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O ESPELHO DO MUNDO

a história de um asilo
De que iracundo deus cumprindo o aresto venho?

Nada, apenas a dor; que deseja o demente?

que quer na vida, mais que o pesado lenho

que há de arrastar, gemendo e só, eternamente?

Isto mesmo: soffrer: soffre, pois. A tu’alma

se afinará na dor, crysol da amargura;

não mais peças e sonhes, e o teu peito acalma.

"Fragmentos poéticos de um degenerado epiléptico” (ANÔNIMO, 1905)


• Novos personagens invadem a cena, trazidos
à tona por uma psiquiatria de raiz
organicista, que buscava implantar um
aparato institucional voltado para a
“regeneração moral” e que, em última
instância, lançava-se de corpo e alma às
tarefas da disciplinarização e assepsia moral
da cidade.

• Indivíduos “a caminho" da loucura, neles não


se teme a agressão, o delírio, o desatino,
mas a insubmissão, a rebeldia, a
"extravagância”: a maçã podre que
contamina as demais, para cuja identificação
um olhar clínico se faz indispensável.
• O hospício não abriga apenas esta categoria: a presença do louco "comum” — o delirante,
o agressivo, o acometido de problemas orgânicos evidenciados em sua postura corporal,
etc. — reforça e, de uma certa maneira, legitima a internação dos primeiros, equiparados
todos no interior da vida asilar.

• De resto, a própria rotina do hospício encarrega-se de torná-los crescentemente parecidos,


até que não haja qualquer diferença fundamental nos rostos e corpos aniquilados.
Florinda, viúva, 58 anos, negra e semi-analfabeta, ao
seu filho "Tonico”:
"(...) A iducação do lar não te fartou e a estrução que chegou
escureceste a luz mais clara, eu aqui como indigente para
mais depresa a vida findar. Inbarquei no carro da Segurança
publica acompanhada de dois sordados paizanos (.. . ).
Tu pagou o leite que mamou as dores que sofri e noites
malpasadas. A qui no degredo incarserada viajei em vagão
de criminoso..........Deos mi deu olhos e não mi deu lágrimas
as lágrimas são tuas. Qui si acabe essa mardita e mal
fadada apirsiguição qui este poco resto de vida mal tratada
quero morer fora da prizão quero sortar aultima respiração
num canto sucegada.... Guarde esta para algum dia
lembrarse de mim”.
“Cher maman, ne m’oublier pas.
Je ne suis pas malade. La maladie
c'est la faute de vos visites”

“Querida mãe, não se esqueça de


mim. Eu não estou doente. A
doença é a falta de suas visitas”

Alzira, 23 anos, branca, solteira,


pensionista, em carta à sua mãe —
em francês, como as moças mais
instruídas e educadas:
“Exame psíquico: Conhece
algumas letras.. Atende muito
bem o que se lhe diz,
compreendendo dentro do
acanhamento de sua rudimentar
inteligência.
Reconhece, o meio em que se
acha, mas não explica por que e
quando foi para aqui enviada;
disse-nos que sofre há dois ou
três anos de ataques de forma
convulsiva; que estava
empregada em casa de uma
família e foi com surpresa que se
viu um dia nesta casa. . .
Dedução diagnóstica: Epilepsia”
• “A sua entrada neste hospício foi motivada por desregramento da vida:
noitadas nos cassinos ao lado de mulheres mundanas, tornando-se
perdulário (...). Trata-se de um indivíduo tarado, que desde criança foi
insubmisso aos seus superiores (...) Depois de púbere foi um degenerado
moral. É um degenerado sujeito a episódios delirantes diversos: (...)
humor alegre (exaltação maníaca), extravagância e prodigalidade, bem
visível embotamento dos sentimentos éticos, com conservação aparente
do raciocínio e da lógica”.
“(...) Frequentou o colégio, onde aprendeu a ler e escrever. Não consta que houvesse
padecido de moléstias graves. Foi sempre um pouco débil de constituição, como de
regra sucede com os mestiços entre nós.

Por morte de seu progenitor é que começa a sua história mental propriamente dita.
Usufruindo um pequeno rendimento de herança, entregue a si mesma, começou a
revelar-se incapaz de gerir seus bens, que dissipava sem conta.

Um pouco mais tarde, sua conduta entrou a manifestar singularidades. Certa vez,
comprou trajes masculinos e saiu a viajar neste estado. Foi reconhecida como mulher
e presa pela polícia (...).

Achamos, pelo exposto, que se trata de uma degenerada fraca de espírito em que se
vai instalando pouco a pouco a demência".
“Nossa doente é a última filha nascida e como tal sempre habituada a mimos e
carícias excessivas. Muito inteligente, estudou na Escola Normal, onde
salientou-se, recebendo sempre os maiores elogios, que a tomaram orgulhosa.
Realmente os merecia, pois três anos após sua formatura foi nomeada diretora
de grupo escolar em Santos. Ali, sempre se distinguiu, multiplicando a sua
atividade. (...)
Por uma futilidade, desgostou-se e pediu remoção para Araras; achou o meio
muito acanhado para o seu talento e abandonou o lugar.
Trabalhava demais: havia uma hiperexcitação intelectual; escrevia livros
escolares que julgava modelos; fundava escolas noturnas; comprava livros e
livros para ler; já neste tempo tornara-se completamente independente: não
admitia intervenção ou mesmo conselhos dos pais ou irmãos mais velhos;
confiava exclusivamente em si (...)".
Prontuário.
Eunice C., trinta anos, solteira, professora, procedente da capital,
internada em 11-1-1910.
55 anos, dos 76, no Hospital
Psiquiátrico do Juquery
• Repórter – Onde é melhor a comida: aqui ou no
Juquery?
• Maria Celestina – Juquery.
• Repórter – Lá era mais gostoso?
• MC – Era.
• Cinco segundos depois:
• Repórter – Onde era mais gostosa a comida: no
Juquery ou aqui?
• MC – Aqui.

https://www.metropoles.com/brasil/adeus-juquery-a-nova-vida-dos-ultimos-
moradores-do-manicomio-mais-antigo-do-pais

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