Aula9 Molloy Roteiro

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Literatura e história no XX e no XXI,

séculos de desassossego

Aula 9
Corpo e doença: Sylvia Molloy

História da Cultura 3
Primeiro semestre de 2023
Daniel Balderston, Sylvia Molloy, María Luisa Vásquez, Emily Geiger, 1991. (Arquivo pessoal: Daniel Balderston)
Sylvia Molloy (1938-2022)

Ficção:
Em breve cárcere (1981; edição brasileira: Iluminuras, 1995)
El común olvido (2002)
Vária imaginação (2003; edição brasileira: Editora 34, 2022)
Desarticulações (2010; edição brasileira: Editora 34, 2022)
Viver entre línguas (2016; edição brasileira: Relicário, 2018)

Ensaística (alguns títulos):


Las letras de Borges (1979)
Acto de presencia: la literatura autobiográfica em Hispanoamerica (1997)
Hispanisms and Homosexualities (com Robert McKee Irwin, 1998)
Poses de fin de siglo: desbordes del género em la modernidade (2013)
Sylvia Molloy (1938-2022)

-crítica cultural, ficcionista

-professora: Yale, Princeton (primeira mulher a se tornar titular), NYU


Memória e identidade

Juntos, fatos e momentos significativos criam a narrativa da sua vida e da


sua identidade. A memória lhe permite ter uma noção de quem você é e de quem
você foi. (Genova, p. 9)

-memória dos fatos significativos


-memória da rotina
-memória temporária
-memória dos sentidos (aromas, sabores, rostos, texturas, sons, etc.)
-memória corporal
-memória e linguagem: construção e significação
-memória organizada e sistematizada: narrativas pessoais (sem necessária
fidelidade ao que foi vivido)
-esquecimento e capacidade de abstração
Construção (neurológica) da lembrança

Codificação: cérebro capta os vislumbres, os sons, a informação, a


emoção e o significado daquilo que você percebeu e a que prestou
atenção, e traduz tudo isso em linguagem neurológica.
Consolidação: cérebro une o agrupamento de atividade neural, antes
sem relação, num padrão singular de conexões associadas. (Hipocampo
interliga as lembranças. É o “tecelão da memória”.)
Armazenamento: esse padrão de atividade é mantido ao longo do
tempo por meio de transformações químicas e estruturais nesses
neurônios.
Recuperação: pode-se, através da ativação dessas conexões associadas,
revisitar, recordar, saber e reconhecer o que aprendeu e vivenciou.
(Genova, p. 19-20)
Doença como (metáfora e) representação

-doença como mistério: “Enquanto sua causa não foi compreendida e os


tratamentos prescritos pelos médicos continuaram ineficazes, a tuberculose foi
considerada um traiçoeiro e implacável ladrão de vidas.” (Sontag, Doença como
metáfora, p. 12)

-história da metaforização das doenças:


- expressão de punição (peste, lepra, Aids)
- resultado de um eu interior (espírito romântico na tuberculose, somatização
no câncer) (Sontag, Doença como metáfora, p. 44 e ss.)
- “idealização da demência” (como ocorreu com a sífilis): fantasia de que “a
doença mental é fonte de criatividade artística ou originalidade espiritual.”
(Sontag, Aids como metáfora, p. 95)
Doença como (metáfora e) representação

Sontag:
o entendimento psicológico mina a realidade da doença. [...]
Uma grande parcela da popularidade e da persuasão da psicologia
advém de ser um espiritualismo sublimado: um modo secular e
ostensivamente científico de assegurar a primazia do ‘espírito’ sobre
a matéria.
(Doença como metáfora, p. 51)
Alzheimer como representação

- senso comum não associa diretamente Alzheimer à morte (como


ocorria com tuberculose ou câncer)

- narração do Alzheimer é sempre externa e orientada pela percepção


da desarticulação alheia
Alzheimer como representação

- preservação do corpo:
- correspondência com ideais de “normalidade”: formas, proporção,
aparência regular (Sant’Anna, Corpos de passagem, p. 44)
- “modelo corporal legível e legitimado” (Ostrov, p. 258)

- não-deformação do rosto
- Sontag: “por mais letais que sejam, as doenças que, como as do
coração ou a gripe, não danificam nem deformam o rosto jamais
provocam o terror mais profundo” (Aids como metáfora, p. 109)

- perda de domínio da linguagem: limite da expressividade e da capacidade


cognitiva
Desarticulações: linguagem e subjetividade

- “Para ML., que ainda está” (dedicatória): desintegração progressiva da subjetividade

- perda de palavras, invenção de palavras (jucujucu): puro significante (letras devem


coincidir com número de dedos das mãos, sem que a palavra produza qualquer
significado)

Ostrov:
Uma série de perguntas percorrem o texto: no que consiste, onde reside a
subjetividade? O que permanece quando as lembranças e as palavras se apagam,
quando se perde a possibilidade de reconhecer(-se)? Até que ponto a categoria do
‘humano’ pode ser interpelada se humanidade e linguagem são pressupostos mútuos?
(p. 259)
Desarticulações: fragmentação

- fragmentação como princípio construtivo do relato: equivalência em relação à


fragmentação das lembranças provocada pela doença

- fragmentação no espaço (lugares diversos) e no tempo (períodos diversos): histórias


dissociadas – o que articula os vários breves relatos?

não escrevo para remendar buracos e fazer crer a alguém (a mim mesma) que não
houve nada, mas para atestar incoerências, hiatos, silêncios. Essa é a minha
continuidade, a do escriba. (Desarticulações, p. 18)
Desarticulações: fragmentação

-Ricœur: condição corporal é mediação existencial entre si e o mundo

Ricœur:
Conforme o relato [das ficções de perda de identidade] se aproxima do
ponto de anulação da personagem, o romance também perde suas qualidades
propriamente narrativas. À perda de identidade da personagem corresponde [...]
a perda de configuração do relato e, em particular, uma crise do fechamento do
relato. (p. 152)
Desarticulações: narradora e personagem

-narradora externa e comprometida/envolvida

-precariedade subjetiva: narradora, protagonista e personagens referidas apenas pelas iniciais

Como diz eu quem não lembra, qual é o lugar de sua enunciação quando a memória se desfiou?
(Desarticulações, p. 12)
Desarticulações: narradora e personagem

- necessidade e urgência do relato (perda iminente e irreparável):

Tenho que escrever estes textos enquanto ela ainda está viva, enquanto não houver morte ou
encerramento, para tentar entender esse estar/não estar de uma pessoa que se desarticula
diante dos meus olhos. Tenho que fazer isso para seguir adiante, para fazer durar uma relação
que continua apesar da ruína, que subsiste, ainda que mal restem palavras. (p. 9)

- primeiro fragmento: “Desconexão”


- último fragmento: “Interrupção”
Desarticulações: narradora-personagem

- pronome de tratamento: tu ou vos

- “liberdade narrativa”: falta de testemunhos da vida em comum (p. 13)

- registro linguístico próprio: as palavras que ninguém mais usa (p. 29-30)

- deslocamento amoroso (além do deslocamento temporal e espacial)

- “nomes secretos”: apelidos recíprocos que não voltam na desarticulação (“censura do despeito”, p. 20)
Desarticulações: narradora-personagem
-paralelos, diferenças:
- ambas quebram a perna: narradora não se lembra de nada
- listas que ambas elaboravam e nenhuma delas consultava
- destruição da subjetividade da personagem afeta a narradora

- movimentos da narradora, imobilidade da personagem


- “exacerbação da memória da narradora”:

Eu me pergunto se a perda de memória de ML. tem algo a ver com a exacerbação da minha. Se de algum
modo estou compensando, provando a mim mesma que minha memória lembra, lembra mesmo quando não
quer lembrar. Eu me pergunto também se não terá acontecido isso com ML., se ela terá padecido também
dessa profusão de memória, dessa contaminação entre presente e passado, antes de começar a perdê-la.
(Desarticulações, p. 26)
Desarticulações: morte no umbral

- Simón & Raso: Desarticulaciones é o relato de um luto contínuo, de uma morte “no umbral”, da “morte não como
acontecimento”:
“[relato de] uma morte que ainda não aconteceu e de uma vida que, como narrativa, ainda não tem desenlace.” (p. 38)

Barthes:
Há um tempo em que a morte é um acontecimento, uma ad-ventura, e como tal mobiliza, interessa, tensiona, ativa,
tetaniza. E depois, um dia, já não é um acontecimento, é uma outra duração, comprimida, insignificante, inenarrada,
abatida, sem apelo: verdadeiro luto insuscetível de qualquer dialética narrativa.
(p. 48, entrada de 15.11.1977)
Inquietude

Barthes:
Meu espanto – e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma
falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no
coração do amor.
(p. 63, entrada de 24.11.1977)
Sem significação, sem interpretação

Barthes:
Agora, por vezes sobe em mim, inopinadamente, como uma bolha que estoura: a constatação: ela já não
existe, ela já não existe, para sempre e totalmente. É fosco, sem adjetivo – vertiginoso porque insignificante (sem
interpretação possível).
(p. 75, entrada de 7.12.1977)

Interrupção
Sinto que deixar este relato é deixá-la, que ao não registrar mais meus encontros estou negando algo a ela, uma
continuidade da qual só eu, nessas visitas, posso dar fé. Sinto que a estou abandonando. Mas, de algum modo, ela
mesma está se abandonando, então não me sinto culpada. Ou quase.
(Desarticulações, p. 31)

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