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O PAPEL DA FILOSOFIA JUNTO À BIOÉTICA

Marco Antonio Oliveira de Azevedo*


marco.azevedo@ipametodista.edu.br

A filosofia moral é usualmente dividida em metaética, teoria moral e


ética prática ou aplicada. Destas, a metaética é considerada a parte
filosófica por excelência. Stephen Darwall, em sua comunicação ao XX
Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Boston, em 1988, refletiu
sobre a seguinte questão: se a Metaética é a parte especificamente
filosófica da Ética, por que (ao menos assim ocorre nos Estados Unidos)
a Ética ainda é alocada junto a Departamentos de Filosofia (Darwall,
1999)? Considere-se o caso da Física. Filósofos não estudam (ao menos
não como filósofos) Física, e sim “Filosofia da Física”. A física teórica é
uma disciplina distinta e independente da filosofia. Ora, em sentido
análogo, apenas a Metaética é a “Filosofia da Ética”. Por que, então,
deveríamos assumir que a Ética, entendida aqui como “teoria ética”,
“ética teórica” ou mesmo como “teoria ética normativa”, assim como a
parte hoje conhecida por “ética aplicada”, seria ou deveria ser
considerada uma parte (não independente, portanto) da Filosofia?
A conclusão de Darwall foi de que, ao contrário das ciências naturais e
sociais, a Ética não gira fora da filosofia, e nem deveria! A razão seria
que questões normativas não são inteiramente independentes de
questões filosóficas sobre a natureza do valor e da obrigação.i Assim, a
ética, em sentido geral, precisa integrar questões de ética normativa e
questões metaéticas.ii Questões de ética normativa não são, portanto,
inteiramente independentes de considerações metafísicas sobre a ética.

*
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Sabemos, porém, que houve um tempo em que a filosofia compreendia
o conjunto do conhecimento humano. Assim era durante a antiguidade e
boa parte da idade média. Contudo, na medida em que as várias
ciências passaram a desenvolver sua própria metodologia, e na medida
igualmente em que o método experimental tornou-se o padrão
metodológico no âmbito especialmente das ciências naturais e, em boa
parte, também no âmbito das ciências humanas e sociais (como a
psicologia, e ciências sociais como a antropologia e a ciência política, por
exemplo), essas ciências tornaram-se, em maior ou menor grau,
independentes da filosofia. Atualmente ninguém discordaria de que é
plenamente possível fazer física teórica sem ocupar-se com temas de
filosofia da física. E por quê? Ora, ao menos uma das razões é que
discordâncias em filosofia das ciências não chegam a afetar a confiança
no método experimental empregado por tais disciplinas (de fato, esta é
a explicação dada por Darwall). Isso parece evidente no caso de ciências
como a Física. Há inúmeros outros casos em que isso também ocorre de
modo paradigmático. Considere-se o caso das Ciências Médicas. Não há
dúvidas de que há vários temas e alguns até mesmo bastante
controversos em filosofia das ciências médicas. (Isso é verdadeiro
mesmo se seguirmos Edmund Pellegrino e concordarmos com ele de que
há uma diferença entre o que deveríamos chamar de “filosofia da
medicina” e o que, por outro lado, deveríamos caracterizar como
“filosofia das ciências médicas”. No caso da “filosofia da medicina”, a
controvérsia é ainda maior do que em filosofia das ciências médicas.iii)
Porém, tais considerações epistemológicas ou metodológicas, e mesmo
considerações sobre os fundamentos éticos da atividade profissional
médica, não chegam a afetar a confiabilidade nos fundamentos
metodológicos da pesquisa clínica ou epidemiológica em medicina. De
fato, no caso da medicina, não chegam sequer a afetar a confiabilidade
na ética profissional médica. A visão de Darwall, enfim, é de que o
método científico pode continuar sendo empregado independentemente
dessas disputas filosóficas sobre sua lógica e fundamento geral. Ou seja,
ainda que existam disputas sobre se certa teoria científica deva ser
interpretada em termos realistas, isto é, se a função das explicações
científicas é fornecer melhores explicações aos fatos ou resultados de
experimentos, ou em termos meramente instrumentais, como o melhor
instrumento ou meio para predizê-los, tem pouca relevância para a
prática científica (Darwall, 1999, p. 20).iv
Ocorre que em ética não há consensos metodológicos, muito menos
teóricos. Há diferentes propostas teóricas e metodológicas em ética.
Como decidir corretamente? Considere-se o caso da Medicina. Como
realizar um bom estudo clínico? Não há grandes divergências sobre isso
atualmente. De fato, em Medicina, há cada vez mais consensos
metodológicos sobre como realizar bons estudos clínicos.v No entanto,
em ética, não há consensos análogos. Há, é verdade, um grupo de
teorias morais influentes (dentre elas, o contratualismo inspirado
especialmente em Hobbes, o deontologismo moral kantiano e as éticas
baseadas em direitos, as teorias utilitaristas, entre uma variedade de
outras). Tais teorias procuram responder questões sobre como as
pessoas devem agir, ou desejar, sentir, ou mesmo, ser (tal como é
explorado pelas várias éticas das virtudes) (Darwall, 1999, p. 21).
Porém, há dissensos radicais entre tais teorias. Deontologistas morais
kantianos (ou inspirados em Kant) divergem radicalmente de
conseqüencialistas e, especialmente, de utilitaristas, e vice-versa (com a
exceção, talvez, de Richard Hare e outros que acreditam haver uma
simbiose entre o utilitarismo e as teses de grandes filósofos como Kant
e Mill). Eticistas da virtude questionam as teorias modernas e
contemporâneas, recomendando um retorno a considerações clássicas
sobre que tipo de vida é um exemplo de vida boa ou bem realizada
(Anscombe, 1958). Defensores de visões baseadas em “direitos”
também são críticos aos utilitaristas (aliando-se, nesse aspecto, aos
kantianos), porém criticam a ênfase em princípios e normas imperativas
não ancoradas em direitos (usualmente interpretados por esses não
como imperativos, mas como enunciados assertóricos) (Azevedo, 2006).
Mesmo teorias ecléticas como a teoria principialista, muito respeitada
em bioética, são questionadas. O conceito, por exemplo, de “deveres
prima facie” é visto por alguns filósofos como vago, ou mesmo equívoco,
por confundir obrigações atuais e reais com obrigações apenas
potenciais (dizer que posso estar obrigado a respeitar alguém não é o
mesmo que dizer que estou de fato obrigado).vi Assim, não é de se
surpreender que nos temas mais polêmicos existam divergências
radicais. Temas como o aborto, a eutanásia, o suicídio, o uso de
embriões em pesquisa, a ética aplicada aos animais, ainda são temas
polêmicos, sobre os quais não há consenso e nem previsão de consenso.
Em outras palavras, onde se esperaria que a teoria moral pudesse
auxiliar a resolver impasses, a existência de várias teorias rivais de fato
dificulta mais do que auxilia.vii Consensos práticos somente existem
quando há grandes consensos científicos embasando rotinas já tornadas
tradicionais. Questões de ética com animais não impedem os cientistas
de usar animais em seus experimentos. A ética que lhes serve de base
não é propriamente a teoria ética, e sim algo bem mais rotineiro e
despretensioso. A lei e certos códigos ou regras de biossegurança é que
regulam tais procedimentos.
Darwall não chega a fazer essa distinção que aqui faço entre a prática
científica e o respeito a certas normas amplamente admitidas como
válidas ou corretas e a teoria moral propriamente dita. Mas certamente
o que estou sugerido está de acordo como o que ele propõe. Isto é, o
que chamamos teoria ética ou teoria moral certamente não se reduz ao
estudo das leis, normas e códigos que orientam a prática profissional e
científica. Por isso, vale a analogia com a Física teórica. Assim, por que
a Ética não conforma uma disciplina autônoma? Por que a Ética ainda é
considerada uma disciplina ou área filosófica por excelência?
Vamos admitir, até para fins de argumento, que Darwall tem toda a
razão. Não há como, ao menos não atualmente, separar o estudo da
ética normativa da filosofia. Questões de teoria normativa envolvem
considerações metaéticas substantivas. Fazer teoria normativa sem
filosofia (isto é, sem fazer metaética, metafísica e, em boa medida,
epistemologia) não é fazer boa teoria normativa. Divergências em ética
normativa são divergências teóricas profundas. Questões sobre como
devemos viver se associam a considerações filosóficas sobre o que é o
bem (se há algo que se possa chamar de “bem”, em geral, ou se
somente há “bem” sob certos modos, ou ainda se o bem não é nada
além de uma projeção de nossos desejos). Se há o bem, devemos
também considerar se podemos efetivamente conhecê-lo ou não, e,
nesse aspecto, qual o papel das virtudes. Sobre o que são virtudes, é
preciso entender se virtudes são qualidades do caráter e se podemos ou
não explicar efetivamente condutas humanas por elas. Afinal, será que
não estamos enganados ao atribuir virtudes a pessoas, e se isso for
verdade, ao avaliarmos nossas condutas, não estaríamos empregando
noções e termos sem correspondência real, isto é, noções simplesmente
falsas? Nesse caso, seria preciso desenvolver, junto com Mackie (1977),
uma boa “teoria do erro”. Do contrário, é preciso adentrar em terrenos
metafísicos, já o que entendemos por “bem” e por “virtude”
corresponderiam a aspectos objetivos, sendo que essa objetividade
poderia consistir em fatos ou aspectos do mundo, ou ainda, tal como
sustentou Hume, em fatos acerca de nós mesmos. Além disso, se faz
sentido falar em “deveres morais”, afinal, o que queremos dizer quando
afirmamos que alguém está “obrigado a fazer algo” (estaríamos
afirmando algo ou estaríamos simplesmente emitindo uma ordem, um
imperativo)? Não estaríamos, em termos correlatos, dizendo que
alguém tem um direito a que algo seja (ou não seja) feito? Nesse caso,
qual a diferença entre um “dever estrito” e um “dever moral”, ou
“prático”? E ao falarmos em justiça, estaríamos nos referindo a uma
virtude social? Nesse caso, deveríamos poder imaginar arranjos
distributivos em conformidade com o que é justo. Mas poderiam tais
arranjos sociais pretensamente justos poderiam contrariar exigências
individuais por justiça corretiva ou comutativa. O que entendemos,
afinal, por justiça?
De fato, há uma grande variedade de questões metaéticas ligadas a
temas de teoria moral. Darwall parece ter razão, enfim, de que a teoria
moral não pode desenvolver-se adequadamente fora de um ambiente
filosófico. Em termos acadêmicos, faz sentido manter a Ética como área
própria da filosofia. De fato, faz sentido “mantê-la”, já que a ética
sempre foi uma área da filosofia. Mesmo que recentemente estudiosos
de áreas irmãs, como a sociologia e a ciência política, aleguem fazer
teoria ética e não meros estudos descritivos, é mais razoável que, como
disciplina, a ética teórica não se afaste de Departamentos ou de
graduação e pós-graduação em Filosofia.
Mas e quanto à Bioética? Darwall não considera em seu ensaio o caso
dessa recente “disciplina”. Faria sentido concluir que, assim como ocorre
com a Ética, que a Bioética também é uma área própria da filosofia?
Certamente, não. Mas é preciso entender isso, pois não são poucos os
que afirmam que a Bioética é uma parte da Ética. Darley Dall’Agnol, por
exemplo, entende a Bioética como parte da Ética Prática, e a Ética
Prática, como vimos, é certamente parte da Ética (Dall’Agnol, 2005, p.
9). Beauchamp e Childress tomaram (veja nota 2 acima) seu estudo
como um estudo em ética normativa, e já que não há como separar
rigidamente a ética normativa da metaética, é razoável concluir que se
trata de um estudo, senão propriamente, ao menos principalmente
filosófico (ou, no sentido de Darwall, um tipo de estudo em ética prática
ou aplicada que somente frutifica caso orientado pela filosofia). Se
considerarmos a visão de Peter Singer (1993), a Ética Prática e com ela
o que se chama Bioética (Peter Singer já foi duas vezes presidente da
Associação Internacional de Bioética) são, sim, partes da Ética, e, logo,
da Filosofia.viii Porém, não é verdade que o que hoje é chamado de
Bioética, especialmente em nosso país, seja parte inseparável da
Filosofia.
A Bioética é certamente uma nova disciplina, mas, ao passo que a Ética
é certamente uma disciplina historicamente ligada à Filosofia, e, como
disciplina, ainda atualmente ministrada e pesquisada
predominantemente em Departamentos ou Cursos de Filosofia, a
Bioética não surgiu dentro dos Departamentos de Filosofia. A Bioética,
como disciplina, ainda que inicialmente bastante estimulada e praticada
por filósofos, nasceu fora do meio acadêmico filosófico.
Isso não significa dizer que filósofos não tratavam de temas de ética
aplicada ou mesmo exatamente dos temas que hoje são compreendidos
como temas típicos de Bioética. Elizabeth Anscombe, Philippa Foot e
Judith Jarvis Thomson, por exemplo, já debateram e escreveram sobre
temas espinhosos de “bioética”, como a eutanásia e o aborto, bem como
sobre temas teóricos correlatos, como o Princípio do Duplo Efeito.ix
Ronald Dworkin já escreveu um livro sobre os mesmos temas,
intitulados inclusive como temas do “domínio da vida” (1993). Nenhum
deles, porém, apresentou-se a seus leitores como “bioeticista” e sim
como filósofo. Mary Warnock, hoje Baronesa Warnock, foi seguramente
uma das figuras mais importantes na história dos eventos associados à
Bioética no Reino Unido (dada sua eminente função de Presidente do
Comitê que produziu o famoso Relatório que orientou a posição do
governo britânico sobre a pesquisa com embriões humanos e fertilização
assistida, na década de 80) (Warnock, 1985). Mary Warnock, em 1992,
também publicou um belo livro intitulado “Os usos da filosofia” sobre
temas hoje classificados como temas de “bioética”, muito embora ela
não tenha empregado esta palavra em suas páginas (Warnock, 1994).
Isso sem falar nos clássicos. Questões de ética normativa aplicadas ao
tema da vida humana e animal são questões filosóficas desde a
antiguidade. Na era moderna, muitos filósofos trataram de temas
“bioéticos” (Hume, por exemplo, tratou diretamente do suicídio em um
famoso ensaio; Kant abordou o mesmo tema sob um ponto de vista
oposto em sua Metafísica da Moral). Mas isso não faz da bioética uma
área da filosofia. Por quê? Ora, porque justamente o que esses filósofos
fizeram foi ética filosófica, e de forma freqüentemente integrada
(questões de ética normativa e de ética prática, permeadas de reflexões
metaéticas, metafísicas e epistemológicas).
Beauchamp e Childress assinalaram inclusive que, até a década de 70,
trabalhos em “bioética” consistiam basicamente de ensaios ou artigos.
Vários temas eram tratados, tais como aborto, eutanásia e alocação de
recursos. Porém, não havia ainda nenhuma abordagem sistemática e as
discussões giravam em torno de seus temas específicos (Beauchamp &
Childress, 1994, p. 42, nota 26). Provavelmente, Beauchamp e Childress
referem-se aqui não somente a artigos escritos por intelectuais
envolvidos com a responsabilidade de decidir ou emitir conselhos
normativos solicitados por órgãos governamentais ou entidades
privadas. Creio que ele também estava se referindo aos trabalhos de
filósofos em ambiente estritamente acadêmico. Filósofos, portanto, já
tratavam de temas hoje classificados como temas de bioética, porém
dentro de ambientes acadêmicos e dirigindo-se a um auditório formado
por colegas filósofos; apenas ocasionalmente, artigos filosóficos eram
voltados a um público mais amplos. Não havia uma disciplina que
pudesse ser chamada de “bioética”. Ao que eu saiba, é justamente a
obra de Beauchamp e Childress que inaugura uma nova forma de
abordagem teórica sobre a ética aplicada, pois o que esses autores
pretenderam foi produzir uma teoria normativa sistemática aplicada à
área das ciências e atividades profissionais que lidam diretamente com a
vida. Seu objetivo foi, segundo suas próprias palavras, “mostrar como a
teoria ética pode iluminar problemas em cuidados em saúde e pode
ajudar a resolver algumas limitações das formulações anteriores sobre
responsabilidade ética” (no caso, as limitações das abordagens
históricas ou sobre a ética exclusivamente profissional) (Beauchamp &
Childress, 1994, p. 3). Penso que a Bioética, como disciplina teórica,
somente surgiu a partir das discussões que se seguiram desse sucesso,
já da primeira edição, do livro Principles of Biomedical Ethics de
Beauchamp e Childress, em 1979, embora o que hoje é chamado de
Bioética tenha certamente surgido, como um movimento cultural, algo
antes da publicação desta obra seminal.
Mas há algo curioso nisso, pois o livro de Beauchamp e Childress é um
livro filosoficamente denso. Apesar disso, sua obra além de ter
estimulado, além de críticas teóricas, debates multidisciplinares,
estimulou também a busca por novos métodos para a orientar processos
de tomada de decisão, especialmente em medicina clínica. A Bioética,
com isso, tornou-se uma área de interesse tipicamente multidisciplinar e
prática. Além disso, o que passou a ser chamado de “Bioética” é bem
mais que uma mera disciplina acadêmica. Há, hoje, no mundo inteiro
uma “prática bioética”, algo notório dada a multiplicação de iniciativas
como os Comitês de Ética em Pesquisa e os Comitês de Bioética,
organizados de modo independente tanto dos espaços acadêmicos como
também das tradicionais comissões e organizações de defesa da ética
profissional.
O avanço do interesse em bioética fez com que filósofos passassem a
migrar também para departamentos ligados a escolas de medicina. Esse
foi o caso de Albert Jonsen, um dos mais importantes pensadores da
área até hoje. Jonsen tornou-se, apesar de originalmente professor de
Teologia e Filosofia, professor da disciplina de “Ética Médica” na
prestigiada Faculdade de Medicina da Universidade do Estado de
Washington.x
A bioética, como atividade de reflexão normativa sobre a vida, surgiu
como disciplina a partir de demandas externas à filosofia. Embora nos
Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália, entre outros e muitos
lugares, existam muitos filósofos lidando com o tema, em nosso país há
um número muito pequeno, proporcionalmente, de filósofos tratando de
temas ligados à bioética. É possível que isso se explique pelo fato de
que a Bioética, como disciplina, tenha se tornado uma área tipicamente
multidisciplinar. Ora, não há muita tradição de inserção da filosofia
brasileira em áreas multidisciplinares. Filósofos acadêmicos mantêm
ainda a tendência de evitar confundir temas e questões filosóficas com
temas e questões não-filosóficas. Além disso, em nosso país, a Bioética
assemelha-se muito mais a um movimento político e cultural com pouca
ou fraca inserção acadêmica, o que também parece não interessar os
pesquisadores e professores de filosofia. A bioética, assim, parece não
se afigurar como uma área interessante para se fazer filosofia. Temas
metafísicos e metaéticos são temas áridos, e filósofos usualmente não
têm paciência para lidar com outras abordagens e com auditórios
plurais, os quais, do ponto-de-vista da filosofia acadêmica, são tidos
como leigos.
Deveríamos, contudo, nos perguntar se a afirmação de Darwall sobre a
necessária integração, junto à filosofia, entre metaética e ética
normativa, incluindo a ética aplicada ou prática, não faria sentido
também para o caso da Bioética. Em outras palavras, será que a
Bioética não se ressente de seu atual distanciamento relativamente à
filosofia?
Efetivamente, não faz sentido reivindicar para a Filosofia o monopólio ou
mesmo o domínio da disciplina de Bioética. Afinal, o surgimento de uma
disciplina não advém dos planos engenhosos de qualquer mente
acadêmica criadora. A bioética, tendo nascido fora da filosofia,
dificilmente poderia vir a se tornar uma disciplina especificamente
filosófica. Contudo, penso que nem deveria! Embora faça sentido
reivindicar a ética para o berço da filosofia, com a bioética ocorre o
contrário. De fato, penso que a existência da bioética representa uma
rara oportunidade para que a filosofia possa promover-se fora de seus
domínios restritos. Trata-se de uma oportunidade concreta para que a
filosofia volte a ser, além de uma disciplina, uma atividade teórica
visceralmente voltada a questões práticas, como o clássico e
fundamental questionamento sobre o sentido e finalidade de nossa
própria existência (ou, no sentido que se tornou clássico desde os
gregos, acerca de questões sobre como devemos viver e que tipo de
vida exemplifica uma vida plena e realizada). Mas há outra razão para
que a filosofia aproxime-se mais da Bioética que não é, digamos, uma
razão especificamente prática.
Ocorre que as próprias discussões em Bioética não podem prescindir da
Filosofia também por razões teóricas. Se for verdade que há razões
epistêmicas para que a teoria ética não se afaste da filosofia, o mesmo
também vale para a Bioética, isto é, a bioética também não deve
afastar-se da teoria ética. Ora, como em teoria ética não há consensos,
e dificilmente eles ocorrerão em curto prazo (aliás, a depender da visão
metaética adotada, consensos em ética normativa jamais serão
alcançados), não há nem poderia haver consensos também em Bioética.
Assim, filósofos são imprescindíveis em Bioética. Além disso, falta boa
metafísica à Bioética. Temas difíceis como o aborto, a eutanásia, e
temas sobre a justiça na alocação de recursos em saúde não podem
prescindir de questionamentos de fundo, inclusive no árido terreno da
metafísica.
Penso que a ausência da filosofia nos debates “bioéticos” atuais tende a
favorecer a consolidação de dogmas. E dogmas onde não há consensos
práticos são particularmente perigosos. Além disso, sem filosofia, a
Bioética, como disciplina, tende a reduzir-se a meros estudos
descritivos, onde questões pretensamente filosóficas são apresentadas
de forma lamentavelmente simplificada. Também, sem a filosofia, a
Bioética corre o risco de reduzir-se ao estudo e ensino de “guias
normativos”, espécies de “guidelines for ethical decisions”. Não penso
que haja problemas em se formular códigos e guias para tomadas de
decisão (eu mesmo já escrevi sobre isso). Porém, não se pode dizer que
essa atividade, assim mantida, possa ser corretamente caracterizada
como uma atividade “reflexiva”, “conceitual”, muito menos “filosófica”.
Assim, embora Bioética e Ética sejam disciplinas separadas, não
cabendo tratar a primeira como uma sub-área da segunda, o
distanciamento entre ambas é teoricamente prejudicial para a primeira,
além de penoso para a segunda.

BIBLIOGRAFIA

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i
Para outra visão semelhante a de Darwall, veja-se David Brink (1989).
ii
Beauchamp e Childress afirmaram que “Ética” é um termo geral para os vários modos de compreensão e exame da vida
moral. Assim, estudos puramente descritivos também fariam parte da Ética, além dos estudos propriamente normativos (a
ética normativa e a ética prática). E o que dizer da ética filosófica, isto é, da metaética? Ora, em seu prestigiado livro,
Beauchamp e Childress não deixam de examinar alguns temas metaéticos, bem como temas epistemológicos. Segundo esses
autores, a metaética “envolve a análise da linguagem, conceitos e métodos de raciocínio em ética”. A metaética, porém,
assim como os diversos estudos descritivos da moral (antropologia moral, sociologia moral, psicologia moral e história da
moral, por exemplo), não é uma disciplina normativa. Estudos descritivos descrevem o que é o caso; estudos metaéticos
descrevem o que é conceitualmente o caso (Beauchamp & Childress, 1994, p. 5). Porém, dizem também, “a ética normativa
assenta-se pesadamente sobre a metaética” (idem), e assim como nenhuma distinção precisa poderia ser feita entre a ética
prática e a ética normativa, também nenhuma linha clara pode ser traçada para distinguir a ética normativa da metaética.
Assim, não somente não há, para Beauchamp e Childress, uma clara delimitação entre a ética normativa e a metaética,
como, tal como assim sustenta Darwall, não poderia nem deveria haver. Suas opiniões são, enfim, bastante semelhantes. E
como para Beauchamp e Childress, seu estudo sobre os princípios da ética biomédica deveria ser classificado como um
estudo em ética normativa, pode-se inferir disso que, para ambos, trata-se igualmente de um genuinamente estudo
filosófico.
iii
Para Edmund Pellegrino, a propósito, a filosofia da medicina inclui o estudo da ética da medicina, já que “medicina” aqui
não é “ciência médica”, e sim uma profissão (Pellegrino, 1998). Sobre o tema, veja-se também Caplan (1992).
iv
Veja-se o caso da Biologia. Há vários e interessantes questionamentos em filosofia da biologia. Considere-se o caso da
teoria da evolução. Há uma série de discussões sobre as implicações metafísicas da teoria da evolução. Dentre as alegadas
implicações, algumas dizem respeito a temas chaves em filosofia da religião, por exemplo (veja-se o caso do conflito entre a
teoria criacionista e o evolucionismo). Contudo, mesmo um biólogo que acredite piamente na doutrina criacionista, por
exemplo, não precisa deixar de lado suas crenças para sentir-se à vontade ao estudar a evolução natural de uma espécie. A
metodologia de estudo, compartilhada em comum com a maioria de seus colegas contemporâneos, pode ser empregada
independentemente de quaisquer disputar filosóficas ou metafísicas.
v
Isso independentemente de ser verdadeiro que existam concepções metodológicas rivais em Medicina. Penso que este é o
caso da Homeopatia e sua crítica à medicina clínica “alopática”. Todavia, a medicina clínica “alopática”, isto é, o modelo de
medicina baseada em evidências clínico-epidemiológicas (também chamada de “medicina baseada em evidências”) é hoje
largamente a prática científica e clínica dominante (Sharpe & Faden, 1998, pp. 214ss). Essa metodologia é usualmente
admitida como modelo de cientificidade, e mesmo muitos homeopatas buscam comprovar suas hipóteses através de estudos
orientados por modelos epidemiológicos clínicos.
vi
A propósito, veja-se a crítica de Searle a Ross, explorada no capítulo 1 de meu livro, Bioética fundamental (2002).
vii
Jonsen e Toulmin (1988) consideraram paradoxal o fato de haver mais consensos na prática que em matéria teórica. Sua
visão é que teorias normativas não favorecem a prática da solução de dilemas morais concretos, que acabam sendo de algum
modo solucionados por meio de discussões entre múltiplos especialistas, orientadas pela comparação de casos reais com
casos paradigmáticos. Porém, para explicar esse fenômeno, Jonsen e Toulmin não deixam de formular uma teoria. Sua
crítica ao modelo baseado em princípios e regras em favor do modelo casuístico não deixa de ser igualmente uma teoria
moral normativa, igualmente controversa. De minha parte, devo ressaltar que o fato de que os Comitês consigam chegar
mais facilmente a consensos caso não se envolvam em disputas teóricas não serve de evidência em favor da tese de que há
poucas divergências práticas na ética, e de que a teoria somente serve para atrapalhar. É possível, todavia, que Jonsen e
Toulmin tenham razão em que a existência desses consensos práticos indique algo de substancial sobre o modo como
efetivamente racionamos em ética. O que nos leva ao domínio metaético da epistemologia moral, em favor justamente da
tese de Darwall de que filosofia e prática normativa não podem ser atividades totalmente independentes.
viii
Na primeira seção do Capítulo 1 do livro Ética Prática, Peter Singer deixa-nos clara sua visão de que a Ética Prática trata
de questões normativas e é uma aplicação da ética ou da moralidade.
ix
São muitos os artigos e trabalhos feitos por essas autoras sobre temas de ética prática. Muitos dos trabalhos de Anscombe
foram reunidos em um belo livro editado por sua filha Mary Geach e por Like Gormally (2005), dentre estes: “Were you a
zygote?”, “Embrios and final causes” e “Action, intention and ‘double-effect’” (para citar apenas alguns). O artigo de
Philippa Foot, “Euthanasia”, de 1977, um clássico de ética aplicada, encontra-se publicado em Foot (2002), juntamente com
outro não menos famoso, “The problem of abortion and the doctrine of the double effect”, de 1967. Judith Thomson
escreveu nada menos do que um dos mais importantes artigos sobre o tema do aborto, “A deffence of abortion”, de 1971.
Isso mostra que mesmo antes de se falar em “bioética”, grandes filósofos contemporâneos já estavam envolvidos em
debates dessa natureza, e sem afastar-se da filosofia.
x
Jonsen conta esses detalhes em seu conhecido livro “The birth of bioethics” (2003). Neste livro, Jonsen relata um conjunto
de eventos que acabaram por culminar no aparecimento da chamada “bioética”. Note-se que, como ministrante e agente
dessa nova disciplina, a atividade de Jonsen deu-se substancialmente fora de Departamentos de Filosofia.

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