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NA FOGUEIRA:

O QUE EXPLICA
A RECENTE
ONDA DE
CENSURA A
LIVROS NO
BRASIL E NO
MUNDO

A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 383 FEVEREIRO DE 2024

PRAZER
QUE VICIA
A CIÊNCIA TEM SE
DEBRUÇADO SOBRE
O COMPORTAMENTO
SEXUAL COMPULSIVO.
ENTENDA O
TRANSTORNO E
CONHEÇA SEUS
SINTOMAS
COMPOSIÇÃO
FEVEREIRO DE 2024

03
CAPA

QUANDO A
COMPULSÃO POR
SEXO PODE SER UM
PROBLEMA DE SAÚDE?

“Cada vez menos a ONU tem condições


de fazer valer sua vontade”
20 Entrevista com Ronaldo Carmona

50
36
QUER
QUE EU
DESENHE?
CULTURA

EM DIVERSOS PAÍSES,
LIVROS ENTRAM NA MIRA
DA CENSURA
COMPORTAMENTO
TEXTO André Bernardo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Ilê Machado DESIGN Flavia Hashimoto

PRAZER QUE VICIA SEGUNDO ESTUDO


REALIZADO EM 42 PAÍSES,
COMPORTAMENTO SEXUAL
COMPULSIVO ATINGE
4,8% DA POPULAÇÃO;
DESSES, APENAS 13,7%
PROCURAM TRATAMENTO.
ENTENDA O TRANSTORNO
E SAIBA IDENTIFICAR
SEUS SINTOMAS
B
Brandon Sullivan é o nome do personagem do
ator alemão Michael Fassbender em Shame
(“Vergonha”), do diretor inglês Steve McQueen.
No longa de 2011, ele é um executivo de 30 e
poucos anos, viciado em sexo, que trabalha em
Nova York. Do momento em que acorda até a
hora em que vai dormir, Brandon não pensa em
outra coisa: acessa pornografia online, contrata
garotas de programa, se masturba no banheiro
do trabalho, flerta com desconhecidas no me-
trô, faz sexo em locais públicos... Em busca de
novas aventuras sexuais, chega a dar em cima
de uma garota bem na frente do namorado dela.
Conclusão: leva uma surra em um beco escuro.

Brandon é também o nome fictício de um uni-


versitário de 22 anos que vive em São Paulo. Por
telefone, ele contou a GALILEU que sua compul-
são teve início aos 6 anos, quando foi abusado
sexualmente por um primo adolescente. Aos 11,
descobriu a pornografia e, passado tanto tem-
po, perdeu a conta das vezes em que se feriu de
tanto se masturbar. Aos 14 anos, desconfiou de
que havia algo errado, mas, sozinho, não con-
seguiu dar um novo rumo em sua vida. “Caram-
ba, onde isso vai parar?”, vivia se perguntando.
Durante a pandemia, trocou o dia pela noite na
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frente do computador. Logo, passou a ligar para o disque-sexo e a


assistir a cam girls — garotas que, na maior parte das vezes, fazem
striptease pela internet. “Comparo meu vício a um carro em alta
velocidade”, explica o rapaz. “Tentava frear, mas não conseguia.
Perdi o controle da minha vida.”

O “carro em alta velocidade” a que Brandon se refere ganhou o


nome de Transtorno do Comportamento Sexual Compulsivo (TCSC).
Desde 2022, integra a 11ª edição da Classificação Estatística Inter-
nacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-
11), na categoria Transtorno do Controle de Impulso (TCI). Como o
nome já diz, TCI é todo e qualquer distúrbio psiquiátrico caracteri-
zado pela incapacidade de se resistir a um impulso — seja ele o de
provocar incêndios (piromania), furtar objetos (cleptomania) ou ter
acessos de raiva (Transtorno Explosivo Intermitente), entre outros.

No caso do TCSC, a falta de controle resulta em comportamento


sexual repetitivo, que pode ser solitário (masturbação) ou com-
partilhado (relações sexuais). O CID-11 aponta, entre outros sin-
tomas, tentativas malsucedidas de controlar (ou reduzir) o vício e
um tempo de persistência igual ou superior a seis meses. “O nú-
mero de vezes em que o indivíduo se masturba, o tempo que ele
perde consumindo pornografia ou a quantidade de parceiros que
tem não são critérios de diagnóstico”, explica o psiquiatra Lucas
Naufal Macedo, do Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e de
Prevenção aos Desfechos Negativos Sexuais Associados ao Com-
portamento Sexual (AISEP), da Universidade de São Paulo (USP).
6

“O que importa é o sofrimento e o prejuízo que esse comporta-


mento traz para sua vida pessoal, familiar e social.”

Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o com-


portamento sexual compulsivo como transtorno, mas ainda não
definiu se o distúrbio é um vício igual ao do abuso de drogas, por
exemplo. Faltam mais estudos, alega a OMS. Em geral, os especialis-
tas dividem as dependências em três categorias: as químicas, as não
químicas e as relacionais. No caso das químicas, o objeto de depen-
dência é uma substância, como álcool, maconha e cocaína. Já nas
não químicas, o que pega é um comportamento, como jogar, comer
ou comprar. E, para as relacionais, o “problema” é outra pessoa.

O sexo compulsivo faz parte do segundo grupo. A classificação, po-


rém, divide opiniões. “O conceito de ‘vício sexual’, embora difundido
no senso comum, carece de evidências na literatura científica”, afir-
ma o psicólogo Itor Finotelli Júnior, presidente da Sociedade Brasi-
leira de Estudos em Sexualidade Humana (SBRASH). “O comporta-
mento sexual compulsivo manifesta sintomas semelhantes aos de
uma dependência, como recaídas, mas não apresenta semelhanças
psiconeurológicas.” Já a psicóloga Michelle Sampaio, coordenado-
ra do Departamento de Parafilias da Associação Brasileira de Es-
tudos em Medicina e Saúde Sexual (ABEMSS), pensa diferente: “O
comportamento sexual compulsivo é um vício como outro qualquer.
Nos EUA, chegaram a criar o termo sex addiction para se referir aos
adictos em sexo. Os compulsivos sexuais chegam a colocar a vida
em risco ao ter inúmeros parceiros e ao transar sem preservativo.”
“O comportamento sexual compulsivo
manifesta sintomas semelhantes
aos de uma dependência, como
recaídas, mas sem semelhanças
psiconeurológicas”
Itor Finotelli Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos
em Sexualidade Humana
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Outros, ainda, defendem que o comportamento compulsivo sexual


é um transtorno que não existe. Caso do psicólogo Paulo Tessario-
li, presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde,
Educação e Terapia Sexual (ABRASEX). “Nossa sociedade desen-
volveu o hábito de rotular todo e qualquer comportamento sexual
que se afaste daquele considerado moralmente certo: o sexo para
fins reprodutivos”, afirma o terapeuta sexual. Independentemente
da classificação, fato é que esse é um problema complexo, cujas
causas ainda são um enigma para a ciência.

Do abuso à compulsão
Um mistério que intriga os cientistas que estudam a sexualidade
humana é: por que vítimas de abuso sexual na infância tendem
a se transformar em compulsivos sexuais na vida adulta? “Não é
possível apontar um nexo de causalidade”, explica o psiquiatra
Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da
Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex), em Santo
André (SP). “Existem fatores psicossociais, geralmente traumáti-
cos e perniciosos, que colaboram para a formatação de determi-
nados comportamentos de natureza compulsiva ou impulsiva.”
Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, intitulado
Violência Sexual Infantil, revela que, só em 2021, o Brasil regis-
trou 45.994 estupros de crianças e adolescentes. O dado mais
estarrecedor é que 82,5% dos abusadores eram conhecidos das
vítimas: 40,8% deles eram pais ou padrastos, 37,2% irmãos ou
primos e 8,7%, avós.
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Outra pesquisa, essa realizada pelo médico estadunidense Patrick


Carnes, autor do livro Isto Não é Amor (1989), revela que 81% dos
compulsivos sofreram abuso na infância. O levantamento foi feito
com 290 participantes, sendo 233 homens e 57 mulheres. Entre
eles, o tipo mais relatado foi a carícia sexual (43%); entre elas, o ato
sexual forçado (58%). “Traumas de negligência parental ou abuso
sexual podem resultar em sequelas emocionais e provocar senti-
mentos de culpa, inadequação ou vergonha”, afirma a psiquiatra
Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexu-
alidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das
Clínicas da USP. “A compulsão pode ser entendida como uma ten-
tativa de reparar alguma experiência traumática ou, ainda, estar
associada à dificuldade de lidar com a própria intimidade sexual.”

Abuso sexual na infância, porém, é


apenas uma das muitas respostas à
pergunta: por que algumas pessoas
têm compulsão por sexo e outras,
não? O psiquiatra Dartiu Xavier da
Silveira, um dos fundadores do Pro-
grama de Orientação e Atendimento
a Dependentes (PROAD), do Depar-
tamento de Psiquiatria da Escola
Paulista de Medicina da Universida-
de Federal de São Paulo (Unifesp),
10

chega a falar de “conjunção de predisposições genéticas e fatores


psicológicos”, além de “possíveis influências do meio ambiente”.
“Comportamentos sexuais são uma forma de lidar com estressores
da vida ou de escapar da dor física ou emocional”, explica Silveira.

Um estudo de 2019, coordenado pelo médico Adrian Boström, do


Instituto Karolinska, na Suécia, apontou uma causa neurobiológi-
ca para o problema. Ele analisou amostras de sangue de 102 vo-
luntários — 64 compulsivos e 38 sem o transtorno — e descobriu
níveis elevados de ocitocina, o “hormônio do amor”, no primeiro
grupo. Produzida numa região do cérebro chamada hipotálamo,
a ocitocina promove as contrações do útero no parto e estimula a
produção do leite materno, por exemplo.

Outros “hormônios da felicidade”, como a dopamina, a endorfina


e a serotonina, também estão por trás da dependência por sexo.
Quem explica é a psicóloga Anna Lucia Spear King, fundadora do
Instituto Delete, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
que atende usuários abusivos de tecnologia. “Qualquer dependên-
cia age no sistema de recompensa do cérebro e libera substâncias
químicas que dão sensação de prazer e bem-estar. Seja em um
site de compras, jogos ou pornografia, os dependentes só estão ali
porque precisam de alívio imediato para seus problemas.”

a um clique De Distância
Nunca é demais repetir: não é a frequência ou a quantidade que de-
fine uma compulsão, e sim o sofrimento e o prejuízo que ela causa
11

na vida do indivíduo. O Instituto Delete classifica


o uso de tecnologia, fiel companheira de quem
sofre de dependência por sexo, entre conscien-
te, abusivo ou patológico. Consciente é quando
o mundo virtual não atrapalha o real. Abusivo é
quando atrapalha, mas (ainda) existe um nível
de controle por parte do usuário. Patológico é
quando atrapalha e não há mais controle.

Três em cada dez usuários apresentam sinto-


mas de dependência e precisam de orientação
profissional. Em 2022, a modelo e atriz britâni-
ca Cara Delevingne, de 31 anos, admitiu ser vi-
ciada em pornografia. Foi na série documental
Planeta Sexo com Cara Delevingne. “Preciso as-
sistir para ter um orgasmo. Então, acho que, à
sua maneira, é um vício”, declarou a top.

“A compulsão pode ser entendida


como uma tentativa de reparar
alguma experiência traumática ou,
ainda, estar associada à dificuldade
de lidar com a própria intimidade
sexual”
Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade
(ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP
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Delevingne não foi a primeira celebridade a assumir publicamente


a dependência. Em 2016, o ator estadunidense Terry Crews, de 55
anos, postou em suas redes sociais uma websérie que ele apelidou
de Dirty Little Secrets (“Segredinhos Sujos”, em livre tradução). Nela,
relatou o quanto a pornografia tinha bagunçado sua vida. “Cara, se o
dia vira noite e você continua vendo pornografia, você, então, prova-
velmente tem um problema!”, alertou. Em entrevista a um podcast,
Crews explicou que começou a consumir pornografia aos 10 anos de
idade, quando encontrou um baú cheio de revistas masculinas na
casa de um tio. E só procurou ajuda em 2010, 32 anos depois, quan-
do sua esposa, a cantora Rebecca King-Crews, ameaçou se separar
dele. Pouco tempo depois, o casal reatou o relacionamento.

As revistas masculinas que o pequeno Terry encontrou na casa do


tio, como Playboy, Hustler e Penthouse, viraram peça de colecio-
nador. Mas, no auge do sucesso, chegaram a vender algo em torno
de 7 milhões de exemplares por ano só no Brasil — a recordista é
a edição de dezembro de 1999, que traz a ex-dançarina e modelo
Joana Prado, a Feiticeira, na capa: 1.247.000 exemplares. Com o
fim das publicações do gênero — a última edição da Playboy brasi-
leira, a de nº 497, foi lançada em dezembro de 2017 —, os compul-
sivos sexuais migraram para os sites de pornografia.

Só o Pornhub, um dos maiores do mundo, com 20 milhões de ins-


critos, registra uma média de 100 milhões de visitas diárias, algo
em torno de quase 70 mil por minuto! “São três os fatores que,
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combinados, tornam o consumo de pornografia online convenien-


te: o acesso fácil, o custo baixo e a garantia de anonimato”, explica
a psiquiatria e psicoterapeuta Aline Rangel, pós-doutoranda em
Estudos de Gênero na Universidade de Ciências Empresariais e
Sociais (UCES), na Argentina. “Os usuários podem acessar de qual-
quer lugar e a qualquer horário. Está a um clique de distância.”

Segundo levantamento do Pornhub, o Brasil é o 10º país que mais


consome “entretenimento adulto”. A última novidade do setor se
chama Lexi Love. Modelo em início de carreira, ela tem 21 anos, é
poliglota, adora sushi, pratica pole dance e... curte sexo oral. Tem
um único problema: ela não existe. Foi criada por IA, sigla para
inteligência artificial. Mesmo assim, recebe cerca de 20 pedidos
de casamento por mês.

compulsão ou apetite?
O Transtorno do Comportamento Sexual Compulsivo (TCSC) é um
nome novo para um problema antigo. Mas não há como saber se
figuras históricas famosas, como a imperatriz Valéria Messalina
(22-48) e o escritor Giacomo Casanova (1725-1798), entre outros
tantos, sofriam de compulsão ou tinham apenas um apetite sexual
insaciável. Entre outras proezas, Messalina, que virou sinônimo de
“libertina” e “devassa” no dicionário Houaiss, teria desafiado uma
famosa prostituta romana a uma disputa pouco convencional: com
quantos homens cada uma delas transaria em 24 horas? Messalina
levou a melhor: foram 25 parceiros, ou seja, mais de um por hora.
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VOCÊ É VICIADO EM SEXO?


Faça o teste e saiba se há indícios do
Transtorno do Comportamento Sexual Compulsivo

1. Você se entrega a práticas 5. Você gasta muito tempo e energia


sexuais cada vez mais intensas e buscando ter relações sexuais?
frequentes para obter a mesma
satisfação de antes? 6. Você começa a se ocupar do sexo
quando deveria estar trabalhando
2. Você sente mal-estar físico e/ou ou com seus entes queridos?
psicológico quando tenta diminuir
ou evitar o sexo?
Se você respondeu “sim” a pelo menos
3. Você ocupa mais tempo e com três dos seis aspectos acima, você
maior intensidade com o sexo ou apresenta um comportamento sexual
se masturbando? muito frequente.Procure um especia-
lista para avaliar seu quadro.
4. Você fracassa quando tenta
controlar seu comportamento Este teste não substitui o diagnóstico
sexual? médico.

Veja outras características do transtorno:

1. Distanciamento familiar ou dos entes queridos;


2. Prejuízo no desempenho profissional ou acadêmico;

3. Alto consumo de pornografia ou do uso da internet


para sexo virtual e/ou real;
4. Prejuízo financeiro;
5. Doenças sexualmente transmissíveis;
6. Elevada troca de parcerias sexuais;

Fonte: PRO-AMITI.
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Já Casanova, descrito no dicionário como “mulherengo”, não fica


atrás. Ao publicar suas memórias em 1789, declarou ter levado para
a cama 132 mulheres, entre meretrizes, serviçais e religiosas. Por
pouco, não se casou com a própria filha — no dia do casamento, a
mãe dela apareceu na igreja, contou que tinha sido amante de Ca-
sanova e que ele era o pai da moça. Conclusão: o padre suspendeu
o casamento. “A compulsão sexual é o tipo de comportamento que,
muito provavelmente, sempre existiu ao longo da história. Só não
era classificado como tal. Mas, se a gente analisar bem alguns ro-
mances históricos dos séculos 18 ou 19, constata que já havia uma
certa desregulação, isto é, uma dificuldade para controlar os impul-
sos”, analisa o psiquiatra Jairo Bouer, coautor do livro O Guia dos
Curiosos – Sexo (2008), escrito com o jornalista Marcelo Duarte.

Um desses romances é A Filosofia na Alcova, escrito por Marquês


de Sade (1740-1814) e publicado em 1795. A personagem Madame
de Saint-Ange teria sido inspirada em Mademoiselle Dubois, nome
artístico de Marie-Madeline Blouin (1746-1779), atriz francesa que
garantia ter tido relações sexuais com 16.527 homens!

Houve um tempo em que a compulsão sexual masculina era chama-


da de satiríase e a feminina, de ninfomania. Sátiros e ninfas eram
personagens da mitologia grega. O mais famoso deles, a propósi-
to, se chamava Príapo, tinha o pênis avantajado e sempre ereto. Os
dois termos, porém, caíram em desuso. Priapismo virou uma condi-
ção persistente, involuntária e dolorosa, e ninfomaníaca, o título de
um filme do cineasta dinamarquês Lars von Trier. Para quantificar o
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problema, a pesquisa Mosaico 2.0, de 2016, entrevistou 3 mil bra-


sileiros entre 18 e 70 anos no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte,
Salvador, Belém, Porto Alegre e no Distrito Federal. Entre outros
achados, descobriu que 6,5% dos homens e 2,1% das mulheres têm
ou já tiveram comportamento sexual compulsivo.

Outro estudo, mais recente e abrangente, foi realizado em 2023 com


82.243 participantes de 42 países — 3.579 deles só do Brasil — e
apurou que 4,8% apresentam alto risco de sofrer de compulsão se-
xual. Segundo a coordenadora do estudo, Beáta Böthe, do Departa-
mento de Psicologia da Universidade de Montreal, no Canadá, dois
dados lhe chamaram a atenção: primeiro, não houve diferenças sig-
nificativas no nível de compulsão entre participantes de diferentes
orientações sexuais (68,2% deles eram heterossexuais) e, segundo,
apenas 13,7% dos compulsivos procuraram tratamento. “Há várias
razões por trás dessa baixa procura: não sabem que a compulsão é
um problema a ser tratado, não se sentem confortáveis para falar
disso na frente de estranhos, não fazem ideia de onde procurar aju-
da ou não têm dinheiro para pagar o tratamento.”

LUZ NO FIM DO TÚNEL


No Brasil, o PRO-AMITI, do Hospital das Clínicas da USP, é um dos
ambulatórios que oferecem ajuda gratuita a pacientes com trans-
tornos do controle de impulsos, dos já classificados pelo DSM-5 — a
5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais,
a “Bíblia da Psiquiatria” — aos que ainda estão em estudo, como
compras compulsivas e impulso sexual excessivo. O tratamento se
17

“A compulsão sexual é o tipo


de comportamento que, muito
provavelmente, sempre existiu
ao longo da história. Só não era
classificado como tal”
Jairo Bouer, psiquiatra e coautor de O Guia dos Curiosos – Sexo (2008)
18

baseia em dois pilares: acompanhamento psi-


coterápico e prescrição de remédios. No caso
da psicoterapia, mais do que a busca pela absti-
nência, o objetivo é mudar o padrão de compor-
tamento. Já o uso de medicamento pode ser in-
dicado quando a pessoa apresenta um quadro
psiquiátrico grave, como a depressão; ou, ainda,
quando seu grau de compulsividade represen-
ta um risco para si ou para os outros. “Não há
cura, mas há controle”, pondera o médico Danilo
Baltieri, da ABSex. “E o controle pode ser alcan-
çado com três ingredientes essenciais: pacien-
te que adere ao tratamento, equipe disposta a
ajudar e familiares que impõem limites.”

Além do tratamento medicamentoso e psico-


terápico, Dartiu Xavier da Silveira, da Unifesp,

“A compulsão é uma válvula de


escape. Aprendi outras formas de
lidar com meus problemas sem ser
através do sexo”
Brandon, universitário de 22 anos que sofre com Transtorno do Comportamento Sexual
Compulsivo (TCSC)
19

acrescenta um terceiro elemento: grupos de autoajuda, como o


Sexólicos Anônimos (S.A.) ou o Dependentes de Amor e Sexo Anô-
nimos (D.A.S.A.), que podem agir de forma complementar. “Minha
primeira reunião foi no dia 16 de dezembro de 2005. Só por hoje
continuo frequentando o grupo que, literalmente, me ajuda a vi-
ver”, declarou, por e-mail, um membro do D.A.S.A., de São Paulo,
que pediu para não ser identificado. “Já frequentei reuniões com
três pessoas e outras com 52. Não há melhor terapia do que falar
por sete minutos e ouvir por 113. Quando ensino o que aprendi,
reforço esse aprendizado em mim.”

A vida de Brandon, o universitário citado no início da reportagem,


voltou a dar uma guinada em fevereiro de 2021, quando ingres-
sou no S.A.. Ele já tinha tentado de tudo: desde ficar sem internet
até bloquear o celular. Nada adiantou. Entrou em depressão, per-
deu cinco quilos, pensou em suicídio. “Não aguentava mais. Perdi
a vontade de viver”, relata. Na irmandade, conheceu homens e
mulheres que ouviam e contavam histórias sem culpa, vergonha
ou julgamento. Desde o dia 9 de junho de 2021, está sóbrio; ou
seja, não consome pornografia, não se masturba, nem faz sexo
fora do casamento. E ainda faz terapia, presta serviço voluntário
e pratica esportes. “A compulsão é uma válvula de escape. Apren-
di outras formas de lidar com meus problemas sem ser através
do sexo”, orgulha-se, enfim.
20

EntrEvista

“Cada vez
menos a ONU
tem condições
de fazer valer
sua vontade”

COM Ronaldo Carmona POr Marília Marasciulo


Especialista em geopolítica avalia
como grave a situação de conflitos na
Ásia, Europa e América Latina — que
podem provocar da radicalização de
populações ao restabelecimento de
uma ordem de poder unipolar

O
O mundo está em guerra. Além da situação na
Ucrânia, que completa dois anos no próximo dia
24 de fevereiro, há pelo menos outros 110 confli-
tos armados acontecendo no mundo, segundo o monitor da
Academia de Direito Internacional Humanitário e Direitos
Humanos de Genebra. Alguns são internos; outros, têm im-
pacto global e ganham a atenção da mídia.

É o caso da situação em Gaza, que desde o início de outubro


passado vem sendo bombardeada e bloqueada por Israel
como retaliação a ataques do Hamas, grupo fundamenta-
lista islâmico que controla a região. E também das tensões
crescentes no Mar do Sul da China — hidrovia vital para o
comércio internacional que vem sendo alvo de disputa entre
países da região, como Filipinas, Malásia, Vietnã e Brunei,
além de interferência dos Estados Unidos (que defendem
que as águas são cruciais para seus interesses nacionais).
22

Perto do Brasil, há a disputa entre Venezuela e Guiana


pela região do Essequibo, que remonta a 1814 e esquentou
no fim de 2023. “Isso para o Brasil é um cenário bastante
indesejável, uma vez que traz potências extrarregionais
para se imiscuir numa região até então pacificada, que é a
porta da nossa Amazônia”, observa o especialista em ge-
opolítica Ronaldo Carmona, professor da Escola Superior
de Guerra (ESG).

Na avaliação de Carmona, que é também senior fellow do


Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o
mundo tem hoje diferentes fatores e pontos de tensão que
podem levar ao agravamento dos conflitos em curso ou
mesmo ao surgimento de novas guerras. Entre eles, a corri-
da por minerais necessários para a transição energética e o
desenvolvimento da inteligência artificial generativa. “Nós
estamos vendo conflitos generalizados por toda a parte.
Mas, atualmente, o grande confronto se dá entre Estados
Unidos e China em torno do domínio das tecnologias, que
é um fator absolutamente crítico para definir quem será o
bloco hegemônico no sistema internacional”, opina.

Para piorar, na visão do especialistas, há um enfraquecimen-


to das Organizações das Nações Unidas (ONU) e do sistema
multilateral de diplomacia, que visa a cooperação de um gru-
po de países em torno de uma agenda de interesse comum.
“Cada vez mais a gente vê que todas as grandes potências
23

concordam com as regras multilaterais até o limite em que seu


interesse nacional direto seja atingido”, destaca. As consequên-
cias disso são incertas: da radicalização de populações ao resta-
belecimento de uma ordem unipolar — ou o oposto, com a mul-
tipolarização do poder global. A GALILEU, Carmona fala sobre
os fatores que provocam conflitos, as mudanças da natureza
das guerras e a distante possibilidade de paz mundial.

EMBORA OS CONFLITOS QUE MAIS APAREÇAM NA MÍDIA ATUAL-


MENTE SEJAM OS NA UCRÂNIA E EM GAZA, HÁ GUERRAS ACONTE-
CENDO EM OUTROS LUGARES TAMBÉM, INCLUSIVE NA AMÉRICA
LATINA. COMO VOCÊ AVALIA ESTE MOMENTO QUE VIVEMOS?

O cenário geopolítico global é bastante grave neste


início de 2024. Nós temos a continuidade da ten-
são no Mar do Sul da China, as eleições em Taiwan
e essa novidade no norte da América do Sul, na re-
gião do Essequibo. Além disso, há impasses sobre a
questão da transição energética. Vemos a renova-
ção de uma corrida à África e, em alguma medida,
também à América do Sul, por causa dos minerais
críticos para a transição energética.

Por muito tempo, o mundo tinha uma dependência


crônica do petróleo. Hoje, corre-se o risco de uma
24

corrida pelo domínio desses materiais que viabili-


zam os instrumentos necessários para a transição,
então pode haver grandes conflitos por causa disso.
Ronaldo
CaRmona
Outro problema que desponta é o desenvolvimen- É professor de
Geopolítica da
to da inteligência artificial, em especial a genera- Escola Superior
tiva, que tem um grande impacto inclusive sobre de Guerra (ESG) e
a possibilidade de uso para a manipulação das so- senior fellow do
Centro Brasileiro
ciedades. Neste ano, haverá eleições em dezenas de Relações
de países do mundo, avalia-se que 4 bilhões de Internacionais
(CEBRI), onde
pessoas irão às urnas. E aí é preciso ter uma aten- lidera o Núcleo
ção para o ambiente interno dos Estados Unidos, de Defesa e
onde a possibilidade de retorno de Donald Trump Segurança
Internacional.
é bastante real, diria que inclusive é o mais prová- Assessora a
vel; e para a Europa, onde temos uma sucessão de Diretoria de
Inovação da
crises, por exemplo, na Alemanha, na França e na Finep, a agência
Inglaterra. Então, temos ambientes internos mui- do Ministério
to conturbados, que acabam afetando também os da Ciência,
Tecnologia e
conflitos já em curso. Inovação (MCTI).
Foi chefe de
planejamento
quE fatOrEs COntribuíraM Para EssE CEnáriO? do Ministério da
Defesa em 2016.
A gente tem que começar com uma visão sobre
o conjunto da obra e o momento sistêmico que a
gente vive no mundo. Com o final da Guerra Fria
[1945-1991], a vitória dos Estados Unidos e do blo-
co ocidental teve como contrapartida a ascensão da
25

China. Passo a passo, a China adquiriu a condição


de um rival sistêmico dos Estados Unidos, a ponto
de hoje observarmos uma guerra tecnológica entre
Estados Unidos e China exatamente pelo domínio
das tecnologias que estão viabilizando a quarta re-
volução industrial. Porque quem dominar essas tec-
nologias irá ganhar uma posição de dominância do
ponto de vista do poder e da geopolítica mundiais.

Então, o pano de fundo é esse declínio relativo


do bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos
e simbolizado pelo G7 [grupo formado por Esta-
dos Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, Fran-
ça, Itália e Canadá], e a ascensão de um conjunto
de países liderados pela China. É um ambiente de
multipolaridade, onde o poder mundial é mais di-
luído e, portanto, dá margem para maiores confli-
tos entre os diversos polos de poder.

sabEMOs quE Cada COnflitO tEM suas PartiCularidadEs E


MOtivaçõEs EsPECífiCas, Mas quais COstuMaM sEr as Prin-
CiPais Causas dE COnfrOntOs dE EsCala GlObal?

No geral, todos os grandes países têm uma sensibi-


lidade muito forte no que diz respeito a sua sobe-
rania e integridade territorial. A guerra na Ucrânia,
por exemplo, é um paralelo muito grande com a Cri-
se dos Mísseis, de 1962, quando a União Soviética
26

colocou mísseis em Cuba e os Estados Unidos con-


sideraram aquilo uma ameaça existencial. A causa
principal da deflagração da guerra na Ucrânia teve
a ver com a percepção russa de que a adesão ucra-
niana à Otan [Organização do Tratado do Atlântico
Norte] representaria um risco existencial à Rússia.
E isso não é novidade. Aliás, as últimas três inva-
sões à Rússia, seja na Segunda Guerra Mundial
[1939-1945] por Hitler, seja antes por Napoleão [no
século 19], foram perpetradas por essa franja terri-
torial que fica ali na região da Ucrânia.

Mesma coisa a China com Taiwan, que historica-


mente é parte integrante da China. Poderia falar
do Brasil também, onde a Amazônia é a parte mais

“O desenvolvimento da
inteligência artificial, em
especial a generativa, tem
grande impacto sobre a
possibilidade de uso para
manipulação das sociedades”
Calmona analisa fatores que contribuem para conflitos atuais no mundo
27

sensível do território, por isso esse conflito que


apareceu no norte [entre Venezuela e Guiana] ge-
rou uma enorme preocupação.

UM DOS MAIORES TEMORES GLOBAIS É UMA TERCEIRA GUER-


RA MUNDIAL. NO INÍCIO DA GUERRA NA UCRÂNIA, HOUVE MUITA
ESPECULAÇÃO SOBRE ESSA POSSIBILIDADE, O QUE NÃO SE CON-
CRETIZOU. NA SUA VISÃO, QUE AMEAÇAS PODERIAM DESENCADE-
AR UM CONFLITO DESSA PROPORÇÃO?

Em certa medida, já observamos um conflito mun-


dial em larga escala que, em alguns lugares, deri-
va em guerras cinéticas, enfrentamentos mesmo.
Hoje, por exemplo, o que a gente vê na Ucrânia é
um enfrentamento entre a Otan e a Rússia. E é
mais amplamente a Rússia com o apoio de vários
outros polos de poder do chamado Sul Global. No
Oriente Médio, temos o risco de uma escalada ex-
ponencial do conflito entre Hamas e Israel, levan-
do a um cenário de conflito generalizado. Você vê
declarações mais recentes do exército de Israel di-
zendo que eles estariam ajustando a postura para
se concentrar agora na eliminação do Hezbollah
no sul do Líbano, o que é extremamente perigoso.

Então, na prática, já estamos vendo conflitos ge-


neralizados por toda a parte. Alguns na forma de
28

conflitos indiretos, guerras por procuração entre


as grandes potências, mas que certamente pode
haver erros de cálculo e derivar num conflito aber-
to. Atualmente, o grande confronto se dá entre
Estados Unidos e China em torno do domínio das
tecnologias, que é um fator absolutamente crítico
para definir quem será o bloco hegemônico no sis-
tema internacional no próximo período.

COMO a naturEza das GuErras EvOluiu aO lOnGO dO tEMPO,


COnsidErandO Os avançOs tECnOlóGiCOs E as Mudanças
GEOPOlítiCas?

Nos últimos anos — e quiçá décadas —, podemos


observar tanto continuidades quanto mudanças
na forma da guerra. Certamente, as tecnologias
impactaram bastante a forma da guerra, mas o
elemento humano continua sendo determinan-
te do ponto de vista de conflito. Você não pode
dizer que a tecnologia substituiu a importância
das pessoas no conflito. Agora, o que você tem de
novidade é uma hibridização cada vez maior da
guerra: a utilização de mecanismos não cinéticos
ou formas indiretas que por vezes acabam tendo
como consequência o mesmo efeito. Por exemplo,
mecanismos de informação, mecanismos ciber-
néticos, psicossociais.
29

E ainda a influência das redes sociais, que agora


vai se agravar com essa questão da inteligência
artificial, como forma de quebra da coesão nacio-
nal do país adversário, de desestabilização do país
adversário. É algo cada vez mais em pauta. Nós
vemos isso por toda parte, essas operações psico-
lógicas que remontam aos primórdios da guerra,
mas hoje o uso da internet e das redes sociais fa-
cilita as condições para que os instrumentos indi-
retos sejam algo eficiente do ponto de vista dos
confrontos contemporâneos.

“Na prática, já vemos


conflitos generalizados.
Alguns indiretos, guerras
por procuração entre as
grandes potências, mas que
certamente pode haver erros
de cálculo e derivar num
conflito aberto”
Calmona reflete sobre possíveis fatores que levariam a uma “terceira guerra mundial”
30

QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS A LONGO PRAZO DE TANTAS GUERRAS?

Quanto mais a guerra dura, mais as populações se


radicalizam. No caso de Gaza, essa radicalização
corre o risco de se espalhar. Você já vê milícias blo-
queando um checkpoint, um dos pontos de passa-
gem mais importantes do mundo. Há risco de in-
clusive arrastar o Irã para o conflito e gerar uma
questão que poderia ser altamente dramática, que
seria o fechamento do Estreito de Ormuz [no Golfo
Pérsico]. Isso poderia, por sua vez, jogar o preço do
petróleo para a estratosfera. Então, esse proble-
ma no Oriente Médio pode escalar, pode se tornar
ainda mais grave do que já é. Como se já não fosse
grave os 23 mil palestinos que morreram nos bom-
bardeios e os 1.200 israelenses mortos nas ações
iniciais do Hamas.

NA SITUAÇÃO EM GAZA, TEMOS VISTO UMA GRANDE QUEDA DE


BRAÇO POR UM CESSAR-FOGO ENTRE A ONU E OS ESTADOS UNI-
DOS E ISRAEL. QUÃO EFICAZ É A DIPLOMACIA INTERNACIONAL NA
PREVENÇÃO OU RESOLUÇÃO DE CONFLITOS?

Esse é outro aspecto importante da situação in-


ternacional: a crescente irrelevância das Nações
Unidas e do sistema multilateral. Cada vez menos
a ONU tem condições de fazer valer sua vontade.
31

Exatamente porque cada vez mais a gente vê que


todas as grandes potências concordam com as re-
gras multilaterais até o limite em que seu interes-
se nacional direto seja atingido. Há uma contradi-
ção entre o interesse nacional e o multilateralismo.
Eu poderia dar aqui muitos exemplos disso, des-
de os ataques dos Estados Unidos que levaram à
deposição de Saddam Hussein até a absoluta in-
capacidade do Conselho de Segurança [órgão da
ONU formado por 15 países membros] de intervir
em aspectos críticos da situação internacional: pri-
meiro no problema da guerra na Ucrânia, agora no
Oriente Médio. O mundo de hoje não tem dado es-
paços para a diplomacia.

O brasil COstuMa tEr uM PaPEl dE dEstaquE na diPlOMaCia


intErnaCiOnal. na sua visãO, COMO EstaMOs nOs saindO
diantE dOs COnflitOs atuais?

Esse cenário que se observa no mundo exige um re-


posicionamento do Brasil. Nós vivemos uma reali-
dade nova no cenário internacional e a gente preci-
sa, portanto, reposicionar nossa grande estratégia
para criar condições mais favoráveis ao nosso pró-
prio desenvolvimento e ascensão como país. Para
isso, o Brasil precisa observar as tensões, sobretudo
as que envolvam nosso território e nosso entorno
32

regional. Daí porque essa situação de agravamento


da situação de segurança na América do Sul é bas-
tante grave do ponto de vista brasileiro.

E o Brasil também precisa perceber que tem de


adotar uma postura ativa no que diz respeito aos
seus próprios interesses, não nos cabe ser parte
de um dos blocos em disputa no mundo. Nós te-
mos muitos fatores de força: somos uma potência
energética, uma potência agroalimentar, um país
com grande capacidade em termos aquíferos e de
minerais críticos. Por isso quero dizer que o Brasil
precisa ter uma grande estratégia, porque num ce-
nário de multipolarização do mundo, somos gran-
des demais para caber no projeto de outros. Temos
uma população gigantesca, um território enorme.
Precisamos de uma estratégia que atenda nossos
próprios interesses nacionais.

COnsidErandO O EstadO atual dOs COnflitOs GlObais, na


sua visãO, quais POdEM sEr as COnsEquênCias a lOnGO
PrazO Para as GEraçõEs futuras?

Essas disputas de poder que se travam hoje no


mundo poderão tomar diferentes caminhos. Po-
deremos ver uma renovação de um cenário unipo-
lar, com a hegemonia de uma potência ou de um
33

bloco de potências. Atualmente, por exemplo, tan-


to os Estados Unidos quanto a Europa no âmbito
da Otan não aceitam esse declínio ou essa mudan-
ça no balanço de forças mundiais sem reagir, pelo
contrário. Hoje, os Estados Unidos têm um ambi-
cioso programa de reindustrialização apoiado em
inovação, ciência e tecnologia, que justamente
busca resgatar sua posição no cenário internacio-
nal. Mesma coisa a Europa.

Por outro lado, você também tem esse bloco de


países, que a gente pode sintetizar como BRICS
“ampliado” [Brasil, Rússia, Índia, China, África do
Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados

“O Brasil precisa perceber


que tem de adotar uma
postura ativa a respeito de
seus interesses, não nos cabe
ser parte de um dos blocos
em disputa no mundo”
Ronaldo critica postura brasileira perante conflitos atuais
34

Árabes Unidos], pois agora passou a ter dez países,


que também busca uma condição de polarização.

O cenário que vejo pode ter vários desfechos em tor-


no desse problema do balanço de poder mundial, do
restabelecimento de uma ordem unipolar ou até um
cenário que é de maior interesse para o Brasil, que
é um cenário de multipolarização. Por outro lado,
também enxergo que o problema dessa guerra tec-
nológica que se trava hoje no mundo em torno do
domínio dessas tecnologias críticas que viabilizam
a revolução nas forças produtivas também terá um
impacto determinante sobre a estrutura de poder
mundial. Não por acaso, você tem essa corrida gi-
gantesca em torno da inteligência artificial, da robo-
tização, do domínio de dados. O desfecho dessa dis-
puta é absolutamente incerto. E é exatamente por
não ter uma definição que acho que ao Brasil cabe
manobrar e ver as condições mais favoráveis ao seu
próprio projeto nacional de desenvolvimento.

DIANTE DE TUDO ISSO, QUÃO REALISTA VOCÊ DIRIA QUE É SO-


NHARMOS COM A PAZ MUNDIAL?

A aspiração da paz mundial é uma aspiração uni-


versal de todos os seres humanos. Mas isso, infe-
lizmente, se choca com essa natureza estrutural
35

do sistema internacional, que é o fato de que os


Estados nacionais observam os seus interesses
em primeiro lugar. Agora, a aspiração humana pela
paz mundial é uma bandeira atualíssima que acho
que deve seguir mobilizando os povos. Deve se-
guir sendo uma aspiração de todo mundo, porque
é uma aspiração nobre e que tem a ver com a ne-
cessidade de resolução dos problemas estruturais
mais profundos que o mundo vive para dar possi-
bilidade à paz mundial. Sobretudo o problema da
desigualdade entre os países.

É necessário equilibrar as condições de desenvol-


vimento para que todos tenham acesso às gran-
des conquistas humanas, inclusive as conquistas
científicas, que não podem ser apropriadas por um
punhado de países. Então, a paz mundial passa por
uma maior equidade do desenvolvimento em es-
cala mundial entre todos os países. Mas o cenário
atualmente em curso é de conflitos intensos, en-
tão o Brasil deve se preparar nos próximos anos, e
mesmo nas próximas décadas, para um cenário de
confrontação, porque, infelizmente, essa é a reali-
dade que a gente observa nas grandes tendências
internacionais de hoje.
CULTURA
teXto Caio Delcolli ediÇÃo Luiza Monteiro desiGn Flavia Hashimoto

LIVROS NA FOGUEIRA

GUERRA CULTURAL TEM CAUSADO BANIMENTO DE OBRAS CLÁSSICAS


E CONTEMPORÂNEAS EM VÁRIOS PAÍSES — INCLUSIVE NO BRASIL.
ESPECIALISTAS ANALISAM AS RAÍZES DESSA CENSURA
N
No romance Fahrenheit 451 (1953), bombeiros não são encarrega-
dos de apagar incêndios — ao contrário: eles incendeiam livros. O
enredo tem como pano de fundo um governo autoritário que quer
coibir a disseminação de conhecimento. A obra do estaduniden-
se Ray Bradbury é um romance distópico e, portanto, perturba o
leitor ao tentar responder à pergunta “e se?”. E se fazer fogueiras
de livros fosse uma política de Estado? O título, inclusive, é uma
referência à temperatura em que o papel pega fogo (em Celsius,
233°C). Mas esse assombro não está apenas na ficção.

Assim como nazistas faziam na Alemanha cerca de 90 anos atrás,


no auge da perseguição a intelectuais — uma das inspirações para
Bradbury escrever Fahrenheit 451 —, há casos atuais de livros sen-
do literalmente queimados em praça pública. Em 2023, no México,
títulos didáticos foram incendiados por opositores à reforma edu-
cacional do governo do esquerdista Andrés Manuel López Obra-
dor, também conhecido pela sigla AMLO. Influenciada pela “peda-
gogia do oprimido”, filosofia do pedagogo brasileiro Paulo Freire, a
proposta da reforma é levar informação aos alunos pela ótica dos
direitos humanos e do olhar crítico. Mas vários opositores, infla-
mados por uma teoria conspiratória da direita mexicana de que a
iniciativa teria o objetivo de tornar os estudantes “comunistas” e
38

“homossexuais” — além de apontarem erros factuais em tex-


tos —, decidiram que queimar livros era a solução.

Já no Brasil e nos Estados Unidos, casos de banimentos a obras


literárias não terminam necessariamente em uma pilha de cin-
zas, mas na retirada deles das prateleiras de bibliotecas de esco-
las públicas. Em novembro de 2023, o governo de Santa Catarina,
liderado por Jorginho Mello (PL), mandou retirar nove livros de
escolas públicas. Alguns deles são Laranja Mecânica (1962), de
Anthony Burgess; A Química entre Nós (2012), de Larry Young e
Brian Alexander; e It: A Coisa (1986), de Stephen King. O governo
alegou que haveria a necessidade de adequar leituras a faixas
etárias. O ofício pedia a retirada dos títulos e que eles fossem
armazenados “em local não acessível à comunidade escolar.” O
texto não argumenta a decisão. Em nota enviada a GALILEU, a
Secretaria de Educação afirma que se trata de uma prática re-
corrente, em que livros disponíveis nas escolas são analisados
e distribuídos de maneira compatível com diferentes idades e
contextos educacionais. Não se trata de censura, diz a nota.

Em abril do mesmo ano, o romance Eu Receberia as Piores


Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005), de Marçal Aquino, foi
retirado da lista de leituras requeridas no vestibular da Universi-
dade de Rio Verde (UniRB), em Goiás, após o deputado bolsonaris-
ta Gustavo Gayer (PL) afirmar que o livro contém “absurdos por-
nográficos”. Em nota à imprensa, a UniRB afirmou ter optado pela
“exclusão imediata” ao tomar ciência do conteúdo da obra.
39

Outros exemplos não faltam. Em 2019, a Bienal do


Rio esteve no centro de um acontecimento do qual os mais
você talvez se lembre. O então prefeito Marcelo banidos
Crivella (Republicanos), hoje deputado federal pelo nos eUa*
RJ, mandou retirar do evento a história em quadri-

15
nhos Vingadores: Cruzada das Crianças (2012), que
contém uma cena de beijo gay. A decisão foi derru-
bada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Prefei- banimentos
turas sequer têm poder jurídico para isso. Repre-
sentantes de Gayer e Crivella não responderam ao
pedido de GALILEU por um posicionamento.

Para Richard Ovenden, autor de Queimando Livros


(Globo Livros, 2022) e bibliotecário da Universidade
de Oxford, na Inglaterra, esse cenário no Brasil, no
México e nos Estados Unidos é, em parte, causado
pela ascensão da extrema direita à presidência em
vários países, como Donald Trump nos EUA (2016-
2020) e Jair Bolsonaro no Brasil (2018-2022). “O
autoritarismo por meio do controle de conheci-
Gênero Queer:
mento e do subfinanciamento de bibliotecas pú- Memórias, de Maia
Kobabe; e Flamer,
blicas está intimamente ligado”, analisa Ovenden, de Mike Curato.
em entrevista a GALILEU. O governo Trump foi um
período delicado para as bibliotecas públicas es-
tadunidenses: elas passaram a ser boicotadas pe-
los orçamentos gestados pelo governo federal. E,
sob a atual presidência do democrata Joe Biden,
40

13
também por legisladores estaduais republicanos
de estados como Louisiana, Iowa, Indiana e Ten-
nessee, por exemplo. Segundo reportagem do site BANIMENTOS
Vox, os parlamentares começam tentando banir
livros e, quando não conseguem, boicotam os re-
passes de verbas. As ameaças tendem a acontecer
nos estados em que legisladores também buscam
restringir direitos de pessoas trans à saúde, per-
formances de drag queens e discussões sobre gê-
nero, sexualidade, raça e história nas escolas — os Tricks, de Ellen
Hopkins
mesmos temas dos títulos perseguidos.

No Brasil, a realidade não é tão diferente. Perde-


mos ao menos 764 bibliotecas públicas entre 2015
12
BANIMENTOS
e 2020, segundo o Sistema Nacional de Bibliote-
cas Públicas (SNBP) divulgou em 2022. Sob gestão
da então existente Secretaria Especial da Cultura
do Ministério do Turismo, o SNBP afirmou que o
número real poderia ser ainda maior em decorrên-
cia da extinção do Ministério da Cultura no gover-
no Bolsonaro e da falta de controle efetivo pelos
sistemas estaduais.

“As bibliotecas públicas em muitos municípios são


um elo fundamental da cultura”, afirma Cibele Araú- O Conto da Aia,
jo, professora do curso de biblioteconomia da Uni- de Margaret
Atwood; e Crank,
versidade de São Paulo (ECA-USP), em entrevista de Ellen Hopkins.
41

ao Jornal da USP em setembro de 2022. “Elas podem ter ações


culturais muito importantes para a formação do indivíduo, para o
desenvolvimento da sua cidadania.”

GUERRA CULTURAL
Durante a Reforma Protestante, na Europa do século 16, a dispu-
ta entre o catolicismo e o protestantismo causou, na Inglaterra e
na Escócia, ataques a centenas de bibliotecas e a destruição de
dezenas de milhares de livros. No Holocausto do século 20, foram
destruídos mais de 100 milhões de volumes, e bibliotecas inteiras
foram confiscadas e queimadas. São dois exemplos notórios den-
tre vários outros episódios históricos.

Registro de queima de livros


na Alemanha, em 1933.
(Crédito: Getty Images)
42

E o fogo segue crepitando. A PEN America — ONG


fundada em 1922 que se define como “na intersecção
11
banimentos
da literatura e dos direitos humanos para proteger
a livre expressão nos Estados Unidos e no mundo”
— registrou em levantamento 3.362 ocorrências de
banimentos de livros de salas de aula e bibliotecas
de escolas públicas nos EUA, do ensino primário ao
secundário, no ano letivo de julho de 2022 a junho
de 2023. Trata-se de um aumento de 33% em rela-
ção ao mesmo período de 2021 a 2022. As ocorrên-
cias somam 1.557 títulos e impactam o trabalho de
1.480 autores, ilustradores e tradutores. De acordo
com a PEN, isso é fruto do empenho de dois atores
políticos: grupos que, em termos numéricos, são mi-
noritários, mas que se organizam entre si e assim
fazem muito barulho; e a pressão legislativa.

A maior parte dos banimentos aconteceu na Flóri-


da: em 33 escolas de seus distritos estaduais, foram
registrados 1.406 casos. Já os estados do Texas e
do Missouri tiveram 625 e 333 casos, respectiva-
mente, enquanto Utah somou 281 e Pensilvânia, Sold, de Patricia
McCormick;
186. Segundo o relatório, uma retórica exagerada Preciosa, de
Sapphire; e Corte
e inverídica tem causado a remoção das obras das de Névoa e Fúria,
prateleiras. Alguns exemplos de títulos na mira são de Sarah J. Maas.

O Conto da Aia (1985) e Os Testamentos (2019), de


43

10
Margaret Atwood; Maus (1986), de Art Spiegel-
man; Amada (1987), de Toni Morrison; 1984 (1949),
de George Orwell; Gênero Queer: Memórias (2019), banimentos
de Maia Kobabe; Este Livro É Gay (2014), de Juno
Dawson; O Sol É para Todos (1960), de Harper Lee;
e, claro, Fahrenheit 451.

De acordo com dados da PEN, os temas mais per-


seguidos são violência e abuso (44%), saúde (38%),
raça e racismo (30%) e LGBTQIA+ (26%). Sexo, saú-
de e gravidez também figuram na lista. A categoria
young adult (jovens adultos) contabiliza 56% das
ocorrências de banimentos. Entre as justificativas
dadas para a retirada desses volumes das pratelei-
ras estão: “pornô nas escolas”, “sexualmente explíci-
to”, “nocivo” e “inapropriado para a faixa etária.”

Os grupos que atuam para banir livros são anti-


-woke, ou seja, contra o discurso identitário hoje tão
presente na esfera pública. A Flórida, por exemplo,
governada pelo republicano Ron DeSantis, aprovou
em 2022 a lei apelidada de Stop WOKE Act, sigla
Este Livro É Gay,
de Stop Wrongs to Our Kids and Employees Act (lei de Juno Dawson;
O Olho Mais Azul,
“Pare de Errar com Nossas Crianças e Funcionários”, de Toni Morrison;
em livre tradução), também conhecida como Indi- e Leite e Mel,
de Rupi Kaur.
vidual Freedom Act (lei da liberdade individual). A
norma regula o teor de instruções e treinamento em
44

escolas e locais de trabalho. Seu objetivo é proibir TEMAS


PROIBIDOS
conteúdos que sugiram que raça, cor, sexo ou ori-
gem nacional sirvam de motivo para indivíduos se 44%
violência e abuso
responsabilizarem ou se sentirem culpados, angus- físico;
tiados ou tenham qualquer forma de incômodo psi-
cológico por causa de atos históricos de racismo. 38%
saúde e bem-estar;

A lei ainda proíbe que seja dito que indivíduos são 30%
luto e morte;
“privilegiados” ou “oprimidos” por causa de sua
raça ou sexo. Um dos alvos da Stop WOKE Act é a 30%
personagens não
critical race theory (“teoria crítica da raça”), cam- brancos ou raça e
racismo;
po acadêmico que estuda os impactos da raça e
da etnia na sociedade — não necessariamente 26%
personagens ou
culpando indivíduos, tendo-se em vista o aspecto temas LGBTQIA+;
sistêmico do racismo. O Moms for Liberty (Mães
pela Liberdade), fundado na Flórida, é um exem- 24%
experiências
plo de grupo que tem atuado para extinguir títulos sexuais entre
personagens;
literários — com apoio declarado de legisladores.
17%
gravidez na
De acordo com Sabrina Baêta, coordenadora do adolescência,
programa Liberdade para Ler da PEN, trata-se de aborto ou violência
sexual.
uma crise. Tudo começa, segundo ela, com pessoas
— que podem ser pais, responsáveis ou simplesmen- Fonte: PEN America
*entre julho e dezembro
te indivíduos da vizinhança — gritando em reuniões de 2022

e tirando trechos dos livros de contexto. Pouco de-


pois, os títulos são removidos das escolas. A ironia
é que existem mecanismos que poderiam impedir
45

“Há fortes similaridades com a


destruição de livros na Berlim de
1933. É parte da guerra cultural em
que há a remoção de ideias diversas
da esfera pública”
Richard Ovenden, autor de Queimando Livros (Globo Livros, 2022)

a situação de chegar a esse ponto, mas eles estão sendo ignora-


dos. “Pode-se ter conversas com o professor, passar ao aluno uma
tarefa paralela e usar formulários para você dizer se tem problema
com algum livro”, afirma. “Um comitê de avaliação deve ser formado
por professores, bibliotecários, pais, estudantes e diretores e, dessa
maneira, decisões seriam tomadas a partir da leitura.”

A avaliação dos livros acontece um a um, a cada determinado perí-


odo de anos — então, se um título for banido, ele pode permanecer
indisponível até a próxima avaliação acontecer. O medo de intimida-
ção acaba motivando as escolas a se autocensurar, mesmo que com
base em ideias vagas. Ninguém quer arranjar encrenca com o gover-
no estadual, diz Baêta. “Nos EUA, vemos uma epidemia de controle
autoritário e antidemocrático”, observa Ovenden. “Há fortes simi-
laridades com a destruição de livros na Berlim de 1933. É parte da
guerra cultural em que há a remoção de ideias diversas da esfera
pública. Conhecimento é poder.”
46

reescrevendo a história
Se tem quem queira banir livros, tem quem queira reescrevê-los.
Com o objetivo de remover trechos que possam soar ofensivos
para minorias, a prática da leitura sensível, que tem sido recor-
rente no mercado editorial nos últimos anos, também rendeu
acusações de censura. Agatha Christie, Ian Fleming e Roald Dahl
são exemplos de autores consagrados e já mortos cujas obras
têm sido editadas após recomendações feitas por “profissionais
da leitura sensível”. Basicamente, a prática consiste em identificar
esses trechos e recomendar mudanças ao editor e ao autor, que
podem ou não aceitá-las.

No Brasil, Monteiro Lobato é um dos nomes que frequentemente


estão no centro de debates sobre mudanças em suas obras — no
caso dele, sob acusações de racismo. A própria bisneta do autor,
Cleo Monteiro Lobato, esteve à frente de mudanças na série Sítio
do Pica-Pau Amarelo. A personagem Tia Nastácia, por exemplo,
era chamada de “negra de estimação” pelo narrador de Reinações
de Narizinho (1931). Após as edições, ela se tornou amiga de Dona
Benta, em vez de empregada doméstica do sítio. Nas ilustrações,
passou a vestir roupas coloridas típicas da África. “Também sou
a favor da leitura do texto original, com uso de notas de rodapé,
prefácio e posfácio explicativo”, disse Cleo Lobato à revista Veja.
“Assim, em vez de censurar, abrimos sua obra para debate.”
47

Já a psicóloga Ester Calland de Sousa Rosa, doutora pela Universida-


de de São Paulo (USP) e professora na Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE), discorda. “Textos complementares podem ajudar o
leitor a entender que a obra foi gerada em um certo contexto. Isso
tira a força das histórias, por tirar o inconsciente, nossos medos, nos-
so eu mais complexo, as coisas que a gente não sabe nomear”, diz.
Para Sabrina Baêta, da PEN America, a discussão é essencial. “É im-
portante termos diálogos a respeito disso, e a crise de banimento de
livros não quer o debate, quer apenas se livrar do material”, afirma.

Mas há também quem encare essas alterações como censura.


A Constituição brasileira é muito clara: o artigo 220 veda toda e
qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística — e é
o que deve sempre prevalecer nas decisões. No caso de livros, eles
não recebem classificação etária, como filmes e programas de TV,

“A literatura traduz valores, visões


de mundo e de relações humanas. É
um campo que também está
em disputa”
Ester Calland de Sousa Rosa, psicóloga e professora na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
48

mas ainda assim, um editor pode, por iniciativa própria, informar


o conteúdo dele. “É uma questão de informação para o público”,
avalia Gustavo Martins de Almeida, advogado do Sindicato Nacio-
nal dos Editores (Snel). “Acho bom informar para o consumidor o
tipo de conteúdo [em uma obra]. Você compatibiliza a liberdade de
expressão com o direito do consumidor à informação.”

Já sobre o conteúdo dos livros, é importante lembrar que vive-


mos em uma sociedade complexa e a literatura não está apar-
tada disso. “A literatura traduz valores, visões de mundo e de
relações humanas. É um campo que também está em disputa”,
analisa Rosa. Até poucos anos atrás, o entendimento sobre o câ-
none literário se restringia a autores principalmente homens e
brancos, mas hoje se vê um empenho de trazer à tona obras es-
critas por mulheres, negros e indígenas, por exemplo. “A censura
que vemos hoje talvez seja uma resposta a esse movimento en-
tre os educadores e de quem trabalha com literatura. Mas a lite-
ratura por si só, como disse o [crítico literário] Antonio Candido,
não edifica e nem corrompe.”

A psicóloga acrescenta, ainda, que os jovens não leem apenas para


se identificar com a leitura e adotar comportamentos semelhantes
ao dos personagens. Eles leem para imaginar realidades que não
são exatamente a deles, em busca de possibilidades humanas. No
caso de uma obra que trate de violência sexual, por exemplo, deci-
dir usá-la em sala de aula para falar sobre o assunto não quer dizer
que você esteja defendendo o crime. “Você pode criar elementos
49

para as crianças serem alertadas sobre isso não ser algo bom e até
dar oportunidade, no ambiente protegido que a escola deveria ser,
aos alunos que sofram violência sexual de conversar sobre isso”,
observa. “Não conversar sobre o tema não faz com que a realidade
deixe de existir.” Da mesma forma, banir obras literárias — com
fogo ou com a lei — não é a solução para impor certos pontos de
vista e extinguir outros. Já aprendemos isso nos livros de história.
Quer Que eu desenhe?
Por Bernardo frança

ex-esposa de albert einstein, mileva maric chegou a ser


citada como coautora na primeira versão da teoria da
relatividade, mas suas contribuições científicas nunca
foram oficialmente reconhecidas
texto
Beatriz Herminio
51

Mileva Maric nasceu em 19 de dezembro


de 1875, na Sérvia. A física e matemática
iniciou seus estudos no Instituto
Politécnico de Zurique, na Suíça, em 1896.
Antes disso, era reconhecida pelas notas de
destaque nas escolas por onde passou.
52

Ela foi a quinta mulher a ingressar no curso e


a única em uma sala de seis alunos, um deles
sendo Albert Einstein, três anos mais novo
que ela. Enquanto ele tinha fama de aluno
preguiçoso, ela era estudiosa.
Em 1899, ficaram noivos.
53

Einstein se formou no ano seguinte,


ao passo que Maric reprovou nos
exames finais e teria que refazê-los
em 1901, quando descobriu estar grávida.
Uma menina nasceu, mas pouco se sabe
sobre o destino dela. Mais tarde, tiveram
outros dois filhos.
54

Eles se casaram em 1903 e, dois anos depois,


Einstein publicou a primeira versão da Teoria
da Relatividade, na qual Mileva foi citada como
coautora. Cartas a uma amiga dela revelam
seu papel central nos estudos do marido, além
da responsabilidade de cuidar das crianças.
55

Quando ganhou o Nobel de Física, em 1922,


Einstein entregou parte do dinheiro à ex-
-esposa. Eles haviam se divorciado três anos
antes. Sem que suas contribuições para
a física fossem divulgadas ao mundo, ela
morreu em 4 de agosto de 1948.

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