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TCC_LEITURA_TESTEMUNHO_PILAR_POLÍTICA_MEMÓRIA
TCC_LEITURA_TESTEMUNHO_PILAR_POLÍTICA_MEMÓRIA
RESUMO
1
Graduando em Letras-Português pelo Ifes, Campus Vitória, Espírito Santo. Email: alefribeiroalves@gmail.com.
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Doutor em Letras pela Ufes, pós-doutorado em Letras (Ufes); Mestre em Letras (Ufes); graduado em
Letras-Português (Ufes). Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Ufes (PPGL/Ufes). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Humanidades (PPGEH/Ifes). Email: nelsonmfilho@gmail.com.
INTRODUÇÃO
Este artigo propõe uma discussão sobre como a poesia tornou-se um meio de resgate
da democracia e instrumento de confronto ao autoritarismo – imposto pela ditadura militar
brasileira a partir de 1964. Além disso, aprofunda-se nas análises das violências sofridas por
presos políticos, compreendendo suas prisões, censuras, silenciamentos e os momentos cruéis
de tortura que resultaram em traumas individuais e coletivos. Desse modo, o estudo se propõe
em analisar como os presos políticos transformaram tais atrocidades em linguagem poética.
Para tanto, este trabalho fundamenta-se na premissa de que a literatura e a arte são
intrinsecamente associadas à memória, sendo a literatura de testemunho o epicentro desse
enlace. Nesse sentido, essa literatura pretende explorar a complexidade do processo de
lembrança, transcendendo o antagonismo entre memória e esquecimento
(SELLIGMAN-SILVA, 2003, p. 387). A escrita de poemas, portanto, emerge como uma
ferramenta de integração à literatura de testemunho, viabilizando uma memória social vital
para a discussão proposta. Assim, esse corpus literário incita reflexões subjetivas e coletivas,
valendo-se da contundente escrita da renomada poeta gaúcha Lara Lemos.
Delineia-se, assim, a discussão sobre a trajetória da professora, jornalista, tradutora e
poeta, com o intuito de compreender o início de sua militância política e o papel de sua poesia
no enfrentamento ao autoritarismo. A poeta, embora não ostente proeminência na literatura
nacional, desde seu primeiro livro, não se retratou meramente como uma figura à frente de seu
tempo, mas como uma voz essencial que emergiu com uma poesia de resistência e
socialmente engajada. Em síntese, a pesquisa almeja desvendar o processo pelo qual a autora
elabora suas experiências traumáticas no cárcere, não por meio de uma narrativa descritiva,
mas através da transposição para a escrita de seus poemas – uma ferramenta crucial que busca
interpretar textos de possíveis traumas, textos de resistência política, sobre a memória de Lara
de Lemos e de inúmeros outros presos políticos em distintas nações.
O presente estudo dialoga veementemente com a literatura de testemunho, tema que
será comentado com destreza no decorrer da análise. Almeja-se também expandir o repertório
de leituras pertinentes a esse gênero literário, apresentar suas particularidades e estimular
abordagens críticas sobre um tema singular para a sociedade brasileira. Ademais, a análise
empreendida neste trabalho possibilitará ao leitor uma imersão crítica na obra de Lara de
Lemos (1925-2010), uma autora pouco citada entre o cânone de poetas – apesar da vasta obra.
Desse modo, dispõe-se uma atenção especial ao testemunho sobre o autoritarismo e a
violência perpetrados pelo Estado durante a ditadura militar brasileira. Com isso, a relevância
desse trabalho é compreendida quando a poesia de presos políticos – em que se insere a
escrita de Lemos –, tem sido pouco explorada no âmbito acadêmico, revelando a negligência
em relação a uma importante vertente de reflexão sobre a sociedade brasileira. Por
conseguinte, almeja-se ainda propiciar ao leitor desta pesquisa um viés crítico e teórico, não
apenas nos domínios dos estudos literários, mas também em áreas conexas, como história,
filosofia e psicanálise. O corpus abordado abarca questões conflituosas da sociedade
brasileira, possibilitando que suas reflexões contribuam para ampliação do debate acerca da
literatura efetuada a partir do encarceramento por motivos políticos no Brasil.
Antes de partir para as análises do trabalho, é importante efetuar a iniciação de
abordagem sobre a exposição das truculências perpetradas pelo golpe militar, focando na
cruel prática da tortura. A psicanalista Maria Rita Kehl (2010) aborda sobre esses abusos
históricos aparentemente perdoados pela sociedade. Em sua obra, discorre que: “O
‘esquecimento’ da tortura produz, a meu ver, a naturalização da violência como grave sintoma
social no Brasil” (KEHL, 2010, p. 124). Desse modo, percebe-se então a urgência em
denunciar as atrocidades cometidas por um governo autoritário, ou seja, a preservação da
memória torna-se fundamental para o fortalecimento da democracia e o combate ao fomento
de regimes autoritários.
Kehl (2010) destaca ainda sobre a importância de lembrar das famílias e vítimas da
violência cometidas por esses regimes autoritários, por vezes ponto fulcral para iniciar a
discussão de políticas de reparação, a fim de evitar a repetição dos crimes e dar uma mínima
compensação às famílias. Nesse contexto, a literatura de testemunho emerge como elemento
central para compreender a problemática da memória. Desse modo, este estudo pretende
destacar a importância em preservar a memória, além de discutir a produção poética como
forma de resistência e denúncia contra a ditadura militar brasileira (1964-1985), pois assim
criam-se reflexões críticas e teóricas sobre os processos literários que envolvem a sociedade
brasileira em diferentes campos.
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A interseccionalidade é um conceito teórico que reconhece a interconexão e sobreposição de diversas formas de
opressão, discriminação e desvantagem social, como raça, gênero, classe social, orientação sexual, entre outras.
Desenvolvido no campo dos estudos críticos e feministas, o termo destaca a importância de considerar as
experiências multifacetadas das pessoas, reconhecendo que as identidades sociais não podem ser compreendidas
de maneira isolada. A interseccionalidade busca analisar e abordar as complexas interações entre diferentes
sistemas de poder, contribuindo para uma compreensão mais abrangente e inclusiva das desigualdades sociais.
O início da trajetória literária de Lara de Lemos foi fortemente influenciada por
circunstâncias familiares complexas. Nascida em 1925, no Rio Grande do Sul, teve que lidar
com a prematura perda de seus pais, sendo criada por sua avó, que desempenhou um papel
fundamental em sua formação. Desde tenra idade, Lemos já evidenciava uma inclinação inata
para a escrita, manifestando-se através da produção de poesias aos meros sete anos de idade,
uma expressão íntima de suas emoções que necessitava ser materializada no papel.
Influenciada pelo contexto político efervescente, sua poesia abraçou temas sociais,
tornando-se uma forma de denúncia e resistência diante da ditadura militar brasileira. Lemos,
evidenciou-se então, como uma renomada escritora, escrevendo crônicas para jornais e
publicando diversos livros que refletem sua profunda análise da história, da sociedade
brasileira e de seus anseios enquanto uma ex-presa política.
Para dialogar sobre política de memória no Brasil, deve-se traçar diversos aspectos
pós-ditadura militar, a fim de entender a base dessas memórias coletivas até então formuladas.
A princípio, a fim de percorrer tal trajeto, é importante apresentar sobre a lei que decretou o
fim do regime ditatorial: a Anistia ampla geral e irrestrita, de 1979, que funcionou
perfeitamente como uma lei que fomentou uma política de amnésia na sociedade brasileira.
Em A literatura como arquivo da ditadura militar brasileira, Eurídice Figueiredo (2017)
expõe os entraves de um país que evitou enfrentar seu passado, e que não examinou os crimes
cometidos pelos militares, um país fadado a ter em suas entranhas formativas um regime
autoritário velado.
Ao não realizar as discussões acerca do assunto, uma política de desmemória foi
fomentada no país, caracterizando algumas tentativas de golpe que o país sofreu, como o
golpe parlamentar de 20166. Um outro exemplo mais recente ocorreu em 8 de janeiro de 2023,
sendo um dos momentos mais catastróficos da história política recente do Brasil, quando
grupos de extrema direita invadiram e depredaram as sedes dos poderes, em Brasília-DF,
agredindo jornalistas, policiais e transformando a capital do país em um cenário de guerra7.
Os ataques foram insuflados e instigados oito dias após a posse do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva em 2023, por grupo de pessoas descompromissadas com a verdade e com as
instituições democráticas, que incluíam a desinformação no seu eixo formativo intelectual,
disseminando discursos conspiratórios, negacionistas e de ódio, fomentados pelas ideias do
maior símbolo desse grupo antidemocrático, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, que
perdeu democraticamente as eleições de 2022, mas que não assumiu a derrota nas urnas,
colocando em ‘xeque’ a sua confiabilidade das mesmas.
6
O golpe de 2016 é um termo usado para descrever os eventos que levaram à destituição da presidente Dilma
Rousseff. O uso deste termo é importante para entender não apenas o período, mas também o movimento que
levou à eleição de Jair Bolsonaro. A coalizão que derrubou o governo Dilma tinha como objetivo não apenas
trocar a presidente ou o partido do governo, mas mudar o regime político brasileiro através de um processo que
não envolvia a manifestação direta de vontade dos cidadãos brasileiros ou a construção de uma nova
legitimidade democrática. A ideia de que a justificativa do impeachment estava no “conjunto da obra”, ou na
“corrupção generalizada”, expunha como a insatisfação com os resultados eleitorais das eleições presidenciais
fomentava uma recusa radical à Nova República.
7
Em 8 de janeiro de 2023, ocorreu uma nova tentativa de golpe por extremistas bolsonaristas no Brasil. Milhares
deles invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal
Federal (STF). Muitos dos invasores estavam equipados com máscaras de gás e capacetes, indicando que o
ataque foi planejado. A polícia não conseguiu conter os terroristas que invadiram os prédios dos três poderes.
A Lei da Anistia, promulgada em 1979, por João Baptista Figueiredo, em plena
ditadura militar, foi um elemento central para o fim do regime e parte do processo de abertura
política do país, fomentando uma política de perdão ao possibilitar a volta de todos os
exilados, além da soltura dos acusados de crimes políticos durante o regime ditatorial.
Entretanto, ela também impediu punições aos militares que cometeram inúmeros crimes
estatais. A Lei da Anistia foi fruto da pressão popular e do clima de redemocratização do país,
mas claramente também foi uma estratégia de recuo dos militares, iniciada pelo ditador Geisel
e continuada por Figueiredo. Portanto, essa lei trouxe benefícios principalmente aos militares,
criando uma antítese: por um lado, temos a inauguração do Estado democrático de direito pela
constituição de 1988, que se funda no princípio da igualdade jurídica, da proteção das
instituições e na inviolabilidade dos direitos fundamentais e humanos; por outro lado, temos a
anistia sendo utilizada para inviabilizar a busca por justiça e memória coletiva, permitindo
uma política negacionista com relação ao que realmente foi a ditadura.
O efeito dessa contradição é, justamente, a perpetuação da violência sentida até os dias
de hoje. Esquecer ou fingir que nada aconteceu no período da ditadura armou um cenário que
aos poucos foi se desvelando em atos antidemocráticos desde o golpe contra presidente Dilma
Rousseff, e que teve seu ápice durante e dias após o governo Bolsonaro, eclodindo no dia 8 de
janeiro de 2023. Ao anistiar nossos algozes, fomos privados do direito à verdade e seguimos,
consequentemente, sujeitos à repetição dos erros do passado. Do ponto de vista jurídico, não
ter anistia representa a necessidade de se revisar a lei e de se adotar punições aos agentes
dessa repressão durante a ditadura militar, tal qual na Argentina, em 19858. Além disso, do
ponto de vista histórico, não ter anistia representa a urgência de se criar uma memória coletiva
dos acontecimentos traumáticos, questionando-se dos valores dominantes da sociedade.
Somente assim, pode-se garantir a consolidação da democracia pulsante e a prevenção contra
novas violações dos direitos humanos no Brasil.
Para tanto, percebe-se as evidentes lacunas por justiça para aqueles que sofreram
crimes bárbaros cometidos pelos militares. Assim dizendo, durante o tempo em que
prevalecer a lei injusta – que perdoa os torturadores e os responsáveis pelos desaparecimentos
–, o país não vai revisitar seu passado e as raízes autoritárias ainda vão estar presentes.
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Em 1985, a Argentina realizou um julgamento histórico que condenou os líderes das três primeiras juntas
militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976. Os crimes julgados variaram desde homicídio e
tortura até privação ilegítima de liberdade. Organizações de direitos humanos estimam que 30 mil pessoas
desapareceram durante aqueles anos. O ex-presidente Jorge Rafael Videla e o almirante Emílio Massera foram
condenados à prisão perpétua. O ex-presidente Roberto Viola (17 anos), o almirante Armando Lambruschini (8
anos) e o ex-chefe da Força Aérea Orlando Agosti (4 anos) também foram condenados. Outros quatro acusados
foram absolvidos.
Contudo, para fomento de uma política de memória, deve-se fazer um trajeto analítico não só
das violências cometidas pela ditadura militar, mas também todas as raízes de autoritarismo
que estão nas entranhas da histórica política do Brasil. Para além do meio jurídico, a literatura
torna-se esse instrumento de elaboração sobre os reais fatos que perpassam esse período
autoritário. Dessa maneira, Lara de Lemos, a poeta em estudo, efetua sua contribuição
veemente para a literatura de testemunho, transpondo suas perspectivas subjetivas sobre o
cárcere ditatorial no poema em análise a seguir, a fim de elaborar resistência em meio a uma
política de desmemória.
A partir de agora emerge uma declaração, um atestado, sendo este parágrafo inicial um
alerta, em que Lara de Lemos instaura sua poética para embaralhar os horizontes de respostas.
Desse modo, a exposição poética a seguir é quase efêmera, irônica e levemente intimista,
quase em relação sugestiva, por isso, um poema, uma zona de estranheza e identificação.
Ademais, o verbete inquietante – contido no título do artigo — pode ser compreendido
através dos conceitos da psicanálise. Freud (1925), apresenta que o inquietante é um dos
domínios que se relacionam com o terrível, que pode despertar angústia e horror, equivalente
ao angustiante. Vale ressaltar também, que o inquietante está relacionado à ambiguidade e ao
duplo sentido, como se algo pudesse ser interpretado de duas maneiras diferentes: uma
benigna e outra ameaçadora, e esse conflito de interpretações gera uma inquietação (SOARES
apud FREUD, 2019, p. 9-25). Em virtude disso, a leitura do poema a seguir tem em seu eixo
fulcral a representação de uma inquietação poética. Segue o poema e, logo após, sua análise:
I
Vede cuidadosamente
as frestas.
Respire fundo a doçura
do gás. Feche os olhos
Tente sonhar.
II
Mergulhe no oceano azul
Nade sem pressa. Devagar.
Não olhe para trás.
Visite Netuno no fundo
no mar.
III
No galho mais verde
arme seu próprio laço.
Deixe que o corpo
vire balanço
no espaço.
IV
Suba no cimo mais alto.
Derreta suas asas
ao sol.
Como Ícaro
tente voar.
V
Ame sem ser amado.
Sempre, muito
até que o coração
sufoque. Pare
de trepidar.
9
O massacre de Altamira, ocorrido em julho de 2019, foi um evento violento que resultou na morte de dezenas
de detentos em um presídio localizado na região norte do Brasil. Durante o incidente, diversas vítimas foram
encontradas com sinais evidentes de asfixia, levantando preocupações sobre as condições precárias e a falta de
protocolos adequados de segurança e cuidado nos estabelecimentos prisionais do país. Este trágico episódio
ressalta as questões relacionadas à segurança e aos direitos humanos, além de chamar a atenção para a
necessidade de reformas no sistema penitenciário brasileiro.
nos deslocam para outra prisão, onde eles dão comida para engordar, para que as
pessoas não se deem conta do que eles fazem. É uma coisa tão esquisita isso. Eles te
fazem comer, compram revistas femininas, imagina. Quando eu saí, eu estava tão
diferente que as pessoas nem me conheciam, magérrima, horrível. Fui presa duas
vezes. Uma vez foi com esse grupo de escritores. Até a Ana Arruda estava comigo
(LEMOS apud FERREIRA, [2017], p. 52).
10
Antes de chegar às câmaras de extermínio, o Zyklon B foi concebido originalmente como pesticida. Ao entrar
em contato com o ar, os grânulos do Zyklon B se transformavam em um gás mortal. O Zyklon B é conhecido por
seu uso pela Alemanha nazista durante o Holocausto para assassinar aproximadamente 1,1 milhão de pessoas em
câmaras de gás instaladas em Auschwitz-Birkenau, Majdanek e outros campos de extermínio.
11
Genivaldo de Jesus Santos foi torturado e morto pela Polícia Rodoviária Federal em Umbaúba, Sergipe, em 25
de maio de 2022. Os agentes envolvidos foram presos e o STF manteve a prisão preventiva de um ex-policial
envolvido. O caso repercutiu nacional e internacionalmente.
fechavam as narinas do preso e colocavam uma mangueira, toalha molhada ou tubo de
borracha dentro da boca do acusado para forçá-lo a engolir água, além de mergulhar sua
cabeça num balde de água, urina ou fezes, forçando sua nuca para baixo até o limite do
afogamento, ou seja, chegando próximo da morte.
Para tanto, as acepções acima dialogam com essa experiência de quase morte e o
porquê do desejo da morte direta. Com isso, o prisma fulcral da condição da sobrevida
torna-se o relato de si mesmo, ou seja, o testemunho. Nessa sobreposição, é, portanto, factível
identificar a formação de um novo espaço simbólico, ocorrendo o ressurgimento em
contraposição ao anseio pela morte. A morte, testemunhada de perto, capaz de afirmar
inequivocamente a terrível experiência de tortura, alterna-se com a quase-morte, ou seja, a
sobrevivência, bem como com o desejo latente presente nas figuras testemunhais (SOUZA
SILVA, 2022, p. 144-116). E ao conceber a terceira estrofe do poema, Lemos (1986) escreve
versos testemunhais que leva essa análise à uma interpretação que remete a terrível prática de
tortura chamada “pau de arara”. Apesar de conceber uma linguagem inflamada para ser
escrita, Lemos dispôs de algumas rimas como a convergência entre “laço” e “espaço”.
Ademais, versos como: “Subir do galho mais verde”, “deixar que o corpo vire balanço”, são
os possíveis conselhos para suportar a mais comum prática de tortura, que consistia em:
pendurar os punhos e as dobras dos joelhos da pessoa, amarrados a um pau ou uma barra de
ferro, deixando o corpo pendurado, como um balanço. Esse método deixava os presos
políticos pendurados por horas, e sempre era acompanhado dos eletrochoques, palmatória e os
afogamentos já citados. Semelhante às práticas de asfixia, pendurar uma pessoa ou arrastá-la à
força ainda são instrumentos utilizados pelas forças militares, por vezes acompanhadas de
preconceitos diversos, como o racismo. Um exemplo foi quando em março de 2023, na cidade
São Paulo, Brasil, um homem negro foi carregado por metros por policiais militares, com os
pés e as mãos amarrados, após ser detido por roubar produtos de uma unidade de mercado – o
que não foi provado12. Com a divulgação das imagens do homem sendo arrastado, grande
parte da sociedade as julgou perturbadoras com tamanha brutalidade, além de trazer a lume os
resquícios de uma política militar violenta e autoritária, com o agravante do racismo. Em
síntese, as mesmas torturas que foram realizadas com os presos políticos ainda são praticadas
nas favelas de diversos estados brasileiros, com um alvo específico, o povo preto.
12
Caso do homem negro amarrado e carregado pela Polícia Militar de São Paulo, em setembro de 2023, suscitou
indignação e debates acalorados em todo o país. As imagens chocantes do homem, com mãos e pés amarrados,
sendo transportado em uma posição semelhante ao "pau de arara" evocaram memórias dolorosas da repressão da
ditadura militar brasileira. O incidente destacou, mais uma vez, as preocupações contínuas em torno da
brutalidade policial e do racismo estrutural no Brasil, intensificando os apelos por reformas significativas no
sistema de segurança pública e uma abordagem mais enérgica na luta contra a discriminação racial.
A fim de dar continuidade às análises, a partir da quarta estrofe do poema, é notável
como se destaca um elemento central: o mito de Ícaro. A estrofe tem os seguintes versos:
“Suba no cimo mais alto. / Derreta suas asas / ao sol. / Como Ícaro / tente voar.”. Com isso, a
fim de compreender a fundo tais versos, apoia-se agora a análise nas teorias psicanalíticas,
que muitas vezes utilizam os mitos para compreender um pouco mais do funcionamento do
psiquismo humano dentro de uma perspectiva histórica e coletiva. Com isso, o mito perpassa
a história de Dédalo, pai de Ícaro, grande inventor grego, que criou o Labirinto de Creta —
local onde abrigava o Minotauro. Dédalo foi preso exatamente no labirinto que construiu,
junto de seu filho, pois foi condenado pelo rei Minos por tentativa de homicídio. A fim de
buscar um jeito de escapar da prisão, ele começou a juntar as penas dos pássaros que voavam
sobre a prisão, unindo-as com cera de abelha, a fim de criar asas para fugir voando do cárcere.
Quando as asas estavam prontas, Dédalo deu um par delas a seu filho, Ícaro, com instruções
precisas. Ele alertou Ícaro para não voar muito alto, pois o calor do sol faria a cera derreter,
nem muito baixo, pois a umidade do oceano faria as penas ficarem pesadas demais, o que o
faria cair. Dédalo seguiu suas próprias orientações durante o voo e conseguiu escapar da
prisão com sucesso. Por outro lado, Ícaro, fascinado pela ideia de voar, ignorou os avisos e
subiu cada vez mais alto até que a cera das asas derreteu e as asas se desintegraram,
resultando em sua trágica morte nas águas do oceano.
Ao conceber os versos da quarta estrofe do poema, Lemos indica em sua escrita uma
realidade de forma direta, mas com uma estética poética abrangente, atingindo profundidade
em tais referências. A convergência de sua vida com o mito se dá quando o olhar direciona-se
na perspectiva que Dédalo não queria que Ícaro sofresse as consequências de suas escolhas.
Sendo assim, a vida de Lara de Lemos e de várias presas políticas tem esse ponto em comum
com o mito. A escritora gaúcha afirmou em entrevista concedida à Professora Cinara Ferreira,
que escreveu o livro Inventário do medo (1997), escrito quase 20 anos após sua segunda
prisão pela ditadura, para elaborar a angústia em ver seus filhos na prisão. Na mesma
entrevista, quando indagada sobre como foram esses momentos, ela relata o seguinte:
Sim, isso foi uma coisa terrível. Eles me prenderam e falaram para o meu filho que
iam me torturar se ele não contasse o que eles tinham feito. Graças a Deus, o meu
filho não acreditou. Da primeira vez, eu fiquei desesperada, porque prenderam os
meus dois filhos. Eu ia muito lá, mas eu conversava com eles e eles não me levavam
a sério. Sabe, quando a pessoa tem todo o poder e você não tem nenhum. É assim,
eles te tratam mal. O meu filho mais velho ficou preso muito tempo. O meu filho
menor foi solto antes, porque ele só tinha dezesseis anos. Esse período foi horrível.
Eu tinha sonhos e pesadelos com eles, horríveis. E, por acaso, no edifício em que eu
morava, na porta seguinte, morava um americano que tinha vindo ensinar os
brasileiros a como tratar e torturar os presos políticos. Eu tinha que ver esse cara
todos os dias. Eu abria a porta e dava com ele (LEMOS apud FERREIRA, [2017], p.
52).
À luz dos conceitos explorados sobre tortura, o leitor do trabalho deve estar se
perguntando: mas qual seria o processo de tortura explorado pelo poema nessa estrofe? A
resposta se dá no relato acima, um relato de dor, de tortura psicológica realizada em uma mãe
que viu diariamente seus filhos presos e torturados. Sendo assim, entende-se a citação do
mito, pois o eu poético sentiu-se como Dédalo, que fracassou ao tentar salvar seu filho, como
uma frustração de ter por anos um filho torturado. O mito abre um ambiente para discutir
sobre os muitos jovens, adolescentes e crianças, filhas de militantes políticas(os)
sequestradas(os), que foram mantidas em cárceres clandestinos, nascidas em cativeiros,
torturadas ou ameaçadas de serem submetidas a torturas, algumas foram arrancadas dos
braços de suas mães, impedidas de serem amamentadas e afagadas, outras chegaram a ser
torturadas mesmo antes de nascer, ou assistiram às torturas em seus pais ou, então, viram os
pais serem assassinados.
Dentro do arcabouço teórico de Lacan (1901-1981), o inconsciente estruturado pela
linguagem introduz três pilares fundamentais que compõem a realidade humana: o real, o
simbólico e o imaginário. Esses elementos foram temas de revisões e debates ao longo de toda
a obra de Lacan. Dentre esses registros, o real se destaca como um dos mais debatidos, tanto
pelo próprio Lacan quanto por comentaristas e psicanalistas. É importante notar que o
conceito de real não deve ser confundido com a realidade em si; ele representa aquilo que é
excluído pelo simbólico quando este se estabelece, formando um espaço que escapa à própria
capacidade de simbolização (LACAN apud MARTINELLI FILHO [2022], p. 48). Desse
modo, um trauma ultrapassa ao simbólico, pela sua repetição e em sua caracterização pela
pulsão de morte13. Com isso, é possível identificar que Lemos e outros presos políticos podem
ter passado por traumas latentes quanto a esse período. Sendo assim, tal perspectiva teórica e
poética finalizam a quinta e última estrofe do poema em análise, um contorno na linguagem
direta, um trânsito entre o simbólico e um real particular para transpor as atrocidades sofridas
pelo regime.
Na última estrofe: “Ame sem ser amado / Sempre, muito / até que o coração / sufoque.
Pare / de trepidar”. Os dois primeiros versos trazem uma aliteração que cria ritmo à estrofe,
transitando entre as sílabas em “m” e “s”, que aos poucos ganha uma convergência entre
símbolo e ritmo, isto posto, as métricas e musicalidade vão perdendo o compasso, como um
13
A pulsão de morte é um conceito desenvolvido pelo psicanalista Sigmund Freud. É uma tendência ao zero, a
romper com resistências, romper com o exercício físico de existir. A pulsão de morte se opõe a Eros, a tendência
à sobrevivência, propagação, sexo e outras pulsões criativas e produtoras de vida. A pulsão de morte às vezes é
chamada de “Thanatos” no pensamento pós-freudiano. Para Freud, essas pulsões de vida e de morte, de Eros e
Tânatos, não são totalmente excludentes. Vivem numa tensão e, ao mesmo tempo, numa dinâmica de equilíbrio.
de fato um coração parando. Contudo, a tentativa de simbolizar a tortura e um possível trauma
se manifesta como conselhos, enquanto busca recriar o passado e oferecer uma orientação ou
receita para o futuro. Em “até que o coração sufoque”, dispõe-se de uma dinâmica psicológica
complexa, pois o coração sufocado ilustra vividamente a construção emocional imposta pelo
ambiente do cárcere. Contudo, quando o elemento “pare de trepidar” entra nos versos, abre-se
um leque interpretativo para compreender a resistência em meio à tortura física novamente.
Dentre as formas de tortura já dialogadas, tinha uma que detinha o teor que causava
“trepidações” nos militantes, a “Cadeira do Dragão”. A “Cadeira do Dragão” era um
dispositivo parecido com uma cadeira elétrica, na qual os detentos eram obrigados a se sentar
sem roupa, em uma estrutura revestida de zinco que estava conectada a terminais elétricos.
Quando o aparelho era ativado, a condução elétrica do zinco provocava choques que
espalhavam-se pelo corpo da pessoa. Em algumas situações, os torturadores utilizavam um
recipiente metálico na cabeça da vítima, também sujeito à aplicação de descargas elétricas.
A discussão sobre a elaboração de um possível trauma por meio da poesia é ampla,
mas através dessa análise é possível dimensionar até onde a literatura de testemunho pode
contribuir para a elaboração de uma experiência-limite. Com isso, dialogar em um trabalho
sobre as receitas de uma pessoa que anseia a morte é um tema por vezes angustiante, mas que
pode contribuir para entender sobre como esses sujeitos transformaram sua experiência-limite
em linguagem poética.
A psicanálise auxilia em uma compreensão da problemática, pois parte do pressuposto
fundamental de que o conhecimento pleno acerca da morte permanece inalcançável, o
empenho, então, consiste em decifrar as intrincadas complexidades subjacentes ao processo
de morrer. Dentro desse contexto, surge a possibilidade interpretativa de explorar, dentro dos
versos do poema, a sugestão de suicídio. Isso nos conduz a uma interrogação crucial: quando
uma pessoa opta por pôr fim à sua própria existência dentro de um poema, qual entidade ou
elemento está ele verdadeiramente ceifando? A discussão é ampla, mas uma possível
constatação feita através da análise do poema em estudo é que, ao almejar sua própria morte
através da voz poética, ela perpetua sua presença na ausência, transcendendo o âmbito da
morte física. Entretanto, as palavras do poema se tornam o receptáculo da dor que persiste
após experiências traumáticas, como as sessões de tortura dialogadas. Isto posto, cria-se então
uma tensão constante entre nosso corpo biológico, vulnerável ao término da vida, com a
criação de um corpo imaginário. Essa dualidade entre “ser” e “possuir” um corpo, é
meticulosamente explorada na temática subjacente às estrofes do poema.
Em síntese, esse poema emerge como uma nebulosa nas sendas sólidas que sustentam
a vida, desafiando a concepção comum de que os poetas que sofreram prisão política foram
impactados pela desconexão entre as palavras e a realidade. Portanto, ele (o poema) adentra
num mundo estranho no qual o significado convencional pode perder sua relevância após
vivenciar imageticamente através das palavras a desumanização. Hannah Arendt (2002)
percebe a reificação como uma metamorfose, transfiguração e materialização que ocorrem
sempre à custa da própria vida. Portanto, é na “letra morta” que o “espírito vivo” deve
persistir, um amortecimento do qual ele só pode escapar quando a “letra morta” é revivificada
pelo contato com uma vida disposta a ressuscitá-la. Contudo, essa ressurreição compartilha
com todas as coisas vivas o destino de eventualmente voltar a perecer (ARENDT, 2002, p.
182). Desse modo, a intensidade desse amortecimento nas artes varia, sendo a poesia
considerada por Arendt (2002) a forma mais humana e mundana da expressão artística, pois
está mais próxima do pensamento do autor. A memória transposta nos versos de um poema
pode transformar a recordação, e torna-se um elemento de “intimidade com a memória viva”,
fazendo com que a poesia tenha continuidade (ARENDT, 2008, p. 183). Em virtude do
explicitado, a poesia, apesar de sua transformação estética ao longo das eras, explora tanto as
universalidades quanto as particularidades da condição humana. Em acordo com todo estudo
efetuado até então, constata-se como a poesia é um meio de elaboração da memória social,
contribuindo para a construção de uma política de memória.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com uma literatura profundamente engajada, Lara de Lemos expressou, com toda a
intensidade, resistência e senso de justiça, denúncias e violências que afligiam as diversas
famílias durante a ditadura militar brasileira. No poema “Receitas para morrer”, elemento
fulcral do trabalho, ela abordou temas duros de serem escritos e falados de forma direta,
discorrendo sobre a realidade que foram as torturas na ditadura militar. Dessa maneira, a
palavra de Lemos se notabiliza como um símbolo de resistência. Todavia, apesar de não
haver garantias concretas de que ela tenha conseguido elaborar seu trauma por meio de sua
escrita, a poesia apresenta-se como esse caminho possível.
A seção final deste trabalho, que até então veio abordando sobre a literatura no papel
de resistência contra as atrocidades cometidas pela ditadura militar brasileira, constata que a
poesia também abarca arquivos testemunhais, de memórias, de possíveis traumas e de
recordações desse período brutal. A autora gaúcha não apenas revelou as angústias e os
tormentos infligidos pela ditadura, uma vez que ela própria foi perseguida, desrespeitada,
humilhada e torturada, mas também ressaltou a urgência de resistir e lutar contra
desigualdades e violências, seja por meio da militância, da literatura, da educação ou do
jornalismo. Lara de Lemos, por meio de sua escrita, registrou seu testemunho e a violência
que suportou. Portanto, a importância de divulgar tais eventos reside no resgate da memória
histórica, possibilitando que as vítimas sejam lembradas e homenageadas adequadamente. A
divulgação contribui para o reexame das circunstâncias que marcaram esse período sombrio,
evitando que a anistia seja interpretada como uma espécie de grande amnésia coletiva.
Entretanto, parece que falta um elemento crucial para a completa compreensão e preservação
desse legado doloroso. Essa divulgação não apenas ilumina o passado, mas também lança luz
sobre as questões atuais relacionadas à justiça, direitos humanos e preservação da democracia,
proporcionando uma base para reflexão e ação na construção de um futuro mais justo e
compassivo. Então, é crucial promover mais trabalhos engajados na análise da importante
obra da poeta gaúcha e de outros poetas que foram vítimas de prisão política. Isso implica em
reavaliar e aprofundar as discussões sobre o legado literário desses artistas, bem como os
impactos da repressão política em sua produção artística. Ao fazer isso, não apenas honramos
a memória desses escritores, mas também reconhecemos a resistência cultural e o papel
significativo que a expressão artística desempenha na narrativa histórica.
Explorar autorias como a de Lara de Lemos ressalta a necessidade de evidenciar a
poética brilhante de uma figura singular da sociedade brasileira. Além disso, instiga-se
reflexões sobre a maneira como a história, a cultura, a teoria e a crítica literária são
estruturadas, assim como quem desempenhou papéis centrais nesses campos. Além disso, a
invisibilidade de escritoras como Lemos, cuja obra é atemporal e de grande relevância, ainda
tem impactos duradouros nas aspirações de futuras autoras e de ensino, que continuam a lutar
por reconhecimento e espaço nos espaços públicos. Por fim, este trabalho trouxe à tona a vida
dessa grande poeta em convergência com a temática da literatura testemunho, que não se
finda aqui, mas que estabelece uma contribuição para um estudo que deve ser ampliado na
discussão acadêmica e social.
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