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TECNOLOGIA

DO MAL:
COMO
FREAR O USO
CRIMINOSO DA
INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
GENERATIVA

A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 382 JANEIRO DE 2024

PAÍSDA
ENERGIA?
DESTAQUE NA COP28 EM DEBATES
SOBRE TRANSIÇÃO ENERGÉTICA,
BRASIL É LÍDER NA ADOÇÃO DE FONTES
RENOVÁVEIS — MAS ENFRENTA
DESAFIOS E CONTRADIÇÕES
COMPOSIÇÃO
JANEIRO DE 2024

03
CAPA
CONSIDERADO
POTÊNCIA
ENERGÉTICA,BRASIL
PRECISA AVANÇAR
EM ACESSO E
DESCARBONIZAÇÃO

“A ilegalidade de algumas substâncias


produz muita doença social”
22 Entrevista com Sidarta Ribeiro

37
TECNOLOGIA

USO DA IA GENERATIVA
PARA FINS CRIMINOSOS É
REALIDADE. O QUE FAZER?
53
QUER QUE EU DESENHE?
CAPA
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Ana Kozuki DESIGN Flavia Hashimoto

PAÍS DA ENERGIA?

APONTADA COMO CRUCIAL


PARA ENFRENTAR AS
MUDANÇAS CLIMÁTICAS,
A TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
FOI O PRINCIPAL TEMA
DA COP28. EMBORA SE
POSICIONE COMO PAÍS LÍDER
NA ADOÇÃO DE FONTES
RENOVÁVEIS, O BRASIL
AINDA TEM DESAFIOS
N
No início de novembro, a cidade de São Paulo so-
freu com fortes chuvas e ventos de mais de 100
km/h — a maior velocidade já registrada desde
1995, ano em que os dados começaram a ser
computados. O resultado imediato foi um apa-
gão histórico na capital paulista e partes de sua
região metropolitana. Segundo levantamento
da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
no pico da crise, 3,7 milhões de pessoas ficaram
sem luz. Além de ter levantado um debate em
torno da privatização do setor — visto que a ele-
tricidade no estado paulista é gerida desde 2018
pela Enel, multinacional com sede na Itália — e
levado a uma Comissão Parlamentar de Inquéri-
to (CPI) para investigar a conduta da concessio-
nária, o apagão escancarou o ciclo alarmante da
emergência climática. E evidenciou um de seus
principais causadores: a matriz energética.

“O principal vilão do aquecimento global e da


crise climática são as fontes de energia”, crava a
cientista política e ambientalista Suely Araújo, es-
pecialista sênior em políticas públicas do Obser-
vatório do Clima. Não por acaso, a transição da
matriz energética foi o principal tema debatido
na COP28, a Conferência de Mudanças Climáticas
da ONU, que reúne 196 países e a União Europeia,
5

membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudan-


ça do Clima (UNFCCC). Em 2023, o evento foi realizado entre os dias
30 de novembro e 12 de dezembro, em Dubai, nos Emirados Árabes
Unidos — país que é o sétimo maior produtor de petróleo do mundo.

O acordo final, divulgado em 13 de dezembro, não mencionou dire-


tamente a eliminação do uso de petróleo, mas determinou o com-
prometimento com o início da transição energética, triplicando a
parcela de fontes renováveis ainda nesta década. Além disso, es-
tabeleceu a meta de atingir a neutralidade de carbono em 2050 e
delimitou 1,5°C acima das médias pré-industriais como a tempera-
tura limite para o aquecimento global (o Acordo de Paris, de 2015,
previa a flexibilização para até 2°C). O teor do texto foi considerado
brando por não falar em eliminar definitivamente o uso de com-
bustíveis fósseis e não estabelecer ações claras para o que propõe,
mas é inédito por sinalizar um fim para a era do petróleo.

O Brasil se destacou posicionando-se como país líder na adoção de


fontes sustentáveis de energia. Por aqui, a participação de renová-
veis — isto é, aquelas que não se esgotam, como água e vento —
chegou a 87,9% da matriz elétrica em 2022, de acordo com a Empre-
sa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e
Energia. No mundo, o percentual era de 29% em 2020, segundo os
dados mais recentes da International Energy Agency (IEA). E, dois
anos depois, a participação do carvão mineral na matriz elétrica glo-
bal —altamente poluente — ainda correspondia a 35,8%, aponta o
Statista. Isso significa que para produzir 1 megawatt-hora (MWh),
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o setor elétrico brasileiro emite cerca de 34% do total de emissões


de países europeus da OCDE, além de 24% do setor elétrico estadu-
nidense e 12% do chinês. “O Brasil tem uma posição historicamente
privilegiada em relação a sua matriz elétrica”, resume Araújo, que foi
presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) de 2016 a 2018.

Mas falar em matriz energética vai muito além da energia que chega
aos interruptores quando acendemos a luz ou apertamos botões de
liga e desliga. Envolve também o que o país consome para abaste-
cer desde o setor de transportes, que inclui tanto os caminhões que
levam nossos alimentos quanto os carros que usamos para nos lo-
comover nas cidades, até a indústria. E aí o país tem um longo cami-
nho a percorrer: as fontes não renováveis de energia correspondem
a 52,6% da nossa matriz, com 35,7% vindo de petróleo e derivados.
Além de precisar reestruturar todo o setor de transportes, maior
consumidor e emissor de carbono, o Brasil tem que lidar com al-
gumas contradições internas — por exemplo, a pobreza energética,
condição que atinge 11% das famílias brasileiras — e externas, como
a insistência na exploração de petróleo para exportação.

LARGADA PROMISSORA
Se hoje temos uma posição confortável no abastecimento elétrico
com fontes renováveis, isso é fruto da nossa posição geográfica e de
escolhas feitas desde a época do Império. Em 1876, Dom Pedro II co-
nheceu Thomas Edison na Exposição Mundial da Filadélfia, nos EUA.
O monarca então convidou pessoalmente o inventor estadunidense a
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introduzir a iluminação pública elétrica no país: a primeira instalação


foi inaugurada em 1879 na estação Central do Brasil, no Rio de Janei-
ro. Em 1883, o Brasil inaugurou suas primeiras centrais termelétrica
e hidrelétrica. A primeira foi construída em Campos dos Goytacazes
(RJ) para abastecer o serviço pioneiro de iluminação pública no mu-
nicípio fluminense. Já a segunda foi instalada em um afluente do rio
Jequitinhonha, para atender os serviços de mineração em Diamanti-
na (MG). Desde então, o foco dos investimentos públicos em geração
de eletricidade passou a ser em hidrelétricas, com as termelétricas
atendendo em períodos de seca.

O marco da diversificação da matriz de energia elétrica foi 1985,


com a inauguração da primeira usina nuclear brasileira, Angra 1, no
litoral fluminense. Mas a energia nuclear deixou de ser uma opção
e, a partir da década de 1990, o foco da diversificação passaram a
ser as matrizes eólica (com a primeira usina inaugurada em 1994,
na cidade mineira de Gouveia) e solar (aberta em 2011, em Tauá, no

“Décadas atrás, o Brasil teve


um momento em que podia
tomar a decisão de instalar mais
termelétricas ou ir para outras
fontes. Foi uma decisão técnica,
geográfica e política”
Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA)
8

Ceará). “Décadas atrás, o Brasil teve um momento em que podia


tomar a decisão de instalar mais termelétricas ou ir para outras
fontes. Foi uma decisão técnica, geográfica e política, não tinha ne-
nhuma relação com o clima, porque antes dos anos 1980 não ha-
via tanto essa preocupação”, pontua o engenheiro Ricardo Baitelo,
doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da Uni-
versidade de São Paulo (USP) e gerente de projetos do Instituto de
Energia e Meio Ambiente (IEMA). “Foi um pouco de sorte.”

Mas mesmo as energias consideradas “verdes” têm impactos sociais


e ambientais. Entre as hidrelétricas, o caso da usina de Belo Monte é
emblemático. A megaobra na bacia do Rio Xingu, no Pará, durou oito
anos (2011-2019) e custou aproximadamente R$ 20 bilhões. Estima-
se que entre 40 mil e 50 mil pessoas da cidade de Altamira e região
tiveram que ser removidas de casa. Além disso, o represamento das
águas provocou um desequilíbrio no ecossistema, afastando peixes
do manancial e prejudicando o sustento de comunidades ribeirinhas
e aldeias indígenas. Os críticos apontam ainda que a energia pro-
duzida em Belo Monte não compensa os danos socioambientais, já
que a usina nunca conseguiu entregar os 11.223 megawatts (MW)
de capacidade instalada — a média atual é de 4.571 MW por mês,
segundo a concessionária que administra a estrutura.

ENERGIA PARA QUEM?


Embora os investimentos do país em energia renovável sejam exem-
plares, o mesmo não se pode dizer em relação à garantia do acesso
da população aos serviços. Segundo levantamento de 2019 realizado
9

pelo IEMA, quase 1 milhão de brasileiros vivem sem serviço público de


energia na Amazônia Legal — embora 26% da energia consumida em
todo o país venha da Amazônia, segundo apurou a BBC News Brasil
em 2022. E isso não leva em conta aqueles que não usam energia,
principalmente a elétrica, por falta de condições financeiras. “A ener-
gia é um direito universal previsto por lei desde 2002”, explica Baite-
lo, em referência à lei 10.438/2002. “O governo tem a obrigação de
conectar as pessoas, o problema é o que acontece depois: conseguir
pagar a conta de luz. Isso ainda não foi endereçado.”
10

Uma das promessas do programa Luz para Todos, criado em 2003


e retomado no ano passado com a previsão de levar energia elé-
trica a 500 mil pessoas nas zonas rurais até 2026, é considerar
novas demandas. Inclusive de famílias de baixa renda que, mesmo
morando em municípios considerados universalizados, não têm
acesso ao serviço. É o caso dos moradores de ao menos 15 co-
munidades pobres da região metropolitana do Rio analisadas na
pesquisa Eficiência Energética nas Favelas, idealizada pelo Painel
Unificador das Favelas (PUF) e pela Rede Favela Sustentável (RFS).

De acordo com o relatório, 31,3% das famílias vivem em condição de


pobreza energética, e 69% afirmam que, caso a conta de luz fosse
diminuída pela metade, gastariam mais com alimentação. “Como a
tarifa de energia não tem aspecto de renda, todo mundo paga o
mesmo valor, independentemente da renda, do lugar de residência
e da qualidade do serviço. Isso acaba afetando as pessoas mais po-
bres”, aponta o cientista político Kayo Moura, que ajudou a produ-
zir o relatório. Uma família está em condição de pobreza energética
quando gasta mais de 10% da renda com energia. “Quando falamos
de justiça energética e acesso a energia elétrica, estamos falando de
cidadania. É preciso entender como isso mexe com a autoestima da
comunidade, o quanto as pessoas se sentem cidadãos de segunda
classe quando são abandonadas pelo poder público.”

Tudo isso aprofunda ainda mais a desigualdade social. De acordo


com o estudo A multidimensionalidade da pobreza energética no
Brasil: uma análise histórica, publicado em dezembro de 2022 no
11

periódico Energy Policy, famílias que não são consideradas pobres


em energia tendem a ter uma renda pelo menos duas vezes maior
que aquelas que entram nessa classificação. Não à toa, um dos ob-
jetivos de desenvolvimento sustentável da ONU é garantir o acesso
universal a serviços de energia confiáveis e modernos até 2030.

O Índice de Pobreza Energética Multidimensional (IPEM) é uma das


metodologias para aferir o nível de pobreza energética de um país.
Em sua dissertação de mestrado, o pesquisador Rogério Silva Mo-
reira, da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Conta-
bilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC), calculou o IPEM
brasileiro em 0,107, nível considerado baixo (quanto mais perto de 1,
a pobreza energética é considerada aguda). Ainda segundo o texto,
a ausência de computador é o indicador que mais contribui para o
IPEM brasileiro (41,2%), depois da ausência de ventilador (27,9%) e
do uso de combustíveis inadequados para cozinhar (24,7%).

“Como a tarifa de energia não tem


aspecto de renda, todo mundo paga
o mesmo valor, independentemente
da renda, do lugar de residência e
da qualidade do serviço. Isso acaba
afetando as pessoas mais pobres”
Kayo Moura, cientista político e um dos autores da
pesquisa Eficiência Energética nas Favelas
12

“Os resultados indicaram uma maior concentração da pobreza ener-


gética entre a parcela mais pobre da população”, conclui o autor em
sua tese. Isso se mostrou real no apagão de novembro em São Pau-
lo. Moradores de bairros periféricos relataram que a recuperação
do fornecimento de eletricidade demorou mais do que nas regiões
nobres — a exemplo do Jardim Ângela, na zona sul da cidade, que
segundo a Aneel foi o distrito com maior frequência de falta de luz
na cidade no ano passado. “A transição energética é o termo mais
discutido no mundo, mas países como Brasil, Índia e países na África
ainda estão alguns passos atrás, pois a inclusão também faz parte
da transição”, conclui o gerente de projetos do IEMA.

DESVIO DE CAMINHO
Além de buscar soluções para a pobreza energética, principalmente
no caso da eletricidade, o Brasil deve prestar atenção especial ao
setor de transportes, que consome 33% da energia do país, pouco
à frente das indústrias, com 32%. Só que, enquanto as indústrias
emitem 76,7 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), os
transportes lançam 210,4 milhões de toneladas de CO2 na atmos-
fera, conforme o Relatório Síntese do Balanço Energético Nacional
de 2023, feito pela EPE. Em 2022, o consumo de energia do setor
aumentou 5% em relação ao ano anterior, com queda de 1% de fon-
tes renováveis na matriz. “Nossa matriz rodoviarista e a insuficiência
de transporte coletivo nas cidades levam ao uso forte de gasolina e
diesel. Teríamos que incentivar veículos com emissão zero, como os
elétricos. Tudo isso vai ser um processo de transformação pelo qual
o mundo já está passando”, aponta Suely Araújo.
13

Para o economista Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Es-


tudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), no Rio de Janeiro, é preciso colocar uma lupa no setor para
estabelecer medidas possíveis e realizar a transição. “O Brasil quer
tornar o carro popular mais acessível, mas a grande agenda deve-
ria ser entender como melhorar o transporte coletivo para incen-
tivar seu uso”, pontua Lisbona. Supondo que nossa matriz elétrica
seja principalmente renovável, eletrificar rotas passíveis de eletri-
ficação — como frotas de última milha ou ônibus urbanos — são
nichos que ele considera fáceis de “atacar” de imediato.

Mesmo assim, nem tudo poderá ser substituído por fontes reno-
váveis. “Tem usos que são difíceis, especialmente os que envol-
vem carga pesada”, afirma. Nesses casos, criar o que ele chama
de “corredores azuis” — rotas com infraestrutura para garantir o
abastecimento de veículos movidos a gás natural (a cor azul reme-
te à chama gerada pelo combustível) — ou substituir derivados do
petróleo pelo gás natural veicular (GNV) já traria ganhos significa-
tivos neste momento de transição.

A dependência de petróleo — e a consequente insistência do país


em explorá-lo — é talvez o ponto mais contraditório quando o
assunto é transição energética. Em um dossiê elaborado pelo Ob-
servatório do Clima com propostas para a política ambiental bra-
sileira em 2023 e 2024, organizado por Suely Araújo, a entidade
pontua que “é preciso restringir ao máximo possível a expansão
14

da produção petrolífera, que se choca com a realidade da crise


climática e as recomendações da Agência Internacional de Ener-
gia.” Também coloca como proposta urgente o veto à expansão de
exploração offshore de petróleo e gás em áreas de reconhecida
sensibilidade ambiental. “Não dá para ser um líder climático e um
‘petroestado’ ao mesmo tempo”, critica Araújo.

Mas esse parece ser o objetivo. Em agosto, o governo federal apre-


sentou uma nova versão do Programa de Aceleração do Cresci-
mento (PAC), em que prometeu deixar no passado a visão que
opõe o crescimento econômico à proteção ambiental. Entretanto,
um quinto dos R$ 1,7 trilhão de investimentos previstos devem ser
alocados para áreas de petróleo e gás. Enquanto o orçamento para
combustíveis de baixo carbono é de R$ 26,1 bilhões, os fósseis de-
vem receber R$ 335,1 bilhões. Na COP28, o Brasil anunciou a ade-
são à Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados
(Opep+), que reúne 13 nações aliadas ao grupo principal da Opep,
o que foi fortemente criticado por entidades como Greenpeace e o
próprio Observatório do Clima.

“Às vezes, parece que falta


compreensão da gravidade da
crise climática. Não temos tempo
para ignorar a importância de um
planejamento energético”
Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima
15

Atualmente, um dos principais planos do país é explorar petróleo na


foz do rio Amazonas. A Petrobras, que desde 2014 busca o licencia-
mento junto ao Ibama para a empreitada, estima que as reservas,
localizadas a 175 quilômetros da costa do Amapá e a 2.880 metros
de profundidade, contenham 30 bilhões de barris. Já os ambienta-
listas críticos ao projeto apresentam modelagens e simulações que
apontam que um possível vazamento levaria óleo a pelo menos ou-
tros oito países da região: Barbados, Granada, Guiana, Santa Lúcia,
São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago e Venezuela,
além dos territórios da Guiana Francesa e Martinica.

Caso isso se concretize, as emissões de gases de efeito estufa anu-


lariam os ganhos obtidos com a redução do desmatamento da
Amazônia, conforme apontam cálculos de pesquisadores do Siste-
ma de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) fei-
tos a pedido da Agência Pública em dezembro. “É uma contradição
que, domesticamente, a energia seja limpa, mas o Brasil pretenda
vender petróleo para o mundo até quando for possível, para depois
de 2050, sendo que relatórios internacionais deixam claro que não
existe esse orçamento de carbono que comporte os investimentos
em petróleo”, critica o especialista do IEMA, que descreve a situa-
ção como “um jogo de cartas onde ninguém quer sair da mesa.”

Em encontro com organizações da sociedade civil e movimentos


sociais na COP28, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou jus-
tificar a decisão do governo. “Acho importante a gente participar
16

porque a gente precisa convencer os países produtores de petró-


leo de que eles precisam se preparar para o fim dos combustíveis
fósseis”, disse Lula. “Se preparar significa aproveitar o dinheiro que
eles lucram com petróleo e fazer investimento para que continentes
como o africano e a América Latina possam produzir os combustí-
veis renováveis que eles precisam, sobretudo o hidrogênio verde.”

O economista Diogo Lisbona, da FGV, tampouco entende como


uma grande contradição a exploração de petróleo. “Ele não vai de-
saparecer daqui a 10, 20, 30 anos. A agenda ambiental vai tornar
cada vez mais urgente essa transição, mas não vamos conseguir
mudar toda a matriz da noite para o dia”, opina. “Não precisamos
abrir mão dessa produção de petróleo e do que representa uma
renda para o país em um mundo de transição.” Ele também des-
taca a dependência do petróleo para o setor petroquímico e da
importância do gás natural para a produção de hidrogênio azul.

O hidrogênio é uma das apostas de combustíveis que reduzem o


volume de emissão de carbono. Embora abundante, não é encon-
trado “puro” na natureza e precisa ser produzido — o que significa
separá-lo de outros elementos, como da água, que tem dois átomos
de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). A forma como esses átomos
são separados é que determina a “cor” do hidrogênio: no caso do
azul, ele é produzido a partir do gás natural com captura de dióxi-
do de carbono ao longo do processo, uma espécie de intermediário
entre o cinza (também produzido a partir do gás natural, mas sem a
captura de CO2 e muito poluente) e o verde (sem emissão de CO2).
MATRIZES ENERGÉTICAS
Veja exemplos de fontes de onde
é possível obter energia RENOVÁVEIS NÃO
• Hidrelétrica RENOVÁVEIS
• Eólica • Petróleo
• Geotérmica • Carvão mineral
• Solar • Gás natural
• Biomassa • Nuclear
35,7% 29,5% 26,8%
15,4% 12,5%

Petróleo e Derivados de Hidráulica Petróleo e Carvão


derivados cana-de-açúcar derivados mineral

23,7%
10,5% 9% 3,5% 9,8%

Gás Lenha e Eólica Gás Biomassa


natural carvão vegetal e solar natural

7% 4,6% 1,3% 5% 2,7%


Outras Carvão Nuclear Nuclear Hidráulica
renováveis mineral

MATRIZ ENERGÉTICA MATRIZ ENERGÉTICA


BRASILEIRA 2022 MUNDIAL 2020
Fonte: BEN, 2023; total em 2022: Fonte: IEA, 2022; total
303 milhões de toneladas-
-equivalentes de petróleo (tep)
0,6% 2,5% em 2020: 585 milhões
de terajoules (TJ)

Outras não Outros


renováveis
19

O economista da FGV defende, porém, que o país não pode se pren-


der a isso, muito menos acreditar que, por ser produtor de petró-
leo, o insumo deve ser mais barato internamente. “Quando subsidio
esse preço, estou distorcendo sinalizações de preço em um momen-
to de transição. Devemos seguir o preço internacional, além de in-
ternalizar o custo das emissões, pois queremos que as tecnologias
renováveis se tornem competitivas”, explica Lisbona. “Faz sentido
continuar com nossa produção, expandir a fronteira, respeitando as
condicionantes ambientais nesse mundo de transição, mas não po-
demos nos tornar reféns dessa produção”, pondera.

Outro ponto contraditório (e menos debatido) são projetos de lei que


visam colocar reservas de mercado para combustíveis fósseis e ga-
rantir subsídios para o carvão mineral. Um exemplo é o Marco das
Usinas Elétricas Offshore, aprovado em 29 de novembro na Câmara
dos Deputados. Embora o texto foque na transição para energia re-
novável, uma emenda prevê prorrogar contratos com as termelétri-
cas (movidas a carvão e altamente poluentes) de 2028 até 2050.

NA RETA FINAL
Apesar dos desafios e das contradições, os especialistas veem com
bons olhos o processo de transição da matriz energética brasileira.
“Os desafios são grandes, mas as oportunidades também. Nós te-
mos vantagem na parte elétrica e uma fronteira de expansão que
também é renovável, com fontes mais competitivas como a eólica
e a solar, além da biomassa da cana”, aponta Lisbona. Para ele, a
energia é uma commodity que pode vir a ser exportada pelo país,
20

seja bruta, seja absorvida em produtos — por exemplo, o “aço ver-


de”, método de produção da liga metálica que utiliza carvão vegetal
e contempla neutralidade das emissões de carbono.

No campo de políticas públicas, o Plano Nacional de Energia — 2050


(PNE 2050) dedica um capítulo à descarbonização da matriz nacio-
nal e outro à transição energética, com objetivo de modernizar e re-
duzir a pegada ambiental do setor de energia, além de trazer mais
segurança e estabilidade ao sistema em um cenário de mudanças
climáticas. Isso passa pela ampliação de fontes de baixo carbono,
inovação tecnológica e medidas que aumentem a eficiência. O PNE
2050 também considera os novos cenários globais, como a polari-
zação entre EUA e China, a guerra de preços no mercado de petró-
leo entre Arábia Saudita e Rússia, a escalada das mudanças climá-
ticas e o advento das tecnologias disruptivas. No entanto, embora
proponha uma participação maior do setor privado e da sociedade
na responsabilidade junto ao governo, o documento peca em não
estabelecer diretrizes e políticas claras.

Outra ação governamental para promover a transição energética


é o Novo Marco Legal de Geração Distribuída (Lei 14.300/22), que
regulamenta a geração de energia elétrica e a disponibilização
na rede pelos consumidores, principalmente a partir de painéis
solares. O texto estabelece regras para participar da geração dis-
tribuída, incluindo a cobrança de uma tarifa de uso da infraestru-
tura de transmissão e distribuição elétrica, mas isentando a taxa
cobrada pelo serviço prestado pelas empresas distribuidoras.
21

Também prevê uma transição de seis anos para novos consumi-


dores começarem a pagar pelos custos associados à distribuição.

O relatório Brasil 2045, do Observatório do Clima, divulgado em


2023, pondera que o alcance efetivo das medidas de descarbo-
nização e eficiência energética no Brasil ainda é limitado. E re-
comenda algumas ações prioritárias a serem tomadas no curto
prazo, entre elas: conceder incentivos econômicos a pesquisa,
implantação e geração eólica; apoiar o uso do transporte públi-
co limpo; cobrar resultados de eficiência energética dos setores
produtivos; descomissionar as usinas a carvão mineral; e vetar a
exploração offshore de petróleo e gás em áreas de sensibilidade
ambiental. “Às vezes, parece que falta compreensão da gravidade
da crise climática. Não temos tempo para ignorar a importância
de um planejamento energético, o país tem que ir muito além de
propaganda, não basta mostrar só os números da matriz elétri-
ca”, pondera Suely Araújo.

O potencial do Brasil, caso a transição se concretize, é imenso: a


previsão do Observatório do Clima é que o país não só deixe o pos-
to de quarto maior responsável pelo aquecimento global, devido
principalmente ao uso do solo e desmatamento, como alcance o
status de emissor negativo de carbono até 2045. Se isso aconte-
cer, seremos a primeira grande economia a atingir esse ambicioso
objetivo e nos transformaremos em uma potência ambiental. Tudo
vai depender das nossas escolhas daqui para a frente.
22

ENTREVISTA

Foto: Luiza Mugnol

“A ilegalidade de algumas
substâncias produz muita
doença social”
COM Sidarta Ribeiro POR Marília Marasciulo
Em novo livro, neurocientista
aplica o rigor científico para
abordar história, cultura e
depoimentos pessoais em uma
tentativa de desmistificar
o consumo da maconha

N
Na pré-adolescência, no início dos anos 1980, o
hoje neurocientista Sidarta Ribeiro e seu irmão,
Júlio, prometeram à mãe que não usariam maco-
nha — mas que, se algum dia sentissem vontade de expe-
rimentar, fariam isso em casa, junto com ela. Aos 17 anos,
Júlio decidiu cobrar o compromisso da mãe. Ela titubeou e
recuou com o combinado, dando início a uma crise familiar
que levou à expulsão de Júlio de casa. Anos se passaram
até que a família entendesse que a culpa da ruptura não era
da maconha, e sim do proibicionismo em torno da erva.

É com esse relato autobiográfico que Sidarta introduz As


flores do bem, lançado em outubro pela editora Fósforo. No
livro, o neurocientista — que já hesitou em assumir publica-
mente sua relação com a planta e sua posição em relação
à legalização dela — propõe uma reflexão sobre o papel da
Cannabis na construção da sociedade. Da história milenar
24

da planta às motivações políticas do proibicionismo, até


chegar aos potenciais terapêuticos dela, Sidarta considera
que a maconha hoje “venceu por ippon.”

O termo, emprestado das artes marciais japonesas, signi-


fica o ponto completo que finaliza uma luta e dá vitória a
quem o aplicou — no caso, quem aplicou o ippon em prol
da maconha medicinal foi uma rede complexa de pessoas
que vai de pacientes a cientistas. “Após décadas de rebel-
dia clandestina, os defensores da maconha viram seu mo-
vimento crescer, aparecer e entrar em erupção”, escreve o
neurocientista na obra.

Ainda assim, o Brasil está defasado. “Dez ou 20 anos atrás,


você não tinha, de jeito nenhum, uma maioria a favor do
uso terapêutico da maconha. Hoje é uma maioria de três
quartos da população, aproximadamente, segundo uma úl-
tima pesquisa do Datafolha”, pontua Ribeiro, em entrevista
a GALILEU. “Ao mesmo tempo, você tem mais ou menos três
quartos da população contra o uso recreativo adulto, o que
é muito estranho, expõe uma contradição.”

Para ele, o ponto central é “libertar” a maconha do estig-


ma em torno dela. “E vai chegar o dia em que todo mundo
no Brasil vai ter direito de acessar esses usos, seja na far-
mácia, seja no SUS, seja plantando em casa. Esse dia vai
chegar”, continua. A seguir, ele fala, entre outros pontos,
25

sobre a necessidade de acabar com a distinção entre uso


recreativo e terapêutico da maconha e o papel da ciência
na descriminalização ou legalização de substâncias ilícitas.

O LIVRO FOI LANÇADO MAIS OU MENOS NO MOMENTO EM QUE O


STF RETOMOU O JULGAMENTO DA RE 635659, O QUE REACENDEU
O DEBATE SOBRE A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA. E UM DOS CAPÍ-
TULOS DESTACA JUSTAMENTE O FATO DE O BRASIL SER RETARDA-
TÁRIO, EMBORA ESTEJA AVANÇANDO NESSE TEMA. COMO VOCÊ
AVALIA A POSIÇÃO TANTO DA SOCIEDADE BRASILEIRA QUANTO DA
CLASSE POLÍTICA EM RELAÇÃO À MACONHA?

Acho que a gente está em movimento. Dez ou 20


anos atrás, você não tinha, de jeito nenhum, uma
maioria a favor do uso terapêutico da maconha.
Hoje é uma maioria de três quartos da população,
aproximadamente, segundo uma última pesqui-
sa do Datafolha. Mas, ao mesmo tempo, você tem
mais ou menos três quartos da população contra o
uso recreativo adulto, o que é muito estranho, ex-
põe uma contradição. Certamente, são muitas dé-
cadas de estigma, proibição, pânico moral e tam-
bém nossa culpa cristã secular. Por que é legítimo
usar um medicamento à base de maconha para
mitigar uma dor crônica, e não é legítimo utilizar
a mesma substância, inclusive da mesma maneira,
para ouvir música? Qual é o problema?
26

O livro tenta problematizar essa distinção entre


SIDARTA
recreativo e terapêutico, porque aquilo que é re- RIBEIRO
creativo, pelo menos em alguma medida, é tera- É neurocientista e
biólogo, professor
pêutico. Como é hipócrita esse sistema em que a da Universidade
polícia protege o consumo de substâncias ilícitas Federal do
dos materialmente mais ricos. Você vai no Lollapa- Rio Grande do
Norte (UFRN) e
looza e existe proteção para o show, e essa mesma membro do grupo
polícia sobe, destrói uma festa e mata adolescen- de pesquisa de
saúde mental
tes direta ou indiretamente, como aconteceu em do CEE Fiocruz.
Paraisópolis [comunidade de São Paulo onde, em Pós-doutor pela
2019, uma ação da polícia em um baile funk cau- Universidade
Duke (EUA), é
sou a morte de nove jovens]. autor dos livros
O oráculo da
noite (2019) e
UM DOS PONTOS QUE VOCÊ LEVANTA É JUSTAMENTE A NECES-
Sonho manifesto:
SIDADE DE ACABAR COM ESSA DISTINÇÃO ENTRE USO MEDICI- dez exercícios
NAL E RECREATIVO. POR QUE AINDA TEMOS TANTA DIFICULDADE urgentes de
otimismo
EM ACEITAR A PLANTA COMO UMA SUBSTÂNCIA QUE PODE SER apocalíptico
USADA PARA FINS QUE NÃO UNICAMENTE MEDICINAIS, COMO O (2022), ambos
pela Companhia
ÁLCOOL E O TABACO?
das Letras.

Isso mostra como a gente é egoísta. Tenho visto,


nos últimos dez anos, como até as pessoas mais
conservadoras, reacionárias e antimaconha se
transformam em usuários de óleo medicinal, por
exemplo, quando ficam doentes. A doença, a dor,
o sofrimento, quando chega em você ou na sua
família, tira as pessoas imediatamente de uma
27

posição obtusa de não conhecer os fatos, ficar


insistindo em pânico moral, de repetir mitos tipo
“maconha mata neurônio”. O livro tem esse desejo
de poder ajudar as pessoas a fazer essa conver-
são para o bom senso, para a racionalidade, para
o apego à ciência e para a compaixão, antes de
ficarem doentes.

Porque, no fundo, essas pessoas que são contra


as drogas acreditam de fato que as substâncias
ilícitas são ilícitas por serem mais perigosas, o que
é uma grande besteira. Mas também tem essa
contradição de pessoas que odeiam as drogas,
mas que vão toda hora às drogarias, aos bares,
e que se entopem de drogas, inclusive compra-
das no supermercado, como açúcar, e que causa
tantos problemas de saúde. Elas simplesmente

“O livro tenta problematizar


a distinção entre recreativo
e terapêutico, porque o que
é recreativo, em alguma
medida, é terapêutico”
Sidarta Ribeiro fala sobre a proposta de As flores do bem, seu novo livro
28

têm pânico moral com relação a algumas subs-


tâncias. Essas pessoas, no fundo, acham que dro-
ga é aquilo que os outros gostam e elas, não. E
se [os usuários] forem pessoas pretas, faveladas,
jovens, pior ainda.

VOCÊ TOCOU EM UM PONTO MUITO INTERESSANTE, QUE TRAZ A


REFLEXÃO SOBRE COMO TEMOS VISTO CADA VEZ MAIS FARMÁ-
CIAS NO BRASIL E COMO O BRASILEIRO VEM SENDO MUITO ME-
DICADO. QUAL É O PAPEL DAS GRANDES FARMACÊUTICAS NESSA
PROPAGANDA MORAL CONTRA A MACONHA?

A indústria quer monetizar isso daí, e é difícil mo-


netizar uma planta tão maravilhosa, antiga e com
tantos benefícios. Por isso querem manter a tam-
pa fechada, não querem que o gênio saia da lâm-
pada. Mas o gênio já saiu, e está saindo em todo o
planeta. Então, eles estão tentando tomar conta
desse novo mercado, cercar por todos os lados, e
estão conseguindo em muitos países. Portugal é
um país que produz maconha em grandes quan-
tidades, exporta para o mundo todo, e lá a popu-
lação tem dificuldade de acesso. O remédio fica
caro, porque eles criam um monte de dificuldades
para vender facilidades. Porque a maconha não
está sendo tratada como planta, está sendo tra-
tada como plutônio.
29

Existe toda uma desqualificação da estratégia fi-


toterápica, que é uma estratégia de 12 mil anos.
Quer dizer, a Cannabis está conosco todo esse
tempo. A fitoterapia dela talvez [seja usada] há
pelo menos 3 mil anos. O problema é, no fundo, do
capitalismo, da injustiça, dessa saúde privatizada,
em que só os materialmente mais ricos têm aces-
so. E existe uma insurgência contra isso em todo
o planeta. Maconha é uma planta de uso terapêu-
tico milenar, que está disponível para quem puder
plantá-la e para quem puder cuidar bem dela, fa-
zer bons extratos e bons produtos.

NESSE “SEQUESTRO” DA MACONHA PELO CAPITALISMO, A GEN-


TE TEM VISTO UMA FEBRE DE PRODUTOS COM CANABIDIOL, O
CBD. DA BEBIDINHA NO POSTO DE GASOLINA A CREMES PARA O
CORPO, A IMPRESSÃO É DE QUE A MACONHA PODE SER A CURA
PARA TUDO. É ISSO MESMO?

A maconha tem múltiplas indicações terapêuti-


cas e os críticos falam que ela é uma “panaceia”.
Nada é uma panaceia, nada serve para todo mun-
do. Existem grupos de risco, como em qualquer
substância. O livro deixa isso bem claro, mas de
fato tem múltiplas indicações, porque ela age de
muitas maneiras diferentes. Ela reduz a inflama-
ção, isso já pega um monte de doenças. Ela gera
30

novos neurônios, novas conexões sinápticas, o


que ajuda em várias doenças neurodegenerati-
vas. Ela pode ter efeitos antipsicóticos, o que tem
uma aplicação na psiquiatria. Então, de fato, ela
tem múltiplas indicações e isso não é por acaso.
Ela não é uma planta que “papai do céu” mandou
pra gente, é uma planta, uma planta entre outras,
mas muito importante.

Então, qual é o problema da indústria com isso? É


que ela reduz a necessidade de medicação. Está
todo mundo tomando remédio em certos estratos
sociais, sobretudo entre as pessoas da classe mé-
dia alta, a branquitude quase que na sua totalidade.

“Eu entendo que muita


gente gosta de nutrir a
ideia de que a ciência está
acima dos debates da
sociedade. Mas ela está no
centro dos debates”
Ribeiro reflete sobre a importância de cientistas se posicionarem
31

Depois de uma certa idade, está todo mundo medi-


cado, inclusive tomando duas, três, quatro ou cinco
coisas: antidepressivos, estabilizador do humor, lí-
tio. Isso tem muitos efeitos adversos, e não há es-
tudos olhando para todas essas coisas juntas por
mais de oito semanas.

Então, tem toda uma sensação de que a ciência


está apoiando essa terapêutica convencional, e
ela não está. E aí existem muitas experiências em
que vários remédios são substituídos pelo extra-
to de uma única planta. Isso é um grande proble-
ma para a indústria, porque é perda de mercado.

Agora, eu acho que tem que tomar cuidado tam-


bém, porque ela nem sempre é útil, existem gru-
pos de risco, a gente precisa de mais pesquisa,
mais informação, mais conhecimento e menos
preconceito, menos estigma. Afinal, não existem
plantas do bem e do mal, não existem substân-
cias do bem e do mal. A gente tem que olhar para
isso de maneira sóbria. Tem mais de 500 substân-
cias de interesse na maconha que a gente conhe-
ce pouquíssimo. O que sabemos é que a planta é
segura para a imensa maioria da população.
32

VOCÊ TRAZ RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS SOBRE SUA PRÓPRIA


RELAÇÃO COM A PLANTA. QUAL A IMPORTÂNCIA DE CIENTISTAS
SE POSICIONAREM DESSA FORMA?

Acho importante a gente ter bastante honestidade


nesse debate. E eu entendo que muita gente gosta
de nutrir a ideia de que a ciência está acima dos
debates da sociedade. Mas a ciência está no cen-
tro dos debates. Então, contar a história da famí-
lia nesse livro dedicado ao meu irmão Júlio, tem a
ver com uma trajetória que veio lá dos anos 1990,
quando a gente teve um enorme conflito e havia
uma percepção de que a culpa era da maconha. Foi
necessário que muita coisa acontecesse até ama-
durecermos e entendermos que não havia culpa,
e a responsabilidade não era de uma planta, mas
sim das pessoas, dos vínculos, das relações que es-
tavam adoecidas. A maconha, na verdade, ajudou
a restaurar esses vínculos.

Eu falo sobre isso no livro e esse “sair do armá-


rio” me parece muito necessário para que direitos
possam ser garantidos. Porque, mais importante
até do que liberar a maconha para o uso terapêu-
tico ou uso adulto recreativo, é parar a máquina
de matar gente que o Estado construiu em torno
da guerra às drogas.
33

O Brasil tem a terceira maior população carcerá-


ria do mundo. Quase todo mundo jovem, preto,
favelado, materialmente muito pobre. Isso preci-
sa acabar, a sociedade precisa entender como isso
faz mal a ela, como isso intoxica o debate, produz
morte, inclusive de pessoas que nunca pensaram
em usar aquelas substâncias ilícitas.

Como a gente pode justificar a morte de uma crian-


ça indo para a escola numa Kombi ao lado da mãe,
como foi o caso da Ágatha Félix, no Complexo do
Alemão? Em nome da guerra às drogas, uma guer-
ra para proteger o quê? Proteger quem? De quê? A
guerra às drogas é uma engrenagem fundamental
do racismo estrutural e é uma engrenagem fun-
damental do capitalismo do Sul Global. Está des-
truindo, inclusive, as instituições do Estado, as po-
lícias, as Forças Armadas. A ilegalidade de algumas
substâncias produz muita doença social.

QUAL SUA POSIÇÃO EM RELAÇÃO À DESCRIMINALIZAÇÃO OU LE-


GALIZAÇÃO DE OUTRAS SUBSTÂNCIAS CONSIDERADAS ILÍCITAS?

Meu posicionamento é o mesmo da Sociedade Bra-


sileira para o Progresso da Ciência [SBPC], que eu
integro e da qual sou conselheiro atualmente. É o
de que todas as substâncias, todas, sem exceção,
34

devem ser legalizadas e regulamentadas. Porque a


gente não proíbe certas substâncias, como a maco-
nha, por serem perigosas. A maconha e os psicodé-
licos, por exemplo, são muito menos perigosos do
que o álcool e o tabaco. O que não quer dizer que
sejam isentos de risco, e a gente precisa entender
quais são esses riscos.

O que a gente tem que fazer é regulamentar todas


as substâncias de acordo com os benefícios e tam-
bém de acordo com os riscos, de maneira isonômi-
ca, com base científica e pensando no bem-estar da
população, no acesso à saúde. Se a gente for proibir
substâncias que são perigosas, a gente vai precisar
proibir gasolina, veneno de rato, carne com muita
gordura. Evidentemente, essa não é uma solução. A
solução não é proibir nada. A solução é regulamen-
tar, é explicar para as pessoas o risco.

Isso não quer dizer que sou a favor de legalizar o


crack. O crack nem existiria se não houvesse a proi-
bição da cocaína, ele é uma invenção da proibição.
Também não significa proibir o crack. A gente deve
explicar para as pessoas que essa é uma substân-
cia que pode provocar sensações muito agradá-
veis, mas que vai detonar o cérebro, o fígado e, no
médio e longo prazos, vai fazer muito mal.
35

E as pessoas são diferentes. Há pessoas que, com


poucos contatos com a substância, podem se dar
muito mal. Outras vão conseguir fazer um uso não
problemático daquela substância. Acho que a gen-
te precisa olhar para isso com compaixão, tolerân-
cia e realmente entendendo, no fundo do nosso
coração, que não tem substância do demônio nem
substância angelical: todas elas podem ser veneno
ou remédio, dependendo da dose. Quem ensinou
isso foi Paracelso [médico suíço que viveu entre AS FLORES
DO BEM
1493 e 1541], muitos séculos atrás. Sidarta Ribeiro
(Fósforo, 184
páginas,
SE VOCÊ TIVESSE QUE ELEGER UM DESAFIO, A MAIOR BARREIRA
R$59,90)
QUE AINDA PRECISAMOS VENCER PARA CONSEGUIR A REGULA-
MENTAÇÃO DA MACONHA NO PAÍS, O QUE SERIA?

O que veio à mente rápido foi o preconceito das


igrejas fundamentalistas cristãs. Só que isso não
existe no vácuo, tem um sistema. A proibição tem
a ver com isso, essa postura extremamente coléri-
ca de tantos pastores. Tem a ver com a estigmati-
zação de certas pessoas serem “matáveis”. Envolve
a polícia, a política, as empresas.

Acho que o ponto central é libertar mesmo a ma-


conha de todo esse estigma, e vai chegar o dia em
que todo mundo no Brasil vai ter direito de acessar
36

“Não tem substância do


demônio nem angelical:
todas podem ser veneno ou
remédio, depende da dose”
Sidarta fala sobre por que é a favor de legalizar todas as drogas

esses usos, seja na farmácia, seja no SUS, seja plan-


tando em casa. Esse dia vai chegar. As associações
de pacientes foram a ponta de lança desse proces-
so, e elas têm que crescer e se fortalecer, inclusive
em convênio com institutos de pesquisa.

Mas acho que o principal problema é que a proi-


bição da maconha é um pino de uma engrena-
gem extremamente complicada. Se você tira esse
pino, essas peças todas começam a sair do lugar.
Então, não é uma peça que está impedindo essa
movimentação — são várias, que têm uma certa
configuração, que funcionam, que estão felizes
com o atual estado de coisas e têm dificuldade de
lidar com o dia seguinte a essa saída completa do
gênio da lâmpada.
TECNOLOGIA
TEXTO Nathalie Provoste EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

Esta e todas as outras


pessoas retratadas
nesta matéria
foram geradas pelo
Midjourney, ferramenta
de inteligência artificial
generativa em imagem.

OOLADO
LADOSOMBRIO
SOMBRIODADAIAIA
DEEPFAKES EM ELEIÇÕES, CLONES MALICIOSOS DO CHATGPT, NUDES FALSOS
COMO PORNOGRAFIA DE REVANCHE: OS MAUS USOS DA INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL GENERATIVA DESPERTAM PREOCUPAÇÃO. ENTENDA O QUE
ESTÁ SENDO FEITO PARA EVITAR ESSES E OUTROS PROBLEMAS
E
Em novembro de 2020, um conhecido apareceu
de surpresa na casa de Helen Mort, em Sheffield,
na Inglaterra. O visitante tinha um aviso urgente:
ele reconhecera o rosto de Helen, uma poetisa e
mãe, num site de conteúdo adulto. Mas isso pa-
recia impossível: a escritora nunca havia compar-
tilhado fotos íntimas com ninguém, justamente
porque temia se tornar uma vítima de porno-
grafia de vingança algum dia. Por isso, quis ver
com seus próprios olhos as imagens de que seu
conhecido estava falando. “Era meu rosto, meu
olho, minha franja... Parecia a minha mandíbula,
mas não era a minha boca. A pele da pessoa, da
mulher, era bem mais bronzeada do que a mi-
nha. E essa mulher tinha exatamente a mesma
tatuagem que eu”, relata Helen no documentário
My Blonde GF, lançado pelo jornal britânico The
Guardian em outubro.

O vídeo que a poetisa havia visto, na verdade, era


um deepfake, isto é, “uma imagem ou gravação
que tenha sido alterada e manipulada de forma
convincente para representar erroneamente al-
guém fazendo ou dizendo algo que não foi real-
mente feito ou dito”, como define o dicionário es-
tadunidense Merriam-Webster. No caso, alguém
havia usado um sistema de inteligência artificial
39

(IA) para estudar os ângulos de Helen em fotos ou vídeos e, assim,


inserir o rosto dela no vídeo íntimo de outra mulher.

A pornografia de revanche é apenas um dos usos criminosos que


pessoas têm feito das inteligências artificiais generativas, aquelas
capazes de produzir textos, imagens, sons, códigos computacio-
nais ou outros tipos de conteúdo a partir de comandos dos seus
usuários. É o caso das plataformas ChatGPT, ferramenta de IA ge-
nerativa em texto da empresa OpenAI, e Midjourney, recurso de
IA generativa para imagens (usado para ilustrar esta reportagem)
criado pela Midjourney, Inc, ambas sediadas nos EUA. Essas são re-
des neurais artificiais que aprendem a fazer suas próprias criações
conforme estudam determinados formatos de mídia fornecidos
por seus criadores ou usuários. E, não surpreendentemente, têm
entregado resultados cada vez mais complexos e convincentes.

O próprio deepfake evoluiu muito rapidamente. O termo apareceu


pela primeira vez em um fórum do site Reddit em 2017, segundo o
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Mas, naquela épo-
ca, só era possível criar conteúdos desse tipo em um computador
com alta capacidade de processamento gráfico. Já hoje, platafor-
mas online e acessíveis se encarregam disso para gerar esses cli-
pes. Ademais, bastam poucas fotos e vídeos de uma pessoa para o
algoritmo aprender a emular a aparência dela, e pequenas falhas
podem ser facilmente mascaradas na hora de disseminar o conte-
údo. “O pessoal pega esse vídeo, diminui a resolução dele e manda
por WhatsApp, por exemplo. A pessoa olha na tela do celular e
40

não vê todas essas imperfeições”, explica Jonas Krause, doutor em


Ciência da Computação pela Universidade do Havaí, nos Estados
Unidos, em entrevista a GALILEU.

ELES ESTÃO ENTRE NÓS


Muitos deepfakes são feitos apenas para fins de entretenimento,
sem a intenção de enganar ninguém. É o caso das composições do
criador de conteúdo “demonflyingfox”: com a ajuda da IA genera-
tiva, ele imagina como seriam filmes e séries famosos se eles se
passassem em outros países. O clipe “Harry Potter but in Berlin”
(“Harry Potter, mas em Berlim”) já tem mais de 1 milhão de visua-
lizações no YouTube. Além disso, deepfakes podem ser aliados da
indústria cinematográfica: em Indiana Jones e o Chamado do Des-
tino (2023), foi possível rejuvenescer a aparência de Harrison Ford,
de 81 anos, graças a um sistema de inteligência artificial.

Por outro lado, a preocupação de que a tecnologia tire empregos


de atores e atrizes foi um dos motivos que levaram a uma greve
em Hollywood no ano passado. Junto a roteiristas, eles paralisaram
suas atividades em filmes e séries por 118 dias e protestaram para
defender seus direitos. O sindicato estadunidense que os represen-
ta chegou a um acordo com os estúdios em novembro. O documento
exige que produtores peçam o consentimento de atores para criar e
usar as réplicas digitais deles, e especifiquem como essas recriações
serão usadas. Além disso, quando essas réplicas entrarem em jogo,
os atores devem receber uma compensação equivalente ao que ga-
nhariam se eles mesmos tivessem feito o trabalho gerado por IA.
41

Mas o problema mais urgente é o crescimento de ocorrências


como a enfrentada por Helen Mort — que, aliás, já vêm sendo re-
gistradas no Brasil. Em novembro de 2023, a Polícia Civil abriu um
inquérito para investigar alunos do 7º ao 9º ano do Colégio Santo
Agostinho, no Rio de Janeiro, acusados de criar nudes falsos de
42

colegas meninas. Já em outubro, a atriz Isis Val-


verde viu montagens pornográficas usando seu
rosto se alastrarem pelas redes sociais. O ad-
vogado dela afirmou ao site gshow que a ocor-
rência havia sido denunciada na Delegacia de
Crimes de Informática do Rio de Janeiro. Antes
da artista mineira, famosas estrangeiras, como
Gal Gadot, Taylor Swift e Scarlett Johansson, já
haviam sido vítimas do mesmo crime.

As IAs generativas também facilitam a desin-


formação. Em março de 2023, uma foto falsa
do Papa Francisco usando um casacão acolcho-
ado branco enganou muitas pessoas na inter-
net, que acreditaram que o líder religioso havia
deixado suas vestimentas católicas tradicionais
para abraçar um lado “fashion”. Mas há situa-
ções ainda mais sérias do que essa. As últimas

O TERMO DEEPFAKE APARECEU PELA


PRIMEIRA VEZ EM UM FÓRUM DO SITE
REDDIT EM 2017, SEGUNDO O INSTITUTO DE
TECNOLOGIA DE MASSACHUSETTS (MIT)
43

eleições presidenciais da Argentina acenderam o alerta para o uso


de deepfakes como estratégia política: integrantes do partido de
Javier Milei compartilharam nas redes sociais um vídeo em que
um suposto Sérgio Massa, adversário do atual presidente argenti-
no quando ainda disputavam o cargo, usava cocaína. A equipe de
Massa declarou que a gravação, cuja autoria ainda é desconheci-
da, era obra de IA.

E não são só vídeos, imagens e sons falsos que têm gerado inquieta-
ção. Rakesh Krishnan, pesquisador independente de cibersegurança
e analista de ameaças online baseado na Índia, descobriu anúncios
de versões maliciosas de modelos de linguagem grande (LLMs, na si-
gla em inglês). Esse é o nome dado a IAs capazes de gerar e traduzir
textos e outros conteúdos, além de diversas atividades de proces-
samento de linguagem natural (PLN). Esses serviços “do mal” – ba-
tizados de “WormGPT” e “FraudGPT”, em clara referência ao famoso
ChatGPT – estavam sendo vendidos em fóruns na dark web, uma
parte da internet que só pode ser acessada por programas espe-
ciais (nada de Google Chrome ou Mozilla Firefox) e na qual usuários
conseguem se manter anônimos. Enquanto o ChatGPT tem barrei-
ras éticas que impedem usuários de pedir certas tarefas, o anúncio
do “FraudGPT” que Krishnan encontrou prometia uma ferramenta
capaz de “escrever código malicioso”, criar “malware indetectável” e
“ferramentas para hackear”, entre outras práticas ilícitas.

Mas, não se engane: a função de aperfeiçoar textos, que é tão utili-


zada por usuários bem-intencionados do ChatGPT, é um dos pontos
44

mais valiosos para quem recorre às LLMs malignas. “Quem usar um


‘FraudGPT’ pode criar um belo e-mail para qualquer tipo de cenário.
Se você for falar com alguém da imprensa, ele pode imitar exata-
mente a linguagem da mídia, usando jargões relacionados ao jorna-
lismo”, exemplifica Krishnan, em entrevista a GALILEU. “Esses tipos
de ferramentas podem escrever mensagens que façam as vítimas
clicarem em um link malicioso; e-mails atraentes.”

Esse tipo de cibercrime, que mira em uma pessoa ou um grupo


específico usando informações de interesse do alvo, é conhecido
como spear phishing. Em inglês, spear significa “lança”, e phishing
é uma variação de fishing, verbo para “pescar”. A ideia é, tal qual
um peixe atraído por uma isca, induzir pessoas a caírem em golpes
a partir de algo que naturalmente chamaria a atenção delas.

As promessas ilegais do “FraudGPT” têm um preço, é claro: a assi-


natura mensal do sistema de IA foi oferecida na dark web por US$
200, quase R$ 1 mil na conversão atual. O criador da ferramenta
até compartilhou um suposto vídeo de demonstração para con-
vencer potenciais clientes. Krishnan não arriscou a compra para
verificar se a LLM era verdadeira; mas ele assegura que desenvol-
ver algo assim é perfeitamente possível. “O ‘WormGPT’ era real;
o serviço estava funcionando sem problemas até ganhar a aten-
ção da mídia. Então, se o ‘WormGPT’ foi bem-sucedido, por que o
‘FraudGPT’ não poderia seguir o mesmo caminho?”
45

NOVO MUNDO, NOVAS SOLUÇÕES


Para Krishnan, “a tecnologia é uma faca de dois gumes”: ao mes-
mo tempo que alguns desenvolvem ou usam IAs generativas para
o mal, há quem esteja criando ferramentas para detectar textos,
fotos, sons ou vídeos feitos por elas. Em artigo sobre o “FraudGPT”
publicado no Medium, o especialista da Índia em cibersegurança
46

cita dois serviços que procuram identificar textos gerados por IAs:
SMODIN e GPTZERO. Mas eles não prometem ser infalíveis. O pri-
meiro, inclusive, recomenda que usuários o vejam como “medida
preventiva” contra problemas como plágio. “Certifique-se de veri-
ficar o texto antes de publicá-lo ou enviá-lo, em vez de confiar na
ferramenta como uma solução após o fato”, diz o site.

O brasileiro Jonas Krause também tem desenvolvido seu próprio


detector de deepfakes no pós-doutorado. Junto ao seu orientador,
Heitor Silvério Lopes, professor da Universidade Tecnológica Fe-
deral do Paraná (UTFPR), e a Andrei de Souza Inácio, professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Cata-
rina, ele escreveu o artigo Language-focused Deepfake Detection
Using Phonemes, Mouth Movements, and Video Features, no qual
propõe um sistema que analisa fonemas e movimentos de boca as-
sociados entre si. A ideia surgiu após Krause estudar deepfakes em
português e notar que alguns deles não conseguiam reproduzir de
maneira convincente a forma como a boca se mexe em sons muito
característicos da nossa língua — principalmente o “ão”. O motivo?
As IAs de criação de deepfakes mais populares foram treinadas com
vídeos em inglês. Ou seja: suas referências não incluem pessoas mo-
vimentando os lábios para falar “ação” ou “mão”, por exemplo.

A ideia de Krause é que seu sistema seja adaptado para outras lín-
guas e seus fonemas específicos. Ele também projeta que celebrida-
des, por exemplo, passarão a buscar sistemas de detecção de víde-
os falsos desenvolvidos especialmente para seus traços físicos. “Daí
47

essas pessoas poderão se defender, porque não


vai ser só elas dizendo ‘sou eu’ ou ‘não sou eu’.
Também haverá um sistema treinado seriamen-
te para dizer, ‘ei, existe 80, 90, 75% de chance
de não ser você’.” Apesar disso, Krause reconhece
que, assim como SMODIN e GPTZERO, sua pro-
posta não é imbatível. “Talvez os vídeos falsos do
futuro se preocupem em fazer uma boca melhor,
e aí meu sistema não conseguirá detectar tanto.”

IAs feitas para desmascarar criações de outras


inteligências são só uma parte da resposta para
esse “novo normal” tecnológico. O Poder Legis-
lativo brasileiro também tem discutido soluções
para regulamentar a inteligência artificial como
um todo (isto é, além da generativa) desde 2020,
quando a Câmara de Deputados aprovou o PL
2120. Porém, esse projeto foi criticado tanto pela

A REGULAMENTAÇÃO DA IA JÁ ESTÁ EM
DEBATE EM DIVERSOS PAÍSES. NO INÍCIO DE
2024, A UNIÃO EUROPEIA DEVE VOTAR O “AI
ACT”; E O BRASIL, O PL 2338/2023
48

sociedade civil quanto por cientistas por ser genérico, sem “esta-
belecer responsabilidades” e “concretizar ações”, conforme explica
a advogada Tainá Aguiar Junquilho, professora de Tecnologia, Ino-
vação e Direito no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento
e Pesquisa (IDP). “Ele foi aprovado em regime de urgência, e é um
tema que precisa e merece um tempo de maturação”, pondera Jun-
quilho, que é doutora em Direito com ênfase em Inteligência Artifi-
cial pela Universidade de Brasília (UnB).

Em 2022, o Senado formou uma comissão de 18 juristas para dis-


cutir um substitutivo desse PL. Esse grupo compôs um extenso re-
latório que inspirou o presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-
-MG), a apresentar um novo projeto, o PL 2338, e formar uma nova
comissão temporária de senadores para avaliar a proposta, revi-
sada em maio de 2023. As discussões ainda estão em andamento,
mas a expectativa é que haja uma votação em 2024.

Há muitos desafios na regulamentação da IA generativa. Um deles


é o fato de que ainda não foram mapeados todos os riscos desse
tipo de tecnologia. Outra questão é que alguns desses sistemas fo-
ram alimentados com dados protegidos por direitos autorais. Em
setembro do ano passado, um grupo de autores incluindo George
R. R. Martin, criador da saga As Crônicas de Gelo e Fogo, abriu um
processo contra a desenvolvedora do ChatGPT, a OpenAI, alegando
que a ferramenta foi treinada com as obras deles sem consentimen-
to. “A questão da propriedade intelectual é muito mais reparatória,
porque isso já foi coletado, já está sendo usado”, analisa Junquilho.
49

Um grande ponto dessa regulamentação no Brasil é a possibilidade


de punir e responsabilizar operadores ou fornecedores de sistemas
de inteligência artificial, vetando serviços muito arriscados antes de
eles criarem problemas. É a ideia de “cortar o mal pela raiz”, segundo
a professora do IDP. “Daí não vai ter mais a chance de surgir um apli-
cativo para produzir nude de criança e adolescente. É muito mais
50

fácil do que você punir granularmente após uma


criança ou adolescente ter produzido um nude
de outra pessoa”, pondera.

AEuropa jávem recorrendo a algumas proibições.


Em março de 2023, a Itália baniu brevemente o
ChatGPT, acusando a OpenAI de violar regras de
coleta e armazenamento de dados pessoais ao
treinar os algoritmos da plataforma. No último
dia 9 de dezembro, o Conselho e o Parlamento
da União Europeia chegaram a um acordo provi-
sório sobre seu próprio projeto de regulamenta-
ção, o AI Act. Uma das proibições anunciadas é “a
coleta não direcionada de imagens faciais da In-
ternet ou de filmagens de circuitos fechados de
televisão (CFTV) para criar bancos de dados de
reconhecimento facial.” A votação final da legis-
lação está prevista para o início de 2024.

“SE NÃO ESTIVERMOS PREPARADOS COM


O BÁSICO, VAMOS CAIR EM DEEPFAKE.
VAMOS NAVEGAR EM UM MUNDO SOMBRIO”
Loren Spíndola, líder do Grupo de Trabalho de Inteligência Artificial e de Cibersegurança da ABES
51

Do lado de quem desenvolve inteligências artificiais, uma das preo-


cupações é a escolha de uma regulamentação muito restritiva, que
poderia empacar inovações ou mesmo a atração de investimentos
em tecnologia no Brasil. É preciso ter a compreensão de que as IAs
“erram para acertar”, conforme destaca Loren Spíndola, líder do
Grupo de Trabalho de Inteligência Artificial e de Cibersegurança da
Associação Brasileira de Empresas de Software (ABES). “Concor-
do que é preocupante quando falamos de um erro que possa afe-
tar algum direito fundamental, pôr risco à vida, discriminar. Para
isso, a gente deve ter regras e princípios muito claros de como agir
e desenvolver [softwares]”, sugere. “O maior desafio hoje é: qual
a melhor forma de fazer isso? Já que não conseguimos controlar
uma tecnologia que está em constante evolução.”

Para Spíndola e Junquilho, só é possível chegar a uma regulamenta-


ção equilibrada da IA se forem ouvidas as diversas vozes que essa
questão envolve – empresas, acadêmicos, juristas e, claro, cidadãos.
“Tem que haver maior participação da sociedade para entendermos
quais são os valores que a gente quer ver incutidos nesses projetos
legislativos. Não é um caso de proibição”, diz a professora do IDP.

Mas, em um mundo no qual nem todo conteúdo é o que parece, legis-


lações, autenticadores e detectores de criações de IAs não são sufi-
cientes para evitar problemas. Na opinião de todos os especialistas
consultados pela reportagem, a educação — incluindo o letramento
digital — é a melhor maneira de construir uma sociedade mais se-
gura nesse sentido. É isso o que impede alguém de disseminar pelo
52

WhatsApp uma imagem falsa como se ela fosse verdade, de criar


um nude falso de um conhecido ou de confiar completamente no
ChatGPT para escrever um texto importante. “A gente precisa que
a sociedade esteja apta para um novo mundo”, reflete Spíndola. “Se
não estivermos preparados com o básico, vamos cair em deepfake.
Vamos navegar em um mundo sombrio.”

COMO CONVIVER BEM COM A IA GENERATIVA


Quatro dicas para evitar cair em fake news ou cibercrimes
envolvendo deepfakes e mensagens elaboradas por LLMs

1. EVITE O 2. VERIFIQUE 3. NÃO CONFIE 4. CHEQUE OS


OVERPOSTING LINKS ANTES DE COMPLETAMENTE FATOS SEMPRE
Quanto menos fotos CLICAR NELES NAS LLMS Vídeos, fotos e
ou vídeos forem O ideal é descon- Embora platafor- áudios falsos ficarão
fornecidos a IAs fiar até mesmo das mas como ChatGPT cada vez mais con-
generativas, menos URLs mandadas por possam ser muito vincentes. Viu uma
realistas serão os conhecidos — afi- úteis para aperfei- foto do Papa usando
clipes gerados por nal, seus pais, avós çoar textos, resumir um casaco estiloso?
elas. Por isso, o ou amigos podem conteúdos, criar Verifique se veículos
ideal é compartilhar ter sido hackeados. mensagens e até jornalísticos e agên-
menos imagens suas “Você precisa veri- mesmo montar cias de notícias vali-
nas redes sociais, ficar se o link não é roteiros de viagem, daram a imagem. Se
e também manter malicioso. Há várias elas também podem não foi comprovado,
suas páginas fecha- plataformas para apresentar resulta- não compartilhe. “A
das apenas para isso agora, como dos cheios de erros principal coisa que
conhecidos. O alerta o virustotal.com”, de informação. Por a pessoa comum
serve especialmen- sugere Rakesh Krish- isso, revisar é essen- deveria fazer é
te para quem tem nan. O serviço citado cial. “Você pode tirar entender a respon-
crianças. “A preven- pelo especialista em ideias delas, mas sabilidade que ela
ção é sempre o me- cibersegurança, ali- não deve segui-las tem de não pro-
lhor remédio nesses ás, também analisa cegamente”, acon- pagar informação
casos”, aponta Tainá arquivos, domínios selha Krishnan. “Use falsa”, decreta Jonas
Junquilho. e IPs. seu bom senso.” Krause.
QUER QUE EU DESENHE?
POR BERNARDO FRANÇA

NASCIDO EM PARIS EM 1840, OSCAR-CLAUDE MONET TEVE


EUGÈNE BOUDIN COMO TUTOR E FICOU FAMOSO POR SUAS TELAS
QUE REPRESENTAVAM OS EFEITOS DA LUZ NATURAL.
CONHEÇA SUA TRAJETÓRIA
TEXTO
Maria Clara Vaiano
54

No dia 14 de novembro de 1840, nasceu em


Paris um dos pintores mais conhecidos de
todos os tempos: Oscar-Claude Monet. Filho
de uma cantora e de um comerciante, seu
pai queria que ele trabalhasse no mercado,
mas o jovem Monet queria ser artista.
55

Em 1851, Monet entrou na escola secundária


de artes de La Havre. Inicialmente, ficou
conhecido por suas caricaturas em carvão,
mas depois foi aprendendo técnicas
diferentes. Um de seus tutores foi
Eugène Boudin, que o ensinou técnicas
de pintura ao ar livre.
56

Aos 22 anos — após uma breve passagem


pelo Exército e uma frustração com a
carreira acadêmica —, Monet virou aluno
do suíço Charles Gleyre em Paris.
Foi onde conheceu grandes amigos,
como Pierre-Auguste Renoir, e aprendeu
técnicas que o tornariam famoso.
57

Suas telas representavam os efeitos da luz


natural, com cores “quebradas” e pinceladas
rápidas. Foi o que mais tarde ficou conhecido
como Impressionismo, cujo marco inicial
é a tela Impressão, Nascer do Sol, concluída
por Monet em 1872.
58

Já idoso, o francês desenvolveu catarata, o


que teria afetado a nitidez de sua visão e a
percepção de algumas cores. Monet morreu
em 5 de dezembro de 1926, aos 86 anos, de
câncer no pulmão. Sua casa em Giverny, onde
passou seus últimos anos, pode ser visitada.

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