu me deitava. E depois vinha ela e eu fingia dormir. Ela sabia que eu
não estava dormindo. Mas mamãe me ajeitava as cobertas e aquilo bulia
comigo. Porque ia para o seu canto, chorosa.
Mamãe, coitadinha (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 137-138).

Meninão chegou ao ponto de não se importar, tanto fazia ganhar ou perder. Não havia
mais o prazer do início. Por várias vezes, parou de jogar, tentou se regenerar; tornar-se
uma pessoa de bem, uma criança como as outras. Em casa ficava tudo bem. Sua mãe já
conseguia voltar à rotina. Contudo, Vitorino marcava jogos para ele, e por mais que
tentasse se esquivar de suas investidas, o homem sabia como convencê-lo.

Em uma dessa voltas, Vitorino marcou jogo com Tiririca, um jogador quase invicto, que
tinha fama de não parar jogo que estava perdendo. Mas acabou perdendo para Meninão
do Caixote em uma partida que durou sete horas. “— Esse moleque não é de Deus!”
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 139).

O adversário de Meninão do Caixote, Tiririca, utiliza a expressão de cunho religioso


“Esse moleque não é de Deus!”. Valendo-se do lado espiritual, de sua crença, remete-
nos a dois extremos: Deus ou diabo. Ele emprega essa expressão como forma de atribuir
ao sobrenatural a culpa, principalmente por suas derrotas.

Depois de algum tempo que o menino havia se regenerado, seu último adversário volta e
pede uma nova partida, em atitude de desagravo:

Bem. Voltava agora, com a sede e o dinheiro, exigindo o reencontro,


prometendo me estraçalhar.
— Quero a forra.
103

Vitorino me buscou. Eu não queria mais nada.


[...]:
— Não dá pé.
Vitorino cortou com um agrado rasgado [...]
— Nego, não dá pé.
Tiririca. A conversa já mudou. O malandro em São Paulo, querendo
jogo comigo, aquilo me envaidecia... Tiririca me procurando.
Mas caí no meu tamanho, afrouxei, quase três meses sem pegar no taco,
fora de forma, uma barata tonta, não daria mais nada.
— Que nada, meu!
Tiririca era um perigoso. Deveria estar tinindo.
— Mas você é a força!
Vitorino já me conhecia, aguentava, aguentava. Até que eu:
— Pois vou!
Ele se abriu no macio rebolado:
— Aí, meu Meninão do Caixote! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 140-141,
grifo nosso)

A princípio, tentou ser forte e resistir. Não pretendia voltar em nenhuma hipótese. Tentou
convencer Vitorino de que havia perdido o jeito por ter passado muito tempo sem jogar:
“quase três meses sem pegar no taco, fora de forma, uma barata tonta”, provavelmente,
não conseguiria derrotar o adversário. Mas Vitorino buscou argumentos que acabaram
convencendo o garoto a retornar à mesa de jogo: “— Mas você é a força!”.

As frases feitas em destaque referem-se a expressões populares frequentemente utilizadas


entre jogadores de sinuca. Essas expressões foram empregadas mediante um diálogo em
um contexto interacional em que o principal teor da conversa refere-se a um convite de
revanche feito pelo pior adversário do garoto.

O jogo foi marcado para um domingo, fazia sol. Meninão do Caixote tomou um ônibus
para Vila Leopoldina. Ficou imaginando se aquele não seria seu último jogo; só estava
fazendo aquilo pelo amigo Vitorino, por ele mesmo, nem iria:

O último jogo. O jogo era em Vila Leopoldina, que assim marcou


Tiririca. No ônibus uma coisa ia comigo. Era o último, perdesse ou
ganhasse. Bem falando, eu não queria nem jogar, ia só tirar uma asma,
quebrar Tiririca duma vez, acabar com a conversa. Não por mim, que
eu não queria jogo. Mas pelo gosto de Vitorino, da curriola, não sabia.
Saltei na rua de terra.
[...]
Prometera voltar a casa para o almoço. Claro que voltaria. Tiririca era
duro, eu sabia. Deixá-lo. Eu lhe quebraria a fibra. Fibra, orgulho, teima,
eu mandaria tudo para a casa do diabo. Já havia mandado uma vez...
A curriola estava formada quando o jogo começou.
O salão se povoou, se encheu, ferveu. Gente por todo o canto, assim era
quando eu jogava e os homens carregavam apostas entre si. O dono do
104

bar me sorria, vinha trazer o giz americano, vinha me adular. Eu cobra,


mandão. As mãos de Vitorino atiçavam.
— Larga a brasa, Meninão! Dá-lhe, Meninão! Vamos deixar esse
cara duro, durinho. De pernas pro ar!
Desacatos fazem parte da picardia do jogo. E na encabulação e no
desacato Vitorino era professor.
[...] Uma vontade, desesperada me crescia, me tomava por inteiro [...]
Tiririca era um sujeito de muito juízo. Mas na velha picardia, eu lhe fui
mostrando aos poucos os meus dentes de piranha. E quando o mulato
quis embalar o jogo a linha de frente era minha.
Uma e meia no relógio do bar e eu pensei em mamãe. Ali, rodando a
mesa, o caixote para aqui, para ali, como as horas voavam!
Começamos, por fim, as partidas de um conto (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 142-143, grifo nosso).

As expressões populares utilizadas pelos jogadores revelam o teor expressivo e coloquial


de uma linguagem correspondente à situação contextual vivida. Trata-se de temas do
cotidiano repletos de elementos próprios de um repertório que, segundo Urbano (2011),
referem-se à “fraseologia popular”, mas que pertencem, especificamente, ao universo dos
jogadores de sinuca. O narrador faz uso de expressões metafóricas, além de utilizar gírias
como elementos de interação entre o mestre e seu parceiro de jogo, para expressar o
entusiasmo e a confiança de que aquela aposta já estava ganha.

A primeira partida havia terminado, já há uma hora e meia. Meninão havia prometido à
mãe que chegaria para o almoço. Ele pensou em liquidar de uma vez aquele jogo e voltar
para casa. Ele foi ao banheiro e, quando retornou, estava irritado, queria acabar de vez
com aquele jogo. Então, preferiu iniciar rapidamente determinando de quem seria a saída:

— Vai a dois contos! Se eu perder, paro o jogo. Tiririca parar o jogo?


Parava nada, [...]
— Vou te quebrar, moço. Vou te roubar depressinha! O mineiro
dissimulava a raiva:
— O jogo é jogado [...]
Puxei o caixote, ajeitei, giz no taco, bastante giz, giz americano, do
bom. E saí pela bola cinco!
Uma saída maluca, Vitorino reprovou. Mas o cinco caiu. Vitorino
suspirou:
— Que bola!
A curriola se assanhou, cochichos, apostas se dobravam.
Elogiado, embalado, joguei o jogo. Joguei o máximo, na batida em que
ia, Tiririca nem teria tempo de jogar, que eu ia fechar o jogo, acabar
com as bolas. Ia cantando os pontos:
— Vinte e seis.
[...]
— Este bichinho se chama Meninão do Caixote! Tiririca estatelado,
escorava-se ao taco. Batido, batidinho.
105

[...]
— Não cai, morfética!
A bola caía. Eu ia embocando e cantando:
— Setenta e um [...]
Duas bolas na mesa – o seis e o sete. Dei de olhos na colocação da
branca, nas caçapas, nas tabelas, e me atirei. Duas vezes meti o seis e o
sete meti duas vezes. Fechei a partida com noventa pontos; foram vinte
minutos embocando bolas, um bárbaro, embocando, contando pontos e
Tiririca não teve chance. Ali, parado, olhando, o taco na mão.
O jogo acabou. Primeiras discussões em torno da mesa, gabos, trocas
de dinheiro (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 143/144/145, grifo nosso).

As expressões destacadas “— Vou te quebrar, moço”, “— O jogo é jogado [...]” e “—


Não cai, morfética!” referem-se a expressões metafóricas pertencentes a um contexto
interacional em que estão inseridos frequentadores de bilhares e jogadores de sinuca ou,
ainda, conhecedores desse universo. Trata-se de expressões que têm carga semântica com
acentuada expressividade, por isso conferem credibilidade e autoridade aos dizeres.

Depois de muito tempo, o garoto consegue fechar o jogo, carregado de ousadias. Era uma
vitória que significava mais para o amigo Vitorino do que para ele próprio. Naquele
momento, quase não conteve as lágrimas ao ver sair das cortinas a mãe, sem dizer uma
só palavra:

Vinha chorosa de fazer dó. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha


miudinha, encolhida, trazendo uma marmita. Não disse uma palavra,
me pôs a marmita na mão.
— O seu almoço.
Um frio nas pernas, uma necessidade enorme de me sentar. E uma coisa
me crescendo na garganta, crescendo, a boca não aguentava mais, senti
que não aguentava. Ninguém no meu lugar aguentaria mais. Ia chorar,
não tinha jeito.
— Que é? Que é isso? Ô Meninão! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 145)

A emoção que o protagonista sentiu naquele momento foi tão intensa, que quase não
conseguiu se conter. Fez um juramento, mas, dessa vez, em nome de Deus:

— Me deixa.
Falei baixo, mais para mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco.
Tivessem paciência. Mas agora eu estava jurando por Deus.
Larguei as coisas e fui saindo. Passei a cortina, num passo arrastado.
Depois a rua. Mamãe ia lá em cima. Ninguém precisava dizer que
aquilo era um domingo [...] Havia namoros, havia vozes e havia
brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei,
apertando, chispei. Ia quase chegando.
Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E
fomos subindo a rua (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 145-146, grifo nosso).
106

Meninão do Caixote, calado, foi na direção da mãe. No momento em que ambos se


tocaram, marcaram o recomeço. Dessa vez, se dependesse dele, ninguém conseguiria
desfazer o laço que os ligava. O narrador marca essa união utilizando a personificação
que, segundo Fiorin (2011: 123), tem traços semânticos que atribuem qualidades humanas
a elementos não humanos, como no segmento “Nossas mãos se acharam”, em que é
intensificado o gesto de mãe e filho saírem de mãos dadas.

3.9 Malagueta, Perus e Bacanaço

Corria no Joana d’Arc a roda do jogo de vida,


o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca.
Cada um tem sua bola, que é uma numerada e que não pode ser
embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele
se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens
nas bolas (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 164).

O conto Malagueta, Perus e Bacanaço retrata as aventuras de três protagonistas que


perambulam pelos bairros de São Paulo, à noite, à procura de parceiros dispostos a entrar
no jogo. Um jogo em que a trama e a picardia são frequentes; nele, há três malandros:
“Eram três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira. Sofredores” (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 178), que não têm nada a perder. A realidade deles envolve conseguir o sustento
por meio da malandragem.

Para Zeni (2016), a malandragem apresentada no conto é vista como uma forma de
assumir uma identidade que leva os protagonistas a adotarem determinado estilo de vida:

[...] a família e malandragem mantêm uma relação de correspondência,


compondo também o jogo de disfarce e dissimulação necessários para
sobreviver na situação que o conto narra. A malandragem é apresentada
[...] como um estilo de vida e uma estratégia de sobrevivência que tende
à selvageria (como atestam as inúmeras designações zoomórficas com
que os personagens são identificados), mas se mostra também como
uma organização social com forte correspondência com a composição
107

familiar, privada e afetiva, com consequências e expressão literárias


interessantes (ZENI, 2016: 216).

Segundo o autor, assumir o papel diante da sociedade com essa identidade de malandro é
estabelecer uma relação entre aquele que luta pela sobrevivência com aquele que leva
uma vida de boemia e que tem o poder de causar no leitor um sentimento de empatia e ao
mesmo tempo de repúdio (ZENI, 2016).

Lapa10

A narrativa em terceira pessoa tem início com Bacanaço, sujeito libidinoso e desregrado,
com fama de aproveitador, que gostava de arranjar confusão e não levava desaforo para
casa. Além disso, costumava explorar mulheres. Encontrou pela primeira vez Perus em
um bar: um sujeito tímido, de 19 anos, morador de Perus, por isso o apelido, carente e
ingênuo que se envolvia frequentemente em ciladas e vivia tentando fugir delas:

O engraxate batucou na caixa mostrando que era o fim.


Bacanaço se levantou, estirou uma nota ao menino. Os olhos dançaram
no brilho dos sapatos, foram para as cortinas verdes.
Vestido de branco, com macio rebolado, Bacanaço se chegou:
— Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou está a passeio?
O menino Perus encolheu-se no blusão de couro. Os dedos de Bacanaço
indo, vindo, atiçando. Desafiavam.
— Está a jogo ou a passeio?
[...]
— Que nada! Tou quebrado, meu [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 149,
grifo nosso).

A expressão destacada “— Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou está a passeio?” refere-
se a uma forma de convidar um parceiro para o jogo. O narrador utiliza-se de uma
expressão popular dentro de um contexto interacional e ao mesmo tempo conversacional
para mostrar que, apesar de parecer comum a todos, trata-se de um código empregado
entre os jogadores de sinuca. Era usual ouvir essa expressão nos bilhares e casas de jogos.
Às vezes, o parceiro não tinha condições financeiras ou não estava disposto a encarar a
partida, então, apresentava uma desculpa: “— Que nada! Tou quebrado, meu [...]”. Essa

10
O conto Malagueta, Perus e Bacanaço desenvolve-se segundo o percurso que os três personagens seguem
na cidade de São Paulo, a começar pelo bairro da Lapa, depois Água Branca, em seguida, Barra Funda,
centro da Cidade, Pinheiros e, por fim, o retorno ao bairro da Lapa.
108

frase feita tem relação com a expressão metafórica utilizada como convite ao jogo e
empregada como resposta. Essa resposta foi utilizada por Perus, quando convidado por
Bacanaço para participar de uma partida, porém o menino não poderia corresponder
porque estava sem dinheiro.

Bacanaço e o menino Perus tornaram-se amigos inseparáveis. Costumavam se encontrar


quase todas as tardes. Às vezes, acabavam de acordar e já saiam. Levavam uma vida de
vadiagem, sem compromissos ou responsabilidades:

Os desafios goram, desembocam num bom entendimento. Perus e


Bacanaço, de ordinário, acabavam sócios e partiam. Então, conluiados,
nem queriam saber se estavam certos ou errados.
Funcionavam como parelha fortíssima, como bárbaros, como
relógios. Piranhas. Lapa, Pompeia, Pinheiros, Água Branca [...] Ou em
qualquer muquinfo por aí, porque todo muquinfo é muquinfo, quando
se joga o joguinho e se está com a fome. Negaça, marmelo, trapaça,
quando iam os dois. Um, o martelo; o outro era o cabo (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 149-150, grifo nosso).

Os dois tornaram-se parceiros, principalmente nas trapaças, “Funcionavam como parelha


fortíssima”. Essa expressão comparativa empregada pelo narrador dentro do contexto
interacional mostra que um completava o outro e que, juntos, eram mais fortes. Viviam
perambulando pelos bairros que ficavam no entorno do centro de São Paulo e não se
importavam: “todo muquinfo é muquinfo”. A repetição do termo na expressão é um
recurso expressivo que serve para enfatizar a ideia de que entravam em qualquer lugar.
Se estivessem juntos, sentiam-se seguros: “Um, o martelo; o outro era o cabo”. Esta frase
é uma expressão metafórica em que há uma analogia entre um utensílio (martelo) e seu
respectivo complemento (cabo) como a exemplo de panela e tampa. Com o intuito de
destacar uma relação de amizade, é empregada em referência a duas pessoas que fazem
tudo juntas:

Mas se cumprimentavam aos palavrões. Quando se topavam, por


malandragem ou negaça do joguinho, se encaravam. Picardia. E quem
não soubesse diria que acabariam se atracando. Um querendo comer
o outro pela perna, dizendo desconsiderações.
Chegava-lhes depois um risinho safado empurrando-lhes a gana para
bem longe. Já não se estranhavam. Faziam sociedade, canalhas
igualmente, catavam juntos as virações nas rodas do joguinho.
Àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole
[...] Mas por umas ou por outras estavam sem capital. Os dois
109

quebrados, quebradinhos. Sem dinheiro, o maior malandro cai do


cavalo e sofredor algum sai do buraco. Esperar maré de sorte? A
sorte não gosta de ver ninguém bem (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 150,
grifo nosso).

Quando se encontravam, faziam tantas brincadeiras que chegavam a incomodar as


pessoas por perto: “Um querendo comer o outro pela perna”, ou seja, um querendo levar
vantagens sobre o outro. Os diálogos construídos em situações contextuais eram
marcados por ofensas morais e picardias entre os dois amigos. O autor emprega
metáforas, como “boquejavam a prosa mole [...]”, para designar atitudes infantis que
ocorriam no contexto em que estavam. Depois davam um “risinho safado” e saiam juntos
se divertindo.

O autor comenta que, em determinado momento, no horário de sempre, as coisas não


estavam bem para os dois desocupados, “boquejavam a prosa mole”, as conversas não
eram agradáveis, muito menos produtivas. Estavam ali somente para passar o tempo ou
“jogar conversa fora”. “Os dois quebrados, quebradinhos”, e o maior interesse deles era
o jogo, porém ambos estavam sem dinheiro. Não podiam estar bem-dispostos em uma
situação de tamanha escassez. Assim, não havia como ficarem animados, pois “Sem
dinheiro, o maior malandro cai do cavalo”. O provérbio é um recurso utilizado pelo autor
para expor a preocupação em se manterem economicamente e a condição em que estavam
os jogadores de sinuca naquele momento. D acordo com Nóbrega (2008: 114), os
“provérbios traduzem situações de vida que se tornam experiências condensadas em
frases cristalizadas que veiculam na vida cotidiana e se perpetuam na memória coletiva”.

A expressão “sofredor algum sai do buraco” reafirma a importância do recurso financeiro


e reforça a credibilidade do provérbio anterior. Não há quem possa se reestabelecer sem
ajuda financeira. Não adianta contar com a sorte: “Esperar maré de sorte? A sorte não
gosta de ver ninguém bem”, é preciso ir à luta, buscar uma solução e animar-se mesmo
diante das dificuldades. Nesse conto especificamente, o autor retoma expressões
metafóricas como forma de esclarecer seu ponto de vista em relação à busca de aventuras
e de dias melhores.

Conversando, os dois amigos chegam à conclusão de que não seria fácil enganar um
“trouxa” naquela noite, pois, apesar de haver “safados por todos os cantos”, não estavam
dispostos a jogar: “— Tão só na boca de espera, mora. Aqui é tudo lixo” (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 151). Bacanaço fica indignado por ver que aquelas pessoas só estavam
110

ali para passar o tempo, não se manifestavam para nenhuma partida séria. Além do mais,
não dava para contar com a sorte. Ele sabia que era preciso ir à luta. O autor emprega
figuras metafóricas como forma de reforçar, dentro do contexto, a sua opinião em relação
ao modo de agir dos “viradores”, como por exemplo, as expressões anteriores.

Como não havia nada mais útil para fazer, Bacanaço e Perus iniciam uma provocação.
Todos ficam atônitos, mas tudo não passa de brincadeira. O dono do bar pede que não
brinquem daquele jeito porque, se polícia aparecesse, haveria problemas, pois “— O
mister aí da casa não quer batifundo, mora” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 152), ou seja o
dono do bar, não queria ver confusão.

Ficaram sentados, jogando palitinhos e relembrando os ocorridos com os jogadores mais


antigos, por exemplo, como Bacalau levou vantagem em cima de Sorocabana:

Quem ganhou foi Bacalau, com aquele seu jeito de sonso, na batida
velha de quem não quer nada e joga só por jogar. Deu açúcar ao
freguês e ele veio depressinha. Então, Bacalau mordeu. Comia o
homem, comendo de gosto.
[...]
Mas Bacalau era um perigoso e tinha juízo, fintava na charla, mexia os
pauzinhos. [...]
E Bacalau perguntava-se: ‘Para que trouxa quer dinheiro?’. Bacalau
adoçou-o mais. Continuaram o joguinho e o malandro lhe mordeu os
últimos, folgando, devagar, quatro horas de jogo. Por último, dando
alarde ao desacato, manejava o taco com uma mão só e dava uma
lambujem, um partido de quinze pontos na bola dois. Era escandaloso.
Bacalau estava perdendo a linha que todo malandro tem. Não se faz
aquilo na sinuca. Vá que se faça dissimulada, trapaça, até furtos de
pontos no marcador. Certo, que é tudo malandragem. Mas desrespeitar
parceiro, não. A própria curriola se assanhou, desaprovando
Sorocabana, coitado. Ficava na beirada da mesa, atrapalhando-se com
o cigarro, tirando as bolas, falando sozinho.
Mas o castigo vem a cavalo.
Bacalau quis ser mais malandro que a malandragem e isto o perdeu
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 152-153, grifo nosso).

Bacalau era um jogador que gostava de levar vantagem sobre outros jogadores. A
expressão popular “Deu açúcar ao freguês e ele veio depressinha” refere-se a uma
situação de embate entre adversários que são comparados a animais ingênuos. O autor faz
uso da metáfora como forma de mostrar o requinte das artimanhas nas quais os jogadores
estavam envolvidos. Aplicou uma “dissimulada”, ou seja, enganou o adversário, que caiu
na cilada do jogador. Já a expressão “Comia o homem, comendo de gosto” refere-se a
111

uma situação interacional a que os adversários são expostos, muitas vezes sabendo que
corriam o risco de acabar sem nada.

Não havia preocupação com a ética do jogo: “Bacalau estava perdendo a linha que todo
malandro tem” e continuou menosprezando o adversário. Ele notou que estava dando
certo e continuou enganando seu rival: “Bacalau adoçou-o mais”. Até mesmo as pessoas
que estavam ali só assistindo indignaram-se com tal atitude. “A própria curriola se
assanhou”. O provérbio “Mas o castigo vem a cavalo” significa que a vingança logo
chegaria. Esse provérbio faz referência a um provável acerto de contas com a justiça pelo
fato de Bacalau tentar ser o mais esperto; isto lhe custaria muito. Nesse caso, o autor
emprega o provérbio como forma de tentar esclarecer um fato que teria consequências
futuras. Talvez por não ser possível argumentar a respeito do ocorrido, prefere resumir
tudo em forma de provérbio. Algum tempo depois, alguém o entregaria à polícia.

A conversa vai tomando outro rumo. Bacanaço parecia saber das coisas. Apesar de Perus
não ficar para traz na malandragem, preferia ouvir quieto:

Era quem primeiro cantava de galo. Bacanaço não olhava na cara dos
desconhecidos. Impunha-se-lhes oprimindo, apequenando. Mandava
primeiro, uma ruga nas sobrancelhas, sempre abespinhado. Desses que
quando a conversa não interessa vão mandando para a casa do diabo.
E se houver reaproximação já batem, já xingam, já correm o pé, dão
cabeçada, deixam o sujeito estirado na calçada. Agora, se gostasse,
gostava. Era igual, amigão. Ninguém botasse a mão em amigo seu.
Porque seria como mexer com sua cara ou bulir com amiga sua. Assim
era Bacanaço com o menino Perus. E por isso o menino o admirava
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 154-155, grifo nosso).

Perus tinha muito respeito e admiração por Bacanaço, mesmo esse tendo fama de não
levar desaforo para casa. A expressão popular “Era quem primeiro cantava de galo”,
empregada pelo narrador, tem sentido metafórico e remete a uma pessoa autoritária e
dominadora que tem por costume subjugar aquele que venha a contrariá-lo. Ele
costumava tomar todas as decisões, e quando tinha algo a resolver, resolvia. Tinha pouca
paciência, indignava-se com facilidade. Caso fosse contrariado, a forma que encontrava
para resolver o problema era esta: “vão mandando para a casa do diabo”. O narrador
utiliza-se de uma expressão de agravo em uma situação contextual para evidenciar a falta
de paciência que o personagem tinha em relação às pessoas em situações de conflito.
Assim é que solucionava seus dilemas. Contudo, era muito fiel àqueles de quem gostava.
112

O tempo foi passando e eles ficaram por ali. Enquanto a noite se aproximava, a cidade foi
ganhando outro formato, outras cores, por conta das luzes que começavam a surgir:

A Lapa trocava de cor.


Um pensamento bateu-lhe de repente:
— E Malagueta?
Em que presepada ter-se-ia enfiado o velho sem-vergonha, esmoleiro,
cara-de-pau?
Meia-volta, andou.
Perus e Bacanaço entristeciam no banco lateral. Quebrados,
quebradinhos. O menino Perus repetia cigarros fornecidos por
Bacanaço e o mulato espiando mesas, abespinhado.
Ali, de ordinário, pingava um ou outro joguinho bom. Mas onde há
jogo bom, piranha vem morder. Naquele salão da Lapa faziam ponto
malandros finos de sinuca, escorregados de outros lados da cidade.
Então, safados infestavam o salão e aquela boca do inferno virava um
poço de piranhas.
Aquele dia era desses.
À noitinha, grupos de estudantes encheram o salão com jogos a leite-
de-pato. Não jogavam a dinheiro. Algazarra, um barulhão, mas não
jogavam a dinheiro. Aquilo faziam todos os dias, antes das aulas
noturnas
Bacanaço se chateava com os frangalhos e levantava-se. Machucava-
os:
— Vocês são é de coisa nenhuma. Fica aí toda a curriola nesse pé-pé-
pé... pé-ré-pé-pé, fazendo o quê? Punheta? Um chove-não-molha do
capeta! Vamos lá no jogo valendo uma nota! (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
157, grifo nosso)

Bacanaço, além de ter temperamento forte, era rude ao tratar as pessoas; era um sujeito
hostil e mal-educado. Observava com indignação os estudantes, que ficavam no boteco
por pura diversão. Isso lhe causava muita revolta porque, para ele, o jogo não era uma
simples diversão; era algo sério, e as pessoas que frequentavam o lugar apenas para passar
tempo estavam atrapalhando.

O jogador experiente perdia a paciência com os estudantes, que não jogavam de verdade:
“Um chove-não-molha do capeta!”. A expressão popular revela uma situação contextual
desfavorável aos jogadores de sinuca em relação aos estudantes que estavam ali para se
divertir. O narrador utiliza-se dessa expressão injuriosa para resumir seu sentimento de
revolta e extravasar suas emoções.

Contudo, sabia que, a qualquer momento, os apostadores, ou os “otários”, apareceriam:


“Mas onde há jogo bom, piranha vem morder”. Essa expressão refere-se aos jogadores de
sinuca, verdadeiras piranhas em busca de jogo, ou seja, as piranhas estavam dispostas a
113

morder e a levar sempre o melhor: “e aquela boca do inferno virava um poço de piranhas”,
um querendo tirar proveito do outro. As figuras de linguagem utilizadas pelo autor, como
a metáfora e a personificação, são empregadas para tornar a linguagem mais expressiva,
assim, não se trata de mero jogo de palavras.

A demora em aparecer jogadores de verdade causava desconforto em Bacanaço. Perus


também ficava incomodado com aquela situação:

Perus, encabulado. Onde andariam os trouxas, os coiós sem sorte, que


o salão não tinha jogo? Por que era assim, assim, sempre? Uma
oportunidade não vinha, demorava, chateava, aborrecia. Os castigos
vinham depressinha, não demoravam não, arrasavam, vinham
montados a cavalo. E os trouxas? Noivando ou namorando, por aí, nas
esquinas, nos cinemas. Ou dando dinheiro a mulher, que é o que sabem
fazer. Os tontos. E quando apareciam, gordos de dinheiro, otários
oferecidos, era fora de hora e era sempre outro malandro quem os
abocanhava. Ele? Nem almoço nem janta. Sinuca, grande estrepe... Pôs-
se a tamborilar, lento, contando as batidas. Pensou nos joguinhos de
Vila Alpina (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 158, grifo nosso).

Apesar de Perus ter um comportamento diferente do de Bacanaço, também gostaria que


a sua situação melhorasse. Ele comenta que as oportunidades eram difíceis de surgir, em
contraposição, o castigo chegava rapidamente: “Os castigos vinham depressinha, não
demoravam não, arrasavam, vinham montados a cavalo”. Esta expressão refere-se ao
provérbio “O castigo vem a cavalo”. Entendemos ser esse um caso de captação
(MAINGUENEAU, 2013: 219), pois temos a imitação de um provérbio como forma
conferir mais expressividade à linguagem. No conto, quando se trata de algo negativo em
relação ao jogo, o castigo chega rápido, porém quando se trata de algo positivo, a
vantagem demora a chegar. Perus acreditava ser um castigo em virtude do modo
desregrado como viviam.

Para Carmo (2013: 76), por meio do provérbio “O castigo vem a cavalo”,

[...] é atribuído um juízo de valor que faz parte da sabedoria popular.


Há um sentimento de vingança camuflada que vem de uma sociedade
vingativa, que não perdoa: ‘aqui se faz, aqui se paga’. É possível que
ocorra o fato de que a vítima seja impossibilitada de fazer justiça com
suas próprias mãos, ou seja, não tem como se vingar do ‘agressor’.
Então, como forma de autodefesa, ela apega-se a sua crença para se
sentir mais aliviada, pois, ela acredita que ‘o feitiço vira contra o
feiticeiro’, e que ‘a justiça tarda, mas não falha’.
114

A autora comenta que o provérbio expressa uma forma de a vítima, alguém que em
determinado momento tenha se sentido ofendida, sentir-se um pouco aliviada; mesmo
que a vingança demore, trata-se de algo “plantado” por uma pessoa e o momento de colher
chegará.

Perus chega a pensar que em Vila Alpina poderia ser melhor. Então, chega outro
“Virador” com os mesmos propósitos que eles:

Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu.


No pescoço imundo trazia amarrado um lenço de cores, descorado; da
manga estropiada do paletó balançavam-se algumas tiras escuras de
pano.
Bacanaço lhe buliu:
— Quer jogo, parceiro velho?
O velho se escapuliu, foi procurar o último banco do salão, o seu lugar,
e sentou. Era um velho acordado e gostava de explicações. Dali tudo
via, pernas cruzadas, na dissimulada como quem não visse nada. E ali
embiocado não o enxergavam bem.
Bacanaço e Perus lhe voltaram.
— Está a jogo ou a recreio, meu?
Malagueta os olhava. Bacanaço boquejando, largando desafios e
bazófias. Perus no acompanhamento, feito um dois de paus. ‘É’,
pensou, ‘quando vocês iam no moinho buscar fubá, eu, cá no meu
quieto, já estava de volta com o bagulho empacotado’. E soltou para
si o risinho canalha com que os malandros entendem, reconhecem.
Risinho meio parado, metade na boca, metade nos olhos. Pela charla
que diziam e pela manha com que vinham [...] Ali não havia dinheiro.
Então, o velho se levantou, gingou nos seus sapatos furados e piscou o
olho raiado de sangue.
— A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 158-159, grifo nosso).

Malagueta chega sorrateiramente e fica por ali, encolhido em sua insignificância. Procura
um lugar de onde pudesse observar melhor o movimento. Bacanaço aproxima-se dele e o
convida por meio da expressão: “— Quer jogo, parceiro velho? — Está a jogo ou a
recreio, meu?”. Essas frases feitas empregadas no diálogo foram utilizadas como
estratégias conversacionais com o propósito principal de manifestar uma expressão
própria de jogadores de sinuca.

Nesse sentido, Preti (1984: 2) esclarece que a

[...] criação dessa linguagem especial pode não apenas atender ao desejo
de originalidade mas também servir a finalidades diversas, como, por
exemplo, ao desejo de se fazer entender apenas por indivíduos do grupo,
115

sem ser entendido pelos demais da comunidade, de onde advém o seu


caráter hermético.

João Antônio utiliza uma linguagem específica da malandragem, dos jogadores de sinuca,
mas que pode ser tratada como expressão popular própria dessa classe, por se tratar de
expressões criadas para o mundo da “picardia”.

Zeni (2016: 250) esclarece que

[...] a capacidade de narrar é, talvez o grau máximo de habilidade com


que um malandro pode se exercitar na arte da linguagem verbal, antes
disso, a fala desenvolta, a ‘charla’, é uma capacidade com que se
reconhece o malandro e sua inserção e estatura no universo da
malandragem. Em um patamar semelhante, talvez acima da charla, está
o uso apropriado da sabedoria adquirida com a experiência de vida nas
ruas, que se traduz no largo uso dos ditos populares, das frases feitas,
das fórmulas assertivas sobre a malandragem, e com a vida de modo
geral, seja a dos malandros, seja a dos trouxas.

O autor esclarece que há um aprendizado, uma “formação malandra” que facilita até
mesmo a sobrevivência e faz o indivíduo adquirir, além da fama, o respeito. Há também
algumas expressões ou ditos populares que são próprios desse convívio, como “A sorte
não gosta de ver ninguém bem”, entre outros, que comentamos adiante.

Malagueta é um pobre coitado que não tem nem o que comer. Tanto Bacanaço quanto
Perus começam a proferir várias palavras provocativas contra ele. Contudo, o velho
malandro já estava preparado: “quando vocês iam no moinho buscar fubá, eu, cá no meu
quieto, já estava de volta com o bagulho empacotado”. Este é um provérbio muito
utilizado para indicar que alguém não foi pego de surpresa. A expressão é um exemplo
de captação (MAINGUENEAU, 2013: 219), pois remete ao provérbio “Enquanto você ia
com o milho eu já voltava com o fubá”.

O velho amigo, então, propõe que se unam para enganar “os trouxas”. Em “conluio”, sem
que os adversários percebessem, aplicariam golpes para derrotar os inimigos na sinuca.
A princípio, Perus não se manifesta, não dá sinais de aprovação. Começa a lembrar da
vida miserável que vive, morando com a tia e o “amásio” dela, que não conseguem se
entender. Além disso, ele está o tempo todo fugindo da polícia do exército, pois era um
“fugitivo do quartel”. Quando não estava escapando dessa polícia, era da polícia dos
“vadios”. Ele é um sonhador: “— Quando eu der uma sorte e a vida tomar jeito [...]”
116

(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 160). Acredita que um dia a sorte vai chegar e ele será uma
pessoa honesta.

Malagueta aproveita da insegurança de Perus e alimenta, ainda mais, os seus sonhos,


prometendo tudo aquilo com que sonhava. Bacanaço, diferentemente de Perus, não queria
saber de conversa, exigia logo que mostrasse o dinheiro:

— Pé-pé-pé... pé-ré-pé-pé não interessa, velho. Cadê a grana?


Malagueta esfriou, perdeu num átimo o alegre rebolado. Andava tudo
ruim e ele com a fome. Maré de azar danado, nem quisessem saber.
Comer?
[...]
— Tou desempregado — e deu de ombros. — Se eu lhes conto minha
história, meus camaradas... Vocês vão se virar pra me dar algum. É.
Tou que nem aquele cara: Tortinho Pedroso da Silva Estrepado.
E se sentou.
Bacanaço encheu as bochechas e soprou. Oito horas.
Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam
marotagens, conluios, façanhas, brigas, fugas, prisões [...] lá pelos
longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela
polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis,
que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento
funcionavam. E os três comendo as bolas [...] (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 161, grifo nosso).

Bacanaço acredita que a proposta de Malagueta poderia dar certo, mas, ao interrogá-lo,
acerca do dinheiro das apostas, ele responde que estava passando por uma situação difícil,
“Maré de azar danado”, ou seja, as coisas não estavam favoráveis para ele. A frase feita
empregada pelo personagem Malagueta refere-se à hipérbole, figura de linguagem com
valor expressivo, utilizada para relatar que se tratava de um momento de extrema má
sorte. A hipérbole, conforme postula Lopes (2006: 138), é utilizada para “exprimir uma
ideia pelo exagero de certos elementos”.

Malagueta revela que não poderia contribuir com nenhum valor: “Tou que nem aquele
cara: Tortinho Pedroso da Silva Estrepado”. Faz uma brincadeira utilizando um trocadilho
para dizer que, além de estar sem dinheiro, estava envolvido em confusão. O narrador
utiliza uma expressão comparativa sem sentido lógico como forma de debochar da própria
condição financeira.

No momento em que estavam decidindo se daria certo ou não, entra no bar uma negra,
homossexual, toda maquiada. Ela vai em direção ao mictório masculino:
117

Um parceirinho buliu:
— A senhora está a jogo ou a passeio?
A negra parou, os punhos nos quadris.
— Ora, vá lamber sabão, trouxa embandeirado!
A mulher seguiu.
Os homens da curriola estavam acostumados àquelas aparições súbitas
de mulheres no salão. E não estavam a fim de guerra. Não ligavam, nem
mexiam, que estavam ali para jogo e que mulher no salão é mulher de
alguém. Um ou outro parceirinho coió é que saía da linha (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 162, grifo nosso).

Os homens que frequentavam o ambiente já estavam acostumados com esse convívio,


porém, um dos jogadores solta a expressão: “— A senhora está a jogo ou a passeio?”,
pergunta comum entre jogadores de sinuca, pois se tratava de um convite para o jogo.
Considerando a situação contextual, temos, nesse exemplo, o que Maingueneau (2013:
221) chama de enunciação irônica, cuja finalidade é desqualificar uma pessoa.

A proposta para o jogo é feita somente por meio da gozação. De acordo com Maingueneau
(2013: 221), a enunciação irônica tem o propósito de expor alguém a uma situação
vexatória. Dessa forma, o jogador acaba ouvindo uma má resposta: “— Ora, vá lamber
sabão, trouxa embandeirado!”. O narrador faz uso de uma expressão popular de forma
mais leve para responder ao insulto e, assim, evita um palavreado mais grosseiro.

Então, Bacanaço lembra-se de seu relógio, um “Movado com corrente de ouro”, que
poderia valer um bom dinheiro. Precisavam apressar-se para conseguir o valor:

Empenhar-se-ia o Movado a Cornélio, motorista de praça da rua do


cinema, camarada de Bacanaço. Por baixo, baixo, renderia quinhentos
cruzeiros. Uma quina. O de que precisavam.
O Movado para Cornélio e uma quina para Bacanaço. E os três iriam
firmes, à grande e de enfiada, afiados como piranhas. Bacanaço
chefiando. Vasculhariam todos os muquinfos rodariam Água Branca,
Pompeia, Pinheiros, Mooca, Penha, Limão, Tucuruvi, Osasco, [...]
Rodariam e se atirariam e iriam lá. Três tacos, direitinhos como
relógios, levantariam no fogo do jogo um tufo de dinheiro. Tinham
a noite e a madrugada. Virariam São Paulo de pernas para o ar.
Os dois iam à frente, quase correndo. O velho Malagueta, capenga, se
arrastava na retaguarda, tropicando nas calçadas, estalando os dedos e
largando pragas. Tripudiava:
— Esta Lapa não dá pé! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 163, grifo nosso)
118

Eles saem, deixam a Lapa em busca de novas aventuras. Estão confiantes: “levantariam
no fogo do jogo um tufo de dinheiro”, ou seja, estariam em uma simbiose tão perfeita que
poderiam levar a melhor. Além disso, provocariam tumultos na cidade. A expressão
destacada “levantariam no fogo do jogo um tufo de dinheiro” refere-se à expressão
metafórica em que o narrador utiliza, dentro de um contexto interacional, a palavra “fogo”
e, como base nos recursos expressivos utilizados pelos personagens para conferir maior
expressividade ao texto, afirma que levariam vantagem mesmo estando no mais alto nível
de dificuldade.

Água Branca

Malagueta, Perus e Bacanaço chegam a Água Branca, outro bairro da cidade que pode
lhes oferecer outras perspectivas. Como conhecem o mundo da malandragem, sabem que
da mesma forma que estão prontos para o ataque, precisam estar atentos à defesa:

Corria no Joana d’Arc a roda do jogo de vida, o joguinho mais


ladrão de quantos há na sinuca.
Cada um tem sua bola, que é uma numerada e que não pode ser
embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele se
defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas bolas.
Forma-se a roda com cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada
homem tem uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde
uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da
casada. Mas ganha uma vida só [...]
Fervia no Joana d’Arc o jogo triste de vida.
Um bolo de vida vai a muito porque cresce. Seis, sete ou oito homens
dão bolos de bom tamanho. Quatro, cinco, até seis mil, começando por
baixo, baixo — cem cruzeiros por cabeça. O joguinho vai correndo
como coisinha encrencada, pequenina e demorada. Gente sai e entra
gente. O bolo crescendo, o jogo ficando safado. Fica porco, fica sujo
como pau de galinheiro. Um homem quebra o outro comendo-o
pela perna, correndo por dentro dele (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 164,
grifo nosso).

Notamos a presença de um comparativo por meio do qual o autor refere-se ao jogo de


sinuca como sendo o jogo da vida. Além disso, João Antônio faz uso desse comparativo
para explicar o quanto o jogo exerce influência na vida de três “viradores” como
Malagueta, Perus e Bacanaço. Ao mesmo tempo em que atacam seus problemas, por
exemplo, precisam se defender dos ataques a eles endereçados. Recebem investidas o
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tempo todo. Quando não é contra suas vidas é contra seus sonhos. Por isso precisavam
ser cautelosos.

Apesar da autoconfiança, não se referiam a jogadas limpas, não se tratava de confrontos


de igual para igual. Assim, os oponentes também poderiam preparar armadilhas. Não dava
para confiar no adversário: “o jogo ficando safado. Fica porco, fica sujo como pau de
galinheiro”. A expressão popular utilizada pelo narrador refere-se a um processo
metafórico comparativo que João Antônio emprega com a finalidade de tornar a
informação mais expressiva. Cada jogador precisava se defender como pudesse. O
importante era não esperar o ataque do adversário; era preciso atacar primeiro:

Então, o jogo exige porque diferente o jogo fica. Paciência, picardia,


malandragem. Quem não tem, tivesse... Uma sujeira do diabo, que
costuma enviar o dinheiro do parceiro para a casa onde o diabo
mora. Um taco é um taco quando é amarrador, no jogo de vida. Se o
parceirinho se encabula, tropica. Perde vida, se perde, vai lá e tropica
mais e cai do cavalo. Fica quebrado, quebradinho, igualzinho à coruja
— sozinho, feio e no escuro.
Corria no Joana d’Arc o triste jogo de vida (JOÃO ANTÔNIO,
2009: 165, grifo nosso).

Para se manter de pé no jogo, era preciso ter malandragem. O autor comenta que, nesse
meio, havia muitas falcatruas. Os protagonistas utilizam uma expressão que nos leva a
crer que, mesmo que um jogador leve a melhor, o valor que ganha em uma “mesa” tem
um destino “amaldiçoado”: “costuma enviar o dinheiro do parceiro para a casa onde o
diabo mora”. A expressão utilizada pelo narrador tem cunho religioso e revela a crença
deles de que sempre haverá um castigo. É necessário ser “amarrador” e firme, pois se
demonstrar fraqueza, na certa, não será bem-sucedido: “vai lá e tropica mais e cai do
cavalo”. Essa frase feita utilizada resume, de forma metafórica, o preço pago pelo jogador
que deixa de cumprir com o que foi negociado.

A primeira façanha no bairro de Água Branca foi tranquila, porém acabaram mexendo
com Lima, policial aposentado que passava a maior parte do tempo “enfiado no
muquinfo” de pijama, chinelos: “Ali jogava, ali jantava sanduíches, ali mesmo ele ficava,
plantado feito um dois de paus [...] − o joguinho se aprende jogando, tudo o mais é
ilusão, engano, embandeiramento, onda de otário” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 166, grifo
nosso). A expressão popular destacada refere-se a uma metáfora comparativa utilizada
pelo narrador em uma situação contextual para tornar mais evidente e ameaçadora
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presença do policial. O policial não se importava em ficar horas e horas apenas


observando o movimento do bar, era um jogador experiente. Malagueta e Perus aplicaram
nele e no amigo a “dissimulada”, ou seja, conseguiram enganá-los e não perceberam que
ambos estavam juntos na jogada:

Ponta de lança. O menino funcionava com certeza. Não o encabulava a


distância das bolas, a possibilidade negra de tropeçar e entregar sua bola
ao gosto dos adversários. Malagueta lhe valia. Sentia-se escudado, que
o velho era um amarrador de fibra, ia à tacada e trancava o jogo. Por ali
nada passaria. Quando em quando, Perus se sorria:
— Com coisa arrumada nem reza brava pode.
Por isso se atirava firme, confiando no seu taco, nas tabelas, nos efeitos,
nas colocações de sua bola, e firmava e dava trabalho aos parceirinhos,
tacada sua ganhava desenvoltura, liquidava três-quatro bolas.
— O menino está inspirado - observava Lima.
Perus sorria, os olhos baixavam, disfarçava, dava giz ao taco.
— Não é nada não. Tenho é sorte.
Malagueta repetia goles, sereno acompanhava, sabia onde se
desembocava tudo aquilo [...] Nem Lima, nem Marinho, nem o diabo
iriam passar por cima dele. [...] Para isso ele estava grudado à
retaguarda, trancafiando jogo, dando o que fazer, garantindo a linha de
frente para Perus.
Por que Malagueta não derrubara aquela bola quatro? Uma repetição
maliciosa, numa bola quatro em diagonal no canto, acordou o inspetor
Lima.
— Ué [...]
Ali tinha coisa. A bola era fácil, fácil, Malagueta não liquidara. Por que
raios o velho Malagueta só amarrava o jogo, defendendo e defendendo
aquela bola quatro? Lima não era um velho coió. A quem pertencia a
bola? Havia coisa.
Lima balançou o indicador no ar e mudou o tom daquela roda.
— Botem fé no que digo, qu’eu não sou trouxa não e nessa canoa
não viajo. Tá muito amarrado o seu jogo, seu velho cara-de-pau. Botem
fé. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo uma cadeia pros dois safados
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 171-172, grifo nosso).

Para Malagueta e Perus, o jogo prosseguia conforme o previsto, porém o adversário era
experiente. Mesmo assim, Malagueta consegue amarrar, segurar a jogada de tal forma
que Lima, o policial aposentado, fica em dúvida se estava havendo trapaça ou não.
Malagueta seguiu no jogo, tentando disfarçar sua artimanha: “— Com coisa arrumada
nem reza brava pode”. Não desistia de armar um lance que deixasse seu amigo Perus na
linha de frente da jogada: “Nem Lima, nem Marinho nem o diabo iriam passar por cima
dele”. Ele utiliza uma expressão, mais uma vez, em que há o termo “diabo”, para ganhar
autoridade, demonstrando que nem o sobrenatural poderia derrotá-los. João Antônio faz
uso das expressões destacadas para reforçar, no diálogo construído, a presença de
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expressões de sentido religioso, demonstrando, de certa forma, que a força de Malagueta


e de Perus vai além do plano físico.

Mesmo com tantas “manhas” e dissimulações, o policial aposentado acaba se indignando


com o fato de que Malagueta poderia ter derrubado uma bola tão fácil, mas não o fez e
preferiu dar condições ao garoto Perus. Isso levou o policial a tentar finalizar o jogo: “—
Botem fé no que digo, qu’eu não sou trouxa não e nessa canoa não viajo”. O autor faz uso
da expressão metafórica referente a uma expressão popular “embarcar em canoa furada”
para enfatizar que não seria pego de surpresa, pois suspeitava de que algo de errado estava
acontecendo. Ele ameaça prendê-los caso descobrisse alguma trapaça no jogo:

Malagueta ganhou força, começou a parolagem.


— Tem nada não. Esta partida acaba e eu caio fora, me espianto. Não
nasci aqui, eu sou do mundo.
[...]
Bacanaço secundou o disfarce, veio se chegando para Lima.
— Velho, o jogo é jogado.
Calhou. O menino é um atirador e está com a mala da sorte
— sua palavra valia, que vinha de fora, como torcedor. — O menino
emboca, emboca, manda tudo pras cabeceiras. Inspiração. Se daqui a
pouco ele tropica: fica torto, tortinho.
— Não sei não — fez Lima.
E o jogo se refez, encrencado, a princípio. Mas a desconfiança pouco
durou, que Perus foi às bolas e estraçalhou com vontade. Sabia da única
alternativa — escapulir depressinha.
Ganhar, apanhar a grana, sumir. Atentou no que fazia, trabalhou,
embocou, embocou, quebrou a bola do próprio Malagueta. Ficou só na
linha de frente. — E o que vier eu quebro - firmava o pensamento
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 173-174, grifo nosso).

A expressão popular “Não nasci aqui, eu sou do mundo”, empregada por Malagueta em
uma situação interacional no momento da partida, reforça a ideia de concordância para
não atrapalhar a estratégia do jogo. Diante das desconfianças de Lima, Perus teve de
resolver a situação e finalizar o jogo sem a ajuda de Malagueta. Dessa forma, firmou sua
jogada, mesmo com receio, pois vivia fugindo da polícia por conta de seu histórico.
Ganhou a partida. A expressão popular “E o que vier eu quebro — firmava o pensamento”
refere-se à força de pensamento empregada pelos jogadores em uma situação contextual
que reforça a crença em algo sobrenatural como solução para os problemas.

Perus recebeu o dinheiro da partida. Disfarçadamente, os amigos saíram do local para


dividir o valor entre si.
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Barra Funda

Malagueta, Perus e Bacanaço partiram para uma nova “viração”. O bar que escolheram
não era muito diferente dos outros, porém nesse havia uma televisão ligada em um
programa de luta livre. Cada um se ajeitou por ali, à espera de mais um “otário”.

A falta do que fazer fez os amigos discordarem. Bacanaço era o pior. Malagueta, com
mais experiência, tentava aconselhar os amigos em relação à maneira como estavam se
comportando. Além de conhecer o resultado da brincadeira, sabia que, se continuassem
com as provocações, “acabariam se atracando e se pegariam no joguinho − um correndo
por dentro do outro — na continuação um comeria o outro pela perna” (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 176, grifo nosso). As expressões metafóricas destacadas, apesar de
terem significado negativo, revelam que havia certa liberdade entre eles. Contudo, as
expressões injuriosas empregadas pelo narrador mostram que, mesmo sendo um
momento de descontração, a situação poderia não acabar bem; um tentava agredir o outro,
procurando os pontos mais vulneráveis. O pacto que havia entre eles poderia ser
quebrado.

Malagueta, arisco. Conhecia aquilo como a palma de sua mão. Para a


ganância besta não haveria o que bastasse. Um esbagaçaria o outro e
juntos se estraçalhariam. O velho os alertou, que era bom o conluio.
Trabalhando os três, um pelo outro, rendia mais o joguinho, evoluíam-
se trapaças na sintonia do embalo. E nem se atirassem a qualquer
jogo como piranhas famintas. Dessem juízo, não bobeassem como
coió que nunca enxergou dinheiro. Estavam na força de uma onda de
sorte, afiados e firmando - já se ganhara bem na Água Branca.
Tranquilidade, que a noite era deles (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 177,
grifo nosso).

Malagueta assumiu o papel de pessoa mais vivida, com mais sabedoria. Naquele
momento, colocou-se como conselheiro; por ser o mais velho, revelou-se mais experiente.
Orientou que o melhor seria permanecem juntos: “evoluíam-se trapaças na sintonia do
embalo” porque, se houvesse o acordo necessário, o progresso viria gradativamente; além
disso, era importante que tivessem prudência, “nem se atirassem a qualquer jogo como
piranhas famintas”, ou seja, “não irem com muita sede ao pote”. Precisavam ter calma,
agir com cuidado para obter melhores resultados, pois “Estavam na força de uma onda de
sorte”. Era bem comum os jogadores acreditarem que o sobrenatural poderia agir. O autor
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emprega expressões metafóricas para tornar mais expressiva a fala do personagem


Malagueta.

Tanto Bacanaço quanto Perus resolveram dar ouvidos à voz de Malagueta: “Apoiaram,
baixaram as cristas” (JOÃO ANTÔNIO, 2009 :177). Então, seguiram rumo a mais jogos;
dessa vez, não muito confiantes. Como era noite de sábado, talvez pudessem recuperar o
“tempo perdido”. Observando o movimento da cidade, não acreditavam fazer parte
daquele contexto:

Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O


movimento e o rumor os machucavam, os tocavam dali. Não
pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam.
Eram três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira. Sofredores.
Se gramassem atrás do dinheiro, indo e vindo e rebolando, se
enfrentassem o fogo do joguinho, se evoluíssem malandragens, se
encarassem a polícia e a abastecessem, se se atilassem, teriam o de
comer e o de vestir no dia seguinte; se dessem azar, se tropicassem nas
virações, ninguém lhes daria a mínima colher de chá — curtissem
sono e fome e cadeia.
Aqueles tinham a vida ganha (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 178, grifo
nosso).

Os três malandros sentiam-se excluídos por uma sociedade que os bania. As expressões
destacadas “Eram três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira” e “ninguém lhes daria
a mínima colher de chá” referem-se a expressões metafóricas que demonstram, além da
carência que sentiam em relação ao mínimo necessário, como a refeição do dia a dia, a
falta de perspectiva em relação ao futuro. Notamos que eles tinham a consciência de que
não teriam nenhuma oportunidade para mudar de vida.

Malagueta era o símbolo da decadência. Sua aparência demonstrava uma miséria


profunda, que o fazia se sentir cada vez mais diminuído perante os demais. Podemos
observar isso no momento em que refletem a respeito do descaso da sociedade em relação
ao menos favorecidos:

Veio o vira-lata pela rua de terra. Diante do velho parou, empinou o


focinho, os olhos tranquilos esperavam algum movimento de
Malagueta. O velho olhava para o chão. O cachorro o olhava. O velho
não sacou as mãos dos bolsos, e então, o cachorro se foi a cheirar coisas
do caminho. Virou-se acolá, procurou o velho com os olhos. Nada.
Prosseguiu sua busca, na rua, a fuça nas coisas que esperava ser
alimento e que a luz tão parca abrangia mal. De tanto em tanto, voltava-
se, esperava, uma ilusão na cabecinha suja, de novo enviava os olhos
suplicantes. O velho olhando o cachorro. Engraçado — também ele era
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um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo, como o cachorro.


Iguaizinhos. Seu dia de viração e de procura. Nenhuma facilidade,
ninguém que lhe desse a menor colher de chá. Tentou golpe, tentou
furto, esmola tentou, que mendigar era a última das virações em que o
velho se defendia (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 179, grifo nosso).

Há quase um processo de zoomorfização por meio do qual, segundo Fiorin (2011: 123),
atribuem-se às pessoas características de animais, isso porque observamos a aproximação
que João Antônio faz entre Malagueta e um cão: “O velho olhando o cachorro. Engraçado
— também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo, como o cachorro.
Iguaizinhos”. Malagueta se afasta do homem e se aproxima do cão, cada vez mais se
parece com o vira-lata. A vida sempre foi muito dura com ele. Nunca teve regalias:
“ninguém que lhe desse a menor colher de chá”. Sempre teve de buscar o próprio sustento,
sem a oportunidade de um trabalho decente.

Eles levavam a certeza de que nunca pertenceriam àquela sociedade: “Eles tinham a vida
ganha”. O narrador emprega essa frase feita para se referir às pessoas que estavam sendo
observadas pelos três jogadores. Teriam de se virar como podiam; tentariam a sorte em
outro lugar:

Mas a maré não mandava um azar sozinho, enfiava-lhe estrepe no


percurso, vinham guardas que perturbavam, ultimamente atilados
como tiras. Os guanacos estavam dispostos a azucrinar. E ansiosos.
Surrupiando uma maçã no mercado, vacilou. Quase escorregara, por
bem pouco não o flagraram. A maré castigava com uma crepe dos
diabos. Jogo? Adiantava ser um taco, galo de briga, tinindo para as
grandes paradas, adiantava? Não havendo capital, sofredor algum
tira o pé do buraco. Vida torta, tortinha, feito vida de cachorro
escorraçado. Almoço − foram aquelas coisas engolidas com cachaça,
lá no Joana d’Arc dez e tanto da noite (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 180,
grifo nosso).

Malagueta era um sonhador e sabia que não dava para contar sempre com a sorte e que
as coisas sempre poderiam piorar: “Mas a maré não mandava um azar sozinho, enfiava-
lhe estrepe no percurso”. O narrador utiliza frases com sentido religioso, além de fazer
uso da personificação como forma de tornar o discurso mais expressivo.

Em muitos momentos, Malagueta teve de passar por diversas situações difíceis: enfrentou
a fome e teve de fugir da polícia. A vida que levava fazia com que se tornasse cada vez
mais pessimista. Ele tinha a consciência de que, independentemente de qualquer coisa
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que fizesse, precisaria de dinheiro: “Não havendo capital, sofredor algum tira o pé do
buraco”. O próprio Malagueta se comparava a um cachorro: “Vida torta, tortinha, feito
vida de cachorro escorraçado”. João Antônio confirma o processo de quase
zoomorfização vivido pelo personagem, uma vez que Malagueta utiliza uma expressão
comparativa por meio da qual traça um paralelo entre a própria vida e a vida de um
cachorro.

Cidade

No Centro da cidade, o que mais chamava a atenção, principalmente de Perus, eram as


luzes. Ele tinha mania de enumerar coisas, contar carros, postes de luz, distraia-se com os
luminares que acendiam e apagavam. À noite, a cidade ficava melhor. Enquanto todos
conversavam, ele ficava quietinho, fazendo o que gostava. Bacanaço não aprovava aquela
atitude pueril de Perus e o repreendia: “— Vai levar muita porrada se quiser ser um
virador, seu coió de mola!” (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 183) Esse xingamento fazia parte
do vocabulário dos malandros, principalmente para se referirem a alguém que não tinha
opinião própria e que poderia ser facilmente manipulado por outras pessoas.

A madrugada de sábado não estava rendendo bons jogos naquelas ruas:

Sondaram. Os três passearam entre mesas, tensos passavam sem falar,


estirando os beiços, chutando coisas do chão gasto. Havia moscas,
fumaça, calor. Mesas vazias, tacos em seus lugares, bolas ausentes. Os
barulhos das conversas, os pentes dos engraxates repicavam numa
batucada, risos chegavam da barbearia. O bulício aborrecia.
— Não deu pé. Vamos girar.
Voltaram à Ipiranga, com a mesma febre marcharam (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 188, grifo nosso).

Os amigos já haviam percebido que teriam de partir para outro lugar: “— Não deu pé.
Vamos girar”. O autor utiliza a metáfora empregando uma frase feita que tem sentido de
locomover-se. Depois de perceberem que estavam perdendo tempo por ali, resolveram ir
para o Centro:

À esquina da Santa Efigênia toparam Carne Frita, valente muito sério,


professor de habilidades. Havia na cidade e ainda noutras cidades bons
entendedores e tacos atilados com capacidade para fechar partidas,
liquidando as bolas. Havia nomes e famas que corriam. Muitos, muitos.
Praça, Paraná, Detefom, Estilingue, Lincoln, Mãozinha [...] Eram
artistas do pano verde. Mas Frita [...] quem entendia de sinuca era ele.
Em cima dele foram e gramaram muitos e muito esperto perdeu o
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rebolado, e muito cobra ficou falando sozinho, esfacelado em volta da


mesa, como coruja cega. E muito patrão de jogo caro se perdeu em
apostas contrárias, em lances para mais de vinte contos. O homem
ganhara tamanho, celebridade; uma curiosidade que se exibiu
ensinando até na televisão. Seu nome e fotografia em pose de jogo
foram para o jornal numa reportagem que assim dizia: ‘SINUCA DE
CARNE FRITA É FALTA DE ADVERSÁRIO!’. Era Carne Frita.
Botassem respeito, sentido e distância com silêncio e consideração.
Moço, baixinho, com uns olhos de menino, esguio como os malandros
do joguinho que andam quilômetros ao redor das mesas, ninguém daria
nada àquele, parado, à esquina da Santa Efigênia, dando um gesto de
mão a Malagueta, Perus e Bacanaço. Fossem ver [...] Perguntassem em
Goiás, em Curitiba, em Porto Alegre, no Rio, em Fortaleza [...] Sua
história abobalhava, seu jogo desnorteou todos os mestres.
Quem de sinuca entendia era Frita.
Mas a febre era a febre e queimava e dava pressa (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 188-189, grifo nosso).

Os amigos seguem acreditando que as coisas melhorariam, porém, quando encontram


Carne Frita, segundo os jogadores de sinuca, um jogador de respeito, sentem-se
intimidados. Não tiveram coragem de permanecer no recinto, pois conheciam sua fama:
“e muito cobra ficou falando sozinho, esfacelado em volta da mesa, como coruja cega”.
Carne Frita já havia dado provas mais que suficientes de suas habilidades na sinuca.

Despediram-se de Carne Seca e seguiram em frente: “Mas a febre era a febre e queimava
e dava pressa”. Essa expressão revela-nos como os jogadores se sentiam em relação ao
jogo. Podemos entendê-la como uma hipérbole, que intensifica o desejo pelo jogo de
sinuca. Logo resolveram entrar em outro estabelecimento. Bacanaço e Perus subiram as
escadas brincando; Malagueta já sentia o peso tanto da idade quanto da fraqueza causada
pela vida de boemia:

Malagueta capengou, aguentou-se mal e mal no corrimão, apertou os


beiços num esforço. Os companheiros pararam mais acima. Riram:
— Tá caindo do cavalo, velho?
A escada deu-lhes, enfim, o salão.
— Vem cá, moleque!
Piranha esperava comida.
Mal entraram no Paratodos, deram com a voz do negro intimando Perus
e o brinquedo acabou-se, e tudo o mais se confundiu, ficou cinzento.
Escuro nas mesas, salão silente, tacos jogados, pontas de cigarros no
chão. Luz só no balcão do Paratodos vaziinho, sem jogo, sem
parceirinhos.
Aquele silêncio esquisito de esporro que vai se dar.
Piranha esperava comida.
— Vem cá, moleque!
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O negro chamando, apoiado ao balcão. De branco, pele brilhando,


chapéu de preço, cara redonda, enorme, onde um riso debochado se
escarrapachava.
O menino Perus ensaiou maquinalmente a meia-volta. Bacanaço
desaprovou, a mão parou, palma para cima; imprimiu:
— O jeito é enfrentar.
Piranha esperava.
O menino foi e se deu mal, que era Silveirinha, o negro tira. Perus se
desnorteava em erradas, começava pela timidez de não dizer nada.
Chumbado no chão.
[...]
Ali, cantava de galo [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 190-191, grifo
nosso).

A frase destacada “— Tá caindo do cavalo, velho?” refere-se a uma expressão popular


muito utilizada com outro significado, de que algo deu errado, mas que no conto é
empregada por Bacanaço para se referir a Malagueta, que estava “caindo de maduro”,
outra expressão popular. O autor, por meio da comicidade, enfatiza a situação, não só de
Malagueta, mas também dos três amigos.

Mal eles entraram no Paratodos, foram surpreendidos pelo policial Silveirinha, que chama
Perus. Naquele momento, o menino até pensou em não responder, mas atendeu ao sinal
de Bacanaço. Perus havia escapado do quartel e vivia fugindo de qualquer tipo de policial,
além disso, tinha sido “batedor de carteiras”, assim, estava com medo porque tinha “culpa
no cartório”. Silveirinha intimidou Perus ao chamá-lo para conversar. A expressão
metafórica empregada em uma situação conversacional “Piranha esperava comida” é
repetida algumas vezes pelo narrador com o intuito de destacar que Perus estava a ponto
de ser devorado, ou seja, sabia que seria afrontado por Silveirinha, que sabia das intenções
do garoto, àquela hora da madrugada em um bilhar.

O policial repete o chamado e aguarda uma resposta de Perus, que fica mudo diante da
ameaça: “Chumbado no chão”. Essa metáfora revela o temor que o personagem Perus
sentiu naquela situação. A metáfora, nesse sentido, expressa a reação que teve Perus
naquele momento.

Perus maquina algo em sua mente, mas não tinha como fugir, sabia do poder que
Silveirinha exercia sobre eles: “Ali, cantava de galo”, ou seja, ali era o maioral.

Diabo. Estava na boca daquele lobo e desabrigado, feito bezerro


enjeitado. Os dedos se esfregavam com atropelo, a voz não vinha.
— Meu moleque [...]
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Abraçou o menino e era uma tentativa aberta de surrupiar-lhe a carteira


como fazem os batedores e o geral dos lanceiros. O tira, mais alto e
mais forte e os ombros de Perus se encolhiam, o menino suava no
blusão de couro, se defendia arqueando-se com dificuldade.
De longe, Bacanaço. Uma distância infinita eram aqueles cinco metros
os separando.
A aperreação sobre o menino já fora a bem mais do que devia [...] E
quando se manda um danado e folgado daqueles para a casa do
diabo, metendo-lhe com fé uma ferrada nos cornos, uma cortada
na cara ou um tiro no meio da caixa do pensamento, a coisa enfeia
muito, vai-se dar com o lombo na Casa de Detenção (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 193, grifo nosso).

Foram momentos de muita angústia para Perus. A expressão: “Estava na boca daquele
lobo e desabrigado, feito bezerro enjeitado” resume bem a situação que experimentou. A
expressão empregada pelo autor comparando o menino Perus a um bezerro prestes a ser
devorado pelo lobo Silveirinha apresenta-nos elementos que enriquecem a produção de
sentidos tornando esclarecedora a situação contextual vivida pelo personagem Perus. A
expressão comparativa de Perus (um bezerro) e Silveirinha (um lobo) demonstra que, se
houvesse um combate entre os dois, a luta seria injusta.

Bacanaço e Malagueta perceberam nascer-lhes um sentimento de vingança ao


presenciarem tamanha humilhação em relação ao menino Perus. Silveirinha já tinha
ultrapassado os limites. A vontade era de executar aquele policial de forma brutal, mas se
isso acontecesse, iriam para a cadeia. Então, o melhor era manter a calma:

O que viria depois do arranca-rabo? Baixou os olhos, um vagabundo


era um vagai e só. Aquilo, aquilo sempre — vadio é o que fica debaixo
da sola do sapato da polícia. O velho se fechou; doía mas Malagueta
se trancou. Com as mãos e com a cabeça pediu a Bacanaço.
Ajeitasse.
O malandro se chegou.
— O menino é gente minha - sorriu, maneiro, mais pedia que falava. —
Podemos conversar, chefe?
— De boas falas é que eu gosto, Bacana. Por isso lhe considero —
abriu-se no riso gozoso. — Você é meu, Bacana.
A zombaria continuando naquele “Bacana” [...]
[...]
Bacanaço fez o sinal, mostrou a escada aos companheiros.
— Desguiando. Se raspando.
Os dois desceram, desenxabidos, esbarrando nas coisas, pernas bambas.
As orelhas pelavam. Foram esperar no largo (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
195, grifo nosso).
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Bacanaço não suportou a afronta e saiu em defesa de Perus. Aproximou-se de Silveirinha


porque teve receio: “O que viria depois do arranca-rabo?”, ou seja, qual seria o próximo
passo que Silveirinha daria para castigar ainda mais Perus. A expressão “vadio é o que
fica debaixo da sola do sapato da polícia” sintetiza como os três estavam se sentindo
naquele momento.

Eles saíram daquele lugar, depois de Bacanaço oferecer uma nota de quinhentos cruzeiros
a Silveirinha. Seguiram cabisbaixos, sem comentar o acontecido. Até que Malagueta tenta
resumir o sentimento de indignação:

O velho se adiantou, olhou os dois. Emparelharam-se.


Os olhares dos três se acharam e Malagueta, Perus e Bacanaço pararam
minutos. O silêncio agora pesava, os três olhavam-se, com pena,
palavra nenhuma.
Lá embaixo, no vale, um auto roncou, firme, aproveitando a hora.
Havia um padecimento, doía, arrasava.
O velho Malagueta rangeu os dentes, tentou uma careta, necessário
dizer alguma coisa, necessário dizer, por exemplo, que não se levassem
tanto a sério, apareceu um estrepe, e, afinal, na vida de viradores... A
cabeça se mexeu para os companheiros.
— A gente fica até coisa, meus. Aquilo nem é cinismo; é cinidez.
Era nada engraçado. O silêncio pesou mais.
Não era exatamente o dinheiro. Quinhentos cruzeiros não machucam
quem se atira a partidas de até dois contos ou atravessa dias sem comer,
combatendo em volta da mesa.
Dinheiro é do jogo e para o jogo — donde vem e para onde vai. O
sofrimento não era pequeno não. Seu tamanho não era o da nota de
quinhentos. O que doía era sofrerem uma apoquentação e não poderem
malhar o abusado que a vomitara.
Só vagabundo entende aquele espeto. Mocorongo, trouxa, pixote,
cavalo-de-teta, otário, vida mansa algum nunca perceberia o que se
passava com Malagueta, Perus e Bacanaço. Só um vagabundo.
— A gente inda vai à forra, velhão — Bacanaço deu um tapa no paletó
imundo de Malagueta. - Deix’estar. Tenteia, velho.
Só Perus não falou, inteiro no seu quieto (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 197-
198, grifo nosso).

Naquele momento, o que mais causava indignação entre os três “viradores” era o fato de
não terem conseguido se defender das acusações, pois, apesar de Silveirinha ter se
dirigido apenas a Perus, os três foram colocados à prova. Assim, ficaram evidentes a
fragilidade e a vulnerabilidade de quem acreditava estar no controle das ações. Na
verdade, estavam expostos, sujeitos a serem desmascarados a qualquer momento.

Havia a necessidade de explicar. O mais miserável dos três vagabundos é quem tentou
fazê-lo. O fato de ser o mais velho, trazia a sabedoria de uma pessoa mais experiente.
130

Mesmo assim, por mais que tentasse, a dificuldade com as palavras não permitia um
esclarecimento plausível: “— A gente fica até coisa, meus. Aquilo nem é cinismo; é
cinidez”. Os sentimentos estavam tão embaralhados que seria impossível o velho
Malagueta explicar. O pior era “não poderem malhar o abusado que a vomitara”, ou seja,
não poderem se vingar de todas as aporrinhações. Zeni (2016: 270) esclarece que a
vingança faz parte do mundo da malandragem, abarcando também o crime e a corrupção.
João Antônio emprega um trocadilho “Aquilo nem é cinismo; é cinidez”, de forma a
evidenciar a dificuldade de Malagueta com as palavras. Em meio a tantos xingamentos,
Malagueta faz uso da metáfora “cavalo-de-teta” como forma de desabafo.

Filipak (1983) esclarece que esse tipo de denominação evidencia uma característica
dominante que acaba por dar nome a um objeto, como é o caso de pata-de-vaca, folhagem
que tem formato da pata da vaca, por exemplo. A metáfora substantiva “cavalo-de-teta”,
utilizada pelo personagem, demonstra certa ironia diante de algo tão negativo e engraçado
ao mesmo tempo. De acordo com Filipak (1983), a denominação de um objeto que se dá
por meio desse processo decorre da semelhança observada com outro objeto.

A conversa é encerrada com uma palavra de consolo expressa pelo líder do grupo: “— A
gente inda vai à forra, velhão. — Deix’estar. Tenteia, velho”. Eles revidariam as
humilhações, era só aguardar o momento certo. Em meio ao caos vivido pelos amigos,
restava-lhes a esperança de que melhores parceiros apareceriam.

Malagueta, Perus e Bacanaço seguiram em direção a mais uma aventura. Entraram no


Martinelli, um velho salão com enormes espelhos e cheiro de mofo. As palavras do autor
revelam a proximidade tanto no espaço como no tempo (um velho salão e cheiro de mofo)
em relação às vidas dos três sonhadores, que agora viam suas imagens em grandes
espelhos.

Os amigos presenciaram uma cena que fez Perus se revoltar. Um velho homem
maltrapilho foi xingado de “charutinho” e humilhado pelo dono do bar. Tiveram vontade
de dar uma “lição” naquele homem, mas decidiram relevar o ocorrido; então, saíram
rapidamente do local, rumo ao viaduto do Chá e ao Teatro Municipal:

Perus não perdia do pensamento o caixa xingando o velho. Repetiu,


sozinho:
— É um cadelo. Será que ele não tem pai?
No Ideal, deserto, sem jogo, lhes deram uma notícia toda boa. Rondara
por ali, não fazia quinze minutos, uma diligência conjunta da rude e da
131

rone — rondas noturnas especiais, que do salão arrancaram de supetão


cinco malandros dormindo nos bancos e os trancafiaram, que com
aquela polícia não havia conversas, arregos ou arrumações. Malagueta,
Perus e Bacanaço haviam escapado por uma asa de barata.
Luz da esperança lhes brilhou.
E entenderam que a maré de sorte lhes voltara, de repente, à grande,
gorda e generosa.
Pois, até a polícia mais perigosa e séria não evitavam, sem querer?
Uma vontade súbita os tomou. A cidade não dera jogo, dera prejuízo e
até estrepe no caminho? Não havia nada não. São Paulo era grande e
eles, três tacos, tinindo para o que desse e viesse. Haveria jogo em
algum canto. Faziam fé (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 201, grifo nosso).

Por conta dos fatos ocorridos, seguiram com a autoestima atingida. Perus, o mais afetado,
não escondia sua revolta. Na sequência, receberam uma boa notícia, que lhes renovou as
esperanças: “haviam escapado por uma asa de barata”, “Luz da esperança lhes brilhou”.
A situação poderia ser pior: haviam escapado da polícia por poucos minutos. As
expressões populares citadas desempenham uma função expressiva ao reforçar, por meio
de metáforas, o sentido do “jogo da vida”: mesmo diante de percalços, podem ocorrer
fatos positivos. Os três amigos estavam prontos: “três tacos, tinindo para o que desse e
viesse”. Enfrentariam qualquer situação que surgisse. “Faziam fé”. Eles empregam a
metonímia que, conforme esclarece Fiorin (2011), trata-se de substituir um termo por
outro, desde que haja uma relação semântica, além de expressões com sentido religioso,
para sentirem mais coragem.

Pinheiros

Malagueta, Perus e Bacanaço chegam a Pinheiros, mas ficam decepcionados, pois todos
os bares estão fechados. Nesse momento, surge um sentimento de angústia:

Silêncio os baixa a zero e cigarro nada resolve, só afunda o pensamento


errado, amargo, que embota a malandragem, numa onda de coió.
Dinheiro nos bolsos havia, que sobrara algum das divisões de Bacanaço
e da exploração de Silveirinha, mas por dentro iam batidos, batidinhos.
E Malagueta, Perus e Bacanaço curtiram aquela de pensar (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 203).

Relembram o tempo que Perus era um garoto; engraxava sapatos e fora acusado de roubar
um velhinho porque o ladrão, ao tentar fugir, havia jogado aos pés dele tudo o que havia
roubado. Ele se julgava uma pessoa sem sorte. Os três amigos estavam cansados e
132

desanimados: “numa onda de coió”, expressão que evidencia o pessimismo que se


instalara entre os amigos: “dentro iam batidos, batidinhos”.

O autor mostra o quanto o sentimento de vingança pode interferir nas atitudes de uma
pessoa. Perus desiste de tentar ser alguém do bem por causa das injustiças que
experimentara:

Assim sempre, pensava Perus, trabalhando para os outros, curtindo as


atrapalhadas dos outros. Papagaio come milho, periquito leva a fama.
Como um pé-de-chinelo, como um dois de paus. Para que esperar
um dia de maré de sorte? Para que pretender os joguinhos caros e bons
de Vila Alpina? O menino Perus achava que seria sempre um coió-sem-
sorte, sofredor amansando a vida deste e daquele. E lhe chegava a ideia
velha, solução pretendida, única saída dos momentos de fome. — Um
dia eu me apago (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 203-204, grifo nosso).

Perus começou a se lembrar dos momentos em que tentava fazer a coisa certa e acabava
sempre injustiçado: “Papagaio come milho, periquito leva a fama”. Esse provérbio,
construído com base no paralelismo sintático, estrutura comum em provérbios, segundo
Lopes (2006), serve de estratégia para possibilitar o entendimento da situação vivida por
Perus.

Na concepção de Perus, era necessário seguir em frente, buscar a solução para o problema
e não ficar esperando: “Como um pé-de-chinelo, como um dois de paus. Para que esperar
um dia de maré de sorte?”. Não seria viável e nem prudente ficar aguardando a sorte
chegar. Teria de fazer algo definitivo: “E lhe chegava a ideia velha, solução pretendida”.
Contudo, a solução que encontra tem um tom ameaçador: “Um dia eu me apago”.
Terminaria a vida de aventuras e levaria uma vida comum:

Roubaria uma grana, se enfiaria num trem para Perus, onde ficaria
quieto, para de lá não sair mais. Aturaria a tia, o amásio bêbado, a
vidinha estúpida e sem jogo, a enorme fábrica de cimento de um lado,
o casario mesquinho do outro. E iria se fanar com uma ocupação na
fábrica, com uma enxada, com o diabo. Sua hora de dormir seria dez
horas. Lá em Perus, o menino não curtiria madrugadas e fome, nem se
atiraria como um desesperado à primeira viração que surgisse.
Malandragem não dera pé (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 204, grifo
nosso).
133

Perus reconhecia que aquela forma de agir causava-lhe muito sofrimento: “Malandragem
não dera pé”. Por vários momentos, fez menção de voltar a viver no bairro de Perus com
sua tia, arrumaria um emprego medíocre, dormiria cedo e deixaria de sentir fome e frio
nas madrugadas de São Paulo. Contudo, essas ideias não se tornavam ações efetivas. Era
só aparecer um novo parceiro “fácil” que as intenções de levar uma vida regrada davam
lugar à malandragem novamente.

Bacanaço, ao contrário de Perus, nem cogitava a possibilidade de mudar de vida. Vivia


encostado e levava dias de regalias. A nova namorada, Marli, de 20 anos, fazia programas
à noite para sustentar os desmandos de Bacanaço, uma pessoa perversa e aproveitadora.
Ele a obrigava a entregar-lhe, todos os dias, uma quantia de no mínimo mil cruzeiros.
Caso não o fizesse, por qualquer motivo, a moça era espancada:

Obrigação sua era ganhar — para não acostumá-la mal, Bacanaço batia-
lhe. Nas surras habituais, o porteiro da pensão da Lapa surgia,
assustado. Bacanaço o encarava.
— Olhe, camarada: entre marido e mulher, ninguém bote a colher.
E se o homem perguntava, solícito:
— O seu negócio deve ser cuidar de sua vida — e abria os braços - ou
é cuidar da minha?
O tipo se ia, cabisbaixo, desenxabido, para o mesmo lugar donde viera.
Se a desobediência se repetia, o cacete se dobrava. Bacanaço se atilava
em crueldades mais duras. Para começo a trancafiava no quarto e partia
para a rua, onde se demorava horas. Ia à sinuca, ia andar a fim de pensar
bem pensado; a mulher que lá ficasse aguentando fome e vontades.
Voltava tarde, bebido e abespinhado, usava o cabo de aço e agia como
se Marli fosse um homem. Proibia-a de gritar. Malhava aquele corpo
contra as paredes, dava-lhe nos rins, nos nós e nas pontas dos dedos.
Encostava-lhe o cigarro aceso nos seios. Às vezes, Marli urinava.
Na outra noite a mulher seguia para o bordel, dolorida, pisada. Na cama,
os fregueses costumavam perguntar o que eram aquelas marcas pretas
no corpo.
— É amor — e olhava para o teto —, vamos logo.
E retomava a linha da produção, cadelinha obediente, pronta a entregar
o que ganhava.
Tudo. Mulher de malandro. Se preguiçasse, de novo era trancafiada e
batida (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 205-206, grifo nosso).

Marli era maltratada por Bacanaço, mesmo assim, era muito grata ao seu amado. Por
várias vezes, lembra Bacanaço, ela se envolvia em confusões e chegava a ser presa. Então,
ele lhe arrumava um habeas corpus. Além disso, tudo o que ela conhecia a respeito da
malandragem, ele é quem havia lhe ensinado.
134

Bacanaço ficava indignado quando, no momento da surra, ela gritava e alguém vinha ver
o que estava acontecendo: “entre marido e mulher, ninguém bote a colher”. Esse
provérbio diz respeito a uma expressão metafórica que o autor emprega com o propósito
de esgotar qualquer possibilidade de intervenção. Nóbrega (2008: 174) esclarece que esse
provérbio “representa a prudência do homem em não se envolver na vida alheia,
principalmente quando há grau de parentesco e, ao mesmo tempo, encerra uma
advertência para que se tenha discrição diante das atitudes de seus semelhantes”. Segundo
Maingueneau (2013: 219), temos uma forma de captação, pois parte do original “Em briga
de marido e mulher, ninguém mete a colher” é reduzida para “Entre marido e mulher,
ninguém bote a colher”.

Para Bacanaço, aquilo era só um corretivo para que ela não se acostumasse a desobedecê-
lo, era algo comum entre qualquer casal. Ele sonhava com outra prostituta, Doroteia, que
poderia lhe render mais: “— Um mulherão na cama. E um rendimento graúdo” (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 207).

Os três sonhadores seguiram rumo a um jogo bom. Entraram em uma pastelaria, pediram
três refeições. Repetiram o prato, beberam alguma coisa. O sono acabou apertando. Então,
resolveram prosseguir.

Já estava amanhecendo, e aquele vermelho no céu causado pelos raios de sol fazia que
tudo parecesse mágico para Perus. Ele observava aquela beleza, ficou encantado,
paralisado diante de tamanha magnitude. Entretanto, preferiu não compartilhar tal
sentimento, pois tinha certeza de que seria mal interpretado. Bacanaço tentou tirá-lo
daquele êxtase chamando-o para brincar, mas ele não respondeu; permaneceu imóvel,
encostado à janela, admirando aquela paisagem. Bacanaço insistiu e o menino Perus
acabou rompendo com o deslumbramento.

Iniciaram uma partida entre eles mesmos. A princípio era só diversão, “leite de pato”,
porém, aos poucos, a disputa foi se transformando em jogo sério. Cada jogador planejava
liquidar o oponente e arrancar-lhe todo o dinheiro:

Pegaram nos tacos, passaram giz, tacaram sem vontade. Brincavam,


malabarismos, manobravam com displicência,
[...]
As intenções secretas iam ganhando corpo.
135

Malagueta media as duas forças — Perus, um atirador; Bacanaço, um


atirador. Bem. Se se batessem com ele num joguinho a valer, muito
provavelmente fritaria os dois; primeiro, um; depois, o outro.
[...]
Bacanaço era taco melhor [...] E jogou o verde à espera do maduro
(JOÃO ANTÔNIO, 2009: 211-213, grifo nosso).

Por falta de algo mais útil para fazer e enquanto não aparecia um “otário” para que os três
amigos pudessem tirar-lhe tudo o que fosse possível, iniciaram uma disputa muito
perigosa. O sentimento de amizade que os unia já tinha sido colocado de lado e pensavam
em uma forma de um liquidar o outro: “E jogou o verde à espera do maduro”. A expressão
proverbial dita por Bacanaço é um jogo metafórico que não se resume a comparar o verde
com o maduro. O provérbio popular é um exemplo de captação que, segundo
Maingueneau (2013: 219), trata-se de uma adaptação do original “jogou verde para colher
maduro” mostrando-nos que pode ser compreendida em uma situação contextual.

Havia dissimulações e investidas por parte do líder do grupo, mas não era apenas
Bacanaço que estava “jogando verde”, os demais também nutriam fortes intenções de
levarem a melhor: “Malagueta, Perus e Bacanaço preparavam-se para se devorar” (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 215).

Nesse ínterim, surge alguém que colocaria um ponto final na prepotência dos três “tacos”
e acabaria com o sonho de invencibilidade: Robertinho, sujeito de baixa estatura, magro,
muito bem vestido, bigodes bem aparados, fala mansa, tranquilo.

Bacanaço deu-lhe de olhos, fez um estudo.


— Esse tostãozinho de gente aí é algum otário oferecido.
O homem cumprimentou o dono do bar, sorriu, bebeu lá o seu copo,
veio se encostando à mesa. Num minuto batia papo com Bacanaço.
— Olá, parceirinho, está a jogo ou está a passeio? (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 215, grifo nosso)

Quando Perus percebe quem havia acabado de entrar era Robertinho, sentiu até calafrios.
Conhecia sua fama. Sabia que, apesar da aparência “franzina”, “Esse tostãozinho de
gente” era alguém muito perigoso e dissimulado. O rapaz aproximou-se de Bacanaço já
cheio de más intenções. Ao receber o convite “— Olá, parceirinho, está a jogo ou está a
passeio”, mostrou-se um pouco arredio e impôs certas condições.
136

Perus desespera-se ao ver que seus amigos estavam perto de serem “devorados pela
piranha” mais cruel que conheceu em toda sua vida de “armador”. Pela regra que existia
entre os jogadores de sinuca, ele não poderia dizer uma só palavra a respeito do
adversário:

Camaradas. Em pensamento, Perus pedia a Bacanaço, não marcasse


jogo. Robertinho, um bárbaro, piranha manhosa e o pior - escondia
jogo. Se quisesse, bolava um plano, passava duas- três horas perdendo,
malandro de capital, que era. Depois, mordia, dobrava paradas, ia à
forra - largava o parceirinho falando sozinho, sem saber por que
perdera. Bacanaço e Malagueta o desconheciam, aquilo era um
esbregue que o mulato ia arrumar. E a mais e mais, naquele salão,
naquelas mesas, conhecidas de Robertinho como a palma de sua
mão [...] Tacaria como um professor (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 216,
grifo nosso).

O garoto sofria ao ver aquela “piranha” rondando, dissimulando a jogada, fingindo e até
perdendo o jogo; sabia que os atacaria de uma só vez. Robertinho conhecia bem aquelas
jogadas: “naquelas mesas, conhecidas de Robertinho como a palma de sua mão [...]
Tacaria como um professor”. A expressão empregada pelo narrador em uma situação
interacional produz um efeito de sentido de antecipação do resultado daquela situação. O
autor faz uso de uma frase feita na qual destacamos a comparação “naquelas mesas,
conhecidas de Robertinho como a palma de sua mão [...]”. Embora a força dessa
expressão esteja mais concentrada no contexto. Robertinho dominaria tudo como um
verdadeiro mestre da sinuca:

— Jogo o jogo caro, meu — o homem miudinho dobrava preço.


— E meu jogo não tem estia: se ganhar, não dou; se perder,
não quero. Topa, parceirinho?
Jogo seu não dava consolos, nem os pedia.
Bacanaço dirigia com rompante, autorizou Malagueta, botou-o
na mesa.
— O meu empregado é empregado velho. Joga. Estia não se dá
e não se leva, que isto aqui é jogo de homem e não de esmoleiro.
A quanto?
Quinhentos cruzeiros. Perus suspirou fundo. O buraco em que
caíram, ô estrepe inesperado! Não havia saída, era esperar
sentado, arrasado. Assistiria a Robertinho ganhar uma partida,
duas, ou quarenta. Para o malandro, bom realizador, o trabalho
seria o mesmo. E Perus não poderia dizer um a. Para começo,
o dinheiro de Malagueta se esbagaçaria. Depois, Robertinho
morderia o de Bacanaço. E depois [...]
137

Mas Robertinho era terrível e deu-lhes o açúcar. Na dissimulada,


deixou-se ao gosto de Malagueta, perdeu-lhe três partidas de
quinhentos, pagou-lhe, maneiro, concordando. Media-lhe o jogo,
estudava.
— Você está inspirado, velho.
Bacanaço vibrava diante do parceirão arranjado. Aquele perderia
muito, Malagueta se conduzia bem naquela mesa. Talvez
arrecadasse quatro-cinco contos naquele jogo imperdível. Maré
de sorte, maré grande. E atiçava:
— Firme, velho! (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 217, grifo nosso)

Robertinho sentiu que já tinha dominado aquele jogo. Então, lançou uma proposta alta,
sem estia, que era uma porcentagem que o jogador deixava na mesa: “— E meu jogo não
tem estia: se ganhar, não dou; se perder, não quero. Topa, parceirinho? Jogo seu não dava
consolos, nem os pedia”. As expressões populares destacadas revelam o confronto entre
jogadores que dominavam suas partidas e a impossibilidade de um jogador demonstrar
fraqueza. Do outro lado da mesa, estavam Malagueta e Bacanaço, que achavam estar
levando a melhor e que a sorte finalmente estava do lado deles: “Maré de sorte, maré
grande”. Bacanaço incentivava Malagueta: “— Firme, velho!”. Há o emprego de
hipérbole que tem por finalidade enfática exagerar.

Bacanaço, extremamente confiante, chegou a dobrar a aposta:

Bacanaço propôs dobrar. Fizeram dois contos por partida. Foram às


bolas. Malagueta conduziu:
— A saída é sua.
Robertinho começava a mostrar os dentes de piranha. Efeitos na
bola branca com puxadas. Jogava uma bola de valor, embocava-a de
estalo, já preparando uma outra, que era a bola da vez.
Diante daqueles começos de tacada longa, Malagueta se apavorava,
Bacanaço se punha atento, Perus mais amuado. O velho não conseguia
prender aquele suspiro comprido. O jogo não estava prestando [...]
O outro passava giz na cabeça do taco e ia firme ao jogo atirado. Duas,
três dezenas de pontos por tacada, ou alguma coisa a menos. Um
atirador como poucos, aquele Robertinho. Estraçalhava.
Duma surtida do malandro, Malagueta não aguentou, fez careta e se
benzeu:
— Osso quebrado, nervo torcido, carne rendida, assim mesmo eu
te cozo. Sai de mim, azar do capeta!
Robertinho só sorriu:
— Não é nada não, meu parceiro (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 219, grifo
nosso).
138

Robertinho começou a dar os primeiros sinais de que tinha total domínio do jogo:
“Robertinho começava a mostrar os dentes de piranha”. De um momento para outro,
mostrou sua verdadeira intenção e quem realmente era. Malagueta ficou assustado com
as investidas do adversário: “Osso quebrado, nervo torcido, carne rendida, assim mesmo
eu te cozo. Sai de mim, azar do capeta!”. Contudo, acreditava ser apenas uma “maré de
azar”; quem sabe, poderia resolver a situação se benzendo. Então, repete algumas palavras
como um mantra, para afastar as “forças do mal”.

Perus, sabendo do que Robertinho era capaz, atemoriza-se ainda mais, pois não tem como
ajudar Malagueta naquele momento. Bacanaço, apesar de enxergar o perigo iminente,
acreditava que seriam capazes de virar o jogo, então, incentivou o amigo Malagueta a não
desistir:

— Dá-lhe, Malagueta! Corre por dentro do homem, velho!


O velho ganhava impulso, fazia uns pontos, tacada boa, espetava em
seguida, sua especialidade, largava situação péssima para o adversário.
Bacanaço se alentava, jogava elogios novos.
— Manda pras cabeças, velho!
Era quando Robertinho tomava fôlego, embalava o jogo, embocava
uma bola de valor, dava colocação à bola branca, construía ângulos,
enormizava a diferença no marcador. Era um osso duro de roer, estava
tinindo. Um professor.
Malagueta meneava a cabeça, leso.
— Deus me livre e guarde.
Bacanaço mordido, mordidinho, teimava, botava agora o seu
dinheiro no fogo do jogo (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 219, grifo nosso).

As expressões destacadas “— Dá-lhe, Malagueta! Corre por dentro do homem, velho! —


Manda pras cabeças, velho!” revelam o quanto Bacanaço tentou ajudar o amigo naquele
momento tão difícil. Ele incentivou Malagueta a partir para o “tudo ou nada”, de modo a
finalizar o jogo. Todavia, Robertinho estava muito seguro em seus movimentos de ataque,
não houve como envolvê-lo: “Era um osso duro de roer”, expressão que evidencia a
dificuldade em eliminar o oponente. Mais uma vez, Malagueta recorre à fé, pede para que
Deus o ajude e o tire daquela naquele momento difícil “— Deus me livre e guarde”.

A arrogância e a falta de humildade impedem que Bacanaço reconheça o valor e a


superioridade do adversário. Então, em uma atitude impensada, põe em risco tudo o que
tinha consigo: “Bacanaço mordido, mordidinho, teimava, botava agora o seu dinheiro no
139

fogo do jogo”. Nesse instante de desatino, não raciocina direito; não só Malagueta perde
todo seu dinheiro, mas também o próprio Bacanaço:

Malagueta deu fé, buscou Bacanaço, arrastou-o a um canto, falou


baixo. Propôs parar jogo, já se perdera muito, o joguinho virara, ingrato.
O mulato pediu o dinheiro de Perus, recebeu-o, jogou-o na mesa.
Largou a palavra final.
— Nada disso, velho! Não paro o jogo perdendo. Vai lá e joga o jogo.
Malagueta quis falar, recomendar juízo, engrolou alguma coisa. O
mulato cortou, rasgado:
— Vai pro fogo, velho! Tou mandando [...] (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
220, grifo nosso).

Malagueta tenta convencer o amigo a desistir daquele jogo, não tinha mais o que fazer; já
havia tentado todas as armações que conhecia, todas inúteis. Todavia, Bacanaço não cede
e, além de perder dinheiro, ainda exige que Perus entregue o seu e ordena que Malagueta
tente um golpe final: “— Vai pro fogo”.

Todas as tentativas são em vão. Eles estavam diante de um mestre. Um dos melhores
jogadores de sinuca de todos os tempos:

Bolas batucando. O jogo ia e vinha, vinha e ia e daquilo não saía. Perdia


Malagueta. Mais fumava Bacanaço.
Robertinho ganhava. Classe, jogo limpo. Respeito ao parceiro, era um
taco. Pouco falava, sério e firme nos seus passos pequenos, rápidos, em
torno da mesa.
Olhava para as bolas, para o marcador, não motivava encabulações,
desacatos, perdas de atenção. Jogava para ele, não assobiava, não
cantarolava, acatava Malagueta. Jogava o jogo.
Perus emendava cigarros. Não era de hoje que conhecia bem aquele
estilo de jogo e a picardia de seu dono. Fora muito azar caírem nas
unhas de um professor.
Acabou o jogo. Malagueta olhava o chão (JOÃO ANTÔNIO, 2009:
220, grifo nosso).

Nada do que havia acontecido ali, naquele bilhar, tinha sido novidade para Perus, pois ele
já conhecia o estilo daquele “armador”. Ainda assim, acreditava que tinha sido má sorte
terem cruzado com alguém como Robertinho: “Fora muito azar caírem nas unhas de um
professor”.

Por fim, de forma tranquila, sem muita conversa, sem afrontas, Robertinho terminou o
jogo:

— Joguinho morfético!
140

Robertinho abotoou o paletó, foi para o balcão beber um copo, pagar


tempo e despesas. Conversava, calmo. Nem ao de leve era um homem
saído de um jogo de três horas e meia. Sossegado, batendo papo. Um
taco.
Não falaram em estia, que trato é trato. Bacanaço se lembrou de um
galo que trazia no bolsinho da calça. Havia cinquenta cruzeiros para o
ônibus.
No tamborete do balcão, Robertinho não os olhava; conferia o troco.
Depois, cofiou o bigodinho aparado.
Quando o passaram de largo, não o cumprimentaram.
Lentos, nas ruas. As cabeças pesavam, seguiam baixas (JOÃO
ANTÔNIO, 2009: 221, grifo nosso).

Malagueta saiu da mesa de jogo reclamando: “— Joguinho morfético!”. Disse que foi
jogo sujo. Em contrapartida, Robertinho saiu íntegro, com a mesma postura com que
havia iniciado a partida, não apresentava nenhum sinal de cansaço ou fadiga. Não deixou
estia porque esse havia sido o acordo.

Lapa

Desapontados, os três seguiram em direção à Lapa, e para amenizar a tensão daquela


noite, conversavam sobre nomes de parceiros antigos. Todavia, a verdade era que onde
iniciaram a aventura, era o mesmo local onde terminaram:

Falou-se que naquela manhã por ali passaram três malandros, murchos,
sonados, pedindo três cafés fiados (JOÃO ANTÔNIO, 2009: 222).

Assim, começaram sem “um tostão” no bolso e estavam terminando “pedindo três cafés
fiados”.
O conto finaliza de forma cíclica, no mesmo bar e da mesma forma como iniciou. Os três
protagonistas, Malagueta, Perus e Bacanaço encerraram suas andanças e aventuras como
no início.

Nessa direção, Zeni (2016: 280) assevera que o conto apresenta

[...] estrutura circular, em que a ação, do ponto de vista espacial, retorna


ao ponto inicial. O tempo do conto é regido pela contradição entre a
atemporalidade da noite e a cronologia do tempo do relógio [...]
[...] além do desenho da ação, que começa, desenvolve-se e retorna ao
mesmo lugar, também o elenco e as falas (proverbiais e narrativas) dos
personagens corroboram a inscrição da boemia e da malandragem no
universo do mito e da lenda.
141

O conto que traz o mesmo nome do livro Malagueta, Perus e Bacanaço, mostra de forma
clara as aventuras e a inconstância do modo de vida de três “viradores”, o retrato dos
marginalizados urbanos, que buscam nas mesas de jogos de sinuca a sobrevivência. Essa
busca, às vezes, acontece por falta de oportunidades, outras vezes, pela revolta por fazer
parte da classe dos excluídos socialmente. Contudo, essa busca nem sempre acontece de
forma positiva; é preciso não se deixar abater e acreditar que sempre é tempo de um
recomeço.
142

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os provérbios e as frases feitas sempre fizeram parte da vida das pessoas. Estudar essas
expressões é recordar os primeiros contatos verbais ocorridos por meio da interação
social. De acordo com Preti (1977), a língua, “manifestação da vida em sociedade”,
funciona como elemento de interação entre indivíduo e sociedade. Marcuschi (2001)
também nos esclarece que, como fenômeno sociocultural, a língua torna-nos
definitivamente humanos. Dessa forma, a interação faz-se necessária para que haja
entendimento entre os participantes do ato comunicativo. Nesse sentido, Nóbrega (2008:
72) explica que o homem é, por natureza, um ser interativo e a comunicação entre os
semelhantes é imprescindível para que se dê a plena convivência social.

Neste estudo, nosso objetivo principal foi analisar os provérbios e as frases feitas nos
contos de João Antônio. Ao procedermos à análise dos nove contos selecionados,
notamos que o uso tanto dos provérbios quanto das expressões populares promove a
interação, e o emprego corrente dessas expressões constituem uma parte viva da língua,
representada pelos grupos pertencentes a uma camada social menos favorecida que,
muitas vezes, é tratada com desprezo e indiferença.

De acordo com o arcabouço teórico, observamos que o ato interacional não acontece
apenas entre indivíduos em situações comunicativas em que há concordância em relação
ao que está sendo abordado. O simples fato de haver clareza em relação a uma ação a ser
executada, por exemplo, já constitui interação. Assim, é preciso que haja reciprocidade
no processo de socialização e interação. Os provérbios promovem essa interação, além
disso, são frutos da sabedoria popular, desse modo, carregam uma carga de princípios
morais e sociais que são passados de geração a geração.

A respeito das expressões populares e das frases feitas empregadas nos contos, elas
revelam a expressividade da própria linguagem falada, além de traduzirem a sabedoria
popular. Observamos, por meio da análise, que mesmo com o objetivo de instruir, na
maioria das vezes, não houve rigor na composição de uma expressão popular. Segundo
(RIBEIRO, 1960), a rigidez dos fonetistas desaparece diante das “confluências verbais”.
Dessa forma, tanto as expressões quanto as frases feitas tornaram-se livres e espontâneas,
assemelhando-se à própria língua falada.
143

Podemos dizer que a literatura é o berço do provérbio, pois é muito comum e usual seu
emprego em obras literárias em razão da livre utilização de expressões que nos dizem
muito sobre como a arte imita a vida. De acordo com Coutinho (1980), é na literatura que
as palavras adquirem valor artístico, apropriando-se da realidade do homem e criando um
mundo ficcional em relação àquilo que está sendo apresentado. Do mesmo modo que a
literatura mantém relação com as demais artes, há um vínculo entre ela e o provérbio.
Ainda de acordo com o autor, a literatura reforça a argumentação, assim como o
provérbio, de uma forma mais amena.

João Antônio, por meio de figuras de linguagem, como metáfora, comparação,


metonímia, entre outras, trouxe-nos mais clareza quanto ao entendimento das expressões
que foram empregadas de forma diferente do sentido usual em seus diálogos. O emprego
de palavras com sentido figurado tem a função de atribuir aos vocábulos uma carga mais
expressiva, além de proporcionar ao leitor uma leitura com sentido próprio e mais
criativo. Segundo Vereza (2010), esse estilo tem a função de adornar o que está sendo
dito, bem como de ilustrar, ou até mesmo ausentar-se do assunto abordado. Ademais, as
figuras de linguagem são empregadas também para promover a interação entre os
participantes do ato comunicativo.

Pelo que expusemos, entendemos que esta pesquisa pode contribuir para o estudo dos
provérbios, das expressões populares e das frases feitas como elementos expressivos e
interacionais que serviram de ferramenta para reforçar argumentos, pontos de vistas ou
ideias, afirmando-se como palavra de autoridade, afim de promover um maior
engajamento principalmente entre participantes de atos conversacionais. Sendo assim,
esperamos que este estudo possa servir de contribuição para pesquisas futuras,
144

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ZENI, B. Sinuca de malandro. Ficção e autobiografia em João Antônio. São Paulo:


Edusp, 2016
147

Anexos

CONTOS GERAIS

P.27
148

P.28

P. 29
149

P.30

P.31
Luís. Fingira atenção nas tacadas, um capricho
150

P.32
151

P. 33
152

P.37

P.38
153

P. 39
Como nome de Papai Noel... E para
154

P. 40
155

P.41
156

P. 42
157

P. 43

Meus chutes em
158

P. 44

P. 45
159

P. 46
160

P.47

P.48
161

P. 53
162

P.54
163

P.55

P.56
164

P. 57
165

P. 58

P. 59
166

CASERNA

P.67
167

P. 68

P. 69
168

P.70
169

P.71

P.72
170

P. 73
171

P.74
172

P.75

P.76
173

NATAL NA CAFUA
P.79

P.80
174

P.81
175

P.82

P.83
176

P.84
177

P.85

P.86
178

P.87
179

P. 88
180

SINUCA

P.95
181

P.96
182

P. 97

P. 98
183

P. 99
184

P. 100

P. 101
185

P. 102
186

P.103
187

P. 104

P. 105
188

P.109

P. 110
189

P.111
190

P.112

P. 113
191

P. 114
192

P. 115

P.116
193

P.117
194

P.118

P.119
195

P.120
196

P.121

P.122
197
198

Meninão do Caixote

P.125

Foi o fim de Vitorino. Sem meninão do Caixote, Vitorino não se aguentava.

Taco velho quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de
azar, deu para jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também
para a maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava...

E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho, foi sumindo. Terminou
como tantos outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.

***

Na rua vazia, calada, molhada, só chuva sem jeito; nem bola, nem jogo, nem Duda, nem nada.
Quando papai partiu no G.M.C., apertei meu nariz contra o vidro da janela, fiquei pensando nas
coisas boas de Vila Mariana. Eram muito boas as coisas de Vila Mariana. Carrinho de rodas de
ferro (carrinho de rolimã, como a gente dizia), pelada todas as tardes, papai me levava no
caminhão... E eu mais Duda íamos nadar todos os dias na lagoa da estrada de ferro. Todos os
dias, eu mais Duda.

A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma
complicação. A camisa meio molhada, os cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a
gente acabava apanhando. Apanhava, apanhava, mas valia. Puxa vida! A gente tirava a roupa
inteirinha, trepava no barranco e “tichbum” – baque gostoso do corpo na água. Caía aqui, saía
lá,

P. 126

quatro-cinco metros adiante. O gostosura que era a gente debaixo da água num mergulhão
demorado!

Agora, na Lapa, numa rua sem graça, papai viajando na seu caminhão, na casa vazia só os pés
de mamãe pedalavam na máquina de costura até a noite chegar. E a nova professora do grupo
da Lapa? Mandava a gente à pedra, baixava os olhos num livro sobre a mesa. Como eu não
soubesse, o tempo escorria mudo, ela erguia os olhos do livro, mandava-me sentar. Eu suspirava
de alívio.
199

É. Mas não havia acabado não. À saída, naquele meu quinto ano, ela me passava o bilhete, que
eu passaria a mamãe.

– Trazer assinado.

Coisas horríveis no bilhete, surra em casa.

Se Duda estivesse comigo eu não estaria bobeando, olhando a chuva. A gente arrumaria uns
botões, eu puxaria o tapete da sala, armaria as traves. Duda, aquele meu primo, é que era meu.
Capaz de fazer trinta partidas, perder as trinta e não havia nada. Nem raiva, nem nada. Cocava
a cabeça, saía para outra, a gente se entendia e recomeçava. Às vezes, até sorria:

– Você está jogando muito.

Mas agora a chuva caía e os botões guardados na gaveta da cômoda apenas lembravam que
Duda ficara em Vila Mariana. Agora, a Lapa, tão chata, que é que tinha a Lapa? E exatamente
numa rua daquelas, rua de terra, estreita e sempre vazia. Havia também uma professora que lia
o seu livro e me esquecia abobalhado à frente da lousa. Depois... O bilhete e a surra. É. Bilhete

P. 127

para minha mãe me bater, castigo, surra, surra. E papai que viajava no seu caminhão, e quando
viajava se demorava dois-três meses.

Era um caminhão, que caminhão! Um G.M.C. novo, enorme, azul, roncava mesmo. E a
carroceria era um tanque para transportar óleo. Não era caminhão simples não. Era carro-tanque
e G.M.C. Eu sabia muito bem – ia e voltava transportando óleo para a cidade de Patos, na
Paraíba. Outra coisa – Paraíba, capital João Pessoa, papai sempre me dizia.

Mamãe não gostava daquele jeito de papai, jeito de moço folgado, que sai e fica fora o tempo
que bem entende. Também não gostava que ele me fizesse todos os gostos, pois, estes, ele fazia
mesmo. Era só pedir. Papai vivia de brincadeira e de caçoada quando estava em casa, e eu o
ajudava a caçoar de mamãe, do que ele muito gostava. Mamãe ia aguentando, aguentando, com
aquele jeito calmo que tinha. Acabava sempre estourando, perdia a resignação de criatura
pequena, baixinha, botava a boca no mundo:

– Dois palermas! Não sei o que ficam fazendo em casa. Papai virava-se, achava mais divertido.
E sorríamos os dois.

– Ora, o quê! Pajeando a madame.


200

Eu achava tão engraçado, me assanhava em liberdades não-dadas.

– Exatamente.

Então, o chinelo voava. Eu apanhava e papai ficava sério e saía. Ia ver o caminhão, ia ao bar
tomar cerveja, conversar, qualquer coisa. Naquele dia não falava mais nem com ela, nem
comigo.

P.128

Lá em Vila Mariana ouvi uma vez da boca de uma vizinha, que mamãe era meio velha para ele
e era até meio feia. Velha, podia ser. Feia, não. Tinha um corpo pequeno, era baixinha, mas não
era feia.
Bem. O que interessa é que papai tinha um G.M.C., um carro-tanque G.M.C., e que enfiava o
boné de couro, ajeitava-se no volante e saía por estas estradas roncando como só ele.
Mas agora era a Lapa, não havia Duda, havia era chuva na rua feia e papai estava fora. Lá na
cidade de Patos, tão longe de São Paulo... Lá num ponto pequenino, quase fechando na curva
do mapa.
– Menino, vai buscar o leite. Pararam os pés no pedal, parei o passeio do dedo na cartografia,
as pernas jogadas no soalho, barriga no chão, onde estirado eu pensava num carro-tanque e no
boné de couro de papai. Ergui-me, limpei o pó da calça. Uma preguiça...
– Mas está chovendo...
Veio uma repreensão incisiva. Mamãe nervosa comigo, por que sempre nervosa? Quando papai
não estava, os nervos de mamãe ferviam. Tão boa sem aqueles nervos... Sem eles não era
preciso que eu ficasse encabulado, medroso, evitando irritá-la mais ainda, catando as palavras,
delicado, tateando. Ficava boçal, como quando ia limpar a fruteira de vidro da sala de jantar,
aquele medo de melindrar, estragar o que estava inteiro e se faltasse um pedaço já não prestaria
mais.
Peguei o litro e saí.

P.129

Na rua brinquei, com a lama brinquei. O tênis pisava na água, pisava no barro, pisava na água,
pisava no barro, pisava na água, pisava no barro, pisava...
– Dá um litro de leite.
201

A dona disse que não tinha. Risinho besta me veio aos lábios, porque naquelas ocasiões papai
diria: “E fumo em corda não tem?”
O remédio era ir buscar ao Bar Paulistinha, onde eu nunca havia entrado. Quando entrei, a
chuvinha renitente engrossou, trovão, trovão, um traço rápido cor de ouro lá no céu. O céu ficou
parecendo uma casca rachada. E chuva que Deus mandava.
– Essa não!
Fiquei preso ao Bar Paulistinha. Lá fora, era vento que varria. Vento varrendo chão, portas,
tudo. Sacudiu a marca do ponto do ônibus, levantou saias, papéis, um homem ficou sem chapéu.
Gente correu para dentro do bar.
– Entra, entra!
O dono do bar convidava com o ferro na mão. Depois desceu as portas, bar cheio, os luminosos
se acenderam, xícaras reunindo café quente, cigarros, conversas sobre a chuva.
No Paulistinha havia sinuca e só então eu notei. Pedi uma beirada no banco em volta da mesa,
ajeitei o litro de leite entre as pernas.
– Posso espiar um pouco?
Um homem feio, muito branco, mas amarelado ou esbranquiçado, eu não discernia, um homem
de chapéu é de olhos

P.130

sombreados, os olhos lá no fundo da cara, braços finos, tão finos, se chegou para o canto e
largou um sorriso aberto:
– Mas é claro, garotão!
Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos, leves e pesados que
um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.
O homem dos olhos sombreados, sujeito muito feio, que sujeito mais feio! No seu perfil de
homem de pernas cruzadas, a calça ensebada, a barba raspada, o chapéu novo, pequeno, vistoso,
a magreza completa. Magreza no rosto cavado, na pele amarela, nos braços tão finos. Tão finos
que pareciam os meus, que eram de menino. E magreza até no contorno do joelho que meus
olhos adivinhavam debaixo da calça surrada.
Seus olhos iam na pressa das bolas na mesa, onde ruídos secos se batiam e cores se
multiplicavam, se encontravam e se largavam, combinadamente. Á cabeça do homem ia e
vinha. Quando em quando, a mão viajava até o queixo, parava. Então, seguindo a jogada, um
deboche nos beiços brancos ou uma aprovação nos dedos finos, que se alongavam e subiam.
202

– Larga a brasa, rapaz!


A mão subia, o indicador batia no médio e no ar ficava o estalo.
Aquela fala diferente mandava como nunca vi. Picou-me aquela fala. Um interesse pontudo
pelo homem dos olhos sombreados. Pontudo, definitivo. O que fariam os dedos tão finos e
feios?

P.131

– Larga a brasa, rapaz!


Quando o jogo acabou o homem estava numa indignação que metia medo. Deu com o dedo na
pala e se levantou.
– Parei com este jogo!
Eu já não entendia – aquilo se jogava a dinheiro. Bem. E por que ele dava o dinheiro se não
havia jogado?
– O Vitorino, você quer café?
Um outro que o chamava, com o mesmo jeito na fala.
Vitorino. Para mim, o nome era igualzinho à pessoa. Duas coisas nunca vistas e muito originais.
O homem dos olhos sombreados sorriu aberto. A indignação foi embora nos dentes pretos de
fumo. O homem na sua fala sorriu e foi para o companheiro que o chamava, lá da ponta do
balcão. Falou como se fizesse uma arte:
– Ô adivinhão!

Um prédio velho da Lapa-de-baixo, imundo, descorado, junto dos trilhos do bonde. À entrada
ficavam tipos vadios, de ordinário discutindo jogo, futebol e pernas que passavam. Pipoqueiro,
jornaleiro, o bulício da estrada de ferro. Á entrada era de um bar como os outros. Depois o
balcão, a prateleira de frutas, as cortinas. Depois das cortinas, a boca do inferno ou bigorna,
gramado, campo, salão... Era isso o Paulistinha.
As tardes e os domingos no canto do banco espiando a sinuca. Ali, ficar quieto, no meu canto,
como era bom!

P. 132

Partidas baratas e partidas caras. Funcionavam supetões, palpitações e suor frio. Sorrisos
quietos, homens secos, amarelos, pescoços de galinha, olhos fundos nas caras magras. Àqueles
não dormiam, nem comiam. E o dinheiro na caçapa parecia vibrar também, como o taco, como
203

o giz, como os homens que ali vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O jogo
enganando torcidas para coleta das apostas.
Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou abespinhado de Vitorino, chapéu,
voz, bossa, mãos, seus olhos frios medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.
Saía, fazia que ia brincar. Ficava lá no meu canto, procurando compreender. Os homens
brincavam:
– O meninão!
Eu sorria, como que recompensado. Aquele dera pela minha presença. Um outro virava-se:
– O meninão, você está aí?
Meninão, meninão, meu nome ficou sendo Meninão.

***

Os pés de mamãe na máquina de costura não paravam.


Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das mesas, onde passeava
sempre, estava em todas, a dolorosa branca, bola que cai e castiga, pois o castigo vem a cavalo.
Para mim, moleque fantasiando coisas na cabeça...
Um dia peguei no taco.

P.133

Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais.


Porque Vitorino era um bárbaro, o maior taco da Lapa e uma das maiores bossas de São Paulo.
Quando nos topamos Vitorino era um taco. Um cobra. E para mim, menino que jogava sem
medo, porque era um menino e não tinha medo, o que tinha era muito jeito, Vitorino ensinava
tudo, não escondia nada.
Só joguei em bilhares suburbanos onde a polícia não batia, porque era um menino. Mas minha
fama correu, tive parceirinhos que vinham, vinham de muito longe à Lapa para me ver. Viam e
se encabulavam. E depois carregavam nas apostas. Fama de menino-absurdo, de máximo, de
atirador, de bárbaro. Eu jogando, as apostas corriam, as apostas cresciam, as apostas dobravam
em torno da mesa. E os salões se enchiam de curiosos humildes, quietos, com os olhos nas
bolas. Era um menino, jogava sem medo.
Eu era baixinho como mamãe. Por isso, para as tacadas longas era preciso um calço. Pois havia.
Era um caixote de leite condensado que Vitorino arrumou. Alcançando altura para as tacadas,
204

eu via a mesa de outro jeito, eu ganhava uma visão! Porque não se mostrasse, meu jogo iludia,
confundia, desnorteava. Muitos não acreditavam nele. Também por isso rendia... E desenvolvia
um jogo que enervava um santo. Jogo atirado, incisivo, de quem emboca, emboca, mas o jogo
não aparece no começo. Vai aparecer no fim da partida, depois da bola três,

P. 134

quando não há mais jeito para o adversário. As apostas contrárias iam por água abaixo.
Porque me trepasse num caixote e porque já me chamassem Meninão...
Meninão do Caixote... Este nome corre as sinucas da baixa malandragem, corre Lapa, Vila
Ipojuca, corre Vila Leopoldina, chega a Pinheiros, vai ao Tucuruvi, chegou até Osasco. Ia indo,
ia indo. Por onde eu passava, meu nome ficava. Um galinho de briga, no qual muitos apostavam,
porque eu jogava, ia lá ao fogo do jogo e trazia o dinheiro.
Lá ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino, não tinha quinze anos.

Crescia, crescia o meu jogo no tamanho novo do meu nome.


Tacos considerados vinham me ver, vinham de longe, namoravam a mesa, conversavam
comigo, passavam horas espiando o meu jogo. Eu sabia que me estudavam, para depois virem.
Viessem... Eu andava certo como um relógio. Não me afobava, Vitorino me ensinou. A gente
joga para a gente, a assistência que se amole. E meu jogo nem era bonito, nem era estiloso, que
eu jogava para mim e para Vitorino. O caixote arrastado para ali, para além, para as beiradas da
mesa.
Minha vida ferveu. Ambientes, ambientes do joguinho. No fundo, todos os mesmos e os dias
também iguais. Meus olhos nas coisas. O trouxa, a marmelada, o inveterado, traição, traição.
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O Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho? Meus olhos se
entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo, minha vida ferveu. Conheci
vadios e vadias. Dei-me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo
conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da minha charla, a
gente se entendia. Eu me lembro muito bem. Às quintas-feiras, quatro pancadas secas na porta.
Duas a duas.
Na sinuca, Vitorino e eu, duas forças. Nas rodas do joguinho, nas curriolas, apareceu uma frase
de peso, que tudo dizia e muito me considerava.
– Este cara tá embocando que nem Meninão do Caixote!
205

Combati, topei paradas duras. Combati com Narciso, com Toniquinho, Quaresmão, Zé da
Lua, Piauí, Tiririca (até com Tiririca!), Manecão, Taquara, com os maiores tacos do tempo,
nas piores mesas de subúrbio, combati e ganhei. Certeza? Uma coisa ia comigo, uma calma,
não sei. Eles berravam, xingavam, cantavam, eu não. Preso às bolas, só às bolas. Ia lá e
ganhava.

Umas coisas já me desgostavam.


Jogava escondido, está claro. Brigas em casa, choro de mamãe. Eu não levantava a crista
não. Até baixava a cabeça.
– Sim senhora.
Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando
safadezas. O colégio me enfarava, era

P.136

isto. Não conseguia prender um pensamento, dando de olhos nos companheiros entretidos
com latim e matemática.
– Cambada de trouxas!
Dureza, aquela vida: menino que estuda, que volta à casa todos os dias e que tem papai e
tem mamãe. Também não era bom ser Meninão do Caixote, dias largado nas mesas da boca
do inferno, considerado, bajulado, mandão, cobra. Mas abastecendo meio mundo e comendo
sanduíche, que sinuca é ambiente da maior exploração. Dava dinheiro a muito vadio, era a
estia, gratificação que o ganhador dá. Dá por dar, depois do jogo. Acontece que quem não
dá, acaba mal. Não custa a curriola atracar a gente lá fora.
Vitorino era meu patrão. Patroou partidas caríssimas, partidas de quinhentos mil réis.
Naquele tempo, quinhentos mil réis. Punha-me o dinheiro na mão, mandava-me jogar.
Fechava os olhos que o jogo era meu. E era.
– Vai firme!
Às vezes, jogo é jogo, a vantagem do adversário era enorme. E havia três bolas na mesa.
Apenas. O cinco, o seis e o sete. Meus olhos interrogavam os olhos sombreados de Vitorino.
Sua mão subia no velho gesto, o indicador batendo no médio e no ar ficava o estalo. Enviava:
– Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão! – e eu beliscava, mordia, furtava,
tomava, entortava, quebrava.
Vitorino era o patrão, eu ganhava, dividíamos a grana.
206

Aquilo. Aquilo me desgostava. O divisão cheia de sócios, de nomes, de mãos a pegarem no


meu dinheiro!

P.137

Por exemplo: ganhava um conto de réis. Dividia com Vitorino, só me sobravam quinhentos.
Pagava tempo e despesas, já eram só quatrocentos. Dava estia ao adversário: lá se iam mais
dez por cento — só me sobravam trezentos. Dez por cento sobre um conto. Dava mais
alguma estia... Ganhava um conto de réis, ficava só com duzentos. Estava era sustentando
uma cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas minas, seus...
– Um dia mando tudo pra casa do diabo.
Não mandava ninguém. Vitorino trocava as bolas, mexia os pauzinhos, fazia negaça, eu
aceitava a sua charla macia.
Uma vez, quebrando Zé da Lua, jogador fino, malandro perigoso da caixeta, do baralho e da
sinuca, eu ouvi esta, depois de ganhar dois contos:
– Meu, neste jogo não tem malandro.
E eu ia aprendendo – o joguinho castiga por princípio, castiga sempre, na ida e na vinda o
jogo castiga. Ganhar ou perder, tanto faz.
Tinha juízo aquele Zé da Lua.
O jogo acabava, eu pegava os duzentos mil réis, tocava para casa. Ia murcho. Haveria briga
com mamãe.
Jogo e minas.
E papai estando fora, eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro. Eu evolui um truque
para a janela do meu quarto

P. 138

em noite alta eu chegando. Meter o ferro enviesado, por fora; destravar o fecho vertical...
Mamãe me via chegar, e às vezes fingia não ver. Depois, de mansinho, eu me deitava. E
depois vinha ela e eu fingia dormir. Ela sabia que eu não estava dormindo. Mas mamãe me
ajeitava as cobertas e aquilo bulia comigo. Porque ia para o seu canto, chorosa.
Mamãe, coitadinha.

***
207

Larguei uma, larguei duas, larguei muitas vezes o joguinho.


Entrava nos eixos. No colégio melhorava, tornava-me outro, me ajustava ao meu nome.
Vitorino arrumava um jogo bom, me vinha buscar. Eu desguiando, desguiando, resistia. Ele
dando em cima. Se papai estava fora, eu acabava na mesa. Tornava à mesa com fome das
bolas, e era: uma piranha, um relógio, um bárbaro. Jogando como sabia.
Essas reaparições viravam boato, corriam os salões, exageravam um Meninão do Caixote
como nunca fui.
Vitorino, traquejado. Começava a exploração. Eu caía, por princípio; depois explodia, socava
a mesa:
– Este joguinho de graça é caro!
Fechava a mão, batia e jurava em cima da mesa.
Mamãe readquiria seu jeito quieto, criatura miúda. Os pés pequenos voltavam a pedalar
descansados.

P. 139

Tiririca, o grande Tiririca, elas por elas, era quase taco invicto antes do meu surgimento. E
não parava jogo perdendo, empenhava o relógio, anel, empenhava o chapéu, mas o jogo não
parava. Ficava fervendo, uma raiva presa, que o deixava fulo, branco, furta-cor... Os
parceirinhos gozavam à boca pequena.
– O bicho tá tiririca.
Ficou se chamando Tiririca.
Mas era um grande taco. Perdendo é que era grande. Mineiro, mulato, teimoso, tanta mancha,
quanta fibra. Um brigador. Um dos poucos que conheci com um estilo de jogo. Bonito, com
puxadas, com efeitos, com um domínio da branca! Classe. Joguinho certo, ô batida de relógio,
aparato, fantasia, cadência, combinação, ô tacada de feliz acabamento! Á sua força eram as
forras. Os revides em grande estilo. Porque para Tiririca tanto fazia jogar uma hora, doze
horas ou dois dias. O homem ficava verde na mesa, curtia sono e curtia fome, mas não dava o
gosto.
– O jogo é jogado, meu.
Levava a melhor vida. Vadiava, viajava, tinha patrões caros, consideração dos policiais. E se
o jogo minguava, Tiririca largava o taco e torcia o nariz com orgulho:
– Eu tenho meus bons ofícios. Ia trabalhar como poceiro.
208

Bem. Tiririca se encabulou comigo, estrebuchou, rebolou comigo durante sete horas e perdeu.
Tudo. Empenhou o paletó por cinquenta mil réis e perdeu.
– Esse moleque não é Deus!

P. 140

Bem. Voltava agora, com a sede e o dinheiro, exigindo o reencontro, prometendo me


estraçalhar.
– Quero a forra.
Vitorino me buscou. Eu não queria mais nada.
Do lado de lá da rua, em frente ao colégio, Vitorino estava parado. Passavam ônibus, crianças,
passavam mulheres, bondes, Vitorino ficava. Dois meses sem vê-lo e ele era o mesmo. Eu lhe
explicaria bem devagar que não queria mais nada com o joguinho. Ás coisas passavam de novo,
Vitorino ficava. Ficava, ficava. Seu chapéu, suas mãos, sua camisa sem gravata. Magro,
encardido, trapo, caricatura. Desguiei, busquei um modo:
– Não dá pé.
Vitorino cortou com um agrado rasgado. Como escapar àquele raio de simpatia e à fala
camarada? Vitorino tinha uma bossa que não acabava mais! Afinal, cedi para bater um papo.
Afinal, entre tacos...
– Nego, não dá pé.
Tiririca. A conversa já mudou. O malandro em São Paulo, querendo jogo comigo, aquilo me
envaidecia... Tiririca me procurando.
Mas caí no meu tamanho, afrouxei, quase três meses sem pegar no taco, fora de forma, uma
barata tonta, não daria mais nada.
– Que nada, meu!
Tiririca era um perigoso. Deveria estar tinindo.
– Mas você é a força!
Vitorino já me conhecia, aguentava, aguentava. Até que eu:

P.141
– Pois vou!
Ele se abriu no macio rebolado:
– Aí, meu Meninão do Caixote!
Era um domingo.
209

Dia claro, intenso, desses dias de outubro. Um sol... Desses dias de São Paulo, que ninguém
precisa dizer que é domingo. Inesperados, dadivosos, e no entanto, malucos – costumam virar
duma hora para outra.
O último jogo. O jogo era em Vila Leopoldina, que assim marcou Tiririca. No ônibus uma coisa
ia comigo. Era o último, perdesse ou ganhasse. Bem falando, eu não queria nem
jogar, ia só tirar uma asma, quebrar Tiririca duma vez, acabar com a conversa. Não por mim,
que eu não queria jogo. Mas pelo gosto de Vitorino, da curriola, não sabia. Saltei na rua de
terra.
Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo...
– O Meninão do Caixote!
Na manhã quente, um que me saudava. Cobra já conhecido e muito considerado, eu encontrava
nos bilhares, amigos de muitos lados.
Prometera voltar a casa para o almoço. Claro que voltaria. Tiririca era duro, eu sabia. Deixá-lo.
Eu lhe quebraria a fibra. Fibra, orgulho, teima, eu mandaria tudo para a casa do diabo. Já havia
mandado uma vez...

P. 142
A curriola estava formada quando o jogo começou.
O salão se povoou, se encheu, ferveu. Gente por todo o canto, assim era quando eu jogava e os
homens carregavam apostas entre si. O dono do bar me sorria, vinha trazer o giz americano,
vinha me adular. Eu cobra, mandão. As mãos de Vitorino atiçavam.
– Larga a brasa, Meninão! Dá-lhe, Meninão! Vamos deixar esse cara duro, durinho. De pernas
pro ar!
Desacatos fazem parte da picardia do jogo. E na encabulação e no desacato Vitorino era
professor.
Mas Tiririca estava terrível. Afiado, comendo as bolas, embocando tudo, naquele domingo
estava terrível. Contudo, na sinuca eu trazia uma coisa comigo. Mais jogasse o parceirinho,
mais eu jogaria. Uma vontade, desesperada me crescia, me tomava por inteiro e eu me aferrava.
Jogava o jogo. Suor, apertava os beiços e me atirava. Não queria saber de mais nada. Então, era
um relógio, um bárbaro no fogo do jogo, não havia mais taco para mim. E se o jogo era mole
eu também me afrouxava.
Tiririca era um sujeito de muito juízo. Mas na velha picardia, eu lhe fui mostrando aos poucos
os meus dentes de piranha. E quando o mulato quis embalar o jogo a linha de frente era minha.
210

Uma e meia no relógio do bar e eu pensei em mamãe. Ali, rodando a mesa, o caixote para aqui,
para ali, como as horas voavam!

P. 143
Começamos, por fim, as partidas de um conto.
Fui ao mictório, urinei, lavei a cara. Lavando aos poucos, molhando as pálpebras, deixando a
água escorrer. Pensei com esperança em liquidar logo aquele jogo; mamãe estaria esperando.
Voltei, ajeitei o caixote. A curriola me olhava. Assim, sempre assim, os olhos abotoados na
gente, tudo para enervar. Raiva daquele jogo não acabar duma vez. Passei giz americano no
taco.
– A saída é minha.
Como aquilo se prolongava e como era dolorido! Ganhei uma, ganhei duas, Tiririca estava
danado.
– Vai a dois contos! Se eu perder, paro o jogo. Tiririca parar o jogo? Parava nada, aquele não
parava. Perdia as cuecas, perdia os cabelos, mas o jogo não parava.
No entanto, daquela mão, o mineiro já estava quebrado, sem nada, quebradinho. Arriscando os
últimos. Vitorino sério, firme, de pé, era muito dinheiro numa partida. E se o jogo virasse?...
A força de Tiririca eram as forras.
Suspirei, alívio, suor frio, luz da esperança. Luz da certeza, que o jogo era meu! Estourei num
entusiasmo bruto, que a curriola se espantou. Minha mão se fechou no ar e o indicador quase
espetava o peito de Tiririca.
– Vou te quebrar, moço. Vou te roubar depressinha! O mineiro dissimulava a raiva:
– O jogo é jogado...
Puxei o caixote, ajeitei, giz no taco, bastante giz, giz americano, do bom. E saí pela bola cinco!

P. 144

Uma saída maluca, Vitorino reprovou. Mas o cinco caiu. Vitorino suspirou:
– Que bola!
A curriola se assanhou, cochichos, apostas se dobravam.
Elogiado, embalado, joguei o jogo. Joguei o máximo, na batida em que ia, Tiririca nem teria
tempo de jogar, que eu ia fechar o jogo, acabar com as bolas. Ia cantando os pontos:
– Vinte e seis.
A curriola estava boba. O dono do bar parado, na mão um litro vazio de boca para baixo.
211

Vitorino saltou da cadeira, açambarcou todas as alegrias do salão, virou o dono da festa. Numa
agitação de criança, erguia o braço magrelo.
– Este bichinho se chama Meninão do Caixote! Tiririca estatelado, escorava-se ao taco. Batido,
batidinho.
Uma súplica nos olhos do malandro, quando a bola era lenta e apenas deslizava mansinha, no
pano verde. Tiririca perdia a linha:
– Não cai, morfética!
A bola caía. Eu ia embocando e cantando:
– Setenta e um...
Duas bolas na mesa – o seis e o sete. Dei de olhos na colocação da branca, nas caçapas, nas
tabelas, e me atirei. Duas vezes meti o seis e o sete meti duas vezes. Fechei a partida com
noventa pontos; foram vinte minutos embocando bolas, um bárbaro, embocando, contando
pontos e Tiririca não teve chance. Ali, parado, olhando, o taco na mão.
P. 145

O jogo acabou. Primeiras discussões em torno da mesa, gabos, trocas de dinheiro.


Vinha chorosa de fazer dó. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha miudinha, encolhida,
trazendo uma marmita. Não disse uma palavra, me pôs a marmita na mão.
– O seu almoço.
Um frio nas pernas, uma necessidade enorme de me sentar. E uma coisa me crescendo na
garganta, crescendo, a boca não aguentava mais, senti que não aguentava. Ninguém no meu
lugar aguentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito.
– Que é? Que é isso? ô Meninão!
Assim me falavam e ao de leve, por trás, me apertavam os braços. Se foi Vitorino, se foi Tiririca,
não sei. Encolhi-me.
O choro já serenado, baixo, sem os soluços. Mas era preciso limpar os olhos para ver as coisas
direito. Pensei, um infinito de coisas batucaram na cabeça. As grandes paradas, dois anos de
taco, Taquara, Narciso, Zé da Lua, Piauí, Tiririca. .. Tacos, tacos. Todos batidos por mim. E
agora, mamãe me trazendo almoço... Eu ganhava aquilo? Um braço me puxou.
— Me deixa.
Falei baixo, mais para mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco. Tivessem paciência.
Mas agora eu estava jurando por Deus.
Larguei as coisas e fui saindo. Passei a cortina, num passo arrastado. Depois a rua. Mamãe ia
lá em cima. Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo... Havia namoros, havia
212

vozes e havia brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei, apertando,
chispei. Ia quase chegando.
Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.
213

MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO


P. 149

Lapa

O engraxate batucou na caixa mostrando que era o fim.

Bacanaço se levantou, estirou uma nota ao menino. Os olhos dançaram no brilho dos sapatos,
foram para as cortinas verdes.

Vestido de branco, com macio rebolado, Bacanaço se chegou:

- Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou está a passeio?

O menino Perus encolheu-se no blusão de couro. Os dedos de Bacanaço indo, vindo, atiçando.
Desafiavam.

- Está a jogo ou a passeio?

Calado. O anelão luzia no dedo do outro e o apequenava, largava-o de olhos baixos,


desenxabido. O menino Perus chutou para longe uma ponta de cigarro, arriou no banco lateral.
Três dedos enfiaram-se nos cabelos.

- Que nada! Tou quebrado, meu — os dedos voltaram a descansar nos joelhos.

Avistavam-se todas as tardes, acordados há pouco ou apenas mal dormidos. Dois tacos
conhecidos e um amigo do outro não rendem desacato sério. Os desafios goram, desembocam
num bom entendimento. Perus e Bacanaço, de ordinário, acabavam

P. 150

sócios e partiam. Então, conluiados, nem queriam saber se estavam certos ou errados.
Funcionavam como parelha fortíssima, como bárbaros, como relógios. Piranhas. Lapa,
Pompeia, Pinheiros, Água Branca... Ou em qualquer muquinfo por aí, porque todo muquinfo é
muquinfo, quando se joga o joguinho e se está com a fome. Negaça, marmelo, trapaça, quando
iam os dois. Um, o martelo; o outro era o cabo.

Mas se cumprimentavam aos palavrões. Quando se topavam, por malandragem ou negaça do


joguinho, se encaravam. Picardia. E quem não soubesse diria que acabariam se atracando. Um
querendo comer o outro pela perna. dizendo desconsiderações.

Chegava-lhes depois um risinho safado empurrando-lhes a gana para bem longe. Já


214

não se estranhavam. Faziam sociedade, canalhas igualmente, catavam juntos as virações nas
rodas do joguinho.

Àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole... Mas por umas ou por
outras estavam sem capital. Os dois quebrados, quebradinhos. Sem dinheiro, o maior malandro
cai do cavalo e sofredor algum sai do buraco. Esperar maré de sorte? A sorte não gosta de ver
ninguém bem.

A curriola parada naquele salão da Lapa. Jogo nenhum. Safados por todos os cantos. Magros,
encardidos, amarelo, sonolentos, vagabundos, erradios, viradores. Tanto sono, muita gana,
grana pouca ou nenhuma naquela roda de sinuca. A roca fica mais triste sem o jogo. Magros,
magros. Pescoços de galinha.

P. 151

Bacanaço abanou a cabeça.

- Tão só na boca de espera, mora. Aqui é tudo lixo.

Então, enquanto otários não surgiam, jogo bom não aparecia e a noite não chegava, Perus e
Bacanaço brincaram. Com a boca e com as pernas, indo e vindo e requebrando, se fazendo de
difíceis, brincaram. Desconsideradamente, nenhum golpe. As pernas ao de leve se tocavam e
se afastavam, não se entrelaçando nunca, que aquilo era brincar.

A curriola veio se encostando.

Atiçou-se o rebolado dos dois corpos magros se relando e Bacanaço vibrou. Aquele menino
Perus se mexia, esperteza e marotagem, se esgueirando e escapulindo como um susto. “Vou
podar este menino”, considerou Bacanaço.

Do bolso traseiro da calça já veio aberta a navalha.

- Entra, safado.

Perus estatelou, guardou-se no blusão de couro. O antebraço cobriu a cara, os olhos firmaram.

A curriola calada.

Mas Bacanaço sorriu, que aquilo era brincar.


215

Durão veio pedir, que o dono do bar pedia. Parassem com aquilo, que aquilo não abria futuro,
havia navalha, se os tiras aparecessem... Durão, no seu avental encardido e na sua vontade
frouxa de ordem, que ajeitava, maneiro. Dessem juízo. O dono do bar pedia.

Bacanaço meteu as mãos no bolso, estirou o beiço. Sacou a mão, o polegar dobrou-se para trás,
flechou o balcão:

P. 152

- O mister aí da casa não quer batifundo, mora.

E brincaram mais um tanto, que a vontade não passara. Durão fez um barulho com a boca,
descoroçoado, se foi com xícaras de café na mão.

Duma feita se aquietaram, já não querendo mais nada. Suados, procuraram o banco lateral,
ajeitaram-se de pernas abertas. Jogar palitinho, contar façanha ou casos com nomes de
parceiros, conluios, atrapalhadas, tramóias, brigas, fugas, prisões. Lembraram Sorocabana.

Ali, naquele salão enorme, não fazia uma semana.

O salão era na Lapa, era o velho Celestino, treze mesas, jogos bons, parceirinhos coiós. Catava-
se ali muito trouxa de subúrbio, motoristas, operários, mascates, homens de sacaria gente da
estrada de ferro. Havia parceirões temporários. Bem. Não fazia uma semana, naquela boca do
inferno apareceu Sorocabana, largando ali, numa semana, pouco mais de vinte cores. Quem
ganhou foi Bacalau, com aquele seu jeito de sonso, na batida velha de quem não quer nada e
joga só por jogar. Deu açúcar ao freguês e ele veio depressinha. Então, Bacalau mordeu. Comia
o homem, comendo de gosto. Quando a semana findou, o malandro fingiu dó e aplicou a
dissimulada — deu uma estia de cinco contos a Sorocabana. Pelo certo, na regra da sinuca, a
gratificação de consolo previa apenas três contos e, bem considerando, não chegava nem a três.
Dez por cento sobre o perdido é a estia. E Bacalau dando cinco contos... Mas Bacalau era um
perigoso e tinha juízo, fintava na charla, mexia os pauzinhos. É

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que Sorocabana, trouxa, coió-sem-sorte, andava esbagaçando um salário-prêmio recebido pelos


vinte anos de trabalho efetivo na lida brava da estrada de ferro. Sim. Casado, três filhos, um
homem de vida brava. Um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta. E
Bacalau perguntava-se: “Para que trouxa quer dinheiro?”. Bacalau adoçou-o mais. Continuaram
o joguinho e o malandro lhe mordeu os últimos, folgando, devagar, quatro horas de jogo. Por
216

último, dando alarde ao desacato, manejava o taco com uma mão só e dava uma lambujem, um
partido de quinze pontos na bola dois. Era escandaloso. Bacalau estava perdendo a linha que
todo malandro tem. Não se faz aquilo na sinuca. Vá que se faça dissimulada, trapaça, até furtos
de pontos no marcador. Certo, que é tudo malandragem. Mas desrespeitar parceiro, não. A
própria curriola se assanhou, desaprovando.

Sorocabana, coitado. Ficava na beirada da mesa, atrapalhando-se com o cigarro, tirando as


bolas, falando sozinho.

Mas o castigo vem a cavalo.

Bacalau quis ser mais malandro que a malandragem e isto o perdeu. Pegou a grana, empolou-
se num rompante, ganhou a rua. Fala-se que entrou no primeiro restaurante e fartou-se como
um lorde. Sozinho. A turma se mordeu, com aquilo a turma se queimou. Malandro ganhar vinte
contos, não dar mimo a ninguém, não distribuir as estias! Que malandro era aquele? Aquilo era
um safado precisando de lição. A curriola se enfezou. Era mancada, pouco-caso, era desdenhar,
desconsiderar, que diabo! Afinal, quando Bacalau estava com a fome, sabia

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muito bem pedir e sempre lhe arranjavam algum para que o vagabundo se endireitasse, tirando
o pé da lama. Como podia, agora que tinha de sobra... Entregaram Bacalau aos ratos.

Os tiras foram catá-lo, bebendo e folgando com mulher, dois dias depois, num boteco das
Perdizes.

Entregaram Bacalau e ninguém soube quem foi.

Contava Bacanaço que sabia muito bem das coisinhas da façanha. O menino Perus também
sabia. Mas era um menino diante de Bacanaço e por isso ouvia quieto, só meneando a cabeça e
de acordo com tudo. Para final - Bacanaço era fácil melhor, jogador maduro, ladino perigoso
da caixeta, do brilho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de
Bacanaço era uma para cada dia. Vida arrumada. De mais a mais, Bacanaço tinha negócio com
os mascates, aqueles que vendiam quinquilharias e penduricalhos nas beiradas da Lapa-de-
baixo, e era um considerado dos homens do mercado. Malandro fino, vadio de muita linha,
tinha a consideração dos policiais. Andar com Bacanaço, segui-lo, ouvi-lo servi-lo, fazer
parceria, era negócio bom.
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Era quem primeiro cantava de galo. Bacanaço não olhava na cara dos desconhecidos. Impunha-
se-lhes oprimindo, apequenando. Mandava primeiro, uma ruga nas sobrancelhas, sempre
abespinhado. Desses que quando a conversa não interessa vão mandando para a casa do diabo.
E se houver reaproximação já batem, já xingam, já correm o pé, dão cabeçada, deixam o sujeito
estirado na calçada. Agora, se gostasse, gostava. Era igual, ami-

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gão. Ninguém botasse a mão em amigo seu. Porque seria como mexer com sua cara ou bulir
com amiga sua. Assim era Bacanaço com o menino Perus. E por isso o menino o admirava.

Mas a façanha se acabou e Sorocabana sumiu-lhes do pensamento. Também o jogo de palitinho


e os brinquedos de boca se sumiram. E falaram deles mesmos, paroleiros, exagerando-se em
vantagens; mas uma realidade boiou e ficaram pequenos. O que lhes adiantava serem dois tacos,
afiados para partidas caras? Estavam quebrados, quebradinhos.

Bacanaço foi para a porta do bar. Os meninos vendedores de jornal gritavam mais, aproveitando
a hora.

Gente. Gente mais gente. Gente se apertava.

A rua suja e pequena. Para os lados do mercado e à beira dos trilhos do trem — porteira fechada,
profusão de barulhos, confusão, gente. Bondes rangiam nos trilhos, catando ou depositando
gente empurrada e empurrando-se no ponto inicial. Fechado o sinal da porteira, continua
fechado. É pressa, as buzinas comem o ar com precipitação, exigem passagem. Pressa, que
gente deixou os trabalhos, homens de gravata ou homens das fábricas. Bicicleta, motoneta,
caminhão, apertando-se na rua. Para a cidade ou para as vilas, gente que vem ou que vai.

Lusco-fusco. A rua parece inchar.

Bacanaço sorri. O pedido gritado da cega que pede esmolas. Gritado, exigindo. A menina chora,
quer sorvete de palito, não quer saber se a mãe ofega entre pacotes. Bacanaço sorri.

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O sinal se abriu e nova carga de gente, dos lados da Lapa- debaixo, entope a rua.

Gente regateia preços, escolhe, descompra e torna a escolher nas carrocinhas dos mascates,
numerosas. Alguns estenderam seus panos ordinários no chão, onde um mundão de
quinquilharias se amontoam. E preços, ofertas, pedidos sobem numa voz só. Bacanaço sorri.
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Do lado de lá da rua, junto ao anúncio de venda de terrenos, um casal desajeitado. A moça é


novinha e uma distância de três-quatro corpos entre eles... A moça novinha aperta um guarda-
chuva, esfrega qualquer coisa com os pés, os olhos nos sapatos, encabulados. Bacanaço sorri.

Trouxas. Não era inteligência se apertar naquela afobação da rua. Mais um pouco, acendendo-
se a fachada do cinema, viria mais gente dos subúrbios distantes. A Lapa ferveria. Trouxas. Do
Moinho Velho, do Piqueri, de Cruz das Almas, de Vila Anastácio, de... do diabo. Autos
berrariam mais, misturação cresceria, gente feia, otários. Corriam e se afobavam e se fanavam
como coiós atrás de dinheiro. Trouxas. Por isso tropicavam nas ruas, peitavam-se como baratas
tontas.

Há espaços em que o grito da cega esmoleira domina. Aquela, no entanto, se defende com
inteligência, como fazem os meninos jornaleiros, os engraxates e os mascates. Com
inteligência. Não andam como coiós apertando-se nas ruas por causa de dinheiro.

Bacanaço deu com a primeira luz. Lá no meio da cara da locomotiva. Num golpe luzes brotaram
acima dos trilhos dos

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bondes. Os luminosos dos bares se acenderam e a fachada do cinema ficou bonita.

A Lapa trocava de cor.

Um pensamento bateu-lhe de repente:

- E Malagueta?

Em que presepada ter-se-ia enfiado o velho sem-vergonha, esmoleiro, cara-de-pau? Meia-volta,


andou.

Perus e Bacanaço entristeciam no banco lateral. Quebrados, quebradinhos. O menino Perus


repetia cigarros fornecidos por Bacanaço e o mulato espiando mesas, abespinhado.

Ali, de ordinário, pingava um ou outro joguinho bom. Mas onde há jogo bom, piranha vem
morder. Naquele salão da Lapa faziam ponto malandros finos de sinuca, escorregados de outros
lados da cidade. Então, safados infestavam o salão e aquela boca do inferno virava um poço de
piranhas.

Aquele dia era desses.


219

À noitinha, grupos de estudantes encheram o salão com jogos a leite-de-pato. Não jogavam a
dinheiro. Algazarra, um barulhão, mas não jogavam a dinheiro. Aquilo faziam todos os dias,
antes das aulas noturnas.

Bacanaço se chateava com os frangalhos e levantava-se. Machucava-os:

- Vocês são é de coisa nenhuma. Fica aí toda a curriola nesse pé-pé-pé... pé-ré-pé-pé, fazendo
o quê? Punheta? Um chove-não-molha do capeta! Vamos lá no jogo valendo uma nota!

P. 158

Os estudantes diminuíam o barulho, engoliam os desaforos. Mas ao jogo ninguém ia.

Com aquele silêncio desenxabido que faziam após os xingos, Bacanaço se enfezava, gritava,
espezinhava:

- Aqui só tem pixote, é tudo pixote — o indicador subia, descia, flechava. — Por que é que não
ficam em casa, debaixo da saia da mãe? Cambada!

Perus, encabulado. Onde andariam os trouxas, os coiós sem sorte, que o salão não tinha jogo?
Por que era assim, assim, sempre? Uma oportunidade não vinha, demorava, chateava, aborrecia.
Os castigos vinham depressinha, não demoravam não, arrasavam, vinham montados a cavalo.
E os trouxas? Noivando ou namorando, por aí, nas esquinas, nos cinemas. Ou dando dinheiro a
mulher, que é o que sabem fazer. Os tontos. E quando apareciam, gordos de dinheiro, otários
oferecidos, era fora de hora e era sempre outro malandro quem os abocanhava. Ele? Nem
almoço nem janta. Sinuca, grande estrepe... Pôs-se a tamborilar, lento, contando as batidas.
Pensou nos joguinhos de Vila Alpina.

Durão passava a carregar sanduíches de mortadela, cate com leite, cigarros, refrigerantes. Sete
horas.

Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu. No pescoço imundo
trazia amarrado um lenço de cores, descorado; da manga estropiada do paletó balançavam-se
algumas tiras escuras de pano.

Bacanaço lhe buliu:

P. 159

- Quer jogo, parceiro velho?


220

O velho se escapuliu, foi procurar o último banco do salão, o seu lugar, e sentou. Era um velho
acordado e gostava de explicações. Dali tudo via, pernas cruzadas, na dissimulada, como quem
não visse nada. E ali embiocado não o enxergavam bem.

Bacanaço e Perus lhe voltaram.

- Está a jogo ou a recreio, meu?

Malagueta os olhava. Bacanaço boquejando, largando desafios e bazófias. Perus no


acompanhamento, feito um dois de paus. “É”, pensou, “quando vocês iam no moinho buscar
fubá, eu, cá no meu quieto, já estava de volta com o bagulho empacotado”. E soltou para si o
risinho canalha com que os malandros entendem, reconhecem. Risinho meio parado, metade na
boca, metade nos olhos. Pela charla que diziam e pela manha com que vinham... Ali não havia
dinheiro.

Então, o velho se levantou, gingou nos seus sapatos furados e piscou o olho raiado de sangue.

- A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas.

A anuência de Perus foi chocha, encolheu-se timidamente no blusão de couro. Era aceitar. Para
quem estava quebrado, para ele com dezenove anos de idade, morador em Perus com a tia,
donde lhe veio o apelido... mas a tia tem um amásio e isto entorta tudo, porque o homem e ele
se atracam muitas vezes. Grudam- se, se socam, rebolam como bichos, que a coisa ali por bem
não vai. Por uma e outra se atracam os dois. Por causa dos muitos porres do amásio da tia e da
vida errada do menino. O menino

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Perus que tem seu lugar de taco, confiança de alguns patrões de jogo caro, devido à habilidade
que na sinuca logrou desenvolver nas difíceis bolas finas, colocadas em diagonal na mesa. O
menino Perus mal e mal se aguenta - fugido do quartel, foge agora de duas polícias. A Polícia
do Exército e a polícia dos vadios.

Uma semana, muitas vezes, na Lapa. Nas bocas do inferno se defende, se arranja pelas ruas,
trabalha nas conduções cheias, surrupia carteiras. Deixa-se ficar e fica uma semana. A mesma
camisa, o mesmo sono, a fome de dias. A fome raiada.

Mas pensa nos joguinhos famosos de Vila Alpina.

- Quando eu der uma sorte e a vida tomar jeito...


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Vestiria panos bons, iria àquele fogo. Então, iria, dissimulado, aos jogos caros de Vila Alpina,
onde corria a grana e as melhores virações da sinuca funcionavam. Vila Alpina era falada na
boca de todos os malandros. E lá Perus não era conhecido.

Malagueta propunha-lhes o conluio fantasiando grandezas. Claro que se arrumariam, eram


firmes nas tacadas e davam muito juízo. Se Bacanaço os chefiasse...

O malandro limpou o paletó. Ouvira os gabos sem interesse. Mas aquela conversa de os
conduzir, dando cartas e jogando de mão, era conversa da boa. Na mão bem manicurada, que
viajava do queixo ao bolso, luzia o chuveiro, anelão de ouro branco e pedras para mais de trinta
contos, que só rufião pode usar. Iria como patrão, a parte mais gorda cabendo-lhe. Bem. Olhava
meio de lado para os andrajos do velho. Aquela conversa era da boa. Mas não se entreteve.
Cortou:

P. 161

- Pé-pé-pé... pé-ré-pé-pé não interessa, velho. Cadê a grana?

Malagueta esfriou, perdeu num átimo o alegre rebolado. Andava tudo rüim e ele com a fome.
Maré de azar danado, nem quisessem saber. Comer? Surrupiando uma maçã duma prateleira lá
do mercado, quase o pilharam com a mão na coisa. Caíra no chão, botara aquela cara de
sofrimento, estendera a mão que roubou a maçã, esmolara. Com aquela cara de sofredor, de
Jesus Cristo, talvez algum trouxa lhe pingasse uma grana. Mas a onda de crepe era raiada — de
olho vivo, andavam guardas lá no mercado, finos como tiras.

- Tou desempregado — e deu de ombros. — Se eu lhes conto minha história, meus camaradas...
Vocês vão se virar pra me dar algum. É. Tou que nem aquele cara: Tortinho Pedroso da Silva
Estrepado.

E sentou.

Bacanaço encheu as bochechas e soprou. Oito horas.

Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, conluios, façanhas,


brigas, fugas, prisões — retratos no jornal e todo o resto —, safadezas, tramoias; arregos bem
arrumados com caguetes, trampolinagens, armações de jogo que lhes dariam um tufo de
dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá
pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente
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imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em
pensamento funcionavam. E os três comendo as bolas,

P. 162

fintando, ganhando, beliscando, furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalhando...

Entrou no salão uma negra lambuzada de pintura em direitura ao mictório dos homens.
Escanzelada, corpo ruim, os peitos eram uma tábua. Daquelas mulheres que ficam nas virações
tristes da Lapa-de-baixo; às vezes, de encontro às árvores e aos muros nos escuros das ruelas.
Aquela devia passar dias sem comer — o rosto chupado, os cambitos. Um parceirinho buliu:

- A senhora está a jogo ou a passeio?

A negra parou, os punhos nos quadris.

- Ora, vá lamber sabão, trouxa embandeirado!

A mulher seguiu.

Os homens da curriola estavam acostumados àquelas aparições súbitas de mulheres no salão. E


não estavam a fim de guerra. Não ligavam, nem mexiam, que estavam ali para jogo e que mulher
no salão é mulher de alguém. Um ou outro parceirinho coió é que saía da linha.

Foi num átimo, foi num susto. Bacanaço deu fé do relógio, seu Movado com corrente de ouro.

- Meus, com uma quina...

A gana nos olhos do malandro. Um tapa de estalo no joelho de Perus, o indicador apontou para
Malagueta. Falou depressa, outro Bacanaço, com palavras que se atropelavam e com dedos se
esfregando. Com uma quina já poriam meio pé fora do buraco. Correriam, então, a todas as
bocas do inferno da cidade, cortariam aquela onda besta de azar raiado. Claro.

- Meus, com uma quina...

A Lapa já era perda de tempo. Levantaram-se e se abalaram de supetão. Quase correndo, aos
encontrões, esbarrando nas coisas do caminho, afobação que os homens da curriola não
entenderam. Mas estava claro que se arrumariam! Empenhar-se-ia o Movado a Cornélio,
motorista de praça da rua do cinema, camarada de Bacanaço. Por baixo, baixo, renderia
quinhentos cruzeiros. Uma quina. O de que precisavam.
223

O Movado para Cornélio e uma quina para Bacanaço. E os três iriam firmes, à grande e de
enfiada, afiados como piranhas. Bacanaço chefiando. Vasculhariam todos os muquinfos,
rodariam Água Branca, Pompeia, Pinheiros, Mooca, Penha, Limão, Tucuruvi, Osasco...
Rodariam e se atirariam e iriam lá. Três tacos, direitinhos como relógios, levantariam no fogo
do jogo um tufo de dinheiro. Tinham a noite e a madrugada. Virariam São Paulo de pernas para
o ar.

Os dois iam à frente, quase correndo. O velho Malagueta, capenga, se arrastava na retaguarda,
tropicando nas calçadas, estalando os dedos e largando pragas. Tripudiava:- Esta Lapa não dá
pé!

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Água Branca

Corria no Joana d’Arc a roda do jogo de vida, o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca.

Cada um tem sua bola, que é uma numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a
sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas
bolas. Forma-se a roda com cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada homem tem uma
bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá
recomeçar com o dobro da casada. Mas ganha uma vida só...

Fervia no Joana d’Arc o jogo triste de vida.

Um bolo de vida vai a muito porque cresce. Seis, sete ou oito homens dão bolos de bom
tamanho. Quatro, cinco, até seis mil, começando por baixo, baixo — cem cruzeiros por cabeça.
O joguinho vai correndo como coisinha encrencada, pequenina e demorada. Gente sai e entra
gente. O bolo crescendo, o jogo ficando safado. Fica porco, fica sujo como pau de galinheiro.
Um homem quebra o outro comendo-o pela perna, correndo por dentro dele.

P. 165

Um bolo de vida fica grande para só um homem comer.

Então, o jogo exige porque diferente o jogo fica. Paciência, picardia, malandragem. Quem não
tem, tivesse... Uma sujeira do diabo, que costuma enviar o dinheiro do parceiro para a casa onde
o diabo mora. Um taco é um taco quando é amarrador, no jogo de vida. Se o parceirinho se
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encabula, tropica. Perde vida, se perde, vai lá e tropica mais e cai do cavalo. Fica quebrado,
quebradinho, igualzinho à coruja — sozinho, feio e no escuro.

Corria no Joana d’Arc o triste jogo de vida.

Bacanaço cutucou o menino Perus, passou-lhe duas notas de cinquenta. Sorrateiro, falou baixo,
nos dentes.

-Vai lá e desempenha, meu.

Enviou, fez um pouco de tempo, bafejou nas unhas, esfregou-as no paletó. Mandou Malagueta:

- Vai lá e faz marmelada.

Estava armado o conluio, funcionando a trapaça.

Corriam naquela roda as vidas de seis homens. Perus se chegou, pediu vez.

- Tá na mão, pra mim?

O menino se desengonçava um tanto quando solicitava jogo. Não se intrometia ainda com o
cinismo de Bacanaço, Malagueta e outros malandros maduros. Ficava meio torto, como quem
vai e não vai, feito um menino.

Os homens se entreolharam, bolas na mão, cada um resmungou a sua coisa, medindo o menino.
Um deu de ombros, outro fez não ouvir, tanto lhes fazia. O inspetor Lima demorou o olhar.

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- Posso entrar? — a mão de Perus corria devagar no zíper do blusão de couro.

Do lado de lá do balcão, Bacanaço torcia. Os olhos cobiçavam. Se dessem entrada a Perus, já


teria um homem seu naquela roda.

- Entra ele e entro eu — Malagueta intrometia-se sorrindo, bulia com todos. — O bolo fica
maior, meus.

O velho inspetor Lima, gordo polícia aposentado, era o dono daquela roda, conhecedor das
muitas manhas de Malagueta, que vezes intensas se bateram no joguinho nos muquinfos quentes
da Lapa-de-baixo. Lima, tira aposentado...

Desses tipos encabuladores que ficam entre os malandros e são o quê? Viradores, curiosos?
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Lima, tira aposentado, vivia nas rodas do joguinho e, por último, comparecia ao Joana d’Arc e
ali se encafuava enquanto o jogo durasse. Às vezes, do quarto da Água Branca onde morava só,
saía mesmo de pijama ali pelas duas da tarde e se enfiava no muquinfo. Ali jogava, ali jantava
sanduíches, ali mesmo ele ficava, plantado feito um dois de paus, os chinelos rodando,
ganhando as malícias das mesas, reaprendendo uma verdade - o joguinho se aprende jogando,
tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onda de otário.

Nem era um malandro, nem era um velho coió. Nem era um velho acordado como Malagueta
e outros, sem aposentadoria, sem chinelos, sem pijama, sem quarto onde pousar e que têm de
seu a cara e a vontade. Enfrentam as virações e a polícia

P. 167

porque têm fome. E vão como viradores, sofredores, pés-de- chinelo. E só.

Mas era um velho gordo e estranho, conselheiro dos mais moços, naquelas bocas do inferno, e
que usava palavras desusadas de quando em quando.

- É uma veleidade.

Só por um lance de um parceirinho que se arriscara numa bola cinco desnecessária.

Os homens da curriola sentiam vontade de rir e não riam. Qualquer palavra ganha dignidade na
boca da polícia e ninguém ri. Ademais, Lima era um tira aposentado e ainda sustentava
influências. Palavra dele tomava tamanho nas possíveis e inesperadas batidas da polícia.

Se no salão apareciam rapazes enfiados como galos no quente do jogo a dinheiro, ele se
intrometia com seus jeitos na fala.

-Tudo aqui é passageiro — arrotava. — Não é expediente de gente que se preze. Gente moça
namora, noiva e casa. É o caminho certo. Aqui, não; aqui é o fim.

Se os rapazes o ouviam quietos, Lima se empolgava. As histórias não se acabavam mais. Citava
e declinava e falava de malandros fracassados, outrora famosos, estropiados por fim no fogo do
vício. Rememorava Caloi.

Jogava que jogava Caloi. Osso duro de roer. Deu trabalho a muitos tacos, era um artista, era um
cérebro, um atirador. Mas deu também para mulheres e sua mão começava a tremer no instante
das tacadas. Foi indo, indo, tropicando. Quando deu fé
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P. 168

parecia um galo cego que perdeu o tino. Deu, então, para a maconha e uma feita ficou célebre
— vez em que um pixote lhe tomou quinze contos num dia de carnaval lá na rua Barão de
Paranapiacaba. Aquilo o encabulou, arruinou o seu juízo de jogador. A maconha desfez o
homem, lhe apodreceu o cérebro e Caloi acabou falando sozinho, feito tantã de muita zonzeira
lá num pavilhão do Juqueri.

- Habitante daqui é futuro residente da Casa de Detenção.

E se os rapazes achavam graça, Lima rematava:

- Ou do hospício — e fazia um ar triste para concluir. - A maior malandragem, meus filhos, é a


honesta.

Mas não se afastava do joguinho do Joana d’Arc. Era um prisioneiro.

Deu acesso a Malagueta. Buliu:

- Entra, cara-de-pau.

E sorriu para Perus.

- Aberto. Entra, velho, você e o garotão. Cem paus por cabeça.

Houve os olhares de soslaio, perguntando-se. Houve a casada, houve as escolhas de tacos, os


movimentos dos homens se curvando sobre a mesa. Iam sérios. Os bondes rangiam lá fora e os
homens em volta da mesa faziam o silêncio que se faz ao ruído das bolas. Faziam o silêncio do
joguinho, por demais preocupado.

As bolas corriam. E Bacanaço sorria.

A sua segunda tacada, o menino Perus assobiou. Era o

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“Garufa”, velho tango argentino falando das desventuras de um otário ofertado, inveterado
protetor de prostitutas e falso malandro de uma noite lá num parque japonês... Um incorrigível,
um papagaio enfeitado, um malandro de café com leite e pão com manteiga e o resto era engano.
O “Garufa” assobiado — um sinal convencionado com que os finos malandros de jogo avisam-
se que há otário nas proximidades ou trapaça funcionando e lucro em perspectiva.

Do lado de lá do balcão, Bacanaço também assobiou o “Garufa”.


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E os olhos malandros dos três se encontraram, se riram, se ajustaram, gozosamente, na sintonia


de um conluio que nasceu dissimulado.

Malagueta pediu cachaça, pão e pimenta vermelha, malagueta, donde lhe chegara o apelido. O
velho mascava e bebericava aos poucos, manso, medindo lances, atento; fazendo caretas que
demoravam na cara. Quando ia às tacadas firmava apoio a Perus, salvava-lhe a bola, apenas
defendendo a sua e encostando a do menino às tabelas. Um joguinho ladrão.

Bacanaço sorria. Funcionavam direitinho, sem supetões, eram tacos de verdade, nascidos para
trapacear. Arranjo bom. Malagueta defendendo, o menino Perus se atirando, o entendimento se
afinando, certo como um relógio.

As tacadas eram lentas, o joguinho arrastado, encrencado, sem-vergonha.

Homens perderam vidas, casadas se dobraram, novas vidas

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se esfacelaram. Do marcador, os sinais a giz apagando-se, sumindo ou reaparecendo com


casadas em dobro ou multiplicadas por quatro. O bolo crescendo.

Finalistas ficaram Lima e Malagueta, mas quem ganhou foi Perus, rematando certeiro as bolas
dos dois, comendo-lhes as vidas e comendo o bolo, para mais de quatro mil e quinhentos, que
as reentradas foram diversas e os parceirinhos iam afoitos.

Quem visse aquela roda e não soubesse, diria que era aquele o natural do jogo. Para quem está
do lado de fora, como para os otários de jogo, as muitas coincidências do joguinho são
predestinações. Como se não houvesse tabelas, efeitos, puxadas, trucagens e outros recursos
que em sinuca se chamam picardia. Assim falam os trouxas e os coiós e os papagaios enfeitados
e os mocorongos e os cavalos-de-teta:

- Joguinho ladrão, ganha aqui quem der mais sorte.

E a roda recomeçou.

Bacanaço sorria. Negócio dos bons era ser patrão dos dois. Aqueles não tropicavam, tinham
fome, iam, firmes, e sofredor desempregado dá tudo o que sabe no quente do jogo. Firma a
tacada, se mexe como piranha atenta, quer morder. E belisca porque vai com juízo. Talento já
traz escondido na massa do sangue e juízo a fome lhe dá. Bacanaço examinava o anelão como
se não quisesse nada. Chegava-se à mesa, estendia o maço de cigarros para Malagueta.
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- Fuma, meu camarada?

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O velho fazia uma careta, torcia-se numa delicadeza, a mão bailava.

- Com sua licença - piscava o olho raiado de sangue.

Ia bem o marmelo. Mudadas as posições, reaberta a roda, a tramóia ainda ia com Malagueta na
defesa e Perus se atirando.

Ponta de lança. O menino funcionava com certeza. Não o encabulava a distância das bolas, a
possibilidade negra de tropeçar e entregar sua bola ao gosto dos adversários. Malagueta lhe
valia. Sentia-se escudado, que o velho era um amarrador de fibra, ia à tacada e trancava o jogo.
Por ali nada passaria. Quando em quando, Perus se sorria:

- Com coisa arrumada nem reza brava pode.

Por isso se atirava firme, confiando no seu taco, nas tabelas, nos efeitos, nas colocações de sua
bola, e firmava e dava trabalho aos parceirinhos, tacada sua ganhava desenvoltura, liquidava
três-quatro bolas.

- O menino está inspirado - observava Lima.

Perus sorria, os olhos baixavam, disfarçava, dava giz ao taco.

- Não é nada não. Tenho é sorte.

Malagueta repetia goles, sereno acompanhava, sabia onde se desembocava tudo aquilo. Se ele
não falhasse, aquele jogo só teria um ganhador. Se ele tropeçasse, o vencedor seria Lima ou
Marinho, um outro da curriola que também dominava as coloridas. Sossegassem. Ali só havia
uma bossa. Nem Lima, nem Marinho, nem o diabo iriam passar por cima dele. Rebolassem e
se esforçassem e se torcessem na mesa. Na continuação, o

P. 172

ganhador era previsto e era um só. Para isso ele estava grudado à retaguarda, trancafiando jogo,
dando o que fazer, garantindo a linha de frente para Perus.

Por que Malagueta não derrubara aquela bola quatro? Uma repetição maliciosa, numa bola
quatro em diagonal no canto, acordou o inspetor Lima.

- Ué...
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Ali tinha coisa. A bola era fácil, fácil, Malagueta não liquidara. Por que raios o velho Malagueta
só amarrava o jogo, defendendo e defendendo aquela bola quatro? Lima não era um velho coió.
A quem pertencia a bola? Havia coisa.

Lima balançou o indicador no ar e mudou o tom daquela roda.

- Botem fé no que digo, qu’eu não sou trouxa não e nessa canoa não viajo. Tá muito amarrado
o seu jogo, seu velho cara-de-pau. Botem fé. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo uma cadeia
pros dois safados.

Bacanaço se alertou, a mão jogou o cigarro, o rosto se frisou. Diabo. Malagueta facilitara,
deixara entrever a proteção. Também não havia outra saída; derrubasse a bola quatro, teria
quebrado Perus num só lance, estariam os dois no buraco. Diabo. Aquele jogo poderia render
mais.

- Lugar de ladrão eu costumo mostrar - Lima continuava.

Os homens da curriola fecharam as bocas, rostos crisparam-se, os olhos jogaram-se em


Malagueta e Perus, ameaçaram. O velho se livrou, teve um cinismo, encarou Lima.

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- Tem nada não. Eu estou demais nesta roda? Eu sou de jogo e sou de paz. Me retiro.

Nenhuma resposta. Lima cabisbaixo, o cinismo de Malagueta desanuviava as coisas e as


embaralhava. Perus, desenxabido, sem uma palavra; Bacanaço tamborilando dedos do balcão.
O dono do bar olhava, ia haver batifundo. Os bondes rangiam. Não se dizia nada. O tempo
custava a passar.

Malagueta ganhou força, começou a parolagem.

- Tem nada não. Esta partida acaba e eu caio fora, me espianto. Não nasci aqui, eu sou do
mundo.

Esperou o efeito - veio o silêncio. Então, abusou:

- E se vacilar comigo eu vou lá e ainda ganho esta rodada e tchau. Me espianto.

Bacanaço secundou o disfarce, veio se chegando para Lima.


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- Velho, o jogo é jogado. Calhou. O menino é um atirador e está com a mala da sorte — sua
palavra valia, que vinha de fora, como torcedor. — O menino emboca, emboca, manda tudo
pras cabeceiras. Inspiração. Se daqui a pouco ele tropica: fica torto, tortinho.

- Não sei não - fez Lima.

E o jogo se refez, encrencado, a princípio. Mas a desconfiança pouco durou, que Perus foi às
bolas e estraçalhou com vontade. Sabia da única alternativa — escapulir depressinha. Ganhar,
apanhar a grana, sumir. Atentou no que fazia, trabalhou, embocou, embocou, quebrou a bola
do próprio Malagueta. Ficou só na linha de frente.

P. 174

- E o que vier eu quebro - firmava o pensamento.

Bacanaço sossegou, folgado voltou aos cigarros.

Lima, inconformado, virando o taco na mão. Como não percebera antes? A safadeza já era
velha, os dois funcionando à vontade, engolindo as bolas. Como não flagrara, trinta anos de
polícia e um tempão no joguinho... que boa-fé fora aquela? Agora não poderia abrir o bico, que
os dois não se deixaram pilhar. Os safados.

Três mil em notas miúdas Perus esticou no pano verde, mãos tremiam, desamassavam,
retiravam notas da caçapa.

Lima, mordido, mordidinho. Os olhos iam por baixo. Como pôde largar aqueles dois
crocodilos? Havia muito que não levava porrada igual. E o pior... jogo acabado, quem comeu
regalou-se, quem não comeu estrepou-se. E não os flagrara. Murmurou entre os dentes:

- Cadelos!

A mão de Perus puxou o zíper do blusão de couro e o menino marchou. Malagueta caminhou,
foi ganhando a rua.

- Boas, meus.

Do lado de lá da rua, quase em cima dos trilhos do bonde, o carro freou e os apanhou. Bacanaço
meteu-se no banco dianteiro. Contou, demorou, distribuiu. O cigarro na boca se mexeu:

- O que é meu — e apontou a parte mais gorda: três mil e quinhentos cruzeiros, era a parcela
do patrão.
231

O resto era do trato. Malagueta ganhou dois contos e Perus, outros dois.

P. 175

Receberam. O auto rodava. As notas deram sossego e depois considerações e depois se


lamentaram os dois, que a roda de vida no Joana d’Arc poderia ter dado até dez contos. Aquele
jogo, de fácil, era um mingau. Não fora o velho Lima...

- O bicho é um escamoso.

Bacanaço estendeu a mão, apontou para as cédulas. Houvesse tranquilidade. Atentassem,


começaram a noite sem nenhum e já se ganhara.

- Está de bom tamanho.

E para o motorista:

- Vai tocando, chefe.

P. 176

Barra Funda

O boteco era um, duma fileira de botecos. Pequenino, imundo, mais escuro e descorado, àquela
hora, à zoeira das moscas. Mas havia televisão apresentando luta livre e Bacanaço se ajeitou no
tamborete. Perus pediu café com leite.

O velho Malagueta encostou-se à porta do botequim.

Os ombros caíram, a cabeça pendeu para o azulejo, e assim torto o velho ficava menor do que
era. Enterrou as mãos nos bolsos. Seus olhos além divisaram avenidas que se estendiam,
desciam e desembocavam todas no viaduto por onde os três haviam passado. Haviam andado
na noite quente! Bilhar após bilhar, namoraram mesas, mediram, estudaram jogos lentamente.
Não falavam não. Picava-lhes em silêncio, quieto mas roendo, um sentimento preso, e
crispados, um já media o outro. Iam juntos, mas de conduta mudada e bem dizendo, já não
marchavam em conluio. Bacanaço, mais patife, resmungava aporrinhações, lacrava-lhes na cara
que a vida na Água Branca poderia ter rendido mais. Espezinhava. E aquela tensão ia ficando
grande. Não cuidassem, viria a provocação séria, acabariam se atra-
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cando e se pegariam no joguinho - um correndo por dentro do outro — na continuação um


comeria o outro pela perna.

Malagueta, arisco. Conhecia aquilo como a palma de sua mão. Para a ganância besta não haveria
o que bastasse. Um esbagaçaria o outro e juntos se estraçalhariam. O velho os alertou, que era
bom o conluio. Trabalhando os três, um pelo outro, rendia mais o joguinho, evoluíam-se
trapaças na sintonia do embalo. E nem se atirassem a qualquer jogo como piranhas famintas.
Dessem juízo, não bobeassem como coió que nunca enxergou dinheiro. Estavam na força de
uma onda de sorte, afiados e firmando - já se ganhara bem na Água Branca. Tranquilidade, que
a noite era deles.

Apoiaram, baixaram as cristas. Bateram perna, então, desde o Alto da Pompeia até os começos
das Perdizes. Ali jogou Bacanaço, jogo miúdo, de que vieram duzentos cruzeiros e apenas, que
o parceirinho se apavorou e parou de estalo. Tomaram, então, as alamedas que descem para a
Barra Funda. Vasculharam.

-Ô...

Braços no ar. Cobras do joguinho e tacos muito falados eram saudados assim pelos cantos que
percorriam.

Mas era uma noite de sábado e houve outros lados por onde passaram, apequenados e tristes.

Vai-e-vem gostoso dos chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas,
descansando.

Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e namorados namorando-se, roupas todo-
dia domingueiras -

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aquela gente bem dormida, bem-vestida e tranquila dos lados bons das residências da Agua
Branca e dos começos das Perdizes. Moços passavam sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos
da noite quente. Quando em quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas,
brinquedos caros e coloridos.

Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os


machucavam, os tocavam dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se
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embaraçavam. Eram três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira. Sofredores. Se
gramassem atrás do dinheiro, indo e vindo e rebolando, se enfrentassem o fogo do joguinho, se
evoluíssem malandragens, se encarassem a polícia e a abastecessem, se se atilassem, teriam o
de comer e o de vestir no dia seguinte; se dessem azar, se tropicassem nas virações, ninguém
lhes daria a mínima colher de chá — curtissem sono e fome e cadeia.

Aqueles tinham a vida ganha. E seus meninos não precisariam engraxar sapatos nas praças e
nas esquinas, lavar carro, vender flores, vender amendoim, vender jornal, pente, o diabo...
depender da graça do povo na rua passando. E quando homens, não surrupiariam carteiras nas
conduções cheias, nem fugiriam dos quartéis, não suariam o joguinho nas bocas do inferno,
nem precisariam caftinar se unindo a prostitutas que os cuidassem e lhes dessem algum
dinheiro.

Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali. Deviam andar. Tocassem.

Uma noite quente, chata! Zoada de moscas assanhadas nos

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salões, onde papo se batia e a prosa ia fiada, mas jogo bom não havia. Havia um rumo — à
cidade, catar jogo caro. Barra Funda não deu jogo.

Pararam naquele boteco à beira dos trilhos do trem.

Veio o vira-lata pela rua de terra. Diante do velho parou, empinou o focinho, os olhos tranquilos
esperavam algum movimento de Malagueta. O velho olhava para o chão. O cachorro o olhava.
O velho não sacou as mãos dos bolsos, e então, o cachorro se foi a cheirar coisas do caminho.
Virou-se acolá, procurou o velho com os olhos. Nada. Prosseguiu sua busca, na rua, a fuça nas
coisas que esperava ser alimento e que a luz tão parca abrangia mal. De tanto em tanto, voltava-
se, esperava, uma ilusão na cabecinha suja, de novo enviava os olhos suplicantes. O velho
olhando o cachorro. Engraçado — também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo,
como o cachorro. Iguaizinhos. Seu dia de viração e de procura. Nenhuma facilidade, ninguém
que lhe desse a menor colher de chá. Tentou golpe, tentou furto, esmola tentou, que mendigar
era a última das virações em que o velho se defendia.

Trabalhava no chão. Estirar-se, arregaçar as calças, expor o inchaço que ia começando nas
pernas encardidas. O sapato furado expunha barro. O sapato tinha os saltos comidos de todo.
Dando sorte e com sossego, mas com muita picardia, cara-de-pau e mão estendida, pingava
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alguma grana. Já se ganhava, eta meu Bom Jesus de Pirapora! Da miúda saía para a graúda e ia
se bater lá na sinuca.

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Mas a maré não mandava um azar sozinho, enfiava-lhe estrepe no percurso, vinham guardas
que perturbavam, ultimamente atilados como tiras. Os guanacos estavam dispostos a azucrinar.
E ansiosos. Surrupiando uma maçã no mercado, vacilou. Quase escorregara, por bem pouco
não o flagraram. A maré castigava com uma crepe dos diabos. Jogo? Adiantava ser um taco,
galo de briga, tinindo para as grandes paradas, adiantava? Não havendo capital, sofredor algum
tira o pé do buraco. Vida torta, tortinha, feito vida de cachorro escorraçado. Almoço - foram
aquelas coisas engolidas com cachaça, lá no Joana d’Arc, dez e tanto da noite.

O cachorro sumia na ponta da rua.

- E a preta?

A preta se chamava Maria e este pensamento bateu-lhe com ternura. Dois-três dias sem ver a
preta, que era sua preta e era negra vendedora de pipocas, de amendoim e de algodão – de -
açúcar nas noites à luz do cinema do Moinho Velho, com o seu carrinho de coisas e seu lenço
à cabeça, e que aceitava Malagueta no barraco da favela do Piqueri. Davalhe boia, comiam e
bebiam os dois, davam-se. Como crianças. Mas o velho, patife muitas vezes, furtava-lhe algum.
Se a negra surpreendia, estourava e brigavam. Aí, a negra não tinha medo. Mas voltavam-se
depressinha. A negra repetia que era negra sem-vergonha muito grande, por ter negócio com
branco e por aceitá-lo de novo. Uma curva canalha ficava lá no canto da boca de Malagueta.
Bem. Mas agora havia dinheiro, dois contos e mais algum, a noite não havia acabado e era boa
a maré. Aquela grana, no fogo do jogo, provavelmente se multiplicaria. E Felipe era seu bom.
Pois tornando à Lapa, Malagueta iria ao mercado, iria a Felipe, seu camarada que vendia secos
e molhados. Entrariam no bom entendimento. A preta ganharia uma porção de coisas para a
fartura de muitos dias. Chegaria ao barraco, já meio cambaio pela cachaça, o saco às costas
pesando e uma alegria enorme haveria de encher o coração da preta. - Nêga, hoje você não se
vira. Assim parado, se vendo pelo avesso e fantasiando coisas, Malagueta, piranha rápida,
professor de encabulação e desacato, velho de muito traquejo, que debaixo do seu quieto muita
muamba aprontava, era apenas um velho encolhido.

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e mais algum, a noite não havia acabado e era boa a maré. Aquela grana, no fogo do jogo,
provavelmente se multiplicaria. E Felipe era seu bom. Pois tornando à Lapa, Malagueta iria ao
mercado, iria a Felipe, seu camarada que vendia secos e molhados. Entrariam no bom
entendimento. A preta ganharia uma porção de coisas para a fartura de muitos dias. Chegaria
ao barraco, já meio cambaio pela cachaça, o saco às costas pesando e uma alegria enorme
haveria de encher o coração da preta.

- Nêga, hoje você não se vira.

Assim parado, se vendo pelo avesso e fantasiando coisas, Malagueta, piranha rápida, professor
de encabulação e desacato, velho de muito traquejo, que debaixo do seu quieto muita muamba
aprontava, era apenas um velho encolhido.

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Cidade

Uma, duas, três, mil luzes na avenida São João!

A curriola formada à esquina era de sete mais uma mulher, que era amiga de um deles. Fala de
bordel, falavam de casos passados, antigamente febris para a baixa malandragem. Fulano fez,
fez, acabou lá na cadeia; beltrano deu sorte, levantou duzentos contos nos cavalos, arrumou-se
na vida — hoje é dono disto e daquilo; mas um outro, seu parceiro, maconhava com exagero e
endoideceu - anda aí pelas ruas falando sozinho; sicrana navalhou a cara da outra, que era sua
costureira, mas andava com seu homem. Fosse chibar no diabo! Perus nem falava, nem ouvia,
nem pensava nos joguinhos de Vila Alpina; longe estava a contar as luzes da avenida, onde
bondes passavam rangendo e autos cortavam firmes como tiros. Era costume do menino
enumerar coisas. Sabia, por exemplo, quantas bolas cinco fulano embocou em tal partida,
quantos bondes Casa Verde passaram em meia hora. Os luminosos se apagavam, se acendiam,
se apagavam, um, dois, um... Aquele exercício o distraía

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– Vai levar muita porrada se quiser ser um virador, seu coió de mola!

Aquela ouvira uma vez, em Osasco, da boca de Bacanaço. Falhada a atenção, se firmara mal,
tropicando e desentendendo as bolas numa parada para mais de uma nota de conto de réis.
Bacanaço gozara, azucrinara. O menino não gostava daquele esculacho não. Perdia, e até aí era
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uma parte — estava perdendo o que era seu. E se sentia muito bem naquela ocupação silenciosa
de enumerar coisas.

A curriola de sete se divertia com histórias. Bacanaço sustentava o paletó no antebraço, seus
sapatos brilhavam, engraxados que foram outra vez, e a mão direita, manicurada, viajava para
cima e para baixo, levando e trazendo um cigarro americano. Os bondes passavam.

A cidade expunha seus homens e mulheres da madrugada. E quando é madrugada até um


cachorro na praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo. Pálidos,
acordados há bem pouco, saem a campo rufiões de olhos sombreados, vadios erradios,
inveterados, otários, caras de amargura, rugas e problemas... passavam tipos discutindo mulher
e futebol e turfe, gente dos salões de dança, a mulher lindíssima de vestido de roda, passos
pequenos, berra erotismo na avenida e tem os olhos pintados de verde... “nem é tanto”, diz um,
para justificar-se de não tê-la... mas os olhos famintos vão nas ancas... malandros pé-de-chinelo
promiscuídos com finos malandros de turfe, ou gente bem-ajambrada que caftinava alto e
parecia deputado,

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senador... vá ver — não passa de um jogador... o camelô que marreta na sua viração mesquinha
de vender pente que não se quebra, mulheres profissionais, as minas, faziam a vida nas virações
da hora... e os invertidos proliferavam, dois passaram agora, como casal em namoro aberto.

Aqueles faziam São Paulo àquela hora.

Era a hora muito safada dos viradores.

Malagueta, Perus e Bacanaço faziam roda à porta do Jeca, boteco da concentração maior de
toda a malandragem, à esquina da Ipiranga, fecha-nunca, boca do inferno, olho aceso por toda
a madrugada. Lá em cima, seu luminoso apagava e acendia um caipira cachimbando.

Ali tudo ia bem, por fora. Ponto que vibrava e quem visse e não soubesse, diria que eram,
honestamente, um grupo de boêmios folgados, ajeitados em boa paz. Mas o misticismo da luz
elétrica, de um mistério como o deles, só cobria solidões constantes, vergonhas, carga represada
de humilhação, homens pálidos se arrastando, pouco interessava se eram sapatos de quatro
contos, cada um com seu problema e sem sua solução e com chope, bate-papo, xícara retinindo
café, iam todos juntos mas ilhados, recolhidos, como martelo sem cabo. Nem era à toa que
aquela dona, criaturinha magra, mina bem nova ainda, se apagou no tamborete do canto e trazia
nos olhos uma tristeza de cadela mansa... Quando a justa, perua preta-e-branca dos homens da
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polícia roncava no asfalto, a verdade geral se punha na maioria dos olhos. Lugar de vagabundo
é a Casa de Detenção.

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Vulto magro, ô cadência de malandro, sapateia quando anda, pois, tem muito rebolado, mãos
nos bolsos, cigarro no bico, a Teleco na avenida São João. Vestida como homem, era mulher
que gosta de mulher. Fina no carteado, muito firme na navalha, até sinuca ela joga. Uma valente
da maconha. Àqueles ombros tarimba sobrava, que foram cinco os anos curtidos no pavilhão
feminino do presídio da Alegria. À boca pequena, boquejava-se que lá Teleco se fartava, e
quando em liberdade até estranhou e precisou arranjar uma amiga. A cabeça da mulata era de
cabelos lisos, amaciados à pasta. Pela sua panca resolvida de macho, numa briga corria o pé,
enganava e não dava o corpo e ali ninguém levava boa vida, o respeito que os malandros davam
à sua inversão.

- O rapaz!

Buliu relando no braço de Bacanaço. Catou-o, puxou-o para debaixo do toldo. Teleco,
traquejada. O malandro lhe devia coisas não poucas e ela soltou a ladainha. Zanzara de lá pra
cá, dera crepe ali, tropicara depois — estava sem nenhum, desempregada.

- Meu faixa, tô desabonado.

Cochicharam, boquejaram.

Bondes passavam jogando. O velho Malagueta gesticulava, com fricotes na parla


escarrapachada. Umas três horas já fazia que seus sapatos furados estavam desabotoados, à
vontade, e neles dançavam os pés sem meias. Mas o velho nem ligava, folgado. O menino Perus
era uma coisa, mas não sabia que era. Modelo, como dizem as mulheres. Malvestido, era
verdade, mas

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nele iam bem os olhos claros, descoroçoados um pouco; ia bem o peito largo se afinando com
a altura boa, corpo maneiro de atitude rápida. Um modelo novinho. Até seus andrajos, de certa
forma, lhe iam bem. Mas não dava fé, por exemplo, daquela dona que agora na curriola o comia
com os olhos. O menino Perus pensava nos joguinhos de Vila Alpina e contava luzes.
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Bacanaço lhe escorregou um galo, uma nota de cinquenta, a mulata Teleco enfiou-a no grilo
esquerdo, que no outro bolsinho interno da frente da calça trazia o isqueiro, cômodo, pequenino,
à malandra. Recolheu sem verificar, largou o agradecimento, ligeira se sumiu.

Os sete da curriola começaram a debandar. Foi-se um e se foi outro e a mulher com seu amigo,
a conversa murchou. Ficaram Malagueta, Perus e Bacanaço.

A madrugada geral continuava; lentos, safados passavam.

Deu-lhes a fome do jogo, deu-lhes a gana. Muito necessário multiplicar aquele dinheiro, metê-
lo no jogo, que a noite ia alta, a madrugada em marcha. Rodar, funcionar, vasculhar todas as
bocas do inferno e depressinha, enquanto houvesse luminosos acesos. Deu-lhes a febre. E se
abalaram e nem quiseram saber se iam certos ou errados.

Os três sabiam que depois dos luminosos a cidade lhes daria restos e lixos. Só. E em pensamento
divisavam as probabilidades em três-quatro muquinfos onde se arrumariam ou se entortariam
— o Americano da rua Amador Bueno, o Paratodos do largo Santa Efigênia, o Martinelli, o
Ideal, talvez o Taco de Ouro...

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Travessia da avenida São João, seguimento da avenida Ipiranga. Entraram pela Amador Bueno.

A rua estreita, escura. De um lado e do outro, falhas no calçamento, basbaques espiavam e


malandros iam a perambular. Mulheres da hora moviam as cabeças para a direita, para a
esquerda, para a frente, na tarefa de chamar homem. A pintura nas caras e nos cabelos se
exagerava e elas encostavam-se às beiradas, mascavam coisas, fumavam muito. Ficavam nos
cantos, intoxicadas, para enfrentar a rua.

— Moreno, me dá um cigarro.

Seus olhos parados, as bocas mascavam, os homens passavam, escolhiam...

As roupas apertando carnes, que com exagero os decotes mostravam. Umas riam, convidavam,
cantarolavam, diziam provocações, piscavam os olhos como menina fazendo arte. Quando em
quando, um casal se formava, ela caminhava à frente, rumo ao edifício, a chave na mão, o
homem atrás. Intoxicadas. A Amador Bueno era triste.

Muita conversa. Sono, fome e vagabundos nos bancos laterais. Muitas falas daquela gente parda
e pálida no Americano, famoso ponto de aponto. Um reduto em que batedores de carteira,
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rufiões, jogadores e o geral da malandragem se promiscuíam com tiras e negociantes de


virações graúdas e miúdas. Quando se pretendia um encontro, era o Americano para todas as
espécies de múltiplas arrumações. Mil e um conchavos. Ali funcionavam tipos de muitos
naipes, desde a malandragem

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das beiradas das estações até os comerciantes da rua 25 de Março. Tiras decaídos, tiras atuantes,
gente da Força Pública compareciam contemporizados à malandragem. Engraxate, manicure,
barbeiro ao fundo.

Aquele sábado, entretanto, o dinheiro nas mesas não corria. Jogo nenhum no salão de vinte e
tantas mesas.

Sondaram. Os três passearam entre mesas, tensos passavam sem falar, estirando os beiços,
chutando coisas do chão gasto. Havia moscas, fumaça, calor. Mesas vazias, tacos em seus
lugares, bolas ausentes. Os barulhos das conversas, os pentes dos engraxates repicavam numa
batucada, risos chegavam da barbearia. O bulício aborrecia.

- Não deu pé. Vamos girar.

Voltaram à Ipiranga, com a mesma febre marcharam.

Já de longe o distinguiram, entre dois homens, num terno de brilhante inglês, naquela pose sua
com só metade da mão no bolso. Chegaram-se, humildes cumprimentaram, buscaram conversa,
tiveram modos. Bacanaço, solícito, estendeu os cigarros americanos.

A esquina da Santa Efigênia toparam Carne Frita, valente muito sério, professor de habilidades.
Havia na cidade e ainda noutras cidades bons entendedores e tacos atilados com capacidade
para fechar partidas, liquidando as bolas. Havia nomes e famas que corriam. Muitos, muitos.
Praça, Paraná, Detefom, Estilingue, Lincoln, Mãozinha... Eram artistas do pano verde. Mas
Frita... quem entendia de sinuca era ele. Em cima dele

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foram e gramaram muitos e muito esperto perdeu o rebolado, e muito cobra ficou falando
sozinho, esfacelado em volta da mesa, como coruja cega. E muito patrão de jogo caro se perdeu
em apostas contrárias, em lances para mais de vinte contos. O homem ganhara tamanho,
celebridade; uma curiosidade que se exibiu ensinando até na televisão. Seu nome e fotografia
em pose de jogo foram para o jornal numa reportagem que assim dizia: “sinuca de carne frita é
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falta de adversário!”. Era Carne Frita. Botassem respeito, sentido e distância com silêncio e
consideração.

Moço, baixinho, com uns olhos de menino, esguio como os malandros do joguinho que andam
quilômetros ao redor das mesas, ninguém daria nada àquele, parado, à esquina da Santa
Efigênia, dando um gesto de mão a Malagueta, Perus e Bacanaço. Fossem ver... Perguntassem
em Goiás, em Curitiba, em Porto Alegre, no Rio, em Fortaleza... Sua história abobalhava, seu
jogo desnorteou todos os mestres.

Quem de sinuca entendia era Frita.

Mas a febre era a febre e queimava e dava pressa.

Despediram-se do maior taco do Brasil, ligeiros e firmes entraram pela Santa Efigênia, rua de
virações como outras, àquela hora dormidas. Alcançaram o largo Santa Efigênia, a igreja de um
lado, a sinuca do outro.

Os sapatos fizeram um barulhão na escada comprida de madeira. Rápidos, subiam. Veio-lhes,


num átimo, a fantasia de brincarem degraus três a três. Perus e Bacanaço iam, lépidos.

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Malagueta capengou, aguentou-se mal e mal no corrimão, apertou os beiços num esforço. Os
companheiros pararam mais acima. Riram:

- Tá caindo do cavalo, velho?

A escada deu-lhes, enfim, o salão.

- Vem cá, moleque!

Piranha esperava comida.

Mal entraram no Paratodos, deram com a voz do negro intimando Perus e o brinquedo acabou-
se, e tudo o mais se confundiu, ficou cinzento.

Escuro nas mesas, salão silente, tacos jogados, pontas de cigarros no chão. Luz só no balcão do
Paratodos vaziinho, sem jogo, sem parceirinhos.

Aquele silêncio esquisito de esporro que vai se dar.

Piranha esperava comida.


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- Vem cá, moleque!

O negro chamando, apoiado ao balcão. De branco, pele brilhando, chapéu de preço, cara
redonda, enorme, onde um riso debochado se escarrapachava.

O menino Perus ensaiou maquinalmente a meia-volta. Bacanaço desaprovou, a mão parou,


palma para cima; imprimiu:

- O jeito é enfrentar.

Piranha esperava.

O menino foi e se deu mal, que era Silveirinha, o negro tira. Perus se desnorteava em erradas,
começava pela timidez de não dizer nada. Chumbado no chão.

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Bacanaço se pôs de largo, calmo; Malagueta se foi para o escuro de uma mesa, dobrou-se,
aguardou. Jogo? À cata dele chegaram e toparam polícia à boca de espera. Estrepe pesado e
duro. Só o homem da caixa contando notas e espiando por cima das lentes redondas como quem
nada visse. O homem mais Silveirinha.

Piranha esperava comida.

- Moleque, você já pagou imposto?

Azucrinava, exigia, demorava-se no exame do menino. Ali, cantava de galo, dava cartas, jogava
de mão, mexia e remexia, a condição de mando era sua. Infeliz algum abria o bico. Levantou-
se, fez a volta ao redor de Perus. Esperou a fala.

O menino tinha um bolo na garganta, feito espeto atravessado. Queria pensar em coisas
diferentes, longínquas, estupidamente caçava atar um fio que começava pela mesma ideia e se
estraçalhava logo e tornava ao começo. E assim. Não era de hoje que sentia vontade dos
joguinhos de Vila Alpina. Se desse uma sorte... A coisa voltava à garganta, via Silveirinha, o
pensamento se perdia. Vila Alpina, outra vez. A Vila famosa na boca de todos os malandros,
onde Perus se viraria. Silveirinha. Perdia pensamento. O bolo na garganta. Enviava os olhos
suplicantes para Bacanaço, mudamente pedia socorro, as mãos paradas, os músculos da cara
parados, a coisa na garganta engordando. Adoraria falar! Mas naquele seu quieto humilhado
não engrolava nada. Entrevado. Piranha espera comida. Malagueta acompanhava. Aquela
zombaria e aquela humilhação eram suas velhas conhecidas. Necessário dinheiro para
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tapar e a boa conversa de Bacanaço, conhecido dos homens da polícia. Malandro de sua classe
sempre contorna esbregue com os homens da lei. Na situação nada boa, Bacanaço não trairia,
aguentaria o repuxo, iria contemporizar. Nem o menino pegaria xadrez por falta de um
entendimento. Aquilo era um conluio, um ali era do outro, diferenças não haveria.

Mas o tempo custava a marchar.

Num lance, o abuso ganhou tamanho. Silveirinha apertava os pés do menino com o tacão do
sapato e ria.

No Paratodos, o homem da caixa media os homens, atrás dos óculos de aros de ouro. Mesas
esquecidas, luz só no balcão. Nada fazia o homem da caixa senão espiar. Assim eram todas as
madrugadas do Paratodos, ponto de Silveirinha. Surgisse malandro desconhecido, cara
ignorada, o tira ia ao ataque, exigia com firmeza. Fácil, fácil. Era o comum das noites, e o
homem da caixa apenas olhava. Assim era o natural.

Os acintes cara a cara. Pirraçava, achincalhava. Os tacões não comprimiam mais os pés do
menino e Silveirinha reconduzia os desacatos.

- Cadê o tutu, moleque?

Pequenos passos de passeio à volta do menino e os risos seguidos. Perus abotoava os olhos
espantados em Bacanaço e os pensamentos embaralhavam-se, a testa quente, um peso na testa.

O quê? Viera dar com o lombo no Paratodos a troco de quê? Catar esbregue, confusão? Diabo.
E Silveirinha à sua frente, espezinhando. Negro, todo lustrava — pele, sapato, camisa de

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seda, gravata, terno branco de linho cento e vinte, unhas, dente de ouro...

Diabo. Estava na boca daquele lobo e desabrigado, feito bezerro enjeitado. Os dedos se
esfregavam com atropelo, a voz não vinha.

- Meu moleque...

Abraçou o menino e era uma tentativa aberta de surrupiar-lhe a carteira como fazem os
batedores e o geral dos lanceiros. O tira, mais alto e mais forte e os ombros de Perus se
encolhiam, o menino suava no blusão de couro, se defendia arqueando-se com dificuldade.
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De longe, Bacanaço. Uma distância infinita eram aqueles cinco metros os separando. A
aperreação sobre o menino já fora a bem mais do que devia, era muita folga. Assim faziam os
homens da lei quando exigiam. Machucavam à vontade, satisfaziam-se, as aporrinhações só
vagabundo sabe. Sim. Se a gente sair por aí contando como é o riscado da vida de um sofredor,
os trouxas, com suas vidas mansas, provavelmente dirão que é choradeira. Sim. E quando se
manda um danado e folgado daqueles para a casa do diabo, metendo-lhe com fé uma ferrada
nos cornos, uma cortada na cara ou um tiro no meio da caixa do pensamento, a coisa enfeia
muito, vai-se dar com o lombo na Casa de Detenção. E são abusados e desbocados e têm apetite
de aproveitadores. Piranhas esperando comida. Pisando o menino, azucrinando, tentando
surrupiar o menino... Os tais da lei. Encarou Silveirinha, a raiva arranhava. Arrumava-lhe um
sapo

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inchado - ô vontade de lhe dar a ripada! Se marchasse de navalha para cima de Silveirinha não
seria a fim de fazer carinho não. Iria solar com vontade. O bicho iria gemer, que ele poderia
cortar de baixo para cima, era professor da lâmina ligeira - ligeira varando o paletó de linho,
correndo direitinho. Haveria o grito, no começo; depois, o cachorro que rebolasse feito minhoca
ofendida no chão, onde aguentaria chutes na caixa do pensamento e nas costelas e todo o
acompanhamento que se deve dar a um safado. Bacanaço imaginava-o de boca aberta, estirado
naquele soalho, a língua de fora, se torcendo feito minhoca partida em duas. Ou um rato abatido
a ferro. Seria só dar à navalha. Sangrar. E fim.

Mas dever, não devia. Era um vagabundo — calasse, engolisse o seco da garganta, aturasse e
fosse se rebaixar feito cachorrinho. Pedisse jeitosamente: “faz favor”, e desse o dinheiro,
entregasse o mocó, o arrego para livrar a cara de Perus. Vontade de cortar, essa era muita. Era
um vagabundo, entretanto, e se calou.

Os olhos pequenos de Malagueta pararam no terno branco do tira. Com energia endireitou-se,
pôs-se de pé.

- Moleque, toma a tua linha, moleque. Cadê o tutu? - com o dedo mostrava o exemplo: as notas
que o homem da caixa contava. — Faz minha vontade, moleque.

Malagueta se continha mal e mal. A perturbação que o menino sofria era muito comprida, larga
e pesada. Uma purgação do capeta. Em que buraco caíra o coitado... E estava apagado,
apagadinho, não falava um a. Chumbado no chão feito pos-
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te de iluminação. Silveirinha? Um cadelo. Esperava um gesto só de Bacanaço e já partiria e


desempenharia seu papel e iria apanhar ou surrar muito — pensou. Cachorrada tem limite.
Imaginava correr o pé por baixo, partiria para Silveirinha já com o taco na mão. Chutaria os
rins, o sexo, depois chutaria a cara balofa. Usaria o bico dos sapatos, os chutes valendo.

Estes e outros pensamentos, entretanto, esbarraram com uma realidade e se esfriaram


depressinha.

O que viria depois do arranca-rabo? Baixou os olhos, um vagabundo era um vagai e só. Aquilo,
aquilo sempre — vadio é o que fica debaixo da sola do sapato da polícia. O velho se fechou;
doía mas Malagueta se trancou. Com as mãos e com a cabeça pediu a Bacanaço. Ajeitasse.

O malandro se chegou.

- O menino é gente minha - sorriu, maneiro, mais pedia que falava. – Podemos conversar, chefe?

- De boas falas é que eu gosto, Bacana. Por isso lhe considero — abriu-se no riso gozoso. —
Você é meu, Bacana.

A zombaria continuando naquele “Bacana”...

Fazia uns olhos ruins, satisfeitos. Os safados rendiam-se. Mostravam-se agora — eram
parceiros, vadios e associados, com Bacanaço à chefia. Carregavam dinheiro.

Bacanaço fez o sinal, mostrou a escada aos companheiros.

- Desguiando. Se raspando.

Os dois desceram, desenxabidos, esbarrando nas coisas, pernas bambas. As orelhas pelavam.
Foram esperar no largo.

P. 196

Pediu bebida com desplante, indicou o tamborete, sentaram-se como iguais. Como colegas. O
malandro e o tira eram bem semelhantes — dois bem-ajambrados, ambos os sapatos brilhavam,
mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não soubesse, saber não saberia quem ali era
polícia, quem ali era malandro. Neles tudo sintonizava.

Silveirinha e o seu Macieira passeando na mão. Sorria, dava tapinhas, uma cordialidade
estabelecida à pressa e a seu jeito.
245

- Estamos aqui, meu camarada - e para o homem da caixa —, o nosso amigo paga.

Chamando-o de meu camarada, de nosso amigo...

Bacanaço aturou e foi acedendo. Pagou o conhaque. O tira sabia de suas vontades presas e se
prolongava nos minutos de prosa fiada, se divertia.

Sentiu que não aguentaria mais, ia explodir, boa coisa não faria. Entregou-se, uma ruga nas
sobrancelhas. Abriu o jogo, mostrou a nota de quinhentos.

-E o que se tem.

Pretextou pressa, escorregou a cédula, pediu licença. Ganhou a escada de madeira, o amargo na
boca.

Silveirinha rematou a bebida, recolheu a nota, examinou as unhas.

-Até, meu camarada.

Lá no largo, os três ouviram ainda a risada que se escarrapachava forte.

Não disseram nada, caminharam. Um sentir de quem perdeu,

P. 197

um sentimento abafado os arrasava e os unia e lentos, tangidos, caminharam.

Tomaram o viaduto Santa Efigênia maquinalmente, numa batida frouxa e dolorida. Só se ouvia,
à frente, o “plac-plac” dos saltos de couro de Bacanaço. A gana do jogo lhes passara de todo e
não percebiam o vento quieto e úmido batendo-lhes agora, nas caras e nas pernas. As três
cabeças seguiam baixas. Eram três vagabundos e nada podiam. Seguissem, ofendidos.

O velho viaduto Santa Efigênia ficava solene na sua velhice de construção antiga e mais velho,
àquela hora de calma. O viaduto velho, os prédios novos, muitos, enormes se atirando em
vertical, dormidos agora. Visto de cima, o vale do Anhangabaú era um silêncio grande de duas
tiras pretas de asfalto. O menino Perus olhou. Lindo, o vale, aquele silêncio de motonetas
paradas, de árvores e de carros em solidão. Lua lá em cima, o menino olhou. Já se percebia, à
frente, o contorno do mosteiro de São Bento, também sossegado no seu jeito antigo. Luz elétrica
dos postes jogava uma calma...

Uma carga humilhada nos corpos, uma raiva trancada, a moral abaixo de zero. Secos, apenas
se olhavam, quando em quando, sem reclamações. Fazer o quê? Eram três vagabundos e iam.
246

Uma porrada, fora uma porrada. O velho se adiantou, olhou os dois. Emparelharam-se. Os
olhares dos três se acharam e Malagueta, Perus e Bacanaço pararam minutos. O silêncio agora
pesava, os três olhavam-se, com pena, palavra nenhuma.

P. 198

Lá embaixo, no vale, um auto roncou, firme, aproveitando a hora.

Havia um padecimento, doía, arrasava.

O velho Malagueta rangeu os dentes, tentou uma careta, necessário dizer alguma coisa,
necessário dizer, por exemplo, que não se levassem tanto a sério, apareceu um estrepe, e, afinal,
na vida de viradores... A cabeça se mexeu para os companheiros.

- A gente fica até coisa, meus. Aquilo nem é cinismo; é cinidez.

Era nada engraçado. O silêncio pesou mais.

Não era exatamente o dinheiro. Quinhentos cruzeiros não machucam quem se atira a partidas
de até dois contos ou atravessa dias sem comer, combatendo em volta da mesa. Dinheiro é do
jogo e para o jogo — donde vem e para onde vai. O sofrimento não era pequeno não. Seu
tamanho não era o da nota de quinhentos. O que doía era sofrerem uma apoquentação e não
poderem malhar o abusado que a vomitara.

Só vagabundo entende aquele espeto. Mocorongo, trouxa, pixote, cavalo-de-teta, otário, vida
mansa algum nunca perceberia o que se passava com Malagueta, Perus e Bacanaço. Só um
vagabundo.

- A gente inda vai à forra, velhão - Bacanaço deu um tapa no paletó imundo de Malagueta. -
Deix’estar. Tenteia, velho.

Só Perus não falou, inteiro no seu quieto.

Angústia parada nos passos lerdos. Marchavam, pálidos, meio cansados. O relógio do mosteiro
de São Bento mostrava

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quase três horas. Poucos vagabundos deitados nos cantos dos portões, cobertos mal, eram
amontoados escuros e confusos de panos e folhas de jornal.

Ao Martinelli, sem entusiasmo. Tomaram a Libero Badaró.


247

O velho salão do Martinelli com seus grandes espelhos laterais do tamanho de um homem,
refletindo as luzes brancas, brancas; as paredes trabalhadas à antiga, o ar úmido, o mofo do
maior bilhar da cidade. E como o jogo minguasse, o abandono das mesas, dos marcadores e dos
tacos alinhados a seus cantos, constrangia. Era um silêncio grande de muitas mesas vazias e de
giz esquecido.

Uma voz cortou.

- Charutinho!

O caixa mandava o xingamento sobre um velho, que reboteava à zombaria com uma praga
graúda, em italiano. Era um homem bêbado, estropiado, engraxate de mãos imundas,
estrangeiro, desses velhos que dormem nos cantos dos bilhares, curtindo fome ou sono,
mansamente; e que os malandros e os homens das curriolas xingam, espezinham, chamam de
lixo.

- Charutinho!

Aquilo bulia com Perus. Não estava certo esquentar a cabeça de um infeliz com um apelido
besta. E era um velho mais velho que Malagueta.

- Charutinho!

A resposta partia em italiano, pronta, violenta, desesperada, o homem batia os pés no chão,
ameaçava socos no ar e ficava

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no meio do salão, cambaio, atrapalhando-se com o apelido e com as pernas, que se


desentendiam. Álcool rondava aquela cabeça branca. Houve um momento em que seu
nervosismo cresceu e parecia que ele ia chorar.

- Charutinho! Nenhuma graça. Os três percorreram mesas, marcharam para os fundos,


ocuparam o mictório. Perus se exasperou com os berros que vinham do salão.

- Esse cara xingando merecia uma lição.

- Merece — sustentou Bacanaço.

Malagueta, alerta, com a cabeça em seu lugar. Vinham quentes que pelavam do Paratodos e não
cuidassem, ficariam fulos com os gritos do caixa. Acabariam explodindo e se atracando com o
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gaiato, que a raiva mais cresceria. Quebrariam o homem. E para quê? Inutilmente armariam
esporro. Estavam já numa onda de azar raiado, houvesse cuidado. Recomendou juízo.

- Deixe pra lá essa zonzeira.

A resposta vinha em italiano. Mandava uma praga.

- Lazzarone!

Saíram do mictório, mudos, crispados, andaram, ganharam o vale do Anhangabaú, onde tudo
era dormido e só se via um olho aceso no alinhamento dos prédios da rua Formosa — sozinha,
a janela maior do Salão Ideal. Caminharam para ela.

A madrugada geral esfriara, pelas ruas de São Paulo corria um vento úmido, aquele vento das
madrugadas...

Os luminosos ainda resistiam, os postes de iluminação com

P. 201

seus três globos ovalados eram agora de todo silentes, e atiravam sobre a cidade um tom
amarelo, desmaiado, místico no sossego geral da hora. Para os lados do viaduto do Chá e do
Teatro Municipal, os luminosos, em profusão, jogavam cores, faziam truques, acendiam e
apagavam uma repetida festa muda.

Perus não perdia do pensamento o caixa xingando o velho. Repetiu, sozinho:

- É um cadelo. Será que ele não tem pai?

No Ideal, deserto, sem jogo, lhes deram uma notícia toda boa. Rondara por ali, não fazia quinze
minutos, uma diligência conjunta da Rude e da Rone — rondas noturnas especiais, que do salão
arrancaram de supetão cinco malandros dormindo nos bancos e os trancafiaram, que com aquela
polícia não havia conversas, arregos ou arrumações. Malagueta, Perus e Bacanaço haviam
escapado por uma asa de barata.

Luz da esperança lhes brilhou.

E entenderam que a maré de sorte lhes voltara, de repente, à grande, gorda e generosa. Pois, até
a polícia mais perigosa e séria não evitavam, sem querer?
249

Uma vontade súbita os tomou. A cidade não dera jogo, dera prejuízo e até estrepe no caminho?
Não havia nada não. São Paulo era grande e eles, três tacos, tinindo para o que desse e viesse.
Haveria jogo em algum canto. Faziam fé.

E foram afoitos à rampa íngreme da praça Ramos de Azevedo, catariam uma condução, carro,
bonde, qualquer coisa. A subida era dura, mas a marcha era batida, confiante. Iam a Pinheiros.

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Pinheiros

Na rua comprida, parada, dormida — vento frio, cemitério, hospital, trilhos de bonde; bar vazio,
bar fechado, bar vazio...

Malagueta arriava a cabeça no peito, leso, mãos nos bolsos. Bacanaço à frente, vestira o paletó
e ia como esquecido dos companheiros. E nem o menino Perus falava.

E caminhavam. Topavam cachorros silenciosos, chutavam gatos quizilentos, urinavam nos


tapumes, nos escuros.

Andaram muito, magros e pálidos. E sentiram-se cansados e com fome e sonados. Não lhes
acontecia nada. Nenhum boteco aberto. Como aquele silêncio os calava... Não falavam, não
assobiavam, um não olhava para o outro.

Pinheiros dormia de todo; nem gente, nem carros, na rua Teodoro Sampaio nenhum bonde
passava. Em pensamento, Malagueta, Perus e Bacanaço xingavam Pinheiros.

Cães latiam na madrugada e um galo cantou.

Tinham pressa, mas iam lentos e até chutavam coisas do caminho. Bar fechado, bar fechado e
aquele mais adiante já também. Esta repetição os desgostava, os encabulava, metia-lhes
pensamentos bestas.

P. 203

Silêncio os baixa a zero e cigarro nada resolve, só afunda o pensamento errado, amargo, que
embota a malandragem, numa onda de coió.

Dinheiro nos bolsos havia, que sobrara algum das divisões de Bacanaço e da exploração de
Silveirinha, mas por dentro iam batidos, batidinhos. E Malagueta, Perus e Bacanaço curtiram
aquela de pensar. Uma vez, quando o menino Perus era um menino e trabalhava no brilho de
um sapato, que sua viração era engraxar, um safado roubou um aleijado esmoleiro na porteira
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do trem e o infeliz botou a boca no mundo. Os gritos botaram o larápio a correr para bem longe
da Lapa-de-baixo. O bicho vinha aos pinotes, tropicando e chocando-se e chutando coisas que
lhe atrapalhavam a corrida, e se apavorou e jogou a grana roubada — era tudo pixulés,

caraminguás, notas de um, de dois, de cinco cruzeiros. Aos pés do menino Perus. A rua estava
azoada e a polícia chegou não querendo prosas fiadas. Houvesse explicações e imediatamente.
O atrapalhação ingrata que foi justificar aquele dinheiro... Assim sempre, pensava Perus,
trabalhando para os outros, curtindo as atrapalhadas dos outros. Papagaio come milho, periquito
leva a fama. Como um pé-de-chinelo, como um dois de paus. Para que esperar um dia de maré
de sorte? Para que pretender os joguinhos caros e bons de Vila Alpina? O menino Perus achava
que seria sempre um coió-sem-sorte, sofredor amansando a vida deste e daquele. E lhe chegava
a ideia velha, solução pretendida, única saída dos momentos de fome.

P. 204

- Um dia eu me apago.

Roubaria uma grana, se enfiaria num trem para Perus, onde ficaria quieto, para de lá não sair
mais. Aturaria a tia, o amásio bêbado, a vidinha estúpida e sem jogo, a enorme fábrica de
cimento de um lado, o casario mesquinho do outro. E iria se fanar com uma ocupação na fábrica,
com uma enxada, com o diabo. Sua hora de dormir seria dez horas. Lá em Perus, o menino não
curtiria madrugadas e fome, nem se atiraria como um desesperado à primeira viração que
surgisse. Malandragem não dera pé.

Mas o joguinho virava, sorria, chamava, dava-lhe um parceirinho fácil em duas partidas de
duzentos e cinquenta cruzeiros. Os pensamentos bons iam embora, arranjava um patrão, caía
na sinuca. Ganhava um tanto, se arrumava por uns dias. Na continuação, de novo se estrepava,
o joguinho castigava. Perus combatia, entretanto. Doía-lhe na pele ver o capitalzinho juntado
ir-se minguando, pingado fora de seu bolso, feito coisa do alheio. Desnorteava-se nas tacadas,
com pouco estava sem nenhum, arruinado, sem dinheiro e sem patrão. Dias depois, se
mortificava com lamentações novas.

Bacanaço andava agora com uma mina nova, vinte anos. Morena ou ruiva não se sabia, que
ficava loira de cabelos oxigenados, porque o mulato preferia loiras. Fazia a vida num puteiro
da rua das Palmeiras, tinha seu nome de guerra - Marli. A mina lhe dava uma diária exigida de
mil, mil e quinhentos cruzeiros, que o malandro esbagaçava todos os dias nas vaidades do vestir
e do calçar, no jogo e em outras virações. Quando lhe trazia menos
251

P. 205

dinheiro, Bacanaço a surrava, naturalmente, como fazem os rufiões. Tapas, pontapés, coisas
leves. Apenas no natural de um cacete bem dado para que houvesse respeito, para não andar
com bobice na cabeça e para que não se esquecesse preguiçando na rua, ou bebericando nos
botecos, ou indo a cinemas, em vez de trabalhar. Obrigação sua era ganhar - para não acostumá-
la mal, Bacanaço batia-lhe. Nas surras habituais, o porteiro da pensão da Lapa surgia, assustado.
Bacanaço o encarava.

- Olhe, camarada: entre marido e mulher, ninguém bote a colher.

E se o homem perguntava, solícito:

- O seu negócio deve ser cuidar de sua vida — e abria os braços - ou é cuidar da minha?

O tipo se ia, cabisbaixo, desenxabido, para o mesmo lugar donde viera.

Se a desobediência se repetia, o cacete se dobrava. Bacanaço se atilava em crueldades mais


duras. Para começo a trancafiava no quarto e partia para a rua, onde se demorava horas. Ia à
sinuca, ia andar a fim de pensar bem pensado; a mulher que lá ficasse aguentando fome e
vontades. Voltava tarde, bebido e abespinhado, usava o cabo de aço e agia como se Marli fosse
um homem. Proibia-a de gritar. Malhava aquele corpo contra as paredes, dava-lhe nos rins, nos
nós e nas pontas dos dedos. Encostava-lhe o cigarro aceso nos seios. Às vezes, Marli urinava.

Na outra noite a mulher seguia para o bordel, dolorida,

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pisada. Na cama, os fregueses costumavam perguntar o que eram aquelas marcas pretas no
corpo.

- É amor — e olhava para o teto —, vamos logo.

E retomava a linha da produção, cadelinha obediente, pronta a entregar o que ganhava. Tudo.
Mulher de malandro. Se preguiçasse, de novo era trancafiada e batida.

Mas Bacanaço, agora descendo lento a rua Teodoro Sampaio, não pensava assim. Chegavam-
lhe, em pensamento, as coisas boas, numerosas, que dava àquela mulher. Era um protetor.
Sacou-a da cadeia várias vezes, arranjou-lhe habeas corpus, negociou com tiras do setor de
Costumes, tratou com este e com aquele. Mil e uma atrapalhadas. Obteve-lhe um quarto de
bordel, entendeu-se com os policiais do trottoir, deu-lhe um lugar na malandragem, deu-lhe luz,
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que diabo! Uma tonta a quem precisou até ensinar como proceder com um homem na cama.
Gastara muito dinheiro com aquela Marli, uma criança, uma otária, que nem roubar os fregueses
sabia... Um estrepe, uma viagem errada, que só lhe dava trabalho e lhe esquentava a cabeça.
Uma trouxa que mal o merecia, malandro maduro e fino.

Tinha em sua mira uma prostituta de fama, um pedação de mulher com quem já ensaiara namoro
de olhos vivos, lá na avenida Duque de Caxias. Mulher com uma situação, um apartamento,
fregueses de quilate, políticos e outros bichos, vestida como madame. Arisca como manhosa,
gata, atraía otários como só mulher que quer e sabe, consegue. Tivera vários coronéis, gente da
alta, que lhe davam mesadas de trinta, quarenta contos

P. 207

por mês. Era alta e loira e Doroteia e o seu dinheiro era muito. E sem amásio, que era mina
exigente também. Muito malandro tentara a conquista e ficara falando sozinho. E pelo começo
dos olhares interessando-se, aquele medir-se de corpos, à malandra, mudamente sintonizando
vontades... Aquilo seria um caso. Doroteia era loira fornida, de grandes ancas que mexiam, iam
e vinham numa batida temperada, manhosa. Uma égua de raça, que corria na boca e na
pretensão de grandes malandros.

- Um mulherão na cama.

E um rendimento graúdo.

Para a fantasia de Bacanaço, aquela mulher lhe daria por baixo, baixo, para começo de boa
conversa, um carro de passeio. E quatro mil cruzeiros por dia.

Quase quatro horas da manhã. Terminaram a Teodoro Sampaio, com mais um pouco,
Malagueta, Perus e Bacanaço estariam no centro do bairro, alcançariam o largo de Pinheiros.
Havia em Pinheiros, junto ao posto maior de gasolina, a Pastelaria Chinesa, fecha-nunca de
rumor e movimento, que se plantava defronte aos pontos iniciais dos bondes e ônibus, que dali
seguiam para todos os cantos da cidade. A Chinesa fervia, dia e noite sem parar, que ônibus
expressos vindos de longe, ou caminhões de romeiros de São Bom Jesus de Pirapora e de
Aparecida do Norte ali faziam escala para reabastecimento, paradas, baldeações... Ali se
promiscuíam tipos vadios, viradores, viajantes, esmoleiros, operários, negociantes, romeiros,
condutores, surrupiadores de carteira, estudantes, mulheres da vida,
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P. 208

bêbados, tipos sonolentos e vindos da gafieira famosa do bairro, o Tangará; apostadores


chegados do hipódromo de Cidade Jardim... Sobressaíam-se em número os japoneses, calados,
cordiais, laboriosos, em trânsito para o mercado de Pinheiros ou para a vida do comércio nas
lojas, nos armazéns, nos botequins. Os japoneses, com suas caras redondas e seus modos de
falar sorrindo e meneando a cabeça, eram os donos do bairro. A Chinesa, um ponto central, dia
e noite. Movimentos vibravam, vozerio, retinir de xícaras, buzinas. Corriam ali muitas
modalidades de negócio miúdo e graúdo. Tabacaria, prateleira de frutas, engraxates, banca de
jornais e livros e revistas e folhetos de modinhas e histórias de Lampião, de Dioguinho e revistas
japonesas, restaurante popular ao fundo, davam assuntos e oportunidades. E aproveitadores
proliferavam na confusão, desde o homem triste que vendia maçã de brinquedo até o virador
loquaz que aplicava engodos, contos aos caipiras, aos pacatos, aos basbaques, vendendo-lhes
terrenos imaginários ou penduricalhos milagrosos, adornos reluzentes ou falsas peças de tecidos
famosos com auréola inglesa. Chegado de outros cantos da cidade, dos interiores de São Paulo
e do norte do Paraná, o dinheiro ali corria.

Entraram, tinham fome, Bacanaço os convidou, pediram pratos feitos, chamados sortidos.
Vieram pratos fundos, cheios — arroz, feijão, farofa, rodelas de tomate, miúdos ensopados. O
mulato não gostava de farofa e Malagueta aproveitou-a. Disseram-se coisas, olharam o
movimento, a encabulação sumindo. O

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velho comia com pimenta e bebia cachaça, Perus apreciava guaraná, Bacanaço bebia cerveja
gelada.

Comido o primeiro prato, sentiram ainda fome, pediram outro. Veio-lhes depois sono e cansaço.
Bebericaram café lentamente. Cansados e sonados de verdade, esfregavam os olhos,
bocejavam, deixaram-se ficar, sentados.

Estiveram tempo sem fim, embrutecidos na madorna arrastada. Malagueta pendeu a cabeça,
enfiou as mãos nos bolsos, encolheu-se na cadeira; Perus tamborilava num garfo, devagar;
Bacanaço espiava, fumava.

No balcão comprido da Pastelaria Chinesa, os ruídos do movimento prosseguiam. As pernas


dos homens atrás do balcão não tinham sossego.
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Levantaram-se, lerdos, dividiram as despesas. Saíram.

Havia luz lá em cima e se subissem, a escada lhes daria o salão.

- Por mim, a gente ia já pra Lapa - e Perus justificou-se -, tá quase amanhecendo, mora.

Dos lados do mercado chegava um vento leve, frio. Pouca e fraca névoa sobrava da madrugada.
Clarões iam surgindo.

Para o velho Malagueta, subir ao salão, tanto lhe fazia. Curtir duas ou três noites de sono exigia
o mesmo — botava uma cachaça na cabeça e saía à luta.

Luzes se apagaram nas ruas. Uma palpitação diferente, um movimento que acorda ia-se
arrumando em Pinheiros.

Primeiros pardais passavam.

Perus acompanhava os dois, mas olhava o céu como um

P. 210

menino num quieto demorado e com aquela coisa esquisita arranhando o peito. E que o menino
Perus não dizia a ninguém. Contava muitas coisas a outros vagabundos. Até a intimidade de
outras coisas suas. Mas aquela não contava. Aquele sentir, àquela hora, dia querendo nascer,
era de um esquisito que arrepiava. E até julgava, pela força estranha, que aquele sentimento não
era coisa máscula, de homem.

Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu. Marchava para o
seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era de um rosado impreciso, embaçado,
inquieto, que entre duas cores se enlaçava e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza
e o branco do céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente. Parecia um
movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte, gritando de cor naquele céu.

Entrou no salão, mal reparou nas coisas, foi para a janela. Uma vontade besta. Não queria perder
o instante do nascimento daquele vermelho. E não podia explicar aquele sentir aos
companheiros. Seria zombado, Malagueta faria caretas, Bacanaço talvez lacrasse:

- Mas deixe de frescura, rapaz!

Foi para a janela, encostou-se ao peitoril, apoiou a cara nas mãos espalmadas, botou os olhos
no céu e esperou, amorosamente.
255

Veio o vermelho. E se fez, enfim, vermelho como só ele no céu. E gritou, feriu, nascendo.

P. 211

Já era um dia. O instante bulia nos pelos do braço, doía na alma, passava uma doçura naquele
menino, àquela janela, grudado.

—Vamos brincar? — Bacanaço chamava.

Sabia que aquele momento tinha vários nomes e se ria por dentro e desprezava quando lhe
diziam “é o nascimento do dia”. Os outros nomes também eram frouxos. Gostava um pouco de
aurora, um pouco só, quando se falava baixo e sério. Sabia o que tinha de lindo aquele momento
e mesmo querendo contar a alguém não conseguiria. Não haveria jeito, com palavras difíceis
ou escolhidas ou modo arrumado, que reproduzisse aquele vermelho. Não era coisa de contar.
Era de ficar vendo, quieto, parado, esquecido. E bobo.

-Vamos brincar?

Era um salão repintado, de mesas novinhas e vazio àquela hora, só com o dono, um homem
solícito, que lhes ofereceu as bolas e informou que o salão tinha só um mês e meio. Mesas
excelentes, tacos oficiais, giz americano.

Ordem. Bolas, mesas, marcadores, tacos - tudo novo, limpo, a convidar. O colorido das bolas
já distribuídas, alinhadas no pano verde. Chamando.

- Ei, vamos brincar!

O menino se voltou.

Pegaram nos tacos, passaram giz, tacaram sem vontade. Brincavam, malabarismos,
manobravam com displicência, esqueciam-se de marcar pontos, invertiam tacadas, espantavam

P. 212

o sono, riam, brincavam. Passatempo, bate-bola, leite de pato, sem nenhuma importância.

No finzinho daquela partida de brinquedo, houve necessidade de Perus aplicar um golpe de


vinte pontos. Embocar de estalo a bola seis na caçapa do canto, foi tarefa de um golpe, e a bola
branca correu, mansinha, por toda a mesa, fez colocação natural na bola sete, a preta de muito
valor. Firme, um atirador que era, Perus embocou o sete duas vezes.
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Agora, não se brincava, sérios iam ao jogo. Malagueta espetava, aplicava sinucas repetidas em
Bacanaço. O mulato se defendia, hábil, deixava péssima a situação de jogo para Perus e o
menino tentava uma bola de valor, caprichava, não queria erradas.

E naquele leite de pato que deu em joguinho sério, um começava a medir o outro com
intenções, e safadezas no pensamento começavam a bailar, tímidas, nascendo, roendo, devagar.
O dono do bar limpava o balcão, entretia-se com pequeninas arrumações e quando em quando,
punha os olhos na mesa em que o jogo corria. Então, assobiava para disfarçar, como fazem os
balconistas quando, furtivos e discretos, fiscalizam fregueses. Se o olhar de soslaio encontrava
se com os dos malandros, o homem dissimulava jogando solicitudes:

- Desejam alguma coisa?

Num desses constrangimentos, Bacanaço fez um deboche:

- Um “simca-chambord” verde e branco. O senhor tem pra vender?

As intenções secretas iam ganhando corpo.

P.213

Malagueta media as duas forças - Perus, um atirador; Bacanaço, um atirador. Bem. Se se


batessem com ele num joguinho a valer, muito provavelmente fritaria os dois; primeiro, um;
depois, o outro. Trancar-lhes-ia o jogo com tamanha amarração intrincada e tantos espetos
seguidos, que ambos ficariam como baratas tontas, sem bolas a jogar. Dar-lhes-ia sinucas
repetidas, que aquelas mesas eram novas e grandes, mesas oficiais e nelas só um jogador
habituado fecharia jogo. Logo... Pediu cachaça. Engendrou — que jogo lhes proporia? Vida,
não. Vinte-e-um, não. Disputa só com as bolas seis e sete, era viável...

As safadezas cresciam, incluíam arrumações, dissimuladas, trapaças grossas.

Bacanaço pediu um avental para proteger a calça de linho. Imaginava também um jogo valendo
uma grana. Afinal devia tomar-lhes o dinheiro; não fora ele quem os patroara? Engendrou - que
jogo lhes proporia? Vida, não. Água Branca? E não era o patrão? Iria perder tempo em
Pinheiros? Não, não, nada disso. Malandro vive é com dinheiro. Golpe certo seria quebrá-los
através de um marmelo — sugeriria um torneio, uma terceirada e para o jogo partiria ligado
com Perus. Perus e ele, trapaceando, comeriam Malagueta. Depois, bem depois, encarar e
desacatar o menino seria fácil. Bacanaço era taco melhor, dar-lhe-ia uma vantagem qualquer no
marcador e no jogo, estraçalharia Perus. O dinheiro passaria todo para sua mão. Afinal, Perus
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não lhe dera tanto trabalho lá no Paratodos? Pois. Ambos lhe deviam favores e muitos. E jogou
o verde à espera do maduro.

P. 214

- Sinuca a passatempo é mancada. A gente perde a sensação.

As ruindades, em Perus, reduziam-se em tamanho, cresciam em intensidade — imaginava o


vinte-e-um. Queria o vinte-e-um, joguinho que toma tempo. Queria o vinte-e-um, joguinho em
que era um artista. Não queimaria um só cartucho à toa, malharia os dois homens enquanto
houvesse sinuca no mundo e quanto quisesse. Perderia, talvez, noutras modalidades. No vinte-
e-um, ganharia sempre. Era o seu jogo. Habilidades de combinações, evoluiria aos borbotões,
fino e certeiro, naquela mesa boa e nova. Bolas finas, embocaria todas. É. No quente de um
vinte-e-um... Mas não sentia coragem de convidá-los. Buscar, buscava; mas não encontrava
jeito com que iniciar o desacato. Como chamá-los para o jogo, o seu jogo? Afinal, Bacanaço
era o patrão e Malagueta, coitado, ajudara-o tanto na Água Branca. Entretanto, mesmo Perus
não conseguia afastar a ideia de tomar-lhes a grana. Disse, fingindo apenas concordar, mas ia
intenção nas palavras:

- Sinuca a passatempo é jogo de trouxa.

A gana picava-lhes, crescia muda, ganhava malícias, ficava sutil, se escondia num disfarce.
Reaparecia, violenta, numa bola sete difícil. Ia, frouxa; voltava dobrada em tamanho.
Momentos em que lhes parecia uma vontade estúpida, errada, desnecessária. Noutros, à
malandra, chegava risonha, cínica, traquinagem natural do jogo.

Egoísmo é fatal no jogo, um jogador sabe. E o malvado cresceu-lhes a pouco e pouco, minando,
fez negaças, manhas,

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rodeou, rodeou... ficou agressivo, certeiro, definido, total. E exigiu.

Malagueta, Perus e Bacanaço preparavam-se para se devorar.

O dono do bar arrumava pequenas coisas, corrigia o alinhamento das garrafas. Embromava.

Foi quando surgiu no salão um tipo miúdo, lépido, baixinho, vestido à malandra, terno preto,
gravata estreita, sapatos pequenos de bicos quadradinhos. Desses sujeitos que fazem suas coisas
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muito à pressa, passos curtos, rápidos, jeitosos, com o bigodinho aparado que costumam
pendurar na cara.

Bacanaço deu-lhe de olhos, fez um estudo.

- Esse tostãozinho de gente aí é algum otário oferecido.

O homem cumprimentou o dono do bar, sorriu, bebeu lá o seu copo, veio se encostando à mesa.
Num minuto batia papo com Bacanaço.

- Olá, parceirinho, está a jogo ou está a passeio?

Perus sofria. O homem era Robertinho, dos maiores tacos de Pinheiros, um embocador, fino
dissimulador de jogo. Conhecera-o no Aimoré, muquinfo da rua Teodoro Sampaio, e haviam
se dado bem. Camaradas.

- Depende de um entendimento, meu.

Camaradas. Em pensamento, Perus pedia a Bacanaço, não marcasse jogo. Robertinho, um


bárbaro, piranha manhosa e o pior - escondia jogo. Se quisesse, bolava um plano, passava duas-
três horas perdendo, malandro de capital, que era. Depois, mordia, dobrava paradas, ia à forra
- largava o parceirinho falando

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sozinho, sem saber por que perdera. Bacanaço e Malagueta o desconheciam, aquilo era um
esbregue que o mulato ia arrumar. E a mais e mais, naquele salão, naquelas mesas, conhecidas
de Robertinho como a palma de sua mão... Tacar ia como um professor.

- Duas de duzentos e cinquenta.

Diabo. Bacanaço agora propusera jogo; Malagueta, a seu mando, se bateria com Robertinho. O
velho se espatifaria depressinha, perderia uma, duas, dez, vinte partidas, todas. Cairia de quatro.
Robertinho jogava três vezes mais que o velho, na lógica natural do jogo. O estrepe! E Perus
não podia evitar o encontro...

-Vamos lá, parceiro - Robertinho já desatava o paletó.

Quando o malandro deu de cara com Perus, fez não reconhecê-lo, que na velha regra da sinuca,
naquela situação, ambos deviam silenciar e primeiramente esperar jogo. Assim fazem os
malandros entre si; é regra. E, regra, Perus não podia avisar Bacanaço, nem Malagueta. Não
devia entregar Robertinho, que o jogo era muito bom para ele. Nada poderia dizer. Se abrisse o
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bico, ouviria de Robertinho a palavra “cagueta”, que é o que mais dói para um malandro. E
ainda arrumaria briga séria. Bacanaço ia entusiasmado, atiçando. Perus sofria. Não podia
arrancar os companheiros daquele lobo e, em havendo jogo, já sabia na ponta da língua a
continuação negra daquela parada — Robertinho ia-lhes deixar tortos, tortinhos, sem dinheiro
para um café. Nem Bacanaço, nem Malagueta, nem Perus teriam força de jogo para o seu ritmo.

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- Jogo o jogo caro, meu - o homem miudinho dobrava preço. - E meu jogo não tem estia: se
ganhar, não dou; se perder, não quero. Topa, parceirinho?

Jogo seu não dava consolos, nem os pedia.

Bacanaço dirigia com rompante, autorizou Malagueta, botou-o na mesa.

- O meu empregado é empregado velho. Joga. Estia não se dá e não se leva, que isto aqui é jogo
de homem e não de esmoleiro. A quanto?

Quinhentos cruzeiros. Perus suspirou fundo. O buraco em que caíram, ô estrepe inesperado!
Não havia saída, era esperar sentado, arrasado. Assistiria a Robertinho ganhar uma partida,
duas, ou quarenta. Para o malandro, bom realizador, o trabalho seria o mesmo. E Perus não
poderia dizer um a. Para começo, o dinheiro de Malagueta se esbagaçaria. Depois, Robertinho
morderia o de Bacanaço. E depois...

Mas Robertinho era terrível e deu-lhes o açúcar. Na dissimulada, deixou-se ao gosto de


Malagueta, perdeu-lhe três partidas de quinhentos, pagou-lhe, maneiro, concordando. Media-
lhe o jogo, estudava.

-Você está inspirado, velho.

Bacanaço vibrava diante do parceirão arranjado. Aquele perderia muito, Malagueta se conduzia
bem naquela mesa. Talvez arrecadasse quatro-cinco contos naquele jogo imperdível. Maré de
sorte, maré grande. E atiçava:

- Firme, velho!

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Perus conhecia a malícia e apenas olhava, esperava o rebote de Robertinho, que certeiro,
quebrando tudo, viria quando o malandro bem entendesse.
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Mas Robertinho, piranha, perdeu mais duas partidas. Bacanaço bebia cerveja, fazia festas, dava
estalos no ar.

- Firme, Malagueta!

Perus, descoroçoado, a seu canto, seguia os movimentos dos homens, que se dobravam na mesa
para as tacadas. Esperava o rebote. O contra-ataque viria, iria doer, Malagueta tropicaria,
Bacanaço murcharia como um balão furado. Previa. Uma certeza desencantada ficava nos olhos
claros do menino.

- Vale um conto? Valendo?

Dobrou-se o preço, Bacanaço acedeu. Perus alerta, o golpe viria. Malagueta foi às bolas.

Gramou ali como um danado. Mas quem ganhou foi Robertinho, ainda dissimulando, pequena
vantagem no marcador.

Bacanaço propôs dobrar. Fizeram dois contos por partida. Foram às bolas. Malagueta conduziu:

- A saída é sua.

Robertinho começava a mostrar os dentes de piranha. Efeitos na bola branca com puxadas.
Jogava uma bola de valor, embocava-a de estalo, já preparando uma outra, que era a bola da
vez.

Diante daqueles começos de tacada longa, Malagueta se apavorava, Bacanaço se punha atento,
Perus mais amuado. O velho não conseguia prender aquele suspiro comprido. O jogo não estava
prestando...

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O outro passava giz na cabeça do taco e ia firme ao jogo atirado. Duas, três dezenas de pontos
por tacada, ou alguma coisa a menos. Um atirador como poucos, aquele Robertinho.
Estraçalhava.

Duma surtida do malandro, Malagueta não aguentou, fez careta e se benzeu:

- Osso quebrado, nervo torcido, carne rendida, assim mesmo eu te cozo. Sai de mim, azar do
capeta!

Robertinho só sorriu:

- Não é nada não, meu parceiro.


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Ganhou dois, quatro contos. Forrou o perdido, apanhou a linha de frente, ganhou o seu embalo
de jogo. Bacanaço mordido, não acreditava no joguinho, sua teimosia era de pedra. Atirava.

- Dá-lhe, Malagueta! Corre por dentro do homem, velho!

O velho ganhava impulso, fazia uns pontos, tacada boa, espetava em seguida, sua especialidade,
largava situação péssima para o adversário. Bacanaço se alentava, jogava elogios novos.

- Manda pras cabeças, velho!

Era quando Robertinho tomava fôlego, embalava o jogo, embocava uma bola de valor, dava
colocação à bola branca, construía ângulos, enormizava a diferença no marcador. Era um osso
duro de roer, estava tinindo. Um professor.

Malagueta meneava a cabeça, leso.

- Deus me livre e guarde.

Bacanaço mordido, mordidinho, teimava, botava agora o seu dinheiro no fogo do jogo.

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Robertinho beliscava, dominando as coloridas no pano verde.

Malagueta deu fé, buscou Bacanaço, arrastou-o a um canto, falou baixo. Propôs parar jogo, já
se perdera muito, o joguinho virara, ingrato. O mulato pediu o dinheiro de Perus, recebeu-o,
jogou-o na mesa. Largou a palavra final.

- Nada disso, velho! Não paro o jogo perdendo. Vai lá e joga o jogo.

Malagueta quis falar, recomendar juízo, engrolou alguma coisa. O mulato cortou, rasgado:

- Vai pro fogo, velho! Tou mandando...

Bolas batucando. O jogo ia e vinha, vinha e ia e daquilo não saía. Perdia Malagueta. Mais
fumava Bacanaço.

Robertinho ganhava. Classe, jogo limpo. Respeito ao parceiro, era um taco. Pouco falava, sério
e firme nos seus passos pequenos, rápidos, em torno da mesa. Olhava para as bolas, para o
marcador, não motivava encabulações, desacatos, perdas de atenção. Jogava para ele, não
assobiava, não cantarolava, acatava Malagueta. Jogava o jogo.
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Perus emendava cigarros. Não era de hoje que conhecia bem aquele estilo de jogo e a picardia
de seu dono. Fora muito azar caírem nas unhas de um professor.

Acabou o jogo. Malagueta olhava o chão.

- Joguinho morfético!

Robertinho abotoou o paletó, foi para o balcão beber um copo, pagar tempo e despesas.
Conversava, calmo. Nem ao de

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leve era um homem saído de um jogo de três horas e meia. Sossegado, batendo papo. Um taco.

Não falaram em estia, que trato é trato. Bacanaço se lembrou de um galo que trazia no bolsinho
da calça. Havia cinquenta cruzeiros para o ônibus.

No tamborete do balcão, Robertinho não os olhava; conferia o troco. Depois, cofiou o bigodinho
aparado.

Quando o passaram de largo, não o cumprimentaram. Lentos, nas ruas. As cabeças pesavam,
seguiam baixas.

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Lapa

A curriola formada no velho Celestino contava casos que lembravam nomes de parceirinhos.

Falou-se que naquela manhã por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três
cafés fiado.

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