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04 Idade Média II
04 Idade Média II
Ricardo Feijó
O largo período que vai da queda do Império
Romano, entre os séculos V e VI (o último imperador
romano morre em 476), ao final do século XV,
época do início das grandes navegações, delimita o
que se conhece como Idade Média.
É vantajoso estudar-se o período dividindo-o em
duas épocas. A primeira preside às mudanças
radicais no estilo de vida europeu com o
desaparecimento de cidades e a acentuada
ruralização.
Muitas das práticas romanas são esquecidas e a
Europa entra em período de menor fervor cultural.
O poder político pulveriza-se ao mesmo tempo em
que, lentamente, vão-se consolidando as instituições
medievais. Essa etapa vai até o ano de 1200 e
corresponde também ao apogeu da civilização
islâmica.
Enquanto a Europa mergulha na Idade das Trevas, os povos
árabes conquistam um grande império, que em 730 incorpora
desde a Espanha e o sudoeste da França, passando pelo norte da
África e o Oriente Médio, até as longínquas fronteiras da Índia e
da China
O Império Islâmico destaca-se pelo seu refinado padrão de vida e
pela sua cultura, onde se valorizavam a literatura, a ciência, a
medicina e a filosofia. Sabemos que os árabes travaram contato
com diversos povos, conheceram a sabedoria hindu, preservaram
e desenvolveram o conhecimento grego em Matemática, Física,
Química e Astronomia.
É possível que eles tenham tido um papel no
desenvolvimento do pensamento econômico, mas
pouco se sabe a esse respeito. Há, de fato, uma
carência de estudo neste assunto.
A relevância dos árabes nas idéias econômicas
começa com a grande contribuição que foi o sistema
de números inventado por eles. Os números
arábicos facilitaram as tarefas aritméticas e
certamente impulsionaram os processos de
contabilização econômica e o desenvolvimento de
uma primitiva Econometria.
... embora eles soubessem das reflexões de Aristóteles
sobre o valor dos bens.
O mais importante, para nossos propósitos, foi os árabes
terem preservado e traduzido os clássicos remanescentes
da filosofia grega. Quando em 1085 os europeus
retomam Toledo, na Espanha, e para lá afluem os
acadêmicos em busca dos clássicos antigos, a Europa
desperta de seu sono e recupera novamente o gosto pela
filosofia. O que viria a ter uma importância muito
grande no desenvolvimento do pensamento econômico
pelos padres escolásticos nos próximos quatro séculos
que se seguiram.
A segunda etapa da Idade Média, tal como estamos
caracterizando, vai de 1200 a 1500. O grande
divisor de águas foi o renascimento filosófico
impulsionado pelo resgate da filosofia grega. Tomás
de Aquino (1225-1274) destaca-se então como o
pensador mais influente do período.
É nesse segundo período medieval que a análise
econômica terá um significativo avanço.
Antes de discuti-lo, vejamos algo mais da etapa
anterior.
No feudalismo constata-se a divisão do poder
político. Não há um Estado centralizador forte e sim
um imenso conjunto de pequenos feudos cuja base
do poder está na propriedade da terra.
Os proprietários são os senhores que estão inseridos
numa malha de relações políticas com outros
senhores. No topo dela está o rei, um antigo chefe
da tribo primitiva que invadiu a Europa, e o poder
da Igreja.
Os senhores possuem direitos e obrigações entre eles e cada
qual cuida de seus camponeses, homens ligados a terra e
inteiramente submetidos aos desígnios do seu senhor.
Os camponeses não podem ser escravizados ou expulsos da
terra.
Os camponeses cumprem uma série de obrigações, como
transferir uma parte da produção agrícola, pagar impostos
e trabalhar alguns dias da semana nas terras de uso do seu
senhor.
Em troca, os senhores dão proteção a eles, resolvem as
disputas jurídicas entre eles, oficializam casamentos e
garantem alguns benefícios paternalistas.
Há, portanto, um sistema de obrigações e serviços
mútuos regulado pelos costumes do feudo, já que
não existem leis escritas como na época do Império
Romano.
A produção artesanal regrediu por essa época.
Predomina então a atividade agrícola, em pequena
escala, usando-se técnicas agrícolas primitivas.
A atividade comercial é, de início, bastante
limitada, embora ela venha a crescer a partir do
século XI.
A base da organização não está no contrato, mas
nas relações de status. A palavra empenhada, a
promessa verbal e a defesa da honra valem mais
do que a lei escrita.
A sociedade medieval espelhou a hierarquia social de
Platão em A República. Na base, uma classe de
trabalhadores camponeses, acima delas os senhores
seculares, com sua rede de lealdades transferíveis de um
senhor para outro, e no topo os senhores eclesiásticos:
padres e bispos que deviam lealdade permanente à
Igreja de Roma.
Como no modelo social platônico, a classe superior era a
repositória e guardiã do conhecimento. Seus
representantes contemplavam o mundo natural de olho
no plano espiritual e desenvolviam idéias teológicas
imbricadas em alguma filosofia.
A organização da vida social refletia as crenças religiosas e, como
o ensino religioso era monopólio da Igreja, existiu de fato uma
certa centralização de poder em Roma, mas não nos moldes de
um império.
Além de canalizar para si o poder e a riqueza, a principal
preocupação da Igreja era fazer prevalecer os preceitos éticos
cristãos. A ética cristã ditava a organização da vida medieval e ela
serviu como cimento ideológico capaz de manter coesa a Europa
Medieval e proteger seus governantes contra a insurreição da
maioria de camponeses pobres.
A ética paternalista na medida em que difundia o comportamento
altruístico entre os ricos contribuía para acalmar as tensões
sociais.
A vida econômica na sociedade medieval era sustentada pela
atividade agrícola.
Os feudos eram auto-suficientes e quase nunca produziam
um excedente exportável.
A partir do século XI, mudanças tecnológicas aumentaram
significativamente a produtividade na agricultura e com isso
pôde-se gerar crescentemente um excesso de produção
destinado ao comércio.
A atividade comercial dá origem a uma nova classe de
homens enriquecidos sem vínculos fortes com a antiga ordem
social. São os portadores do elemento que iria dissolver
lentamente as relações feudais: a substituição dos vínculos
medievais que existiam entre as pessoas, legitimados pela fé,
por relações de mercado.
A transição para o capitalismo comercial não
foi linear; muitas guerras, revoltas e
retrocessos ocorreriam até que o capitalismo
comercial substituísse o feudalismo nos países
mais adiantados da Europa.
O início das transformações sociais ocorre com as inovações
tecnológicas que ocorreram no século XI. Verifica-se
primeiramente uma mudança no sistema de rodízio das culturas.
A repercussão desta prática na produtividade agrícola foi um
aumento de 50% no rendimento das lavouras.
O aumento na produção de aveias e outras forragens permitiu a
expansão da pecuária, pois mais animais poderiam ser
alimentados.
Soma-se a isto a utilização do cavalo em substituição ao boi que se
generaliza tanto na aragem da terra como no transporte.
A maior agilidade do cavalo impulsionou a produtividade
agrícola.
Outras tecnologias também se desenvolveram.
Os arados de osso foram substituídos por equipamentos de
madeira e depois se passou a reforçá-los com pontas
metálicas pelo desenvolvimento da metalurgia.
Novos tipos de adubos são inventados aproveitando-se os
excrementos e restos orgânicos dos animais.
A construção de carroças fora melhorando gradualmente
até se chegar no século XIII aos modelos de quatro rodas
com pivô no eixo dianteiro.
A Primeira Revolução Agrícola corresponde ao período de
intensas inovações tecnológicas na agricultura européia nos
séculos XI a XIII.
Antes a gleba era dividida em duas áreas.
Ao longo do ano, cultivava-se apenas a metade da
terra enquanto a outra permanecia em repouso para
a recuperação de sua fertilidade.
No ano seguinte, a terra em pousio era explorada
deixando-se a outra, que tinha sido cultivada
anteriormente, em descanso.
Começa então, por essa época, a plena difusão entre
os agricultores da nova técnica de duas culturas por
ano.
A terra é dividida agora em três campos.
No primeiro há uma cultura de outono, com colheita na
primavera, em geral plantando-se centeio ou trigo.
O segundo campo é cultivado na primavera com sementes de
aveia, feijão e ervilha, para coleta no próximo outono.
O terceiro campo permanece em pousio ao longo do ano.
No ano seguinte utiliza-se a terra que estava parada, uma das
terras anteriormente cultivadas fica em repouso e assim por
diante, alternando-se os campos.
Com isso, apenas um terço do terreno fica incultivado sem
perda da qualidade do solo.
O excedente de produção permitiu a expansão
demográfica na Europa cuja população cresceu cerca de
três vezes no período, gerando-se assim um excedente
de mão-de-obra.
O enriquecimento de parte da população possibilitou
mercado consumidor para as manufaturas, cuja
produção estabeleceu-se em núcleos urbanos em torno
dos feudos ou que se formaram nas feiras ao longo de
rotas comerciais pelo interior do continente.
Tais aglomerações eram os burgos que viviam à mercê
dos senhores feudais.
Em breve, alguns destes centros transformam-se em
cidades que pouco a pouco foram se livrando da
tutela dos senhores.
O fluxo de manufaturas deu um impulso adicional
ao comércio que vinha se desenvolvendo para os
produtos agropecuários.
O aperfeiçoamento das carroças, a melhoria das
estradas e a navegação costeira e dos rios
permitiram o comércio de longa distância.
No século XI, o fato político das Cruzadas, leva de
europeus que se deslocavam a pé até a Terra Santa
com o fito de expulsar dela os mulçumanos, também
contribuiu para impulsionar o comércio.
A ampliação do comércio foi um fator de desintegração
da sociedade medieval.
Muitas das obrigações mútuas entre o camponês e o
senhor ou mesmo entre os senhores, ditadas pela
tradição medieval, foram sendo substituídas pelo
pagamento em dinheiro de aluguéis e taxas.
Com o aumento da renda dos camponeses, algumas das
obrigações em trabalho são substituídas por pagamentos
em dinheiro.
Outros deveres, como destinar parte da produção ao
senhor, também são transformados em pagamentos.
Com isso, camponeses viram simples arrendatários e
senhores feudais tornam-se meros proprietários de
terra.
Tal processo, no entanto, só se completa ao final da
Idade Média e nos países europeus mais atrasados ele
prossegue até o século XIX.
A transição de um modelo social a outro conheceu
inúmeros sobressaltos.
No fim da Idade Média, a ocorrência de catástrofes era
acompanhada por tentativas de reintroduzir as antigas
obrigações feudais.
A reação dos camponeses, por vezes, resultava em
rebeliões que proliferaram pela Europa. A Guerra dos
Cem Anos (1337-1453) e a Peste Negra dizimaram a
população, aumentando com isso os salários e reduzindo
a renda.
Isso forçava os senhores a buscarem recuperar os direitos
antigos como forma de compensar o prejuízo. O que
tendia a agravar o quadro de conflitos sociais.
As grandes feiras comerciais até o século XIV
permaneceram sob a tutela do senhor feudal.
No último século do período medieval, muitas delas
tinham se transformado em verdadeiras cidades comer-
ciais que conseguiram se libertar do senhor feudal.
Na ausência do poder externo, as cidades buscaram
criar suas próprias instituições. A mais importante eram
as Guildas, corporações que regulamentavam a
produção de manufaturas e as atividades financeiras e
comerciais. Tal instituição também intervia nas questões
sociais e religiosas.
A atividade financeira também se desenvolveu no fim da
Idade Média.
A doutrina cristã era contrária ao empréstimo a juros,
mas a posição oficial da Igreja foi se tornando mais
flexível.
Há passagens bíblicas, no “Deuteronômio”, em que se
condena o juro e, com base na Bíblia, no século IV o
Concílio de Nicea baniu a prática dos juros entre os
clérigos.
No reino de Carlos Magno, a proibição é estendida a
todos os cristãos. A alegação é a de que é injusta a
prática da usura, onde se recebe mais do que é dado.
As leis contra a usura permaneceram por séculos. Nos séculos
XII e XIII, o desenvolvimento econômico estimulou a atividade
financeira.
Aparecem os primeiros banqueiros que recebem depósitos
pagando juros por eles.
A doutrina econômica de cunho moral ia cedendo à prática
econômica e a Igreja passava a influenciar os reis para que
permitissem os juros, mas regulassem o valor cobrado.
Os limites legais variavam de 10% ao ano na Itália a 300% em
Provença. Os reis também passaram a receber fundos
mediante pagamento de juros. Frederico II pagava aos credores
juros de 30 a 40% ao ano, mais do que comerciantes pagavam
pelos empréstimos recebidos dos banqueiros, algo entre 10 e
25%, dependendo do tipo de crédito.
À medida que as cidades comerciais foram adquirindo
autonomia, seus dirigentes procuravam estabelecer um
código legal preciso em substituição ao direito consuetu-
dinário e paternalista do feudalismo.
As transações comerciais e financeiras foram então regu-
lamentadas por uma legislação comercial específica. Tal
legislação permitiu incrementar o comércio, pelas leis de
contrato, legalização das representações comerciais e das
vendas em leilão, e criar novos instrumentos e operações
financeiras, tais como letras de câmbio e outros papéis
negociáveis, câmaras de liquidação de dívidas etc.
É de se esperar que todo esse desenvolvimento da
vida econômica tenha de alguma forma contribuído
para uma melhor compreensão do processo econô-
mico e do funcionamento dos mercados.
De fato, na etapa final da Idade Média (de 1200 a
1500) um avanço não desprezível da análise econô-
mica aparecerá nas reflexões dos padres escolásticos
do período.
O pensamento econômico na Idade Média, no seu
período avançado a partir do século XIII, será de-
senvolvido no interior dos mosteiros onde padres
cultos irão explorar e estender as reflexões econô-
micas preexistentes inspirando-se nas traduções das
obras de Aristóteles.
A mescla da filosofia peripatética com o pensamento
bíblico deu origem à escola escolástica que contri-
bui significativamente para o avanço da reflexão
econômica à época.
Embora ainda envoltos com falácias e precon-
ceitos antieconômicos, os escolásticos alcan-
çam um melhor entendimento dos mercados e
dos fenômenos relacionados de preço, valor e
juro.
Nas questões econômicas, como de fato em to-
dos os aspectos da cultura e da teologia, so-
bressaiu-se o nome de Tomás de Aquino, o
mais importante pensador escolástico do século
XIII, que marcaria com suas idéias todo o
período restante da Idade Média.
Aquino pode ser visto como um divisor de águas entre os
dois períodos medievais que estamos considerando.
A sombra de sua autoridade em filosofia e religião ainda
hoje se faz presente.
Interessa-nos diretamente a geração de grandes mestres
escolásticos entre os séculos XIII e XIV que no bojo de seus
pensamentos disseram algo sobre a economia.
Entre eles destacamos Alberto Magno, Henry de Friemar,
John Duns Scotus, Jean Buridan e Geraldo Odonis.
A estratégia de exposição de idéias dos escolásticos
resulta numa construção teórica edificada por um
método peculiar.
Dela faziam parte argumentos estruturados em ca-
deia dedutiva de raciocínios que procuravam refu-
tar uma posição contrária inicialmente estabelecida,
mais pela lógica, pela fé e com base na autoridade
do que buscando sustentação na experiência.
Os escolásticos preocupavam-se com a questão
moral e ao tratarem de Economia irão se interessar
pelo aspecto da justiça, mais especificamente pela
justiça das trocas ou justiça comutativa.
Como vimos, esta era também a preocupação de
Aristóteles e assim os padres tomam dele o conceito
de reciprocidade nas trocas como ponto de partida a
partir do qual irão se aprofundar, esclarecendo
certos pontos e corrigindo ambigüidades.
O primeiro aspecto a ser ressaltado da reflexão
econômica dos padres medievais é a distinção entre
“ordem natural” e “ordem econômica”.
Isto já se fazia presente séculos antes em Santo
Agostinho.
Aristóteles não separa a economia da ordem natural.
Em analogia, Agostinho acredita que moralmente a
economia não se distingue da ordem natural.
Aceita, entretanto, que por vezes os homens são
levados a valorizar as coisas e ordená-las em impor-
tância não pelo uso do critério legítimo das neces-
sidades naturais, mas pela consideração do prazer
gerado pela posse e usufruto delas.
Na esfera natural, os bens são ordenados pela im-
portância que eles possuem no atendimento de ne-
cessidades fisiológicas naturais, enquanto que no
âmbito das trocas econômicas prevalece o critério
da busca do prazer sensual que não tem diretamente
uma base natural.
Há assim a distinção entre necessidade e prazer em
Santo Agostinho, que terá uma importância no desen-
volvimento do pensamento econômico no século XIX.
Santo Agostinho forneceu também uma interpretação
subjetivista do valor econômico como sendo gerado a
partir das necessidades humanas.
É base de toda reflexão medieval sobre o valor e a
maneira como determinado pensador concebe esta
distinção matiza as posições particulares de cada qual.
Agostinho separa as duas ordens associando-as res-
pectivamente ao atendimento de necessidades naturais
ou, como algo distinto, prazer sensual.
Alberto Magno (1206-1280)
O grande latinista professor de Tomás de Aquino,
também considera que as necessidades humanas diante
da escassez dos bens, a que chama de indigentia, sejam
a medida do valor na ordem natural.
Entretanto, reconhecendo a separação do econômico
em relação ao natural, ele considera que na ordem
econômica as coisas são avaliadas de outra maneira.
Os bens são vendidos em relação ao trabalho (em latim
opus) desprendido na sua obtenção e, sendo assim, o
valor de troca deve corresponder ao custo de produção
(em trabalho e em outras despesas).
Se o preço de mercado de um bem não cobre os
seus custos de produção ele cessa de ser produzido e
se o preço está abaixo desse custo não haverá mer-
cadoria disponível para atender a todos os que a
desejam.
Com isso, Alberto Magno acrescenta uma idéia de
equilíbrio de mercado à noção primitiva de valor em
Aristóteles, enfatizando o lado do custo em detri-
mento do papel da demanda.
A partir do século XIII, os preços começam a ser
tratados como valores de equilíbrio.
Os pensadores identificam uma variável econômi-
ca, no caso de Magno os custos, como sendo a fonte
reguladora do valor.
No entanto, muito tempo restaria até uma clara
compreensão do processo de determinação dos
preços a partir de um modelo sistemático que inte-
grasse as considerações de oferta e demanda.
Tomás de Aquino
Ele rompe com seu mentor ao enfatizar as
necessidades ou desejos humanos em face da
escassez dos bens, ou seja, o conceito de
indigentia em Magno, como sendo o ponto de
partida do valor.
Aquino desconsiderou as diferenças entre
necessidade e prazer, enfatizada para separar a
ordem natural da econômica, e ao negligenciar
essas diferenças ofuscou a análise anterior do
fenômeno das trocas.
A noção tomista de indigentia como fundamento
do valor significa, indiscriminadamente, neces-
sidade humana ou prazer.
Alguma idéia do papel da escassez dos bens
também é importante na determinação do valor.
Pode-se dizer que em Aquino o valor depende da
necessidade ou prazer diante da escassez.
A ordem natural dos bens corresponde ao plano
do criador e discutir a importância relativa que
eles adquirem nessa ordem é prerrogativa da
teologia.
A Economia discute o modo como os homens
avaliam a importância dos bens e Aquino afirma
que o fazem comparando as utilidades atendidas
por cada bem nos respectivos montantes em que
estão disponíveis.
Na esfera econômica, e não na natural como em
Magno, os preços são determinados pela
indigentia.
Magno e Aquino posicionam-se, portanto, em dife-
rentes linhas interpretativas do legado de Aristóteles
Mas as diferenças entre eles devem ser consideradas
apenas uma questão de ênfase.
Ambos interpretam os preços como um processo de
equilibração e encontram uma variável básica regu-
ladora do valor, custos em Magno e indigentia em
Aquino, mas também consideram o papel, embora
secundária, da outra variável em foco.
Mesmo aceitando as similaridades entre eles, é impor-
tante reconhecer que suas nuanças interpretativas da
Ética a Nicômaco, ponto de partida de toda análise do
valor no ocidente, deram origem a diferentes tradições
A introdução do elemento “necessidade” na fórmula
dos preços por Aquino foi um primeiro passo para o
desenvolvimento de uma análise da demanda.
Mas ele ainda estava longe de compreender o meca-
nismo de mercado.
Aquino considerava a economia como estando sub-
metida ao fato moral, mas ele já percebia que as for-
ças de mercado não poderiam ser analisadas exclu-
sivamente pela consideração da noção de justiça.
Começa a aparecer por essa época uma consciência
crescente da autonomia da esfera econômica.
Os padres escolásticos, que sucederam e deram
seqüência ao tomismo, irão trabalhar as considerações
de Aquino até alcançarem um melhor entendimento
da demanda efetiva e do papel dos desejos humanos.
Aquino oscila entre uma compreensão da vida
econômica como um sistema e uma posição moralis
-ta, conservadora e preconceituosa da Economia.
Embora tenda a acreditar que o preço de mercado é
um resultado objetivo de forças impessoais, ele des-
prezava o espírito comercial e acreditava que o
Estado deveria controlar a atividade do comércio
pela imposição de sanções.
A base normativa para o estabelecimento de sanções
era o conceito de preço justo.
Os escolásticos subseqüentes irão interpretar o preço
de equilíbrio no modelo tomista como sendo resultan-
te de um designo divino e equivalente ao preço justo.
O preço justo deve remunerar apenas o suficien
-te para reproduzir a condição tradicional e cos-
tumeira da vida do comerciante, pagando pelo
custo usual de produção, pela distância e tempo
de deslocamento do bem, pelo risco de transpor-
te, bem como pelo tempo e esforço requeridos
na busca do comprador.
Toda prática de preços acima ou abaixo do valor
justo seria uma iniqüidade, uma prática ilícita
que deveria ser combatida a qualquer custo.
O valor impessoal de mercado, determinado pelo
balanço das indigentia, deveria de alguma manei-
ra corresponder ao preço justo.
Mas a relação entre um conceito e outro não é
bem esclarecida por Tomás de Aquino.
O preço justo era definido com base nos custos,
enquanto que o preço teórico, em Aquino, fun-
damentava-se no lado da demanda.
Isto não quer dizer que a análise do preço justo
seja objetiva, pois tal noção enfatiza os sacrifícios
do vendedor pensados também em termos subjeti-
vos, como significando os sacrifícios que o produ-
tor avalia estar incorrendo.
As considerações econômicas tomistas não se limi-
tam à questão teórica do valor. Aquino teceu inú-
meros comentários éticos sobre a vida em sociedade
Todas as relações econômicas e sociais para ele
emanam da providência divina.
A divisão social de trabalho e papéis individuais é
necessária e para tanto se tornam indispensáveis as
distinções socioeconômicas, que todos os homens
devem aceitar.
Os que são agraciados pela riqueza devem usá-la para
prestar serviços à sociedade.
A riqueza e a instituição da propriedade privada são justi-
ficadas como uma condição para a assistência aos pobres.
O homem rico que não presta serviços à sociedade deve ser
nivelado ao ladrão comum.
Para inibir a acumulação desenfreada de riquezas, a usura
deve ser proibida, pois o juro é o ganho à custa dos seme-
lhantes.
Assim, Aquino mistura uma ética conservadora e antieco-
nômica com uma percepção da impessoalidade da esfera
econômica, o que gera tensões em seu pensamento e ele-
mentos de difícil reconciliação.
Um passo importante no aprimoramento das idéias de
Aquino para uma melhor compreensão da demanda de
mercado foi dado por Henry de Friemar (1245-1274).
Sabemos que a moderna noção econômica de demanda é
agregativa, no sentido de que considera o desejo de todos
os compradores que participam do mercado.
No entanto, o conceito tomista de indigentia refere-se ao
indivíduo isolado. Friemar estendeu tal conceito ao
concebê-lo como uma medida agregada que engloba a
somatória das quantidades desejadas por muitos
indivíduos.
Indo além na análise, ele diz que o valor depende dessas
quantidades em relação ao que está disponível no mercado,
ou seja, depende da demanda em face da escassez.
Um bem pode apresentar um preço baixo mesmo diante de
forte demanda se houver abundância dele.
Friemar percebe, com clareza, que o preço é um fenômeno
que depende também da oferta e de certa forma ele incorpo-
ra esse lado quando diz que o valor é determinado pelas
“necessidades comuns de algo escasso”.
No entanto, ainda está longe de um modelo satisfatório dos
mercados, por não possuir as ferramentas desenvolvidas
pelos marginalistas do século XIX.
A associação entre indigentia e preço justo ensejou
numerosas controvérsias na Idade Média que procu-
raram reconciliar o modelo teórico tomista de deter-
minação do valor pelo balanço das indigentia com a
norma moral do preço justo
Johannes Duns Scotus (1265?-1308)
Tentativas de revisão do conceito, no sentido de melhor
adaptá-lo como preceito moral, apareceram em
Johannes Duns Scotus.
A crítica de Scotus começa por questionar se o desejo
deve sempre ser o determinante fundamental do valor.
Diz que algo não é precioso em si mesmo só porque a
preferência do comprador é forte.
Haveria nesta concepção um elemento de imoralidade,
pois, é errado querer tirar vantagem dos desejos intensos
do comprador, como quem negocia drogas a preços
elevados explorando o desejo intenso do viciado.
O conceito de preço justo leva em conta os custos e
os sacrifícios do vendedor e uma parte desses sacrifí-
cios é avaliada subjetivamente por ele.
Ora, é justo que quem incorra em maiores sacrifí-
cios, ou que assim pensa fazê-lo, possa receber mais
pela mercadoria.
Se o preço justo levasse em conta apenas um nível
ordinário de sacrifício, os mais eficientes (menos sa-
crifício) não poderiam cobrar um preço abaixo da
concorrência; os mais ineficientes teriam que rece-
ber abaixo do sacrificío, o que não seria justo.
O que dizer de quem produz a sacrifícios acima ou abaixo
da média?
A noção de preço justo seria determinada caso a caso e um
a lei que controlasse os preços com base nesse critério de-
veria ser bastante flexível e observar cada contexto, o que
de fato não ocorria na época.
Há ainda uma outra questão, se concordamos com Scotus,
que o vendedor não pode repassar aos preços o desejo ar-
dente do consumidor por não ser justo, então por que é
justo que ele repasse aos preços o seu próprio desejo de ser
remunerado pelo sacrifício?
As questões levantadas por Scotus levaram Jean Buridan,
reitor da Universidade de Paris, a dar um grande passo na
evolução da teoria escolástica do valor.
Pensador escolástico que teceu um grande núme-
ro de comentários à obra de Aristóteles, contri-
buiu para o avanço da reflexão econômica com
algumas revisões de conceitos.
Ele percebeu que a solução dos problemas levan-
tados por Scotus demandava uma nova interpre-
tação da noção de desejo.
Como Friemar, ele formulou a idéia de desejo
agregado como o determinante da demanda efe-
tiva e, em última instância, do valor econômico,
levando–se em conta também o poder de compra
dos consumidores.
Diferentemente dele, entretanto, o conceito de
indigentia em Buridan também se aplica à luxúria
e não apenas às necessidades naturais.
A somatória dos desejos, qualquer que seja a sua
natureza, o poder de compra dos demandantes e a
situação de oferta determinam simultaneamente o
estabelecimento de um estado de negócios justo ou
normal.
“O mercado é o melhor juiz do valor” e quando
para lá acorremos consideramos a avaliação do
mercado sem intervir nele.
Buridan aproxima sua análise do modelo moderno do
mercado de concorrência e sua visão viria a afetar o pen-
samento econômico na Europa continental, mais que na
Inglaterra.
A pobreza é a condição de quem não tem o que deseja,
mas uma vez provido de recursos financeiros o pobre
consegue sancionar a sua demanda, que irá depender
também da utilidade que atribua ao bem.
Buridan diz que a utilidade é uma experiência psicológica,
mas ele enfatiza também as propriedades que os bens pos-
suem e que nos levam a desejá-los.
A sua análise conduziu, seis séculos depois, ao moderno
conceito de utilidade marginal.
Há um entendimento crescente ao longo da Idade
Média de que o valor é um conceito que depende
tanto dos custos de produção, destacadamente do
trabalho, quanto de fatores de demanda, tais como
necessidades, desejos, indigentia e renda dos consu-
midores.
Friemar e Buridan já caminharam em direção a uma
síntese entre os dois lados da oferta e demanda.
No começo do século XIV, passos importantes em
direção à síntese, que só seria completada muito
depois, foram dados pelo escritos do monge francês
da ordem franciscana Geraldo Odonis (1290-1349).
Ele percebeu que o trabalho humano é um compo-
nente importante para o valor, mas que essencial-
mente o valor dos bens é conferido pela sua rarida-
de (em latim raritas).
A raritas mede o grau de escassez do bem em face
das necessidades.
É o inverso do conceito de indigentia que avalia as
necessidades diante da escassez e essa inversão tem
como conseqüência deslocar a atenção teórica dos
desejos humanos para a disponibilidade do bem.
Para Odonis, a teoria de Alberto Magno, que via
o valor na quantidade de trabalho, é unilateral,
pois não enfatiza a relação do trabalho com a
escassez, este sim o verdadeiro fundamento do
valor.
Primeiramente, é preciso notar que os trabalhos
diferem entre si no que tange à sua qualidade.
O que determina as nuanças de qualidade no
trabalho é o grau de eficiência a depender das
diferentes habilidades produtivas dos homens.
Odonis cria uma teoria também para explicar as
diferenças de salários.
Munidos de diferentes habilidades, os homens se
situam dentro de um espectro de eficácias relativas,
adquiridas a um custo diferenciado.
Como todo tipo de trabalho é escasso, dada a escas-
sez de habilidades, os produtos obtidos por ele tam-
bém o são.
O trabalho escasso, ao restringir a produção de
bens, gera a escassez. É por isso que o trabalho re-
gula o valor.
Tanto a teoria dos custos quanto a da demanda são
componentes de um princípio único no modelo de
Odonis.
Embora falte uma maior articulação analítica de c
onceitos, a solução de Odonis destaca-se por procu-
rar uma síntese de conceitos que incorpora deman-
da e custos na questão do valor.
Modelos como esse, que integram os dois enfoques,
cairão em certo esquecimento no século XVIII pela
ênfase unilateral dos economistas ingleses na teoria
do valor-trabalho.
Lado dos custos Aristóteles Lado da demanda
Reciprocidade
Tomás de Aquino
Alberto Magno
Indigentia e preço
Trabalho e despesas
justo
Jean Buridan
Demanda efetiva,
utilidade e mercado
Geraldo Odonis
Raritas e
habilidades do trabalho