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Escritas negras: a reivindicação pela primeira pessoa na literatura de

Conceição Evaristo
Luan da Cruz1
(CEFET/RJ)
Thaís da Silva Lourenço2
(CEFET/RJ)
Luciana de Mesquita Silva3
(CEFET/RJ)
Fátima Lima4
(CEFET/RJ)

RESUMO
Considerando as relações interseccionais de raça, gênero e sexualidade presentes na
obra da escritora Conceição Evaristo (2020), esta pesquisa objetiva apresentar a
construção do texto literário ao discutir as narrativas em primeira pessoa, tomando de
exemplo o conto “Isaltina Campo Belo”, presente no livro de contos Insubmissas
lágrimas de mulheres da referida escritora brasileira. Dessa forma, partimos do
pressuposto de que as narrativas em primeira pessoa se transformam em estratégias de
resistência em sua produção, uma vez que as criações epistemológicas (COLLINS,
2018) e construções políticas (KILOMBA,2019) funcionam como ferramentas de
manutenção poder colonial, subjugando o conhecimento produzido por intelectuais
1
Graduado em Letras e mestrando no PPG em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. E-mail:
dacruzluan@gmail.com; Currículo lattes: https://lattes.cnpq.br/7921138767359208;
2
Graduada em Psicologia e mestranda no PPG Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. E-mail:
thais.lourenco@aluno.cefet-rj.br. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7347303129162190;
3
Doutora em Letras e docente do PPG em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. E-mail:
luciana.cefetrj@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7864476756536770;
4
Doutora em Saúde Coletiva e docente do PPG em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. E-mail:
fatimalima4@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1737594557449404
negras. Para tanto, far-se-á necessário pontuar os estudos de Antônio Bispo dos Santos
(2015), que argumenta acerca dos movimentos contracoloniais, sendo estes os processos
de resistência e de luta dos povos negros e indígenas contra a colonização simbólica e
material de seus territórios. Nesse sentido, pretendemos verificar de que forma
conceitos que atravessam a vida de escritores negros, como literatura negro-brasileira
(CUTI, 2010) e escrevivência (EVARISTO, 2020) são refletidos no conto selecionado.

Palavras-chave: Conceição Evaristo; Literatura; Narrativas; Mulheres Negras;


Relações Raciais.

Introdução

Nas últimas décadas foi possível perceber os crescentes e significativos


movimentos que vêm acontecendo no campo intelectual e educacional brasileiro. No
que se refere às escritas, desde as (re)formulações de conceitos e referenciais teóricos
temos também as narrativas que conquistaram o direito pelo protagonismo partindo de
quem sente o mundo por perspectivas múltiplas e desloca a Europa do centro global
(MBEMBE, 2018).
As mudanças estimuladas pela conquista da Lei nº 12.711/2012, conhecida
como “Lei das Cotas”, provocaram e ainda provocam tensionamentos nas relações
pessoais, nos referenciais educacionais e nos modos como estes são transmitidos dentro
e fora da academia. Essa questão fica explícita quando a presença de pessoas de
segmentos raciais e sociais, que antes eram representadas por funcionárias de limpezas
ou estavam ilustradas de forma estereotipada negativamente nos conteúdos lecionados,
agora estão ocupando as carteiras e vagarosamente à frente do magistério.
Têm sido cada vez mais frequentes os embates epistemológicos e
metodológicos para a abertura e legitimação de variados saberes. Na academia, há um
campo em disputa que atinge proporções ampliadas pelos questionamentos
intensificados por estudantes e profissionais que fogem à regra estabelecida pelo viés
eurocêntrico, termo que faz referência ao homem branco, notadamente europeu como o
centro de todas as coisas. A própria composição etimológica já apresenta euro + centro
em sua base radical.
Para a professora Cida Bento, o homem como centro de poder está diretamente
relacionado às questões do que ela chama de branquitude, conceito que a pesquisadora
aborda em seu livro Pacto narcísico da branquitude (2022). Assim, nas palavras de
Cida Bento (2022), a branquitude significa “um pacto de cumplicidade não verbalizado
entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios” (BENTO, 2022, p. 18).
Podemos compreender que essa cumplicidade é apresentada no conjunto de
privilégios de determinado grupo hegemônico, que é carregado com toda sua gama de
marcações hierarquizadas, interseccionando raça, gênero e classe (CRENSHAW, 2002),
na tentativa de manutenção do poder colonial com suas teorias e modos de agir racistas
e patriarcais.
Poder que como Cuti (2010) evidencia, se reinventa, como um camaleão, que
tenta se adequar ao momento presente, disfarçando-se com suas armadilhas. Assim,
temos nas narrativas de intelectuais negras movimentos de enfrentamento com o uso
político e criativo do texto literário como mecanismo de subversão da estética literária e
epistemológica, que é notoriamente racista e sexista, que descredibiliza e invalida o
pensamento de mulheres negras, colocando-as à margem usando discursos de uma falsa
universalidade. Quando na verdade, o conhecimento caracterizado como universal, parte
de um ponto específico, localizado no continente europeu e tem nos seus contextos
acadêmicos o controle feito por homens brancos (COLLINS, 2018; KILOMBA, 2019).
Sendo assim, neste trabalho, temos a escrita de mulheres negras entendidas
como agentes demarcadoras e protagonistas de uma temática a partir de suas vivências e
participação direta na construção da produção literária. Desse modo, esta pesquisa
objetiva apresentar a construção do texto literário ao discutir as narrativas em primeira
pessoa, tomando de exemplo o conto “Isaltina Campo Belo”, presente no livro de contos
Insubmissas lágrimas de mulheres da escritora brasileira Conceição Evaristo, publicado
pela primeira vez em 2011 e que atualmente está na quinta edição.
Considerando ser a proposição deste trabalho o empreendimento literário de
narrativas sob perspectivas negras, aplicamos os conceitos de literatura negro-brasileira
(CUTI, 2010) para mais bem aproximar o texto literário, assim como refletir o conceito
na obra de Conceição Evaristo e demonstrar o que seriam as narrativas em primeira
pessoa, como o ato de narrar e/ ou de escrever uma história em primeira pessoa e (re)
afirmar um mecanismo de identidade, que vai contra o domínio da colonialidade.
Aqui, as narrativas entendidas como referências advindas de pessoas negras
permitem trazer suas perspectivas para o texto produzido na posição crítica contra a
hegemonia europeia que tenta dominar todos os espaços, principalmente no que diz
respeito à produção de conhecimento e validação de saberes.
Para tanto, far-se-á necessário pontuar os estudos de Antônio Bispo dos Santos
(2015), que argumenta acerca dos movimentos contracoloniais, sendo estes “os
processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra
colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses
territórios” (SANTOS, 2015, p. 48). Nesse sentido, é possível observar um texto com
narrativa em primeira pessoa, construído por pessoas e personagens negras, em que se
tem a ordem colonial, que inferioriza, desqualifica e estereotipa negativamente pessoas
negras, desconstruída por sua linguagem, temática e estética reivindicando
subjetividades próprias da pessoa negra. Logo, é possível observar esta manifestação no
trecho a seguir no conto “Isaltina Campo Belo”:
Campo Belo, como gostava de ser chamada, entre outros detalhes, tinha uma
idade indefinida, a meu ver. Se os cabelos curtos, à moda black-power,
estavam profundamente marcados por chumaços brancos, denunciando que a
sua juventude já tinha ficado há um bom tempo para trás, seu rosto negro,
sem qualquer vestígio de rugas, brincava de ser o de uma mulher, que no
máximo teria os quarenta anos. (EVARISTO, 2020, p. 55)

Na primeira seção, apresenta-se através das contribuições de Patricia Hill


Collins (2018), Grada Kilomba (2019) e Conceição Evaristo (2020), como as
epistemologias são construções políticas que funcionam como ferramentas do poder
colonial, que subjugam o conhecimento produzido por intelectuais negras e estas
utilizam estratégias para enfrentar e reivindicar suas próprias narrativas. Na segunda
seção, temos como proposta apresentar o conceito de literatura negro-brasileira a partir
do conto “Isaltina Campo Belo” (2020), no livro Insubmissas lágrimas de mulheres,
traçando um contraponto de narrativas em primeira pessoa com as características
apresentadas pela autora, analisando em que medida a escrita se ancora nas teorias de
Cuti (2010) e Duarte (2010).

A palavra como ferramenta política

A palavra e os mecanismos de contar uma história também funcionam como


uma ferramenta política e de poder. Ao passo que modulam subjetividades, exprimem
um ordenamento social e interferem diretamente nas relações cotidianas.
No texto “Epistemologia feminista negra”, Patrícia Hill Collins (2018) nos
explica como o controle exercido por homens brancos sobre as estruturas de validação
do conhecimento ocidental distorce ou exclui o conhecimento advindo de outras
matrizes. Manipulam assim, para manterem ativos seus interesses sobre temas,
paradigmas e epistemologias na academia tradicional. O que significa que teorias do
conhecimento são constituídas por relações políticas de poder, e, portanto, sem
neutralidade, o que segundo Collins, “estabelecem quem é considerado confiável e
porque o é” (COLLINS, 2018, p. 140). Como resultado, temos a subjugação dos
conhecimentos e dos pensamentos de mulheres negras.
Deste modo, o controle dos discursos e das escritas também são formas
coloniais, que se estruturam hierarquicamente, subalternizado e reprimido
violentamente pessoas e histórias que não se enquadram na ordem hegemônica. Ao
passo que determina quem são as pessoas detentoras do conhecimento, e o que e quem
deve ou não ser considerado, assim como mantém sob controle estruturas que obstruem
o gerenciamento de recursos materiais e imateriais de grupos considerados menores.
Frente às tentativas de aniquilamento, a organização política e o movimento de
mulheres negras possibilitou adentrar ao campo acadêmico e provocou algumas rupturas
na ordem colonial, possibilitando firmar o seu ponto de vista, tomando para si a
primeira voz e não mais na posição de objeto a ser avaliado, mas como pessoas de
direito com autorias das próprias histórias (KILOMBA, 2019).
Tal movimento é perceptível nas obras literárias traçadas por Conceição
Evaristo, em que a escritora busca dar o protagonismo às personagens negras,
exercitando sua criação na concentração da perspectiva destas mulheres. A literatura
ficcional de Conceição Evaristo funciona como uma escrita política que denuncia as
mazelas raciais e sociais advindas do colonialismo presente na sociedade brasileira até
os dias atuais (EVARISTO, 2020).
Basta recordarmos o mito fundador da história oficial do Brasil para
compreendermos como a manipulação histórica, contada pelas lentes do colonizador,
estruturou nossas subjetividades e relações cotidianas. Não houve descobrimento, e sim
uma invasão.
A história propagada hierarquizou de forma taxativa a imagem de pessoas
brancas e não brancas, colocando os colonizadores como descobridores e benevolentes,
enquanto destituía as populações negras e indígenas de humanidade. Demonizando a
cultura, ridicularizando a imagem, coisificando seus corpos, dilacerando as
subjetividades, os sentimentos, além de ter apagando todo legado ancestral trazido pelos
povos do continente africano e dos indígenas que aqui, já viviam, relegando-os a uma
origem de escravização.
Diante da questão, Evaristo, impactada pelos sentidos que concebem a imagem
da mãe-preta, figura que era responsável pelos cuidados dos filhos dos senhores da casa-
grande, conceitua o termo “escrevivência” como um operador que “pretende borrar,
desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas
tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens,
mulheres e até crianças” (EVARISTO, 2020, p. 30).
Com isso, Evaristo (2020) rompe com as correntes que tiravam o pertencimento
das vozes das mulheres negras e com a letra, a escrita faz ecoar suas próprias narrativas.
Através das vivências escritas em suas personagens, Evaristo restitui a humanidade
vilipendiada, descrevendo também cenários de exclusão, solidão, violências e
insubmissão diante de suas dores. Personagens ficcionais, mas reais no âmago das
tragédias existenciais que a vida apresenta. Talvez essa seja uma das explicações que
tocam e mobilizam tantas pessoas que entram em contato com suas obras.

A primeira pessoa como reflexo do coletivo

Considerando que os modernos estudos da crítica literária vêm trazendo os que


tratam da temática negra, como Cuti (2010) e Duarte (2010), importantes contribuições
para campo da literatura brasileira sob a perspectiva de pessoas negras implicaram
análises mais embasadas do ponto de vista literário. Desde a sua primeira publicação, os
Cadernos Negros (1978) apresentaram obras de escritoras e escritores negros com toda
diversidade temática na literatura (DUARTE, 2010).
O que podemos perceber hoje é que o operador “escrevivência” está intimamente
ligado à questão da narrativa feita em primeira pessoa, especialmente por pessoas
negras, possibilitando o protagonismo de quem narra sua própria história e produz
análises a partir das suas próprias perspectivas. Uma vez que pessoas negras, como nos
destaca Lélia Gonzalez (1980/2018), foram por tanto tempo silenciadas, faladas por
terceiros e tiveram suas histórias contadas e referenciadas de forma subjugada, na
tentativa de dominar e domesticar suas existências.
No que tange ao campo de segmento feminino, tomamos de exemplo neste
trabalho, a produção de Conceição Evaristo com o conto “Isaltina Campo Belo” (2020),
no livro Insubmissas lágrimas de mulheres. Ao inserir Campo Belo no corpus da obra,
infere-se o que Tatiana Nascimento confirma como o tripé da literatura criada por
pessoas negras, sendo esta embasada em “dor, resistência e renúncia” (NASCIMENTO,
2020).
Aplicar a escrevivência significa ampliar os sentidos de quem está narrando,
tomando aqui como exemplo o caso Campo Belo, ao compor o enredo em tela, o efeito
primeira pessoa imprime mais verossimilhança à narrativa, estando a narradora mais
próxima ao fato vivido, assim o tripé dor, resistência e renúncia, descrito por
Nascimento (2020) é apresentado pela ótica de quem viveu, ressignificando a produção
literária.
Campo Belo retrata a história de uma mulher negra, que do ponto de vista
material, não teve muitas dificuldades na infância, como relata. Apresentando com
orgulho e altivez, a história dos seus antepassados que por parte de mãe chegaram à
cidade local como negros livre, que conseguiram comprar a carta de alforria e tiveram
as próprias terras. Fruto de muito trabalho e certo planejamento financeiro. Já as
histórias dos antepassados de seu pai, que era filho único e nasceu na mesma cidade da
mãe de Campo Belo, foram mais dolorosas. Ainda assim, seus avós paternos, também
trabalharam duro e compraram algumas terras, que com a boa economia reverberou na
possibilidade de estudos do seu pai, que conseguiu um bom emprego na prefeitura local.
Contudo, a questão que angustiava Campo Belo, no primeiro momento, já em
sua infância, tinha relação com sua identidade de gênero, pois se sentia como um
menino e ficava intrigada com o fato de ninguém perceber que ela estava sendo tratada
de forma equivocada, até mesmo esse equívoco vindo por parte de sua mãe que era
enfermeira. Situação que provocou sentimentos ambíguos de ódio e amor pela mãe, por
ela não perceber o menino que existia dentro de Campo Belo, como assim Campo Belo
acreditava.
Com o passar do tempo e outros acontecimentos na trama, a personagem percebe
que não se tratava de um conflito entre ser uma menina-mulher ou ter um menino-
homem dentro de si, mas sim do seu desejo sexual ser direcionado a uma pessoa do
mesmo gênero que ela. Foi a partir de um olhar de uma moça, que Campo Belo se
reconhece, se permite encantar e expressar seu desejo por outra mulher.
A personagem da trama, ao narrar sua história, perpassa por questões de
interseccionalidade, à medida que se percebe mulher sentindo afeto por semelhante, a
dor que tantas vezes caminha lado a lado com Campo Belo constrói e ilustra a narrativa:
O que me confundia era o caminho diferente que os meus desejos de beijos e
afagos tendiam. E, por isso, acabei de crescer, contida. Amarrava os meus
desejos por outras meninas e fugia dos meninos. Em toda a minha
adolescência, vivi um processo de fuga. Recusava namorados, inventava
explicações sobre o meu desinteresse sobre os meninos e imaginava doces
meninas sempre ao meu lado. Até que, um dia, dolorosamente tudo mudou.
(EVARISTO, 2020, p. 62)

Campo Belo traz elementos contundentes de uma criação que questiona a sua
identidade de mulher, sobretudo de mulher negra, frente a privações de seu desejo
sexual, passado pela hipersexualização do seu corpo e violência sexual. A personagem
explicita o controle patriarcal sobre o seu direito de ter sua integridade, no meio social
em que está posta, confirmando o que defende na teoria negro-brasileira da literatura em
que as pessoas refletem sua condição, identidade e luta no texto literário (CUTI, 2010).
A temática traçada abarca, neste sentido, a trajetória de mulheres negras silenciadas pelo
que se pensa uma cultura de dominação patriarcal que quando citada por Campo Belo
engloba as demais mulheres negras em suas variadas narrativas.
Nos termos da linguagem empreendida por Evaristo, percebe-se a transcendência
do texto literário, uma vez que se transcorre a narrativa em primeira pessoa, tornando ao
mesmo tempo um ato com efeito de subverter o trabalho literário, assim o comparando
aos cânones postos pela tradicional literatura.
A configuração da linguagem de Campo Belo reconfigura o padrão de uma
sociedade, a partir de um texto literário feito exclusivamente por uma mulher negra que
ao narrar sua trajetória, traça um paralelo de todas as mulheres negras estigmatizadas
em suas condições.
Nesse emaranhado de lembranças, lá estavam o meu corpo-mulher, a cena do
estupro, minha filha nascendo. [...] Eu podia desejar a minha semelhante,
tanto quanto outras semelhantes minhas desejam o homem. E foi então que
eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam.
(EVARISTO, 2020, p. 66)

A construção em primeira pessoa dá ao aspecto da linguagem maior


demarcação da escrita a partir da vivência, estética muito presente nos textos de
mulheres negras. Assim, o conceito de escrevivência pode ser trazido e apreciado para
as narrativas de mulheres negras, termo criado pela própria Conceição que ilustra este
trabalho.
Ao analisar o conto em destaque neste trabalho, percebe-se o todo vivido por
Campo Belo: uma escrita que perpassa pela vivência, narrativa que se constrói vivendo
nas subjetividades da narradora, seja ela no campo da luta ou felicidades vividas. Sobre
escrevivência, Evaristo (2020) entende que:
Nossa escrevivência traz a experiência, a vivência de nossa condição de
pessoa brasileira de origem africana, uma nacionalidade hifenizada, na qual
me coloco e me pronuncio para afirmar a minha origem de povos africanos e
celebrar a minha ancestralidade e me conectar tanto com os povos africanos,
como com a diáspora africana. (EVARISTO, 2020, p. 30)

Assim, verifica-se o quanto o processo de escrita a partir da vivência não


implica a construção de textos individuais, apenas, mas também o reflexo de um
coletivo que reverbera a história compartilhada de pessoas negras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões promovidas neste trabalho evidenciam que a academia pode ser


mais um lugar de controle, que utiliza ferramentas coloniais para a manipulação do
conhecimento e saberes. E devido a pessoas comprometidas, fazendo um enfrentamento
ético-político contra o sistema racista e patriarcal, vem sendo possível romper com o
silêncio nas produções epistemológicas contaminadas por essas construções
eurocêntricas. Sendo assim, as novas construções literárias, notadamente, as de
mulheres negras, surgem para romper o padrão de escrita estabelecido, de forma a
ampliar histórias comuns e compartilhadas dessas mulheres.
Escrevivência, feita em primeira pessoa, endossa uma produção legítima na
literatura brasileira como forma de resistência, seja na estética, na temática ou na
linguagem, que não só se situa nesse campo como escrita subrepresentada, mas sim que
nasce e se modifica para um processo legítimo de escrita. Diante disso, temos a
subversão de intelectuais negras assumindo o protagonismo de suas histórias,
apropriando-se da escrita e narrando suas vivências em primeira pessoa.
REFERÊNCIAS
BRASIL. LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012. Diário Oficial da União, Poder
Executivo, Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm Acesso em: 05 de jan. de 2021.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem. vol.10 no.1 Florianópolis: Jan,
2002.
COLLINS, Patricia Hill. Epistemologia feminista negra. Tradução de Ana Claudia Jaquetto
Pereira. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson;
GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 139-170.
CUTI. Literatura Negro-brasileira. São Paulo. Selo Negro, 2010.
DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/artigos/teoricos-
conceituais/Artigoeduardo2conceitodeliteratura.pdf .
EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constancia Lima;
NUNES, Isabella Rosado. Escrevivência: a escrita de nós - reflexões sobre a obra de
Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46.
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 5. ed. Rio de Janeiro: Malê,
2020.
GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: GONZALEZ, Lélia.
Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Diáspora
Africana: Editora Filhos da África. 1980/2018, p. 190-214.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de
Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo,
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NASCIMENTO, Tatiana. Mesa redonda online “Prosa virtual: literatura de mulheres
negras”, com Miriam Alves, Eliana Alves Cruz, Livia Natália e Tatiana Nascimento. 2020
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ibJmK4v5mfw.
SANTOS, Antônio Bispo dos (Nêgo Bispo). Colonização, Quilombos, Modos e Significações.
Brasília: INCTI/UnB, 2015.

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