Crônica de Martha Medeiros

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Crônica de Martha Medeiros

Outro dia estava assistindo a um programa sobre esportes radicais: um bando de


gente pulando das alturas, desafiando penhascos, enfrentando corredeiras sinistras –
sem tempo pra sentir medo.
“Esse pessoal não tem amor à vida”, balbuciei entre os dentes. Aí rebobinei meu
pensamento e mudei de avaliação. “Esse pessoal ama a própria vida mais do que tudo –
eu é que estou desperdiçando a minha na frente da tevê.”
Vida. A única coisa que a gente realmente tem – viemos do nada e para o nada
voltaremos. Sempre que me dou conta disso, fico boba com a quantidade de tempo que
desperdiçamos fazendo coisas que não gostamos, dizendo amém para o que não
concordamos e aceitando as regras pré-estabelecidas em nome da ordem social. No
fundo, malucos somos nós, os que não arriscam, os que vivem entre quatro paredes, os
que mantém pouco contato com a natureza, os que se protegem contra emoções
vertiginosas.
Quem escala uma montanha está mais seguro do que eu, dentro do meu carro
estacionado na rua, sozinha, aguardando a chegada de uma amiga. Mais seguro do que
eu quando saio do supermercado com as compras, ou quando caminho pelas avenidas
da cidade: a violência não está nos ares; não está no esporte, está no cotidiano.
Nitroglicerina pura é ter um revólver apontado pra cabeça ou ser ameaçada de agressão.
Perigoso é aqui.
Penso noite e dia em como posso dar mais valor à minha vida. Com todos os
objetivos alcançados, o que não é pouca coisa, o que faço a partir de agora para manter
minha paz de espírito em segurança? Penso em recomeçar do zero, em trocar de cidade,
de país, penso em desacelerar, esquecer de tudo o que acreditei até aqui, mudar de
religião, inventar outra vida, uma vida mais plausível, menos caótica, menos necessitada
de supérfluos, menos refém do tempo. Nunca fui de muitos medos, e de repente me
desconsola ler o jornal, encarar as más notícias, enfrentar um mundo em que a gente não
pensa “isso nunca vai acontecer comigo”, porque sabe que vai acontecer, somos os
próximos da fila.
Eu vejo pessoas saltando de bung-jump, atravessando a nado canais enormes só
pelo prazer de quebrar um recorde, todos dublês deles mesmos, e penso que isso, sim,
jamais vai acontecer comigo, e não vai mesmo, porque não tenho disposição e nem
preparo físico. Mas hoje ao menos os compreendo e sinto uma certa inveja desse medo
escolhido, desse medo provocado: ama a própria a vida quem aprende a vencê-lo.
Martha Medeiros

Extraído do livro COISAS DA VIDA, que reúne algumas das crônicas de Martha Medeiros.

Coordenação Pedagógica: Leila Daiana

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