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Após a finitude – Cap.

2: Metafísica, fideísmo, especulação


• Após a introdução da ancestralidade de enunciados científicos como um verdadeiro problema
filosófico, que exigiria o retorno do absoluto, Meillassoux deve apresentar neste capítulo as
duas grandes vertentes em que é possível dividir a grande tendência desabsolutizadora da
filosofia, o correlacionismo, para que o seu absoluto passe por seus testes: o correlacionismo
fraco, de Kant, e o correlacionismo forte, que atravessaria boa parte da filosofia
contemporânea, e cujos maiores representantes seriam Wittgenstein e Heidegger.
• A tarefa é dupla, além de passar nos testes do convincente correlacionismo, ele deve também
evitar cair no realismo ingênuo e dogmático da velha metafísica pré-crítica, diferentemente do
que pode ter parecido ao retoricamente defender as qualidades primárias do ser em si.
• A defesa cartesiana das qualidades primárias, como a existência absoluta da substância
extensa, dependia da prova ontológica da existência de Deus, este como um absoluto primeiro
do qual o alcance absoluto da matemática seria deduzido como um “absoluto derivado”.
Como Meillassoux quer seguir a forma desta derivação, ele deve mostrar como a prova
ontológica cartesiana de fato não resiste à crítica do correlacionismo fraco de Kant, antes de
apresentar a versão forte da recusa ao absoluto própria ao correlacionismo contemporâneo.
AF – Cap. 2: Metafísica
• Apesar de parecer que a prova ontológica seria facilmente refutável pelo argumento do
circulo correlacional, já que a necessidade absoluta da existência de Deus sempre seria não
uma necessidade em si, mas somente para nós (um Deus enganador poderia nos fazer
acreditar nessa necessidade, por exemplo), Kant não teria seguido este caminho (o da versão
forte).
• O correlacionismo fraco de Kant ataca a ideia fundamental da prova cartesiana de que um
Deus inexistente é contraditório, pois quer manter a pensabilidade da coisa em si, sua
concordância com as leis lógicas, como o princípio de não contradição, apesar da recusa de
sua cognoscibilidade. Porém, Kant não teria dado o alcance ontológico absoluto que deveria
às leis lógicas, afirmando que a coisa em si mesma não é contraditória, e à afirmação da
existência da coisa em si, já que é condição do fenômeno (afirmações implícitas, apesar de
problemáticas, que o aproximariam do realismo especulativo).
• Com a ideia de que o ser nunca pode ser um predicado, mas somente uma cópula entre
sujeito e predicado (posição), não é possível extrair o ser de algo por meio da análise lógica
dos predicados contidos em seu conceito. Deste modo, Kant teria refutado qualquer
demonstração da necessidade absoluta de um ente determinado, justamente aquilo que todo
dogmático buscou realizar, seja como átomo, Deus, alma, substância, etc. (um ser
AF – Cap. 2: Metafísica e Especulação
• A recusa kantiana da prova do ser absolutamente necessário é também uma recusa do
principio de razão suficiente, de que todo fato, coisa ou evento deve ter uma razão
necessária para ser assim e não de outro modo. Isso porque não apenas cada ente
demanda uma razão, mas também a totalidade incondicionada dos entes. Para que não
caiamos em uma regressão ao infinito, já que cada razão última do mundo também
deveria ela mesma possuir uma razão de ser, a prova ontológica fornece uma razão
incondicionada, já que a determinação do ser necessário envolve sua existência, ele é
razão de si mesmo.
• Assim, a rejeição de toda metafísica dogmática envolve a recusa da razão suficiente
e da prova ontológica que a sustenta, no que Meillassoux segue Kant. No entanto,
diverge de Kant em sua defesa do caráter especulativo do pensamento, que este possa
ter acesso a um absoluto não dogmático:
• ”Chamaremos de especulativo todo pensamento que pretenda ter acesso a um absoluto
em geral; chamaremos de metafísico todo pensamento que pretenda ter acesso a um
ente absoluto (...) Se queremos conservar um sentido aos enunciados ancestrais, sem
com isso voltar ao dogmatismo, devemos descobrir uma necessidade absoluta que não
AF – Cap. 2: Fideísmo (1)
• A filosofia transcendental kantiana é um correlacionismo fraco, pois não proíbe toda relação
do pensamento com o absoluto, já que proscreve apenas o conhecimento da coisa em si, mas
não sua pensabilidade. No correlacionismo forte a coisa em si não é somente incognoscível
como é também impensável (posição que por fim identificará à realização última do
fideísmo). Tanto o principio de não contradição, que sustentava a pensabilidade da coisa em
si, como a sua existência mesma já não são tomados como condições últimas da correlação.
Ele interdita de modo mais rigoroso a possibilidade de pensar o que há quando não há
pensamento. Duas decisões o caracterizariam:
 A primeira decisão é a ”de todo correlacionismo: a tese da inseparabilidade essencial do conteúdo
do pensamento e do ato do pensamento”. Serve para desqualificar todo absoluto realista ou
materialista, ou seja, em que uma entidade sem pensamento possa operar como realidade absoluta,
como o átomo e o vazio no epicurismo. ”É impensável abstrair do real o fato de que se dá sempre-já
a um ente”.
 A segunda decisão não se refere mais diretamente ao correlato, mas à facticidade do correlato. Ela
serve para desqualificar um outro absoluto, mais sutil do que aquele materialista: a própria
correlação tornada absoluta. Esta seria uma saída após afirmar a impensabilidade do em si e, já que
assim não seria verdadeiro, sua existência seria suprimida em favor da relação sujeito-objeto.
Sempre haveria uma instância subjetiva hispostasiada, seja como termo intelectivo, consciente ou
vital, como o espirito hegeliano, a vontade schopenhauriana, vontade de potência em Nietzsche, a
AF – Cap. 2: Fideísmo (2)
• Contra a absolutização da correlação, o correlacionismo forte afirma a facticidade do correlato. Parte
novamente de Kant, para quem as formas puras do conhecimento fenomênico (sejam sensíveis ou
intelectuais) só podem ser descritas, e não deduzidas, como quer Hegel, o que neste caso lhes conferiria
uma necessidade incondicionada que as tornariam indistinguíveis da coisa em si. É a facticidade das
formas correlacionais que distingue o idealismo transcendental do idealismo absoluto. Contudo, Kant
não concede tal facticidade à forma lógica, ao princípio de não contradição, concessão que é feita pelo
correlacionismo forte, que defende que a lógica formal também só pode ser descrita como um fato, e
não racionalmente deduzida.
• Meillassoux distingue facticidade de contingência, já que esta diria respeito ao que pode acontecer ou
não dentro de um mundo, ao passo que a facticidade diz respeito às invariantes estruturais do próprio
mundo, refere-se a nossa ignorância do dever-ser assim de essa estrutura correlacional. Assim, a
facticidade assinala o limite instransponível do fato de que há um mundo, que poderia ser Todo-Outro,
uma marca essencial de nossa finitude e ignorância sobre o que está para além do círculo correlacional.
”É impensável que o impensável seja impossível”.
• As maiores correntes da filosofia contemporânea comporiam o correlacionismo forte, filosofia analítica
e fenomenologia: No Tractatus de Wittgenstein a forma lógica do mundo não pode ser dita, mas apenas
mostrada, um aspecto místico vinculado a impossibilidade da ciência explicar a facticidade do mundo,
que há mundo. Heidegger apontou como falha íntima da representação, o próprio fato de haver o ente e
a doação do ente, que haja ente é uma maravilha que escapa à soberania da lógica e da metafísica.
AF – Cap. 2: Fideísmo (3)
• ”Em suma: o modelo fraco sustentava uma desabsolutização do principio de razão, desqualificando
toda prova de necessidade incondicionada; o modelo forte sustenta, além disso, em nome de uma
desqualificação acentuados princípios de razão, uma desabsolutização do princípio de não
contradição, submetendo toda representação aos limites do círculo correlacional. Identificamos,
assim, as duas operações inerentes à justificação contemporânea para renunciar ao absoluto: não
somente o primado do correlato contra todo ’realismo ingênuo’, mas a facticidade do correlato contra
todo ‘idealismo especulativo’”.
• Com esta identificação das operações próprias do correlacionismo fraco e forte para renunciar ao
absoluto, a função argumentativa do capítulo, de preparo para uma recuperação do absoluto que passe
no teste do correlacionismo, já está realizada. No entanto, antes do comentário final sobre o aspecto
fideísta do correlacionismo forte, Meillassoux ainda ressalta que é possível ver duas vertentes deste:
1. Os filósofos que defendem que a desabsolutização do pensamento não implica em sua
desuniversalização, que seriam mais fieis à tradição criticista, mas que pensaria a universalidade do
principio de não contradição, por exemplo, como ”uma condição universal da dizibilidade do dado,
da comunicação intersubjetiva”, como norma meramente do pensável, mas não do possível; e 2. Os
filósofos que defendem que a desabsolutização do pensamento implica em sua desuniversalização,
partidários da finitude radical ou pós-modernidade, para os quais a universalidade é um resto
mistificador da velha metafisica, e as nossas correlações com o mundo são elas mesmas situações
finitas, uma época determinada da história do ser ou uma forma de dotada de jogos de linguagem
AF – Cap. 2: Fideísmo (4)
• Por fim, o capítulo se encerra com a defesa de Meillassoux de que ”o fim da metafísica, ao afastar a
razão de todas as suas pretensões ao absoluto, assumiu uma forma de um retorno exacerbado do
religioso”. Um kantiano ainda teria que defender a não contradição da trindade ou de sua crença
religiosa, ao passo que para o correlacionismo forte, a razão não pode dizer nada sobre o absoluto, já
que nem mesmo as leis da lógica formal estariam fora da facticidade do circulo correlacional. Daí que
”ser e pensamento devem ser pensados como podendo ser totalmente diferentes” na versão forte, o que
pode parecer uma quebra da correlação, mas somente decorre da afirmação radical da facticidade da
correlação ser-pensamento, da nossa incapacidade de pensar para além da correlação dada.
• A recusa da pretensão de pensar o absoluto não implicaria no fim do absoluto, mas somente no fim da
justificação racional-metafísica de uma religião que almejava realizá-la contra outras religiões. Desse
modo, somente a crença, e não mais a razão, seria a única via possível de acesso ao absoluto. Tal é a
posição do fideísmo, que nada mais é do que um ceticismo utilizado em favor da fé. Diferentemente da
visão em que o fideísmo foi um precedente ainda religioso do ceticismo antimetafísico, para
Meillassoux, o próprio ceticismo contemporâneo é que seria a realização autêntica do fideísmo
religioso, agora emancipado de todo culto particular. Ao sair da esfera da metafísica, o absoluto teria se
fracionado na multiplicidade indiferenciada de crenças. ”O moderno é aquele que se religionizou à
medida que se descristianizava (...) se entregou de corpo e alma à igual legitimidade veritativa de todos
os cultos (...) fideísmo é o outro nome do correlacionismo forte”. A dimensão fideísta mostra que a
recuperação especulativa do absoluto vai além do problema teórico da ancestralidade e se endereça
também à critica prática da da crença cega baseada no fanatismo cético.
Brassier sobre este cap. 2 (Correlation, Speculation, and the Modal Kant-Sellars
Thesis)
• Ray Brassier descreve da seguinte forma os ”3 estágios dialéticos” que levam ao realismo
especulativo de Meillassoux, apresentados neste capítulo:
• 1. Weak correlationism (Kant): we can know the for-us but we can only think the in-itself.
• 2. Speculative idealism (Hegel): we can know that what is for-us is also in-itself.
• 3. Strong correlationism (Meillassoux has in mind post-metaphysical philosophy broadly construed: not only
Habermasian, but Nietzschean, phenomenological, deconstructionist, and pragmatist): the speculative identification
of the for-us with the in-itself is only for-us.

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