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5 Aulas Sobre Nietzsche
5 Aulas Sobre Nietzsche
1ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP
Aforismo 354 da Gaia Ciência
Lembro-me de ter dito a vocês, na semana passada, que passassem os olhos pelo aforismo
354, da Gaia Ciência, não sei se vocês tiveram ocasião de fazê-lo ou não. Então, eu pediria,
por favor, se vocês não trouxeram o texto, que tivessem a paciência de prestar atenção na
minha leitura. Bom, já faz muito tempo, mas eu me lembro que eu tinha dito a vocês, quando
nós nos encontramos, acho que foi no segundo encontro, que este problema da unidade do
sujeito em Nietzsche, pode ser tratado de diversos pontos de vista. E o primeiro deles ia ser
aquele que, ao mesmo tempo, consistiria num intróito do nosso curso, que é aquele texto sobre
Os Desprezadores do Corpo, sob a ótica da relação entre a grande razão e a pequena razão.
Este ponto, ele ainda não está esgotado, pretendo voltar a ele ainda, mas depois desse
percurso por Descartes e por Kant. Pretendo trabalhar agora com um outro aspecto da relação
entre consciência e subjetividade, mas um aspecto que diz respeito à relação entre consciência
e linguagem. Foi uma coisa, de certa maneira, difusamente presente em Os Desprezadores do
Corpo, mas que a gente vai explorar nesse aforismo aqui. Esse aforismo que nós vamos ler,
não é o único a respeito dessa questão, existem vários outros; eu vou tomar este aqui como
ponto de partida, porque ele condensa, segundo minha opinião, muitos dos aspectos mais
essenciais da discussão que Nietzsche faz a respeito. Então, o que nós vamos ver hoje é a
questão da unidade subjetiva em Nietzsche, vista sobre o ponto de vista da relação entre
consciência e linguagem. Nos nossos próximos encontros, aqueles para cuja preparação pedi
que vocês lessem os aforismos de Além do Bem e do Mal, nós vamos ver ainda um outro
aspecto, aspecto esse que diz respeito a uma relação mais estreita com aquilo que nós vimos
nas análises de Descartes e de Kant. Portanto, o que vamos trabalhar agora, é uma espécie de
pequeno refrigério, um tema menos árido, mas não menos essencial, na minha opinião, em
relação a essa questão que estamos examinando.
Esse aforismo 354, faz parte do quinto livro da Gaia Ciência. Esse livro foi acrescentado por
Nietzsche aos outros livros em 1886, portanto, é bem posterior à primeira edição do livro, a
Gaia Ciência, e este parágrafo 354 é contemporâneo de uma série de questões que Nietzsche,
em parte, já tinha trabalhado no Zaratustra, entre elas, aquelas presentes lá em Os
Desprezadores do Corpo e boa parte continuará a trabalhar nas suas obras posteriores. Todo
esse parágrafo 354 é dedicado então à famosa consciência. O aforismo se chama do Gênio da
Espécie. Eu queria, antecipadamente, dizer que o título do Gênio da Espécie é uma
provocação maldosa, que a gente vai ver no que consiste só depois ter lido o texto.
O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-consciência-de-si) só se
apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida poderíamos passar sem ela:
e é nesse começo do conceber que nos coloca a fisiologia e a zoologia (as quais, portanto,
precisaram de dois séculos para alcançar a premonição de Leibniz, que voava na sua
dianteira).
Bom, em primeiro lugar qual é a premonição de Leibniz que ele se refere aqui? O fundamental
na metafísica de Leibniz é que o homem, o ser humano não é só ser racional, ele não é só
racionalidade, mas ele é também apetite, a famosa frase de Leibniz diz que o ser humano é
perceptio, quer dizer, representação; e apetitus, isto é, vontade, desejo. Então, Nietzsche já
começa aqui, provocativamente, estabelecendo um curto-circuito entre o tema do tornar-se
consciente-de-si e o tema da fisiologia e da zoologia. Quer dizer, uma ligação que é
efetivamente uma provocação. Ou seja, Nietzsche no fundo quer dizer o seguinte: se você
observa a fisiologia e a zoologia verá que o problema da consciência é, na verdade, um
problema simplesmente superficial. Ou seja, que aquilo que define o essencial do sujeito não é,
como pretendia a tradição filosófica, a sua capacidade de tomar-consciência-de-si, mas a
consciência precisamente é um fenômeno secundário. O problema do ter-consciência, é
precisamente aquilo que se constitui como problema. Ou seja, por que é que nós tomamos
consciência de nós mesmos, em que medida isto é importante, tanto mais quanto nós podemos
perfeitamente bem passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia aqui, na verdade,
simplesmente comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito. Ou seja, que a consciência não é o
essencial do sujeito, da subjetividade; mas a consciência é, na verdade, uma ínfima porção da
subjetividade. Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem que necessariamente o
fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar.
Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente "agir" em
todo sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos "entrasse na
consciência" (como se diz em imagem).
Comentário: Recordar, aqui, fica difícil de aceitar isso.
Professor: Por que?
Comentário: Não sei. Recordar, sem consciência?
Professor: Sim.
Comentário: Não sei, fica...
Professor: Logo para frente Nietzsche vai dizer, um pouco ironicamente, que isso poderia soar
muito estranho nos ouvidos de um filósofo mais velho. E esse filósofo mais velho é uma
referência, é uma remissão à tradição, essa tradição que a gente procurou verificar. Por que?
Porque para Descartes, não sei se vocês lembram, que o sentir, o querer, o imaginar e o
recordar eram formas do pensar, e o pensar era o ato por excelência da consciência. Se vocês
voltam aqui a Kant e vêem que a consciência pensada como uma apercepção transcendental,
esse eu-penso que é precisamente o veículo, uma unidade originária tem que ser
necessariamente postulada como condição de todas as representações. Vocês vêem a
importância da consciência como origem ou unidade originária, que sintetiza ou que unifica,
que dá unidade ao eu enquanto o eu do pensamento, enquanto sujeito do pensamento,
inclusive, a memória. Ou seja, o que Nietzsche está pensando aqui, muito concretamente, é na
memória como recolhimento e processamento de informação.
Pergunta: Ou seria a memória como instinto?
Professor: Por exemplo, o que significa simplesmente informação recebida, incorporada e
processada...
Pergunta: Aí sim, eu acho que a memória como instinto, vamos dizer, um pássaro que tem um
ritual, daí dá para entender...
Professor: Claro. Daí a referência zoologia e a fisiologia. O ouvido do filósofo mais velho, aqui
não é só Kant, Descartes, mas é Platão. Porque a recordação, como você lembra muito bem, o
que era para Platão? Era a sabedoria por excelência, era filosofia. Ninguém, no fundo, aprende
coisa nenhuma, você só se recorda. Mas essa recordação...
Comentário: Mas o texto é muito irônico.
Professor: Mas esse texto é irônico o tempo todo. Inclusive, o Gênio da Espécie, eu repito, é
uma maldade terrível, porque esta recordação é um ganhar consciência de coisas que você
inconscientemente tinha vivido, que a alma já tinha vivido antes da encarnação, etc.; enquanto
habitante do mundo das puras formas de Platão ou habitante do mundo das idéias.
A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho: como, de fato,
ainda agora, entre nós, a parte preponderante dessa vida se desenrola sem esse
espelhamento - e aliás também nossa vida de pensamento, sentimento, vontade, por mais
ofensivo que isso possa soar a um filósofo mais velho. Para que em geral consciência, se no
principal ela é supérflua?
Ou seja, essa idéia da consciência como espelho, Nietzsche está se referindo à reflexão, à
consciência como superfície de reflexão daquilo que se passa na nossa vida mental, na nossa
vida anímica. Então, segundo ele, toda a vida, tanto mental quanto sensível, como volitiva, etc.,
seria perfeitamente possível sem que ela tivesse que refletir no espelho da consciência.
Ora, parece-me, se se quer dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua suposição
talvez extravagante, que o refinamento e força da consciência estão sempre em proporção com
a aptidão de comunicação de um ser humano ou animal...
Então, o primeiro elemento, isto é, o refinamento da consciência e a força da consciência é
uma função ou está em relação ou em proporção com a capacidade ou aptidão da
comunicação, de um animal ou de um ser humano.
...e a aptidão de comunicação, por sua vez, em proporção com a necessidade de comunicação:
isto entendido, não como se o próprio homem singular, que é precisamente mestre em
comunicar e tornar inteligíveis suas necessidades, fosse também, ao mesmo tempo, aquele
cujas necessidades mais o encaminhassem aos outros.
Ou seja, a equação que Nietzsche monta aqui é entre a capacidade ou entre o refinamento da
consciência e a capacidade de comunicação, por um lado. Por outro, entre a capacidade de
comunicação e a necessidade de comunicação; mas essa necessidade de comunicação não
pensado do ponto de vista do indivíduo singular ou do homem enquanto indivíduo, mas sim em
função de cadeias de gerações, raças inteiras como ele vai dizer aqui.
Mas bem me parece ser assim no que se refere a raças inteiras e gerações sucessivas: onde a
necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a se comunicarem, a se
entenderem mutuamente com rapidez e finura, acaba por haver um excedente dessa força e
arte da comunicação, como que uma fortuna que pouco a pouco se acumulou e agora espera
por um herdeiro que a gaste perdulariamente.
Bom, então, o plano em que Nietzsche coloca a reflexão não é o plano singular dos indivíduos,
mas é o macro-plano da sucessão das gerações, da cultura, da espécie, e a relação continua
sendo mantida entre a necessidade, a indigência e, precisamente em função disso, o progresso
da comunicação.
Comentário: Ele coloca, então, a consciência como a comunicação. Consciência surgiu da
necessidade da comunicação.
Professor: Olha, eu vou dizer até uma coisa a mais, e há aqui uma outra maldade; se vocês
lerem o texto aqui, a tradução do Rubens, que é realmente preciosíssima, vocês terão lá essas
indicações que eu estou dando para vocês. Em alemão, você tem dois termos com os quais
você pode se referir à sociedade e comunidade. Por um lado, Gesellschaft se diz sociedade, e
Gemeinde é o termo usado para comunidade. Por exemplo, uma igreja se diz uma Gemeinde,
ou um certo grupo se diz uma Gemeinde, é uma comunidade. Só que Gemeinde, Nietzsche
usa, numa relação, como filólogo deve saber o que está falando, ele usa em relação ao adjetivo
gemein, e gemein, quer dizer comum e vulgar. Ele faz um jogo de palavras extraordinário com
isso em que ele liga como sociedade, enquanto comunidade, àquilo que é comum, vulgar,
medíocre. Tudo sob esse eixo do Gemeinde, gemein, Gesellschaft, etc., que vai acabar por
estabelecer uma espécie de ligação entre aquilo que é social, comunitário e comum, e daí com
comunicação. Por conseguinte, comunicar-se é se tornar comum. E a consciência é
precisamente o modo pelo qual você se torna comum. Vamos chegar a ler exatamente esse
movimento aqui. E como é que você se torna comum? Pela linguagem.
Pergunta: Agora, comum, ele toma no sentido do pejorativo?
Professor: No duplo sentido. É um jogo consciente com a equivocidade de comum, comum no
sentido daquilo que pertence a ambos, mas também no sentido daquilo que é medíocre.
Comentário: E é completamente oposto ao conceito do verbo divino ... da palavra...
Professor: Claro. Ou desta consciência pensada como unidade originária, que nós vimos aqui.
Aqui o que nós vamos assistir neste texto é a gênese simultânea, para Nietzsche, da
consciência, da linguagem e da sociedade. Este texto aqui é no fundo isso. É isso que significa
o Gênio da Espécie.
Comentário: Então, mas é uma crítica imensa.
Professor: Claro. E é a melhor forma de você fugir-de-si. Ou seja, a melhor forma de você, em
boa consciência, esquecer daquilo que é absolutamente singular, daquilo que não pode ser
comunicado, porque ao ser comunicado se torna comum.
Comentário: E aí entra o cristianismo...
Professor: Sem dúvida. Com toda essa equivocidade. Isso é proposital, não é por acaso, não é
que ele não considerou, evidentemente que ele considerou; sobretudo, porque ao longo da
tradição havia esse primado da consciência como fonte, sede, locus da racionalidade; pensar
era igual ser consciente.
Comentário: E daí a linguagem.
Professor: Claro. É o Logos. A palavra. Aliás, a mesma palavra para linguagem e razão. Bom,
vamos prosseguir um pouquinho. Agora, o interessante é que, precisamente nesta relação
entre a indigência, a carência, a necessidade e o poder de comunicação, com isso se cria uma
fortuna; o Rubens traduz Vermögen em alemão, por fortuna, a palavra quer dizer tanto a
fortuna no sentido material, quanto poder no sentido de faculdade, capacidade. Ou seja, esta
capacidade de comunicação é algo com que o homem se enriquece, e é precisamente esta
capacidade de comunicação, que uma vez acumulada, tornada desenvolvida, é depois, com o
progresso da cultura, gasta perdulariamente. Aqui, ele vai dizer:
(- e os assim chamados artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os oradores,
pregadores, escritores: todos os homens que sempre vêm no final de uma longa série, sempre
"nascidos tarde", no melhor sentido da palavra, e, como foi dito, por essência perdulários).
Mas, então, é preciso que esta capacidade de comunicação seja...
Suposto que esta observação é correta, posso passar a suposição de que a consciência, em
geral, só se desenvolveu sob a pressão da necessidade de comunicação.
Então, suposto que aquela equação de que ele falou antes, é pensável, é admissível, então
nós podemos supor que a consciência só se desenvolveu sob pressão da necessidade de
comunicação. Essa é uma outra frase iconoclasta, porque para toda tradição a consciência é
aquilo que constitui a espontaneidade do eu, é o núcleo do eu, por assim dizer. Por
conseguinte, aquilo que é absolutamente natural. E ele está dizendo aqui, que a consciência
não só não é natural como se desenvolveu em conseqüência de uma espécie de necessidade.
... que previamente só entre homem e homem (entre mandante e obediente em particular) ela
era necessária, era útil, e que também somente em proporção ao grau dessa utilidade ela se
desenvolveu.
Ou seja, a consciência se desenvolveu porque era útil. E se desenvolveu exatamente em
proporção ao seu grau de utilidade. Vale dizer, se nós não considerarmos o plano da relação
entre os homens, por conseguinte, se nós não considerarmos a capacidade e a possibilidade
de comunicação, a consciência não é nenhum dado natural da nossa existência.
Consciência é propriamente apenas uma rede de ligação entre homem e homem - apenas
como tal ela teve de se desenvolver: o homem ermitão e animal de rapina não teria precisado
dela.
Aqui, começa a aparecer, portanto, a simultaneidade do tema da consciência como o tema da
sociabilidade. Quer dizer, não fora a premência da vida social, não teria sido necessário o
surgimento e o desenvolvimento da consciência. A consciência se desenvolve, precisamente,
em função do caráter político, ou se vocês quiserem, social das relações entre os homens.
Que nossas ações, pensamentos, sentimentos, e mesmo movimentos, nos cheguem à
consciência - pelo menos uma parte deles -, é a conseqüência de um terrível, de um longo "é
preciso", reinando sobre o homem: ele precisava, como o animal mais ameaçado, de auxílio,
de proteção, ele precisava de seu semelhante, ele tinha de exprimir sua indigência, de saber
tornar-se inteligível - e, para tudo isso, ele necessitava, em primeiro lugar, de "consciência",
portanto, de "saber" ele mesmo o que lhe falta, de "saber" como se sente, de "saber" o que
pensa.
Então, aqui é um aspecto bastante importante deste texto; ou seja, a consciência que nós
temos de nossas ações, de nossos pensamentos, de nossos estados, não é algo também dado
naturalmente, mas é o resultado, é conseqüência de uma necessidade, de uma carência. Ou
seja, que carência é essa? A carência de comunicar esses estados. Então, é porque o homem
tem necessidade de comunicar esses estados é que ele precisa ter consciência desses
estados ou, pelo menos, de uma parte desses estados.
Eu pediria para que vocês prestassem atenção nas aspas. Porque ele era um animal mais
ameaçado, mais frágil, em última instância, ele precisava mais de proteção, mais de auxílio,
portanto, precisava de comunidade. Ora, não pode haver comunidade sem comunicação.
Portanto, para que ele possa se comunicar, ele precisava de "consciência". É interessante que
aqui o termo consciência tenha sido usado por Nietzsche propositadamente no sentido irônico;
quer dizer, esta consciência de que os filósofos tanto falavam é, na verdade, isto ou esta
ferramenta, esse utensílio, de que é preciso lançar mão para se viver em comum. E as aspas
prosseguem 3 vezes sobre a palavra saber. "Saber" ele mesmo, o que lhe falta, "saber" como
se sente, "saber" o que pensa. Ou seja, o uso reiterado das aspas no saber, tem também aqui
uma intenção irônica no sentido de mostrar que aquilo que nós conscientemente sabemos é
muito provavelmente um falso saber. Ou seja, é um saber entre aspas, isto é, é um saber
parcial, limitado, calibrado na perspectiva da consciência. Então, aquilo que a gente diz "saber
conscientemente" é saber entre aspas; ou seja, não é saber no sentido em que os filósofos
chamam de saber. Vale dizer: o saber consciente não é inteiramente consciente-de-si, daí
porque é preciso usar saber entre aspas. Um saber coletivo. Um saber na perspectiva do
coletivo, do gregário.
Comentário: Mas não necessariamente é sempre assim.
Professor: Do ponto de vista da consciência, necessariamente é assim; é do ponto de vista da
linguagem o que você está falando. E a gente vai chegar aqui, exatamente nesse momento.
Pois, para dizê-lo mais uma vez: o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas
não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós
dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente
ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da
própria consciência.
Aqui, todos os passos estão dados: consciência, sociabilidade e linguagem. Isso que o Dornelis
estava dizendo agora, na perspectiva gregária, ou seja, este saber consciente é o saber
necessariamente posto sob a perspectiva comunitária, gregária, por isso, para Nietzsche,
superficial. Por que? Porque este pensamento consciente é o pensamento verbal. Ou seja, é
aquele que se dá em signos de comunicação, ocorre em palavras. Com o que se revela a
origem da própria consciência; quer dizer, a origem da consciência é gregária, é comunitária; e
é precisamente por isso que ela é verbal, lingüística neste sentido aqui.
Pergunta: Ele chega a discutir com Rousseau no Ensaio das Origem das Línguas? Porque é a
tese do Rousseau.
Professor: É a tese do Rousseau. Sem dúvida nenhuma.
Comentário: É melhor granir, urrar com Rousseau.
Professor: É importantíssima. Eu tive a oportunidade de discutir isso, agora, numa tese de
doutorado sobre Rousseau, eu não sei até que ponto Nietzsche conheceu esse texto. Acho até
que não conhecia o Ensaio sobre a Origem das Línguas. Mas é impressionante a proximidade.
É realmente impressionante. Ao mesmo tempo uma proximidade nesse aspecto, uma diferença
brutal no que diz respeito, por exemplo, a jus naturalismo, etc.
Professor: Por que você diz, que ele não conhecia o texto?
Professor: Porque eu não conheço em Nietzsche nenhuma referência a esse texto. Há várias
referências ao Rousseau, a Contrato Social, etc.; mas não a este texto. Ele teria que corroborar
exatamente com aquilo que o Rousseau mostrou. E não é o único ponto de proximidade entre
Nietzsche e Rousseau, ao contrário do que Nietzsche afirma, esbraveja o tempo todo, e nós
vamos ver quando fizermos a análise gramatical nos textos que vão se seguir, como a
proximidade com Kant é assustadora, apesar das invectivas todas contra o Kant. Mas fica
claro, então, como é que essa origem da consciência é uma origem necessariamente gregária
e como ela é contemporânea do surgimento da linguagem ou dos signos de comunicação.
Dito concisamente, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não
da razão, mas somente do tomar-consciência-de-si da razão) vão de mãos dadas.
Não existe possibilidade de se confundir, em Nietzsche, a razão com a consciência. É a tese,
que nós já vimos enunciada no Zaratustra, da diferença entre a grande razão e a pequena
razão. É só a pequena razão, que é idêntica a consciência, e que, portanto, se dá sob ou sobre
a superfície da linguagem. Então, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da
consciência vão de mãos dadas. Então, quanto mais desenvolvida é a consciência ou tornar-
se-consciente-de-si, tanto mais é desenvolvida a linguagem.
Acrescente-se que não é somente a linguagem que serve de ponte entre homem e homem,
mas também o olhar, o toque, o gesto;
Portanto, aqui, a linguagem está sendo considerada, por Nietzsche, não somente do ponto de
vista da linguagem verbal, mas da comunicação em geral.
... o tomar-consciência de nossas impressões dos sentidos em nós mesmos, a força de poder
fixá-las e como que colocá-las fora de nós, aumentaram na mesma medida em que cresceu a
urgência de transmiti-las a outros por signos. O homem inventor de signos é ao mesmo tempo
o homem cada vez mais agudamente consciente de si mesmo; somente como animal social o
homem aprendeu a tomar consciência de si mesmo - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. -
É somente do ponto de vista do pacto social, ou para usar a expressão de Nietzsche, aqui,
como animal social, que o homem se torna consciente de si, aprendeu a tornar-se-consciente-
de-si. E, precisamente, tornar-se-consciente-de-si se dá no mesmo movimento em que se
inventa signos de comunicação, em que se desenvolve, por conseguinte, a linguagem. Bom, aí
é um traço de separação no texto, muito característico do Nietzsche, como que para mostrar
que se trata de um segundo momento do argumento.
Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da existência
individual do homem...
Ou seja, consciência não é um dado da natureza, ela não é a natureza mesma do eu.
...mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho; que também, como
se segue disso, somente em referência à utilidade de comunidade e rebanho ela se
desenvolveu e refinou e que, conseqüentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de
entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de "conhecer a si mesmo", sempre
trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si, seu "corte transversal" - que
nosso pensamento mesmo, pelo caráter da consciência - pelo "gênio da espécie" que nele
comanda -, é constantemente como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do
rebanho.
Essa, então, é a tese completa. Bom, vocês certamente devem imaginar porque esse
"conhecer a si mesmo" aqui está entre aspas: é o famoso dito socrático que é a origem da
filosofia: "conhece-te a ti mesmo". Ora, mas conhecer-se a si mesmo é a maior mentira
possível, porque conhecer-se a si mesmo é a melhor maneira de ignorar-se tão completamente
quanto possível. Porque conhecer-se a si mesmo significa retraduzir-se inteiramente na
perspectiva do rebanho, do comum, por conseguinte, do não próprio, do não pessoal, do não
singular. Ou seja, significa, simplesmente, o esquecimento do individual.
Várias aporias estão implicadas nisso. Como tomar consciência do individual, daquilo que é
não gregário, daquilo que é não comunitário, o que é que significa entrar em relação com o si
mesmo. Esse é, talvez, um dos maiores problemas para Nietzsche. É isto que vai afastá-lo
sempre de toda e qualquer tentativa de universalização, seja a nível das vivências, seja,
inclusive, a nível das suas próprias posturas teóricas. Por exemplo, só para dar uma indicação
neste sentido, o fato de que ele constantemente insiste em dizer: "Olha, determinadas
vivências e determinadas experiências não são para todos". Aquilo de que todos são capazes,
é precisamente aquilo que é comum. O universalizável está sempre posto sob a perspectiva do
rebanho.
Comentário: Então, para ele, a natureza é seletiva?
Professor: A natureza não é propriamente seletiva. Isso seria uma perspectiva, para ele, de
rebanho, a perspectiva darwinista, que é o sentido da crítica dele ao darwinismo. A natureza,
para Nietzsche, é o princípio de diferenciação. Ela funciona sobre a base da diferenciação. E a
gente vai tentar ver em que sentido e, tanto quanto possível concretamente, o que é que
significa esta vivência do singular, do individual; como é que ela se expressa ou pode se
expressar. Uma das suas formas é, exatamente, uma forma negativa que consiste na denúncia
das falsas formas de auto-conhecimento. Como, por exemplo, "conhece-te a ti mesmo". Como
se você pudesse ter acesso ao si-mesmo via consciência. Como se a consciência não fosse
uma espécie de epifenômeno ou fenômeno de superfície desse si-mesmo. E você tem que
tomar o corpo, aí sim, para Nietzsche, um ponto de partida, que não é mais a consciência. É
esta a grande razão.
Pergunta: Quando ele põe aqui justaposto neste texto, necessidade, carência, indigência e
utilidade, me parece que utilidade tem um sentido mais positivo do que a idéia de necessidade
e carência. Quando aparece necessidade e carência, indigência, é brava a coisa, mas o
sentido de utilidade não é.
Professor: Eu detesto fazer isso, mas será que a gente poderia esperar, porque é um anzol a
questão da utilidade nesse texto, como muitos são os anzóis espalhados aqui. No final do
texto, ele vai desfazer essa idéia de uma derivação, pura e simplesmente, utilitarista. Ele vai
mostrar como a utilidade, ela própria é uma ilusão. Então, vamos ver se a gente consegue
chegar até lá, para que a coisa seja, talvez, mais esclarecida ou melhor esclarecida.
Introdução
Passemos direto ao número 17. Vocês devem se lembrar que eu passei a vocês um texto de
um fragmento que eu traduzi avulsamente, eu acho que todos vocês têm essa tradução. Este
texto é uma versão preparatória desse aforismo número 17. Em boa medida ele coincide com o
aforismo número 17, mas evidentemente ele é uma versão preparatória. O curioso em
Nietzsche é que, às vezes, as versões preparatórias são mais claras do que o texto
definitivamente publicado. Isto corresponde a uma maneira muito peculiar de Nietzsche lidar
com os seus próprios textos. Ou seja, Nietzsche é um pensador e ao mesmo tempo um escritor
que gosta de produzir determinados efeitos de estilo, e um desses efeitos de estilo é, na
verdade, não apresentar os seus pensamentos de uma forma absolutamente inequívoca, ou
seja, apresentá-los de alguma forma ambígua. Existem efeitos de fachada nos textos por
Nietzsche publicados que enganam muito; as pessoas menos atentas ficam presas nas
fachadas e realmente perdem aquilo que está nos bastidores do texto. Enquanto que nos
textos que são versões preparatórias, ele mostra, ilumina esse bastidores; então alguns deles
ficam muito mais simples, mais claros para você ler um texto não publicado na versão
preparatória do que um texto publicado. Um dos objetivos de eu ter trazido este fragmento para
vocês é exatamente esse, para vocês perceberem as diversas camadas de elaboração do texto
que Nietzsche faz até a sua definitiva publicação. Esse é um efeito absolutamente voluntário e
visado, se vocês pensam, por exemplo, que o subtítulo do Assim Falou Zaratustra: é um livro
para todos e para ninguém, ele tinha plena consciência de que os escritos não seriam
completamente entendidos ou inteligíveis no seu tempo. Portanto, a frase clássica que ele
escreve no final da vida, na sua autobiografia: "Eu nasci póstumo", quer dizer, meu
pensamento não é para o meu século é para daqui alguns séculos. Isso é muito interessante,
no caso dele, porque esse estilo de escrever é algo que ele cultiva com maestria. Se vocês
lerem o prefácio de Para a Genealogia da Moral, ele vai dizer o seguinte:
"Os meus escritos são compostos de tal maneira que interpretá-los exige uma faculdade muito
especial, que os homens modernos não têm, uma faculdade de ruminação; para entender os
meus escritos precisa ser de alguma forma vaca, isto é, precisa ter capacidade de ruminar e
perder tempo com eles"
Comentário: Ele tem toda a razão. É tão desconcertante a gente ouvir isso, porque li e fiquei
tão abismada, que eu não conseguia achar nada, então fiquei ruminando.
Professor: Ele diz: especialmente nós homens modernos temos a ânsia do tempo, quer dizer,
nós estamos o tempo todo apressados e entendemos, por conseguinte, pela rama, pela
superfície. Agora, para entender os meus escritos é preciso ser capaz de ruminação, de
mastigar, devolver, voltar a mastigar, etc. Então, é por isso que muitos são os exemplos de
textos que são definitivamente publicados numa versão que não é tão clara quanto as versões
preparatórias.
Comentário: Por um outro lado teríamos de entender que o pensar não é a função principal de
todas as pessoas e que um indivíduo, que não é tipo pensamento, tem uma grande dificuldade
de ficar ruminando pensamentos, de trabalhar com pensamentos e que esses indivíduos vão
por outros caminhos que não o do pensamento.
Professor: Nietzsche tem isso muito claro para ele; quer dizer, de fato somente algumas
pessoas teriam condição de se apropriar inteiramente dos escritos, mas isso não somente dele,
mas de qualquer texto teoricamente denso, porque, para ele, pelo menos - se a sua teoria tem
sentido ou não, isso é uma outra coisa - o tempo do pensamento é um tempo próprio, a
temporalidade do pensamento é uma temporalidade, digamos, sui generis, e esse é o grande
truque da modernidade: consiste justamente em esterilizar o pensamento por meio da
destruição do seu pressuposto temporal de maturação. Quer dizer então, que não é por acaso
que o mundo moderno é mundo da mídia, o mundo da imprensa, o mundo da opinião pré-
fabricada, mas precisamente por isso não é o mundo do pensamento, não é o tempo da
reflexão. E de fato acho que, desse ponto de vista, Nietzsche tinha toda razão, nós depois da
revolução industrial e, sobretudo, depois da ampla difusão da indústria cultural, de fato nós
perdemos, em grande medida, a capacidade da reflexão e do pensamento original. Os gostos
são pré-formados, as opiniões são pré-formadas, os gêneros são pré-formados, a ponto de
hoje em dia a mídia escolher, por exemplo, nosso vocabulário. Dependendo da forma como
você escreve, como você se expressa, você não encontra espaço absolutamente nenhum em
órgão de comunicação, se não usar o vocabulário da moda, simplesmente você não é ouvido.
[Nota: Houve neste momento uma discussão sobre se o acesso total aos escritos de Nietzsche
é facilitado pelos indivíduos introvertidos ou não. E parece que isso independe um pouco do
tipo de tendência da psique e depende muito mais de se permitir fazer a experiência do
pensamento, ou seja, mergulhar de fato na interioridade de si para buscar a si mesmo e não
ser conduzido pela mídia. É isso que Nietzsche está propondo.]
Professor: Há uma frase de um texto tardio de Nietzsche que diz o seguinte: "Eu não sei o que
significa uma verdade objetiva, todas as verdades são para mim verdades sangrentas". No
fundo, para usar outra imagem do mesmo período, se você não escreve com seu próprio
sangue, a sua relação com aquilo que você escreve, pensa, e eventualmente divulga, é uma
relação simplesmente exterior e artificial. E não é exatamente esse o tipo de leitor ideal para
Nietzsche, pois, para ele, o leitor ideal é aquele que, não necessariamente concorda com
aquilo que lê em um autor, mas que realmente assimila, do ponto de vista das suas vivências
mais profundas, aquilo que lê. Ou seja, aquele para quem o problema da verdade, o problema
da autenticidade numa teoria, não é simplesmente um problema lógico.
Comentário: Às vezes ele faz uma provocação, porque ele rompe com qualquer idéia de
previsibilidade, ele é muito imprevisível. Eu não tinha lido antes e então você vai
completamente leiga neste caso, mas é inteiramente imprevisível e desmonta todas as tuas
verdades e não só elas, mas também sua maneira de pensar e de argumentar. É muito
desconcertante... Quando eu passava naqueles pontos que seriam, politicamente, os mais
incorretos, ele fala de homens, mulheres e judeus, aquela coisa de louco, eu não conseguia
nem ficar na chamada, entendeu? Então, veja, não dá para entrar numa interpretação literal,
que muitas vezes é a maneira mais fácil de dizer que ele era conservador... etc. É tão
desconcertante!...
Professor: É verdade. O primeiro efeito que Nietzsche produz e, talvez seja o mais devastador,
é este de intranqüilizar mesmo, de desestabilizar aquelas trilhas habituais do pensamento, isso
realmente desarruma a casa.
Comentário: Completamente. Eu não conseguia achar nada, a não ser ler.
Aforismo 17 de Além do Bem e do Mal
Professor: Bom, podemos começar aqui no 17 com essa observação acerca do estilo apenas
para introduzir.
"Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses
supersticiosos não admitem de bom grado - a saber, que um pensamento vem quando "ele"
quer, e não quando "eu" quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o
sujeito "eu" é a condição do predicado "penso". Isso pensa: mas que este "isso" seja
precisamente o velho e decantado "eu" é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma
afirmação, e certamente não uma "certeza imediata". E mesmo com "isso pensa" já se foi longe
demais; já o "isso" contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo.
Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: "pensar é uma atividade, toda a atividade requer
um agente, logo -".
Esse ponto até onde você leu completa o grande movimento do texto. O texto se perfaz com
um segundo movimento que vai começar logo depois desse traço de separação. A primeira
coisa que eu gostaria de observar para vocês é a primeira frase do texto. Essa primeira frase
contém uma provocação cínica, não sei se vocês identificam essa provocação...
Resposta: Superstição...
Professor: Sim, superstição. Na verdade, ele atribui aos lógicos uma superstição. Ora, a lógica
é exatamente aquela doutrina do espírito que menos tem a ver com a superstição. A lógica,
como a matemática, é a teoria das puras formas, das leis formais do pensamento que abstraem
de qualquer conteúdo, e os lógicos são, dentre todos os teóricos, aqueles que se consideram
acéticos por natureza. Eles nada tem a ver com nenhum objeto do pensamento, apenas têm a
ver com a forma do pensamento e mais nada, com valores veritativos, isto é, com as formas
lógicas do juízo. Ora, de repente, vem alguém dizer que os lógicos são supersticiosos e que
principalmente, como supersticiosos, não admitem isso de bom grado, não confessam a si
mesmo essa superstição. É realmente algo para provocar no mais fundo. E na verdade, essa
superstição que os lógicos não confessam, eles não confessam porque essa "superstição"
constitui o pressuposto fundamental da lógica, isto é, a idéia da autonomia do pensamento.
Ora, imagino que todos nós estamos aqui de acordo; não somente os lógicos pensam assim,
mas toda a tradição pensa assim, ou seja, aquilo que caracteriza o pensamento e, sobretudo, o
pensamento na sua condição de racionalidade é a espontaneidade do seu funcionamento. Ao
contrário, por exemplo, da sensibilidade que é passividade, eu não posso ter nenhuma
sensação, nenhuma percepção senão em função de uma afecção que os órgãos dos sentidos
recebem por parte dos objetos ao meu redor, por conseguinte, a sensibilidade é
essencialmente passiva; mas a razão não, a razão é atividade, ou seja, ela é
fundamentalmente uma atividade sintética, combinatória. Então, a lógica que tem a ver com as
leis gerais do pensamento tem a ver com a espontaneidade, por conseguinte, com a atividade,
ou seja, com o lado ativo dos nossos processos mentais, nossos processos de raciocínio, etc.
E, por conseguinte, a lógica está construída, em boa medida, com base nessa autonomia do
pensamento e, sobretudo, autonomia da consciência enquanto sede do pensamento.
E aqui Nietzsche diz exatamente o contrário: o pensamento vem quando "ele" quer, não
quando "eu" quero. A consciência não é o centro autárquico do pensamento, não é de modo
nenhum o centro autônomo do pensar. E dizer que o pensamento vem quando eu quero é uma
falsificação da situação de fato. E como é possível essa falsificação dessa situação de fato? Se
vocês observarem algumas linhas abaixo vocês verão que essa falsificação é tornada possível
pela invenção do sujeito. Nietzsche coloca a palavra "eu" entre aspas aqui. Com essa
colocação entre aspas ele quer de novo - aprofundando esse movimento de ironia, que ele está
desenvolvendo nesse texto aqui -, marcar o efeito de estranhamento em relação a esse eu, ele
quer chamar a atenção para que esse eu é algo estranho, é algo inventado, não é algo natural.
O sujeito eu é a condição do predicado "penso". Essa é exatamente a fórmula por meio da qual
se constrói esta superstição da lógica. Ou seja, há um processo mental do pensamento, esse
processo é remetido a um eu, a um agente que é, por assim dizer, ao mesmo tempo, substrato
e causa do processo. E o mais engraçado é que o Nietzsche diz:
Isso pensa, mas que precisamente este "isto" seja o velho e conhecido "eu", isso dito, de
maneira suave, é apenas uma hipótese, nenhuma "certeza imediata".
O que está sendo colocado aqui é exatamente a maneira pela qual Nietzsche pretende
mostrar, insinuar, que quando eu digo "eu penso", eu não estou constatando nenhum fato, o
que eu estou fazendo é uma interpretação. Eu tomo um processo, no caso um processo
mental, que eu descrevo como pensamento e atribuo esse estado mental a um sujeito como se
esse estado mental, como se esse pensamento fosse predicado desse sujeito, isto é, eu digo
que o sujeito eu é autor e causa do pensamento. Ele está querendo mostrar que a proposição
"eu penso", não é um fato, não é expressão de um fato, sobretudo, não é uma "certeza
imediata", mas ela é uma interpretação de um processo psíquico. Que interpretação? Uma
interpretação que é induzida por um hábito gramatical. Que hábito gramatical é esse? Eu posso
dizer "eu penso" ou eu posso dizer "isto pensa", "ele pensa", "algo pensa". O que nós
queremos dizer quando nós formulamos proposições desse gênero? A que pergunta nos
remete essa atribuição? Se nós fizermos uma reflexão sobre aquilo que nós efetivamente
fazemos quando dizemos "eu penso", ou "isto pensa", nós não estamos fazendo outro coisa
senão nos perguntar pelo agente ou pelo sujeito da ação verbal: quem pensa? Isto é, nós
buscamos um substantivo que possa funcionar, ocupar o lugar de sujeito da ação expressa
pelo verbo. Está claro? Então, eu, isto, ele, etc. remete sempre a esta função subjetiva,
substantiva, que no fundo completa a inteligibilidade da frase expressa na ação verbal. É por
isso que Nietzsche diz: por último, já com este "isto pensa" nós vamos longe demais, este "isto"
contém uma interpretação do processo e não pertence ao próprio processo, quer dizer, esse
"isto" é exatamente a expressão da função gramatical do sujeito na proposição, "isto" é
exatamente a mesma função que o "eu".
Ele está dizendo, portanto, que a proposição "eu penso" ou "isto pensa" não é simples
descrição de um fato objetivo, puro, não é nenhuma certeza imediata, mas ele é o resultado de
uma interpretação, de uma interpretação que se procura pelo sujeito da ação verbal. Nós
veremos isso, com bastante clareza, no exame dos Fragmentos Póstumos. E, sobretudo, não é
uma "certeza imediata". O que é uma certeza imediata? Vocês estão lembrados quando nós
examinamos o texto do Descartes? Descartes diferenciava a dedução enquanto um processo
mediato no tempo, enquanto processo discursivo da intuição entendida como conhecimento
imediato de um objeto, presença a si sem mediação de uma objeto. Então, Descartes, dizia:
"eu penso", isto é uma intuição, isto é uma certeza imediata", isto é a presença direta do
pensamento a si mesmo, da consciência a si mesma. Percebam que o que Nietzsche está
fazendo aqui é desconstruir essa imediatidade, ele está dizendo: Olha, "eu penso" não é
nenhuma "certeza imediata", é o resultado de uma interpretação; logo, aquilo que, para
Descartes, era perfeitamente assegurado como pura transparência já contém uma certa
temporalidade, ou seja, um processo que se desenrola com o tempo. Vejamos esse processo
mais de perto:
"Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: "pensar é uma atividade, toda a atividade requer
um agente, logo -".
Analisando esta frase nós temos, aqui principalmente, uma caracterização por Nietzsche do
processo que se encontra em curso quando nós fornecemos uma interpretação expressa por
uma proposição do tipo "eu penso", ou seja, o estado mental que eu descrevo chama-se
pensamento. Ora, pensamento é uma atividade, ora toda atividade pertence a um autor, logo a
esta atividade pensar pertence necessariamente o sujeito do pensamento que sou eu. Agora,
quem é que garante que sou eu que pensa? Por que necessariamente pensar tem que ser uma
atividade para a qual é necessário um autor? Por que o pensamento tem que ser pensado
como efeito de um sujeito? Nada disso Descartes explica na sua famosa "certeza imediata",
tudo isso é encoberto exatamente pela imediatez e certeza de si do cogito mas, no entanto, diz
Nietzsche, isso tudo é uma interpretação. E o que ele está fazendo aqui é mostrar os passos
dessa interpretação. Ora, essa frase: "pensar é uma atividade, a toda atividade pertence um
agente", qual é a categoria que está operando aqui? Que relação existe entre o agente e a
atividade? Relação de causa e efeito, percebem? Quer dizer, todo processo é conduzido por
um raciocínio de tipo causa e efeito, que os lógicos chamam de inferência causal, por isso que
ele termina a frase antes do traço de separação com: logo. Ele quer chamar a atenção para a
partícula, para o conectivo lógico, para o sinal de inferência. Com isso ele quer mostrar que se
trata de um raciocínio e não de uma intuição. Trata-se conseqüentemente de uma dedução e
não de uma presença imediata, dada. Portanto, por conseguinte, ou seja, por conseqüência...
Pergunta: É uma seção gramatical, é isso? Agora, eu gosto muito dessa idéia de concepção
gramatical. Mas, é possível escapar disso?
Professor: Essa é uma grande pergunta.
Comentário: Eu estava ansiosa para chegar nisso...
Professor: Tais categorias são os modos como o pensamento se estrutura. A pretensão deste
curso é explorar e clarificar, tanto quanto possível, isso e, sobretudo, as aporias que isso
encerra. Isto que nós estamos vendo aqui agora é exatamente aquilo que a Amnéris leu no
livro de Christoph Türcke. É isso que Christoph Türcke chama escândalo da razão. Ou seja, é
esta operação de reflexão sobre os limites do pensamento e da linguagem. Apenas para
adiantar um pouco, o que nós estamos vendo aqui é a construção daquilo que nós chamamos
de mundo, ou seja, a construção dos objetos do pensamento. Ora, vai começar a ficar claro, a
partir daqui, que o mundo do qual nós falamos, nós não temos absolutamente nenhuma
garantia de que aquilo que nós chamamos de real tenha outra estrutura que não aquela que é
determinada pela raiz lógico gramatical da nossa linguagem. Então, o que é o mundo objetivo,
o que seria o real fora do pensamento é absolutamente inacessível, o real de que nós falamos
é o real que nós construímos e nós o construímos a partir da estrutura fundamentalmente
gramatical da nossa linguagem.
Então, vejam, é possível falar para além desses limites? Não. Por quê? Porque eu só posso
falar aquilo que é gramaticalmente possível. Eu só posso fazer, por conseguinte, um discurso
com sentido sobre os objetos quando eu faço um discurso que respeita as regras fundamentais
da lógica e da gramática, do contrário o meu discurso é sem sentido, é ininteligível. Porém, isso
não significa que eu possa alimentar a pretensão de conhecer a estrutura ontológica da
realidade porque essa estrutura cognoscível para mim, já é filtrada pelos esquemas categoriais,
vale dizer, lógico gramaticais do meu discurso. Então, vejam, que nível de radicalidade está
sendo colocado aqui. Vejam: "isto", ou "eu" são elementos lógicos de identificação. São
elementos com os quais eu preciso operar para poder detectar na realidade algo como o
"mesmo", o "outro".
Comentário: Isso que ela perguntou e não dá para fugir disso.
Professor: Não. Nós vamos ver como isso é explicitamente tematizado nos textos de Nietzsche,
quer dizer, para que eu possa falar, para que eu possa compreender o que está acontecendo,
preciso enquadrar os acontecimentos com a ajuda de determinados elementos, que são
elementos de identificação inclusive. É para isso que eu preciso de substantivo, adjetivo,
sujeito, predicado, agente, paciente, causa, efeito. Ou seja, as regras fundamentais da
gramática da nossa linguagem tem essa função identificatória, por exemplo, para que eu possa
falar: "isto é uma apostila", eu preciso que eu já esteja operando com um conceito qualquer que
produza identificação, ou seja, é preciso que eu esteja trabalhando com o conceito de
substância, ou para que eu diga: "o livro é azul", é preciso que eu esteja de novo trabalhando
com conceitos a partir dos quais eu torno possível para mim mesmo congelar, fixar, estabilizar
o fluxo das minhas percepções, a ponto de identificar alguma coisa como idêntica a si mesmo,
ou seja, poder identificar algo como o livro ou um livro, ou qualquer coisa assim. Sem que eu
tenha esses conceitos fundamentais não posso, sequer, estruturar uma determinada ordem de
realidade cognoscível para mim; para que eu opere essa estruturação eu preciso de esquemas,
de princípios, e exatamente os mais fundamentais desses princípios são aqueles que estão
depositados na estrutura lógica da nossa gramática. E aqui Nietzsche está mobilizando dois: a
diferença gramatical que é fundamental para a proposição atributiva entre o sujeito e o
predicado, e a categoria de causa e efeito, a gente e paciente. É com o auxílio destas
categorias que Descartes interpretou o fenômeno do pensamento e pôde extrair a preposição
"eu penso" que, para ele, era uma "certeza imediata", mas que, para Nietzsche, é um
raciocínio, o resultado de um raciocínio. Ora, se para Descartes o "eu penso" só poderia
subsistir porque justamente ele não era um raciocínio, mas uma certeza imediata, uma intuição
do pensamento; e se nós descobrirmos que ele não é intuição, mas sim o efeito de um
raciocínio, então a certeza do cogito está desqualificada. Percebe-se então que o esquema
mental seguido por Descartes é mais ou menos o esquema da causalidade; há uma fenômeno
que é pensamento e para toda e qualquer tipo de atividade tem de se pensar necessariamente
um agente, logo eu penso. Bom, vamos prosseguir?
"Mais ou menos segundo esse esquema o velho atomismo buscou, além da "força" que atua, o
pedacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos
aprenderam finalmente a passar sem esse "resíduo de terra", e talvez um dia nos habituemos,
e os lógicos também, a passar sem o pequeno "isso" (a que se reduziu, volatizando-se, o velho
e respeitado Eu)."
Então aqui, de novo, é mais uma provocação final. Ele está querendo dizer que o próprio
atomismo necessitava, justamente como suporte material da força, o átomo. Então, o átomo
era esse princípio elementar de unidade de que se compunha todo o universo. Então, a
unidade elementar e última a partir da qual toda força atua são os átomos.
Quando ele diz: "cérebros mais rigorosos", está se referindo aqui precisamente aos físicos e
matemáticos e, em especial, a Boscovich, um matemático croata que Nietzsche julgava ser
polonês. Mas o que Boscovich dizia? Dizia o seguinte: "Não é necessário, do ponto de vista da
física e da matemática, postular para força nenhum suporte material", ou seja, os físicos e
matemáticos podem muito bem prescindir do suporte material atômico e mesmo assim
continuar trabalhando com a noção de força e de campos de forças. Isso concerne diretamente
ao coração da sua pergunta. Vejam, para que se possa trabalhar com sentido no domínio da
matemática e da física, não é necessário que eu pense na unidade elementar da matéria ou do
átomo, eu posso prescindir de uma unidade elementar da matéria e ainda assim continuar
trabalhando com sentido com a noção de força e com a noção de campos de força. Ou seja,
não é preciso de suporte material nenhum, eu não preciso encontrar nenhuma unidade última a
que eu tenha que reportar o conceito das forças atuantes em um determinado campo.
Ora, se não preciso do átomo para que preciso do "eu", ou para que preciso do "isto"? Em
última instância, para que preciso deste suporte, desta unidade derradeira, que funciona como
suporte ou substrato do agente na ação? É porque que eu preciso desta unidade garantida
pela função elementar do sujeito da proposição. Ou seja, da mesma forma como os
matemáticos, os físicos, os cérebros mais rigorosos, prescindiram da unidade elementar do
átomo, talvez os lógicos possam prescindir da unidade elementar do "eu", ou seja, desse
resíduo de terra que é sustentáculo da proposição. E aqui eu volto a sua pergunta: será que os
lógicos podem prescindir disso? A esperança é que talvez venha um dia em que eles possam
passar sem o "isto" no qual se volatilizou o antigo e respeitado "eu". Aqui, na minha opinião,
Nietzsche não está propondo simplesmente que os lógicos abram mão da noção de sujeito; o
mais fundamental aqui é, ao invés disso, compreender que aquilo que os lógicos têm que abrir
mão não é da noção de sujeito, mas das superstições metafísicas da noção de sujeito. Ou seja,
desta idéia de sujeito como unidade substancial. Vale dizer, aquilo que os lógicos têm que abrir
mão é de toda esta - por isso o sentido da primeira provocação -, ganga metafísica que a lógica
assume ao trabalhar irrefletidamente com essa noção.
Comentário: E pode até continuar usando, mas sabendo...
Professor: Sabendo que é pura função. Ou seja, sabendo que por detrás desta função não se
esconde nenhuma substância.
Comentário: É só uma função gramatical.
Professor: Exatamente. Logo, o que está em discussão aqui? Que este "eu" não é a alma, ou
seja, que este "eu" não garante nenhum princípio de unidade espiritual, que esse "eu" é, repito,
uma função da gramática.
Comentário: Por conseguinte, a própria alma então...
Professor: Por conseguinte a própria alma, tanto quanto o átomo, eles são da mesma natureza,
percebem? Todos eles são travestimentos desta função elementar de unidade identificatória.
Pergunta: No fundo nos perguntamos: e daí, "quem somos nós?"
Professor: É exatamente essa a pergunta: "quem somos nós?" essa pergunta decorre
necessariamente do que nós estamos vendo aqui: "Nós somos necessariamente aquele que
nos desconhecemos", esse é no fundo o resultado geral deste movimento. Por quê? Porque
nós só podemos saber a nosso próprio respeito a nível da consciência, porque a consciência
está toda ela estruturada sobre a gramática da linguagem, por conseguinte, aquilo que nós
sabemos de nós mesmos diz respeito unicamente a essa superfície aonde se enraíza e até
onde, e somente até onde, atua o pensamento consciente. Logo, tudo o que nós sabemos de
nós são esses efeitos de superfície. De fato, aquilo que se passa no nível de profundidade
maior, nós desconhecemos.
Pergunta: Então, também não é possível conhecer?
Professor: Sim, é possível conhecer. Veja que você está tocando com o dedo nos problemas
que Nietzsche está querendo tratar; é possível conhecer sim, só que você tem que renunciar à
ilusão de que esse conhecimento seja o conhecimento que corresponda a uma espécie de
estrutura ontológica do real, ou que seja capaz de conhecer fundamentalmente aquilo que você
próprio é. Esse conhecimento é possível, é realizável. Quando ele está falando dos "cérebros
mais rigorosos" está falando justamente da física e em especial da física que se funda na
matemática, nos princípios mais gerais da mecânica, etc. E todo esse conhecimento é possível
e ele é real, se faz efetivamente. O grande problema é que os lógicos, assim como os
metafísicos têm pretensões maiores, pretendem que o seu pensamento, que as teorias gerais
da ciência, correspondam à estrutura ontológica da realidade. E tudo que está se passando
aqui é que o termo "realidade" só pode ser usado entre aspas, porque não tem nenhuma
garantia de que eu fale alguma coisa que corresponda efetivamente à natureza do real, ou
seja, à estrutura do real porque tudo aquilo de que eu falo é predeterminado, prefigurado pela
estrutura lógica do meu discurso. Eu não posso pensar senão do ponto de vista do pensamento
consciente.
Pergunta: Mas isso no nível da gramática não no nível do significado?
Professor: É, as regras são tanto sintáticas quanto semânticas. Veja, se você quiser construir
uma teoria qualquer sobre o quer que seja, você tem que estabelecer em primeiro lugar regras
semânticas para que você se faça inteligível e obviamente você tem que estar trabalhando com
a linguagem que obedece uma certa sintaxe. Então, é óbvio que você pode formular a teoria
que você quiser, mas você tem que ter pelo menos minimamente a garantia de que você só
procede diante de certas regras, que você necessariamente obedece, do contrário o teu
discurso não tem nenhum sentido. Lógico que existem margens de interpretação, margens de
ambigüidade, mas há no fundo, atuando permanentemente, regras que determinam o sentido
da sua enunciação e tornam sintaticamente possível essa enunciação.
Pergunta: Por que gramática e não linguagem?
Professor: Porque a linguagem é composta de vários elementos, dentre os quais a gramática
está presente. Neste caso a gramática diz respeito à sintaxe fundamental de uma língua; é por
isso que ele insiste aqui no caráter normativo da linguagem do ponto de vista dos princípios da
articulação das proposições. Além do que você não tem necessariamente que se limitar naquilo
que é dito, a linguagem pode ter outras modalidades que não uma enunciação discursiva. Por
exemplo, a linguagem gestual, a postura corporal, a dança, tudo isso é linguagem, linguagem
entendida nesse sentido aqui como sistema de representação, de signos.
Comentário: Que não é a gramática.
Professor: Exato. Por exemplo, se você faz uma linguagem de gestos, você não está
necessariamente operando com a gramática, está operando simplesmente com regras, aí sim
são semânticas...
Pergunta: Mas você vai precisar da gramática depois?
Professor: Sim, mas nesse momento você não está trabalhando a gramática.
Comentário: É como o sonho, tem uma linguagem... mas quando você vai falar, você já está
usando a gramática.
Professor: Exato, a gramática aqui está sendo entendida como o conjunto daquelas regras e
funções que determinam o modo de se construir as proposições no interior de uma linguagem.
É nesse sentido. A gramática possibilita o conhecer, o tornar consciente, e para aflorar à
consciência será na estrutura lógico-gramatical do pensamento. Pensar é isso. Quando você
toma consciência já é informado pela estrutura lógico-gramatical do pensamento.
Pergunta: Então, conhecer é de um determinado jeito?
Professor: Sim, e só deste jeito, senão, não é conhecer; o que não quer dizer que não seja
nada, esse é o problema.
Pergunta: Mas nós precisamos traduzir nas formas da gramática...
Professor: Claro. Se você não traduzir nas formas da gramática, literalmente você não pensa,
isto é, o pensar consciente é um pensar necessariamente lógico-gramatical.
Comentário: Acho que é por isso que Descartes deu tanta importância...
Professor: Sem dúvida. Eu estou perfeitamente convencido de que se nós não tivéssemos
passado por Descartes e por Kant essa argumentação ficaria um pouco no vazio, porque
Nietzsche está supondo permanentemente esse diálogo. Nós vamos ver isso agora com base
no texto.
Pergunta: Mas, ele supõe - desculpe estar insistindo -, que existe algo para fora da linguagem?
Ele aí não recai num dualismo revisitado? Um da verdade verdadeira e outro da verdade
gramaticalmente construída?
Professor: Veja que coisa interessante que você está perguntando. Nós vamos ver esse
assunto aqui e agora com base no texto. Isto que você está perguntando é a pressuposição
fundamental do idealismo, ou seja, nós conhecemos os fenômenos, mas aquilo que não é
fenômeno, ou seja, as coisas em si mesmas nós não podemos conhecer. Isso é Kant. Kant diz
isso desde a primeira até a última linha da Crítica da Razão Pura. Aquilo que nós conhecemos
é o que aparece para nós, e isto é fenômeno para nós, segundo as regras de estruturação do
espaço e do tempo e das categorias do entendimento, como vocês já viram. O que as coisas
são nelas mesmas, independente do modo como elas aparecem para mim, isso jamais eu
posso conhecer.
Onde Nietzsche está querendo chegar aqui? Ele está querendo chegar a um passo
radicalmente à frente de Kant dizendo: "A própria idéia de se pensar na separação entre as
coisas tal como elas seriam nelas mesmas e as coisas tal como elas aparecem para mim, ou
seja, a própria idéia tradicional que vem lá desde a Grécia, desde Platão, fazer uma distinção
entre essência e aparência, isso é ilegítimo, isso não tem nenhum sentido. Eu jamais poderia
estabelecer esta diferença porque eu só posso pensar em termos da estrutura lógico-
gramatical. Então, "coisa em si mesmo" e "fenômeno", essência e aparência, verdade e
aparência, etc, tudo isto é uma diferenciação ilegítima, é uma imensa confusão, porque eu não
posso jamais falar com sentido, ou pensar em poder estabelecer uma distinção entre aquilo
que é a essência objetiva e aquilo que é aparência. Por quê? Porque todo o pensar é
aparência. Todo pensar já se constrói a partir das formas e dos princípios da lógica e da
gramática, então a própria distinção onde se funda o idealismo de Platão a Kant é uma falsa
distinção, não existe possibilidade de se ultrapassar o nível da aparência.
Ou seja, usando o vocabulário provocativo do Nietzsche, essa diferenciação entre aparência e
realidade é uma diferenciação ilegítima, não existe realidade, só existe aparência, não existe
verdade, só existe o falso. Ora, se não existe verdade e só existe o falso, então não existe mais
o falso, porque como os termos se definem simplesmente um por oposição a outro, se eu digo
que não existe mais realidade, então eu digo que não existe mais falsidade também. Eu não
posso dizer que existe a objetividade e aparência, só existe aparência. Tudo é aparecer.
Nietzsche vai dizer: "Tudo é perspectiva, cada um vê o mundo a partir do ângulo próprio da sua
perspectiva", só que perspectiva não está sendo pensada aqui perspectiva de um sujeito
concreto, individual, mas macro-perspectivas culturais, grandes modalidades de interpretação
do mundo segundo categorias de uma linguagem comum - aquilo que você estava
perguntando. Isso nós vamos ver ponto por ponto.
Fragmento 40(20) de agosto/setembro de 1885
Retomemos os Fragmentos Póstumos, página 7. Agora nós faremos uma seqüência. Eu estou
lendo o fragmento 40 (20) de agosto/setembro de 1885.
"Sem considerar os governantes, que ainda hoje acreditam na gramática como veritas eterna e
conseqüentemente como Sujeito, Predicado e Objeto, ninguém mais é hoje tão inocente para
estabelecer, a modo de Descartes, o sujeito ‘eu’ como condição de ‘penso’...."
Isso é uma primeira passagem. Eu vou deixar um pouco de lado essa questão da provocação
contra os governantes aqui, isso é uma questão que interessa um pouco mais remotamente
para nós. O que o Nietzsche está querendo dizer aqui é que a própria possibilidade de
obediência e comando - por isso os governantes que acreditam na lógica e na gramática - que
todas as experiências de obediência e comando supõem também a lógica e a gramática. Eu
não vou tratar dessa questão aqui, apenas eu vou tratar da segunda parte:
"... ninguém seria tão ingênuo a modo de Descartes para estabelecer o sujeito ‘eu’ como
condição de ‘penso’; por meio do movimento cético da filosofia moderna tornou-se-nos mais
admissível o inverso, isto é, considerar o pensar como causa e condição tanto do ‘sujeito’
quanto de ‘objeto’, ‘substância’, ‘matéria’: o que talvez seja apenas um tipo inverso de erro.
Vejam, este texto é incrivelmente curioso. É atribuído a Descartes uma ingenuidade imensa
que é ter feito do sujeito a condição do pensar. A lógica de Descartes, nós vimos agora no
aforismo que nós examinamos, é aquela segunda a qual para toda atividade pertence um
agente, ora o pensamento é atividade, logo há que ter um agente do pensamento. Então, o
sujeito ‘eu’ é condição do predicado ‘pensamento’. Nietzsche diz o seguinte:
"o movimento cético da filosofia moderna tornou mais admissível o inverso, isto é, o pensar
como causa e condição tanto do sujeito, quanto do objeto"
Aqui se revela a utilidade de nós termos feito o nosso percurso por Kant. Nietzsche está
tentando argumentar nesse sentido, que o próprio desenvolvimento da História da Filosofia
Moderna, especialmente através das objeções céticas a Descartes, e ele está se referindo aqui
de modo muito específico a David Hume. Então, o desenvolvimento da Filosofia Moderna, via
ceticismo, leva justamente a uma inversão da lógica cartesiana: não é o sujeito que se
apresenta como condição do pensamento, mas é o pensamento que é causa e condição tanto
de sujeito, quanto de objeto, substância, matéria, etc. Se vocês se lembram de Kant, que nós
analisamos, vai dizer precisamente isto: ‘Eu penso’ não é a indicação de uma substância mas é
exatamente a função lógica do pensamento, de tal forma que o ‘eu penso’ se apresenta como a
forma geral da consciência. Não propriamente como condição do pensamento no sentido
cartesiano do termo, mas exatamente como uma função, como a função lógica do pensamento.
Então, o próprio pensamento é que se coloca como condição dessa função. Percebem? O
argumento de Nietzsche é no sentido de mostrar que a lógica do Descartes se encontra
defasada pelo próprio desenvolvimento da História da Filosofia e que o pensamento não é
posto mais sob a condição de um ‘eu’ que é a sua causa, mas exatamente este ‘eu’ aparece
como tornado possível justamente por meio do pensamento como uma função do pensamento.
E não somente o ‘eu’, mas o próprio conceito de ‘objeto’, de ‘substância’, de ‘matéria’. E
Nietzsche vai dizer aqui que não se trata de dizer que Descartes estava errado e a tradição
cética está certa. Porque isso envolveria um dogmatismo da parte dele. Ele afirma, então: o
que talvez seja apenas um tipo inverso de erro. Nós vamos ver o que ele quer dizer com isso...
talvez Descartes tenha feito um erro e nós estejamos fazendo um outro. Não quer dizer
necessariamente que lá estava a verdade e aqui o erro, ou que aqui está a verdade e lá o erro.
Talvez a gente esteja simplesmente trocando um erro pelo outro.
"Isto, no entanto, é certo: nós abrimos mão da ‘alma’ e conseqüentemente também da ‘alma do
mundo’, da ‘coisa em si’, do mesmo modo que de um começo do mundo, de uma ‘causa
primeira’. O pensar não é para nós um meio para ‘conhecer’, porém para designar o acontecer,
para ordená-lo e torná-lo manipulável para nosso uso: nós hoje pensamos desta forma sobre o
pensar: talvez amanhã de outro modo. Nós não compreendemos mais propriamente como o
‘compreender’ teve que ser necessário. Compreendemos menos ainda como ele teve que
surgir: e se nos vemos sempre forçados a tomar em nosso auxílio a linguagem e os hábitos do
entendimento popular, a aparência do permanente contradizer-se não depõe ainda contra a
legitimidade de nossa suspeita."
Ou seja, o que está sendo considerado por Nietzsche aqui é que o pensar, especialmente o
pensar consciente, estruturado com base nas leis da lógica e da gramática não é um conhecer.
O que ele está querendo dizer com o pensar não é um conhecer? Ele está tocando a noção
tradicional de conhecimento que vem, desde os gregos até nós, como algo de desinteressado,
o conhecimento como contemplação, tanto quanto possível neutra, de um estado de fato, de
uma situação objetiva. Conhecimento como precisamente o contrário do desejo, do interesse,
da inclinação, do apetite, da paixão, o conhecimento como objetividade, ou como busca da
objetividade, como, portanto neutralização de todas as parcialidades, de toda parcialidade do
interesse na imparcialidade do objetivo. Ora, o que Nietzsche está dizendo aqui é que o pensar
justamente não é um meio para conhecer neste sentido, que não existe conhecimento neste
sentido, que o pensar é a maneira que nós temos de ordenar o real, designar aquilo que
acontece, tornar o real calculável, manipulável, previsível; ou seja, o pensamento é a maneira
por meio da qual nós podemos introduzir nos acontecimentos ou naquilo que vem a ser,
naquilo que se passa, nós introduzimos ordem, previsibilidade e, por conseguinte, possibilidade
de manipulação. Então, o fim último do pensamento e do conhecimento não é a cognição da
estrutura objetiva da realidade e sim tornar a realidade, para nós, manipulável, compreensível e
previsível. Quer dizer, há uma certa função utilitária do pensamento e do conhecimento.
"Também no tocante à ‘certeza imediata’, não é mais tão fácil nos satisfazer: nós não
reconhecemos ainda oposição entre ‘realidade’ e ‘aparência’’, nós falaríamos antes de graus do
ser - talvez preferivelmente graus da aparência - e azedaríamos ainda mesmo aquela ‘certeza
imediata’ de que nós pensamos e que, conseqüentemente, pensar tem realidade, com a dúvida
a respeito de que grau tem esse ser;"
Na medida em que o nosso pensamento e o conhecimento que nele se apoia não é senão um
meio para designação e calculabilidade do real, então, nós não poderíamos mais falar com
sentido numa diferenciação entre realidade e aparência, tudo aquilo que nós pensamos,
conhecemos é uma aparência ordenada, ordenada por meio dessas categorias e processos
mentais que são, em última instância, lógico gramaticais. Logo, não existe realidade de um lado
e aparência de outro, mas existem graus de aparência. E mesmo esta pretensa realidade a que
Descartes chega, isto é, a realidade do pensar, talvez não seja mais do que uma forma da
aparência. E aqui Nietzsche faz uma experiência curiosa com Descartes. Vocês estão
lembrados quando Descartes, nas Meditações, que vocês leram, fala da possibilidade de um
deus enganador ou de um gênio maligno? Seria assim uma espécie de potência universal da
falsidade? Então, Nietzsche para mostrar isso que ele está dizendo agora, ele vai dizer: "bom,
talvez eu possa argumentar com o próprio argumento de Descartes".
"E azedaríamos ainda mesmo aquela mesma ‘certeza imediata’ de que nós pensamos e que,
conseqüentemente, pensar tem realidade, - que é exatamente aquilo que Descartes queria
provar - com a dúvida a respeito de que grau tem esse ser; talvez fôssemos, como
‘pensamento de Deus’, de fato efetivos, mas voláteis e aparentes como o são os arco-íris.
Suposto que houvesse na essência das coisas algo de enganador, delirante, mentiroso, nem
mesmo a vontade, a melhor das vontades de omnibus dubitare, à moda de Descartes, nos
protegeria das ciladas desse ser;"
Ou seja, se eu suponho que possa haver efetivamente um princípio falso, um deus enganador,
como fundamento último de tudo aquilo que é, então, talvez até o pensamento que eu tenho a
respeito da minha própria existência possa ser um engano, e não adianta eu querer duvidar de
tudo, do ominibus dubitare, porque é muito provável que este seja uma forma da ilusão, uma
forma de engano que esse princípio do falso produz.
Ele está querendo dizer o seguinte: é muito possível que nós sem questionar que sejamos de
fato efetivos, sem questionar que existamos, talvez essa nossa existência, tal como nós
julgamos o existir, não seja senão algo simplesmente aparente, como o arco-íris. O arco-íris
não remete a nenhuma coisa de real, sólida, subsistente, mas simplesmente um efeito
luminoso. Então, vejam: se nós admitirmos como admitiu Descartes, que talvez possa haver
uma potência de falsidade na essência das coisas, então quem é que garante que, na verdade,
nós não somos nada mais nada menos do que pensamentos de Deus? E se eu penso Deus
como essa possibilidade universal do engano, então ao pensar, por causa do pensamento, que
eu sou e ao assegurar a minha própria existência como objeto a partir do pensamento, talvez
eu não esteja senão me enganando, exatamente obedecendo a esta potência universal do
falso e fazendo algo assim como se o arco-íris, exatamente pelo fato de aparecer, possa
reivindicar para si uma existência como algo concreto, como algo substancial. Então, da
mesma forma como o arco-íris não deixa de ser ou não deixa de aparecer sem efetivamente
ser alguma, muito provavelmente a ilusão cartesiana do ego é da mesma natureza, ou seja,
parece para mim que eu sou algo, mas na verdade eu não sou senão uma pura superfície.
E o que Nietzsche está querendo dizer aqui é que no fundo essa pretensão do sujeito
cartesiano, esta pretensão do sujeito metafísico, é demasiadamente onerosa... Nós
pretendemos obter para nós, por força da concepção tradicional do sujeito, algo assim como
um estatuto substancial e essa substancialidade daquilo que nós somos seria dada
precisamente pela consciência de si. E o que Nietzsche está querendo mostrar aqui é que a
consciência de si é só fachada, é só arco-íris. Quer dizer, pretender tomar o arco-íris por
alguma coisa efetivamente existente, que você pudesse tocar, segurar, fixar na unidade de
uma substância. Mas ele não é senão efeito visual.
É o que Nietzsche está tomando aqui metaforicamente, usando a imagem do arco-íris, para
mostrar exatamente o que somos nós quando nos pensamos substancialmente como
consciência de si. Ou seja, permanecemos no nível dos puros efeitos imagéticos visuais sem
tocar nenhum teor efetivo, nada que seja substantivo, substancial, embora tendo a ilusão de
ser.
Comentário: E tendo a convicção de ser.
Professor: Exato. Essa convicção, segundo o que Nietzsche está dizendo aqui, é uma
convicção forte, fortíssima, só que não resistente a uma análise com os instrumentos da própria
lógica. Eu volto à sua questão, Nietzsche não está usando nada que não seja a própria lógica,
entendeu? É isso que se chama experiência do pensamento ou escândalo da razão: ele está
refletindo sobre a razão a partir da própria razão, sobre a consciência a partir da própria
consciência; ele está mostrando quais são os procedimentos lógicos por meio dos quais eu
construo a minha teoria da subjetividade. Ele está fazendo isso para quê? Para mostrar os
limites, precisamente os limites a que uma análise dessa natureza conduz, e para moderar, por
conseguinte, as pretensões da metafísica.
"Já na medida mesmo em que, na opinião de Descartes, tivéssemos efetivamente realidade,
nós deveríamos, precisamente como realidade, de algum modo tomar parte naquele enganador
e mentiroso fundamento das coisas e em sua vontade fundamental: - basta, ‘eu não quero ser
enganado’ poderia ser o meio de uma vontade mais profunda, mais refinada, mais
fundamental, que quisesse precisamente o contrário, isto é, enganar-se a si mesma.
In summa, é de se duvidar que o ‘sujeito’ possa demonstra-se a si mesmo - para isso
necessitaria ele justamente ter um ponto de apoio firme fora dele mesmo, e este falta."
Vou tentar explicar essas frases enigmáticas. Este in summa é definitivo em termos da crítica
de Nietzsche e ele está se voltando contra toda a tradição. Mas, antes de chegar ao in summa,
eu vejo o argumento contra Descartes. Ou seja, Descartes, ele próprio, admitiu a possibilidade
de que pudesse haver uma potência de falsidade na essência do Universo, no fundamento do
Universo. A idéia de um Deus enganador ou de uma gênio maligno seria a idéia de uma causa
do Universo que pudesse ser falsa. Ora, se eu admito que possa haver um princípio de
falsidade na causa do real, na causa daquilo que é, então quanto mais real eu for, tanto mais
falso deve ser essa realidade, de dentro do próprio raciocínio do Descartes. Quer dizer, então,
se é possível pensar na figura do Deus enganador, do gênio maligno como princípio de falso na
origem do ser, então, quanto maior for o sentimento de realidade que eu possua, tanto mais
falso vai ser. Vale dizer, por conseguinte, que eu não quero ser enganado, ou seja, o desejo, a
busca incondicional da verdade e da certeza pode ser uma forma da ilusão e talvez uma das
mais eficazes formas da ilusão. Ora, o que é a ciência, o que ela sempre quis? Exatamente
certeza e verdade. É possível, então, que a vontade de verdade seja o mais eficaz meio de
engano ou de falsidade, o nosso desejo de conhecer pode ser a mais prodigiosa faculdade de
se iludir.
Pergunta: Mas por que ele troca por "enganar-se a si mesmo"?
Professor: Porque, veja, "enganar-se a si mesmo" é uma forma muito mais radical de engano
do que enganar os outros. Enganar os outros é algo que no fundo depende da vontade do
sujeito, enquanto iludir-se a si mesmo, enganar-se a si mesmo, é algo sobre o qual não
necessariamente o sujeito tem controle. Então, não querer se enganar de modo algum é
exatamente o gesto inaugural de toda a filosofia, um gesto que se torna figura histórica com um
radicalidade extrema precisamente no projeto cartesiano. Qual é a intenção fundamental do
Descartes? Não quero me enganar, eu quero chegar a alguma coisa que seja verdadeira, que
não seja simples opinião, que não seja simples aparência, que seja realidade, que eu possa
dizer isso é assim necessariamente. Isto é a intenção fundamental de Descartes. Ora, diz
Nietzsche, talvez isto seja a figura mais insidiosa da ilusão, não querer enganar-se de modo
algum talvez seja a forma mais radical do auto-engano. Por quê? Exatamente porque este não
querer enganar-se de modo algum, significa a crença fundamental na possibilidade do
conhecimento da realidade.
Pergunta: Seria a crença na possibilidade da certeza que já conversamos?
Professor: Isso seria a crença na possibilidade da certeza acerca do real. Exatamente porque
nós temos essa confiança, essa crença, é que nós buscamos conhecer. O conhecimento é o
resultado desse impulso, por assim dizer, em direção à verdade. Ora, se nós aprofundamos a
nossa crítica - vejam a intenção de Nietzsche é aprofundar a crítica no sentido de prolongar
aquilo que a própria tradição da História da Filosofia faz. É por isso que é interessante eu
chamar a atenção de vocês para referência àquilo que é o movimento cético da Filosofia
Moderna. Nietzsche não está dizendo que ele está inventando isso, ele está dizendo que ele
está simplesmente levando até às últimas conseqüências aquilo que é o movimento mesmo da
História da Ciência e da História da Filosofia, ou seja, ele está dizendo: se nós levarmos às
suas últimas conseqüências a crítica do conhecimento, nós vamos chegar aonde?
Precisamente na denúncia dessa confiança como ilusão, ou seja, nós vamos chegar ao ponto
de dizer que a crença na possibilidade da verdade é uma forma do auto-engano. Vale dizer, é
ilusório pensar que nós podemos conhecer com certeza alguma coisa.
Agora, vejam, a que grau de radicalidade conduz esta crítica que Nietzsche está fazendo. Diz
ele que é preciso que a crítica do conhecimento dê o seu último passo, que consiste na
desconstituição desse pressuposto fundamental do conhecimento, segundo o qual o
conhecimento é possível, ou seja, o conhecimento entendido como a possibilidade de
apreensão da estrutura ontológica da realidade. Ou seja, a possibilidade de diferenciar o que é
realidade do que é aparência. Em termos do vocabulário da tradição clássica, a possibilidade
de estabelecer uma diferenciação entre aquilo que é opinião e aquilo que é ciência, aquilo que
é absolutamente certo e aquilo que é só aparente.
Nietzsche está dizendo que a ciência constrói teorias a partir de processos mentais que têm o
objetivo de estabelecer uma ordenação de fatos, de acontecimentos, com o objetivo de
manipular. Então, a linguagem científica é uma linguagem a partir da qual você pode construir
séries, ordenações, estabelecer relações de causalidade entre eventos e efetivamente construir
experimentos a partir desta ordenação. Ora, isso significa do ponto de vista do Nietzsche que
são técnicas de ordenação e de manipulação do "real", mas nem em função do seu sucesso,
não em função daquilo que ela efetivamente realiza a nível experimental, pode pretender ser
mais do que é: isto é, sistemas de signos. Então, a eficácia experimental das teorias científicas
não garante a sua verdade ontológica, garante pura e simplesmente a sua qualidade de
ordenação e possibilidade de manipulação do conjunto de eventos, nada mais. Então, não é
porque a ciência dá certo que ela seja o contrário da aparência; ela é simplesmente uma
aparência como as outras.
"In summa, é de se duvidar que o ‘sujeito’ possa demonstrar-se a si mesmo..."
Está querendo dizer que a auto-reflexão da consciência sobre si não é suficiente para que o
sujeito se demonstre a si mesmo. Ou seja, a reflexão do sujeito sobre ele mesmo não dá
nenhuma garantia de que ele tenha tocado alguma coisa que seja real, que não seja
simplesmente ilusório. Para isso, diz ele, necessitaria o sujeito de algo firme, de um ponto de
apoio firme fora dele mesmo. Como encontrar esse ponto de apoio firme? Como encontrar a
garantia da passagem do mundo mental para o mundo extra-mental? Percebem aonde conduz
a radicalização da dúvida cética? É que eu não sei se aquilo que eu penso, isto é, se aquilo
que aparece para mim do ponto de vista dos conteúdos do pensamento e do conhecimento, se
isso corresponde a algo de real e existente fora da mente. Eu não sei se existe mundo exterior
ou não. Essa é a famosa dúvida cética a respeito da realidade do mundo externo. Como eu só
tenho o mundo mental, o que me permite afirmar que ao conjunto das minhas idéias
correspondem efetivamente objetos realmente existentes. Ou seja, como é que eu posso
diferenciar entre a realidade e a representação da realidade? Como eu imagino que vocês
saibam, todo o esforço de Descartes é justamente no sentido de vencer a dúvida cética, ele
queria dizer: "Não, eu posso chegar a algo efetivamente real e não simplesmente uma idéia na
minha mente". Qual é a primeira realidade a que ele chega?
Resposta: "Eu penso".
Professor: Ele mesmo, a existência do próprio pensamento. O que Nietzsche está dizendo
aqui?
Resposta: Que isso é impossível.
Professor: É que a existência do próprio pensamento permanece dentro da realidade mental e,
por conseguinte, falta um ponto de apoio firme, fora do sujeito; vale dizer, o sujeito não se
demonstra a si mesmo enquanto realidade. Precisamente aquilo que seria necessário para que
ele se demonstrasse a si mesmo como realidade é um ponto de apoio que ele não tem, logo é
como se você tivesse dançando sobre a cratera de um vulcão, você não tem absolutamente
nenhuma segurança.
Fragmentos Póstumos 40(23)
"Sejamos mais cuidadosos que Descartes que se manteve preso à armadilha das palavras. -
(retomamos aqui a nossa reflexão sobre a linguagem) - Cogito é decididamente apenas uma
palavra: mas ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo e nós grosseiramente o deixamos
escapar, na boa fé de que seja Uno."
Ou seja, o que Descartes fez foi simplesmente ingenuidade, ele se enfeitiçou pela unidade da
palavra cogito e interpretou como uno um processo que, na verdade, é múltiplo. No
pensamento existe uma multiplicidade de coisas que só nominalmente se deixa reunir na
unidade da palavra ‘penso’. Descartes ficou enfeitiçado pela unidade da palavra e perdeu a
multiplicidade e a riqueza fundamental do seu próprio objeto.
"Naquele célebre cogito se encontra: - (e ele está enumerando então a multiplicidade presente
no cogito) - 1) pensa-se, 2) eu creio que sou eu que pensa, 3) mesmo admitindo que o segundo
ponto permanecesse implicado, - (isto é, mesmo admitindo que sou eu que pensa) - como
artigo de fé, ainda assim o primeiro ‘pensa-se’ contém ainda uma crença: a saber, que ‘pensar’
seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um ‘isto’ deva ser pensado - além disso,
o ergo sum nada significa!"
Então, vejam, a multiplicidade daquilo que está encoberto pela unidade aparente da palavra
‘cogito’ ou ‘eu penso’: ou seja, em primeiro lugar, um fato, um processo que é o pensamento;
em segundo lugar a atribuição de uma subjetividade para esse processo, a atribuição de um
‘agente’ para o processo, ou seja, ‘eu creio que sou eu que pensa’. Mesmo admitindo que isto
realmente funcione assim, mesmo admitindo que sou quem pensa, este ‘eu’ do pensamento já
é um substantivo. Ou seja, uma atividade para a qual o sujeito ‘isto’ deva ser pensado, uma
certa função identificatória. E é exatamente estes três passos, a passagem do processo para a
interpretação do processo, por meio da categoria identificatória do ‘eu’, do sujeito, é
exatamente isso que torna possível aquilo que Nietzsche toma cuidado em manter em latim o
ergo, ou seja, a conexão que expressa o processo lógico de inferência, o logo. Então, além
disso o ‘logo sou’ nada significa.
"Mas isto é a fé na gramática, já são aqui instituídas ‘coisas’ e suas ‘atividades’ e nós nos
afastamos da certeza imediata."
A interpretação que nós fazemos do processo do pensamento é inteiramente conduzida pelas
soluções lógicas da gramática, por conseguinte, nós não temos nenhuma certeza imediata,
mas uma operação de raciocínio, ainda que nós o façamos inconscientemente. Ou seja, ainda
que nós tenhamos a ilusão da imediatez e da intuição; na verdade, o que nós fazemos é um
raciocínio inferencial. Daí ergo, logo.
"Deixemos, pois, de lado aquele problemático ‘isto’ - (ou seja, a função de substantivo, de
sujeito da linguagem) - e digamos cogitatur como fato, sem intromissão de artigos de fé:"
Vamos deixar de lado a voz ativa e vamos falar da voz passiva, em vez de falar ‘penso’ que
induz a inferência ‘eu penso’, como sujeito do pensamento, vamos falar do pensado, do
cogitado, do ‘pensa-se’, "como fato sem intromissão de artigo de fé".
"... dessa forma, nos iludimos novamente,"
Quer dizer, o argumento seguinte vai mostrar que nós nos iludimos do lado do cogito e do lado
do cogitatur,
"... pois também a forma passiva contém princípios de fé e não apenas ‘fatos’:"
Quais são os artigos de fé que contém a forma passiva?
Resposta: Eu penso.
Professor: Exatamente a mesma coisa, você continua trabalhando com base nas categorias
atividade, passividade, causa e efeito, exatamente as mesmas categorias tradicionais.
in summa, precisamente o fato não se deixa estabelecer desnudamente, o ‘acreditar’ e o
‘opinar’ estão introduzidos no cogito do cogitat e cogitatur:"
Quer dizer, tanto na forma passiva quanto na forma ativa, tanto do lado do ‘pensa-se’ quanto
do lado ‘ele pensa’ ou do lado ‘é pensado’, você encontra precisamente a mesma intromissão,
diz Nietzsche, de opinião e de crença. Vale dizer, por conseguinte, que tudo aquilo que você
não tem na proposição ‘eu penso’ é um fato; seja do lado do sujeito, seja do lado do objeto do
pensamento estão funcionando as categorias identificatórias, as categorias de substância,
atributo, causa, efeito, agente, paciente que são próprias da estrutura gramatical da linguagem.
"quem é que nos garante que nós, com ergo, não extraímos algo desse acreditar e opinar, algo
que remanesce: algo é acreditado, logo acredita-se em algo - uma falsa conclusão!"
Quer dizer, no fundo o ‘penso, logo existo’, é simplesmente uma tautologia. Vale dizer, algo é
acreditado, logo acredita-se em algo, ou melhor, pensa-se, logo existe o pensamento.
"Por fim, já se deveria saber o que é ‘ser’ para retirar do cogito um sum, já se deveria
igualmente saber o que é saber:"
Então, como é que eu sei que eu sou a partir do pensar? O que Nietzsche está tentando fazer
aqui é radicalizar ainda mais a crítica cartesiana, ele vai dizer: "para que eu possa dizer ‘eu
penso, logo eu sou’, este ‘logo eu sou’ supõe que eu já saiba o que é ser para que eu possa
dizer que ‘eu sou’. Supõe igualmente que eu saiba o que é saber para que eu possa saber que
eu sei. Está claro? Para que eu possa dizer: ‘eu sei com certeza que eu sou’, é preciso saber
que eu saiba o que significa saber, e é preciso que eu saiba o que significa ser. Ora, se eu
tenho que supor tudo isso, aonde está a certeza imediata do ‘eu penso’?
"- parte-se da crença na Lógica, no ergo sobretudo!, - (no logo, na inferência) - e não apenas
no estabelecimento de um factum! É possível ‘certeza’ no saber? Não seria talvez certeza
imediata uma contradictio in adjecto?
Ou seja, a certeza imediata não seria uma contradição nos próprios termos? Na medida em
que certeza é sempre certeza de algo, por conseguinte sempre mediato, jamais imediato?
"O que é conhecer, em relação ao ser? Para aquele que para tais questões já traz consigo
artigos de fé preparados, a prudência cartesiana não tem mais nenhum sentido: ela chega
tarde demais".
Para aqueles que, como Descartes, já trazem respostas prontas para estas questões, não tem
mais nenhum sentido a prudência de duvidar de tudo, justamente porque não é de tudo que ele
duvida, ele não duvida precisamente daquilo que é mais fundamental. E agora a frase que
encerra esta questão.
"Antes da questão do ‘ser’ deveria estar decidida a questão do valor da Lógica."
Sem você colocar isso em questão não tem sentido você proceder ao modo de Descartes. É
isso que eu chamo de desconstrução, vocês percebem que é uma desconstrução do percurso
da filosofia tradicional.
Introdução
Hoje nós vamos entrar em uma questão central, decisiva, para compreensão aprofundada do
problema que nós estamos examinando e espero termos a oportunidade de fazer uma
explicitação tão clara e tão exaustiva quanto possível desse nº 19; espero não cansá-los muito
com um certo tipo de jogo de vai e vem; no comentário que farei desse aforismo, vou voltar
com alguma insistência a certas questões que nós já vimos na análise dos aforismos e dos
fragmentos anteriores. Mas essa repetição não é simplesmente um amor obstinado pela
repetição em si mesma, mas acho que nós teremos a oportunidade privilegiada de ter diante
dos olhos, de forma muito viva, determinados tipos de procedimento que Nietzsche utiliza. Ou
seja: gostaria de mostrar para vocês, com uma certa abundância de detalhes, como é que
Nietzsche trabalha, precisamente nesta questão. Qual é a tática ou o procedimento que ele
usa; e para que possa isolar esse procedimento, precisamos vê-lo em ação em alguns
momentos, para poder, comparando os dois textos, mostrar como é o mesmo procedimento
que está sendo usado. É por isso que vou ter de voltar para Fragmentos, que nós já
examinamos. Eu tinha dito a vocês também, que toda essa questão que nós estamos vendo,
na verdade, todo o nosso curso, tinha por objetivo a desconstituição da unidade do sujeito
fundada na unidade da consciência, que desembocava em Nietzsche, em sua raiz última, numa
filosofia da linguagem, numa crítica da linguagem. E hoje nós vamos nos encaminhar
decisivamente nessa direção e, se conseguirmos dar conta de tudo aquilo que eu me propus
para hoje, nós vamos ver esta ancoragem da crítica da subjetividade, da crítica do eu, na
análise da linguagem, que é uma coisa extremamente contemporânea. Boa parte da nossa
reflexão filosófica atual está voltada para uma análise da linguagem, para uma crítica da
linguagem. Estou me referindo agora não apenas à boa parte da tradição da filosofia analítica,
mas também à grande parte da chamada linha hermenêutica de interpretação, que se funda
nesta exigência prévia de uma análise da linguagem, de uma crítica da linguagem, como o
modo próprio de se dissolver pseudo problemas, ou seja, como é que uma crítica da linguagem
pode evitar que nós nos envolvamos com problemas que não são problemas, são
simplesmente aparências de problemas. De certa forma, portanto, o que quero dizer aqui é que
pode-se encontrar nesse aspecto particular da filosofia de Nietzsche, uma espécie de
antecipação daquilo que vai ser a discussão filosófica dos nossos dias.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal
Bom, então, comecemos pela análise do aforismo nº 19.
Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida do mundo,
mais ainda Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única coisa que nos era
propriamente conhecida, conhecida por inteiro, de todo, conhecida sem subtração nem
acréscimo.
Bem, as primeiras frases do texto nos remetem a relação entre Nietzsche e Schopenhauer; e
aparentemente nós estaríamos, então, num outro domínio de investigação, que não aquele que
nós vínhamos examinando até aqui. Nós, no fundo, nos dedicamos a examinar a relação
Nietzsche-Descartes, Nietzsche-Kant, Descartes-Kant... Por enquanto não vimos nada
relativamente a Schopenhauer. Eu quero mostrar a vocês que, se Nietzsche no aforismo 17 e
nos outros aforismos anteriores, naqueles Fragmentos Póstumos que nós examinamos, se ele
tratou do problema do pensamento e, mais particularmente ainda, da unidade subjetiva
fundada na imediatidade a si da consciência, na substância pensante, agora vai examinar a
questão com base na vontade. O que estabelece a ponte, aqui, entre pensamento e vontade
ou, se vocês quiserem, Descartes e Kant de um lado, Schopenhauer do outro, é, para
Nietzsche, sempre a mesma questão, é que se Descartes e Kant pensavam a substância ou o
pensamento sobre o ponto de vista da unidade, se a unidade do sujeito se fundava no
pensamento, seja a modo cartesiano da substância pensante, seja a modo kantiano da síntese
originária da percepção, Schopenhauer está em busca da mesma coisa, isto é, Schopenhauer
também quer uma unidade, e esta unidade ele vai buscá-la precisamente na vontade. Então,
assim como, para Descartes, era o cogito, o "eu penso", quem estabelecia o princípio de
unidade, lá se encontrava o que Nietzsche está chamando de a única coisa propriamente
conhecida, a coisa inteira, sem acréscimo e nem subtração, Schopenhauer não vai encontrar
isso no pensamento, mas vai encontrá-lo na vontade. E vou, entre parênteses, de forma muito
breve, tentar mostrar, porque é que, para Schopenhauer, esta unidade não pode ser dada no
pensamento. Antes de fazer isso quero deixar claro para vocês qual é o elemento de ligação,
porque o próprio Nietzsche não deixa isso claro aqui. Nós estamos sempre, de certa forma,
gravitando em torno do mesmo problema, o da unidade, onde reside a unidade: de um lado no
pensamento, de outro na vontade; mas no fundo a categoria básica, aquilo que está sendo
buscado, aquilo que se trata de encontrar, de descobrir, é precisamente a unidade, a unidade
fundante do sujeito.
Pergunta: Posso colocar só uma coisinha? O Christopher Türcke, ele fala da unidade, em
Nietzsche, a partir da vontade de saber; e a partir daí derivando a idéia de uma multiplicidade,
mas ele aceita sem problemas que Nietzsche tem uma metafísica.
Professor: Mas isso é muito problemático. Nós vamos verificar aqui o horizonte último dessa
metafísica e mostrar até que ponto Nietzsche pode ir e o que é que ele pode dizer, em última
instância, e a partir de que limite ele não pode dizer mais coisa nenhuma. A partir de que limite
a sua crítica da metafísica necessariamente tem que se deter como que diante da sua última
fronteira. Este tipo de trabalho Türcke faz em parte, não completamente. Acho que nós vamos
ter oportunidade de caminhar, boa parte desse percurso, supondo a leitura do Türcke entre
outros comentadores; não sei quantos que vocês chegaram a ler, mas nós vamos avançar um
pouco mais. Então, peço a vocês um pouco de paciência, uma forte dose de benevolência, mas
acho que a gente chega até lá.
O que gostaria de ver, por exemplo, e agora já começo a fazer os meus saltos para trás, é que
se vocês forem no texto dos Fragmentos de Nietzsche, quando ele se referia a Descartes, na
página 10, ele vai dizer: "Pensa-se, logo existe algo pensante". Aqui, desemboca a
argumentação de Descartes, mas não é a realidade de um pensamento que ele queria, pois ele
queria, para além da imaginação, atingir uma substância que pensa e imagina; quer dizer,
Descartes queria encontrar algo de real, algo de efetivamente existente, uma substância, ou
seja, isso que o nosso texto aqui está chamado "algo por inteiro", conhecido integralmente,
sem nenhuma distorção. Como é que Descartes conseguia obter isso, que poderia ser
conhecido sem nenhuma distorção? Quando eliminava todo e qualquer tipo de conteúdo do
conhecimento e se reportava unicamente à forma do conhecimento, à pura forma do
pensamento. Ele dizia: independentemente de qualquer tipo de conteúdo do objeto do
pensamento, tudo aquilo que eu penso pode ser falso, mas eu não posso duvidar do
pensamento enquanto pensamento, porque duvidar do pensamento significa exercer um ato do
pensamento, e, por conseguinte, duvidar disso significa reafirmar o próprio pensamento.
Portanto, eu que penso, enquanto penso, sou; eu sou uma substância cuja essência ou
natureza consiste no pensar. Aqui está algo, diz Descartes, essa substância do pensamento,
que eu não posso negar sob pena de reafirmá-la. Então, Descartes encontrava aqui a realidade
da qual ele não precisaria nem acrescentar e nem subtrair coisa nenhuma, porque ela lhe dava
ao mesmo tempo uma espécie de indicativo de realidade plena, ou seja: um conhecimento de
que ele não poderia duvidar de forma nenhuma. Isto que o Nietzsche chama aqui de não
apenas o pensamento, mas uma substância.
Muito bem, nós vimos como Kant, na crítica que faz a Descartes, desconstitui a certeza dessa
substância. Kant vai dizer: Não, não há nenhuma substância. O que a proposição "eu penso",
"eu sou", me dá é simplesmente a forma vazia da consciência, essa função de síntese que eu
tenho que supor desde que haja qualquer pensamento; para que haja pensamento há que
haver a unidade da consciência, mas eu não tenho nenhum objeto, eu não tenho propriamente
nenhuma substância, nenhum dado, nenhuma coisa dada na proposição "eu penso". E
Schopenhauer vai dizer, mais ou menos, o seguinte: "Não, quando eu digo eu penso, eu não
encontro nenhuma substância, nenhuma coisa em si mesma. O que eu encontro quando eu
digo eu penso? Ou aquilo que Kant já havia dito, isto é, a pura forma da consciência, a unidade
de síntese, a unidade transcendental, mas nenhum objeto; ou se eu encontro o objeto, se eu
tenho alguma experiência do meu eu, enquanto eu sujeito do pensamento, este eu que eu me
represento como pensando, é uma experiência empírica que eu tenho de mim mesmo."
Então a experiência que eu tenho a respeito da minha própria existência, é exatamente da
mesma natureza que a experiência que eu faço em relação a todo e qualquer outro objeto; ou
seja: experimento a mim mesmo como um objeto qualquer; tenho percepção de mim mesmo,
como tenho percepção de qualquer outro objeto. O que significa dizer, em última instância: eu
me represento a mim mesmo. Ora, se eu me represento a mim mesmo, então aquilo que a
experiência de mim mesmo me dá não é eu tal como sou enquanto coisa em si, mas tal como
eu me represento, isto é, eu enquanto elemento da representação. Logo, a experiência do eu, a
percepção, a auto-percepção, não me dá nenhuma coisa em si, mas apenas representações
que tenho de mim mesmo, por meio do meu sentido interno. Assim como as representações do
sentido externo me dão objetos no espaço, a representação do sentido interno me dá a
representação de minha própria existência no tempo. Então, eu não me apreendo tal como eu
sou, digamos assim, enquanto realidade em si independentemente da representação, eu me
apreendo enquanto realidade representada, isto é, no tempo. Ora, como o tempo é uma forma
da sensibilidade, então o que eu tenho de mim mesmo são percepções fenomênicas e não
percepção de uma realidade independente da própria percepção. Logo, o auto-conhecimento
não me dá uma realidade sem subtração e nem acréscimo; a percepção não me dá uma
realidade plena independentemente do sujeito cognocente, a experiência que eu tenho de mim
mesmo fornece simplesmente fenômenos, como o conhecimento que eu tenho dos outros, dos
demais objetos. Schopenhauer vai dizer: Bom, se a auto-reflexão, ou seja, se o conhecimento
que eu tenho de mim mesmo enquanto substância pensante ou enquanto eu pensante não me
dá nada mais do que fenômeno, será que eu posso ter acesso àquilo que não é fenômeno? Ou
seja: aquilo que seria o "em si", independentemente da representação? E Schopenhauer vai
dizer sim. Só que isto não pode ser dado pelo pensamento, mas sim pela vontade. Então, no
querer, na experiência do querer, da vontade, eu tenho acesso aquilo que é propriamente a
coisa em si ou a essência do mundo.
Pergunta: Isso através da intuição?
Professor: Da intuição. Na verdade, a experiência, chamemos assim, por meio do que, eu
tenho o acesso aquilo que eu efetivamente sou, exatamente enquanto vontade, e não enquanto
representação.
Pergunta: O que é que ele entende por vontade?
Professor: Vontade não enquanto eu me represento um objeto qualquer, como objeto de uma
aspiração ou de um desejo, mas a vontade é exatamente aquilo cuja materialização é o meu
próprio corpo. Ou seja, o corpo é, tal como nós o vemos, objetivação da vontade. A vontade se
faz objeto no corpo. Ora, isso significa para Schopenhauer, que em todos os atos particulares
da vontade, ou seja: do ponto de vista das carências corporais e representacionais também, se
expressa sempre esse mesmo movimento, essa fratura interna da vontade, que se caracteriza
precisamente como vazio, como ausência, que tem que ser preenchida; como uma carência
que tem que ser suprida, mas cujo suprimento é absolutamente impossível. Por que? Porque
essa fratura interna ou essa carência é impreenchível; todo e qualquer objeto pelo qual eu
satisfaça um desejo particular ou singular, na medida mesmo em que eu o satisfaço, esse
desejo se repõe sobre uma outra forma, sobre uma outra modalidade.
Um Sofrimento ... Metafísico
Comentário: Por isso que a vida é um sofrimento...
Professor: Por isso que a vida é sofrimento. Então, para Schopenhauer, vontade é inevitável e
necessariamente sofrimento, e um sofrimento, por assim dizer, metafísico. Por que? Porque
como a vontade jamais pode ser satisfeita, posto que se ela fosse satisfeita deixaria de ser
vontade; então, a cada satisfação se reproduz a necessidade, a cada desejo satisfeito um outro
desejo surge, e assim infinitamente, nesse círculo infernal da vontade. A vontade é fruição, é
necessário que haja objetos particulares que satisfaçam certas necessidades, e é aí que vem o
problema. Para usar uma linguagem nossa, atual (para Schopenhauer, talvez, não
tecnicamente correta), só que o objeto do desejo que produz satisfação é, na verdade, uma
simples aparência de satisfação. Porque essa estrutura do desejo, definitivamente impossível
de satisfazer, se auto-reproduz ao infinito. Então, você tem um desejo, mas a medida em que
esse desejo se satisfaz, você imediatamente tem um outro, e este outro satisfeito você tem um
outro, um outro, um outro... porque é exatamente desejo, a estrutura mesma do ser, é o desejo,
é a vontade.
Pergunta: Agora, ele diferencia desejo de vontade?
Professor: Diferencia sim, mas não tecnicamente no sentido em que depois farão Freud,
Nietzsche, e mesmo até a psicanálise. Mas, sem dúvida, há uma diferenciação terminológica,
inclusive, entre Wiele e Begehren. Em alemão são duas coisas completamente diferentes; mas
para os nossos desígnios agora, talvez não seja muito interessante distinguir aqui desejo de
vontade. Quer dizer, vontade sempre com esse impulso para fora de si, para se satisfazer no
objeto, mas ao mesmo tempo realizando a experiência da satisfação e insatisfação, isto é, da
satisfação com a reprodução infinita da necessidade. Ou seja: uma satisfação que, na verdade,
nunca é satisfação, senão apenas aparência de satisfação.
A Vontade como Essência do Mundo
Pergunta: Então, essa vontade também não é algo da consciência?
Professor: Não. E é aí que nós chegamos no ponto fundamental. Para Schopenhauer a
consciência é apenas uma espécie de superfície daquilo que definitivamente é o homem e é o
universo enquanto vontade. Então, o fenômeno pelo qual nós temos acesso àquilo que é a
coisa mesmo, isto é, aquilo que é a essência do mundo, não é o pensamento, mas a vontade.
É por meio do querer que nós, de certa forma, mergulhamos e tomamos consciência da
essência do universo, da essência do mundo. Então, aquilo que constitui a essência do mundo
e a nossa própria essência, lá Schopenhauer vai encontrar, portanto, a unidade, (aquilo que
Descartes buscara na substância pensante). E é isso que Nietzsche está dizendo aqui. Então,
essa primeira frase nos remete à seguinte questão: Schopenhauer concordava com Kant, que
era impossível sustentar o discurso de Descartes, mas ele não duvidava - isso Nietzsche não
diz, é eu que estou dizendo para vocês aqui, para fazer a ponte - que fosse possível encontrar
essa unidade metafísica. Apenas que, para ele, esta unidade metafísica era dada na vontade e
não no intelecto. E qual era a via de acesso privilegiada para essa unidade metafísica do
universo? Não a consciência, mas o corpo. O corpo naquilo que ele de fato é, cada um dos
nossos movimentos corporais, conscientes ou não, eles são exatamente tudo aquilo que o
corpo é; é vontade, é desejo, é impulso em direção à procura do prazer e à fuga da dor.
Pergunta: Ele, então procura o corpo e não o intelecto?
Professor: Não, o intelecto é um instrumento do corpo. Agora, confundir esta unidade
metafísica da vontade com o intelecto é o erro do Descartes. Porque o intelecto tem caráter
pura e simplesmente instrumental; vale dizer, ele é um dos órgãos dessa objetivação da
vontade que se dá no corpo. Então, todos os nossos movimentos, voluntários ou involuntários,
tudo isto que nós somos, diz Schopenhauer, é vontade. E como é que eu tenho uma intuição
disso? Uma experiência direta disso? Como é que eu acesso de maneira direta a isso que me
constitui mais essencialmente? Precisamente por meio do corpo, da experiência que eu tenho
do meu corpo, do meu corpo como desejo, e de todos os movimentos do meu corpo,
exatamente, como movimentos desejantes ou volitivos.
Pergunta: Experiência direta, não representacional?
Professor: Não representacional. Na verdade, para fazer inteira justiça à pergunta da Amnéris -
e aqui eu vou ter que pedir de novo a benevolência de vocês -, há duas espécies de
experiência de si: você tem uma experiência do seu corpo enquanto um objeto da
representação, exatamente como eu tenho experiência de outros objetos da representação; eu
posso me representar a mim mesmo, o meu corpo, como objeto. Isso, então, é um acesso
mediato, representacional ao corpo. Contudo, tenho uma outra forma de relação com o meu
próprio corpo, que não é a relação do meu corpo como objeto de representação, ao lado de
outros objetos, mas exatamente a vivência do meu corpo enquanto desejo, vontade, carência.
Esta vivência do meu corpo enquanto movimento volitivo, enquanto desejo permanente,
enquanto vontade, enquanto insatisfação, que se reproduz ao infinito, não é algo que eu
represento, mas algo que eu sou. E toda essa gama de movimentos que constitui o meu corpo
e que se expressam nele, não necessariamente passam pela esfera da consciência; passa, por
exemplo, pelo domínio intracelular, pela relação dos diferentes órgãos entre si, pelos
movimentos involuntários, e por todos aqueles outros investimentos pulsionais, impulsivos, que
estão, por assim dizer, às costas da consciência.
O Mundo como Representação da Vontade
Pergunta: A primeira intuição do Freud tem alguma coisa a ver com isso?
Professor: Diretamente. Caso venhamos trabalhar Freud, uma das coisas que pretendo mostrar
é como o conceito de pulsão, em Freud, é, em grande parte, caudatário da concepção
schopenhaueriana de vontade; inclusive o modelo prazer/desprazer freudiano, manifestamente
o mesmo de Schopenhauer. Aliás, Freud diz isto e não é nenhum coelho que eu tiro da cartola,
isso está nos próprios textos do Freud. Concepção de prazer freudiano é uma concepção
negativa de prazer, precisamente a concepção schopenhaueriana de prazer como cessação de
uma experiência originária, prévia, necessariamente mais primitiva de sofrimento, que
carateriza o mundo como vontade. Daí a famosa frase schopenhaueriana: o acesso direto que
eu tenho ao mundo, não como representação, mas ao mundo como coisa em si, não é a
consciência ou a relação sujeito e objeto, mas é exatamente esse mergulho no interior do meu
eu, enquanto um eu desejante, volitivo, e do meu próprio corpo enquanto objetivação dessa
vontade.
Então, se aquilo que pode ser pensado como coisa em si, como o que efetivamente é, como o
que é conhecido sem subtração nem acréscimo, não é representação, não é pensamento, mas
é vontade; então, esta vontade metafísica, à qual o pensamento schopenhaueriano tem
acesso, é necessariamente una; vale dizer, não submetida às categorias da representação. Ela
é logicamente independente das categorias da representação, porque é aí justamente onde se
dá a multiplicidade. De onde nós extraímos a experiência do múltiplo? Simplesmente, como é
sabido, da combinação entre o espaço e o tempo, que nos dá o princípio de individuação. Se a
vontade é a coisa em si, se a vontade é independente da representação, então a vontade não
está submetida às categorias da representação. Se ela não está submetida às categorias da
representação, não está submetida ao tempo e espaço, por conseguinte, não se pode falar em
multiplicidade, mas simplesmente que é uma e a mesma, no meu corpo, e em tudo aquilo que
é. Então, todas as coisas que constituem o universo são representações ou objetivações dessa
vontade metafísica fundamental. Mas o substrato do universo, se você quiser pensar dessa
forma, é esta vontade una; e todos os seres individuais, todas as espécies e indivíduos, tanto
do mundo vegetal, quanto do mundo mineral ou orgânico, tudo isto é esta vontade, enquanto
ela é submetida ao princípio de individuação no espaço e no tempo. Ou seja: tudo o que é, é
objetivação ou representação dessa vontade metafísica.
Comentário: Parece que isto é uma pretensão tanto do Descartes quanto Kant e
Schopenhauer, através de uma unidade...
Professor: Maravilha, se isso chegou a ficar claro para vocês nessa frase, então vocês
entenderam precisamente onde é que Nietzsche quer chegar.
Pergunta: E qual que é a frase?
Comentário: Que tanto Descartes quanto Kant e Schopenhauer, na verdade, querem chegar no
mesmo ponto, que é a unidade metafísica.
Pergunta: E Nietzsche vai achar que não há uma unidade, é isso?
Professor: Olha, talvez fosse mais interessante a gente fechar o livro, e vamos continuar
conversando...
Comentário: Não, vamos ler, está muito interessante...
Professor: Estou brincando, mas é a operação de Nietzsche vai consistir justamente em
mostrar como isto que, para Descartes, Kant, Schopenhauer, etc., é o uno fundamental, na
verdade não tem nada de unidade, é uma multiplicidade metafisicamente transformada em um,
por meio de uma espécie de sedução irresistível da linguagem.
Pergunta: Mas para você fazer essa análise, você está baseando-se em que comentador ou
essa idéia é tua?
Professor: Não, não é original minha, vários são os comentadores que já trilharam o mesmo
caminho, ...
Pergunta: Porque, eu conheço pouco, obviamente, mas a camisa de força é o que faz a
vontade de poder, se ela não é o restabelecimento dessa unidade. E a coisa que li e fiquei mais
perplexa que Türcke - porque eu acho que ele realmente me deixou buscando o escândalo
ptolemaico e me deixou enlouquecida -, volta a propor essa unidade metafísica.
Professor: Volta. Vou ter que pedir a indulgência de vocês, nós vamos um pouco mais para
frente de onde Türcke foi.
Pergunta: Será que essa volta, que você está fazendo, não é possível a gente fazer?
Retomando via Jacob Burckhardt, que ele parte de Schopenhauer, ele explode, eu tenho a
impressão que essa vontade como multiplicidade dá, talvez, o caminho para Nietzsche?
Professor: Pode ser. O meu caminho é um pouco diferente, Amnéris; faço um outro percurso,
mas acho que esse é possível. Acho que a intenção de Nietzsche é mais ou menos a seguinte:
Nietzsche quer chegar até o ponto mais recuado, a partir do qual nós, necessariamente,
pensamos e falamos tudo aquilo que nós podemos pensar e dizer. E aí sim eu acho que o
Türcke tem razão quando diz que no momento em que Nietzsche chega nesse ponto, a
racionalidade faz a experiência do seu escândalo. Escândalo no sentido bíblico do termo,
"pedra de tropeço". Ou seja: a razão faz a crítica da sua própria limitação; a vontade de
verdade se reconhece como algo problemático. E no que consiste esse escândalo? Consiste
em que a vontade de verdade terá que fazer a denúncia dos seus próprios limites, que são
limites inevitáveis, que ela não pode deixar de reconhecer, mas para além dos quais não pode
prosseguir. Ela chega na sua extrema fronteira. Porém, ela não pode deixar de exercer essa
vigilância crítica em relação a si mesma e, por conseguinte, auto-denunciar-se; mas, para auto-
denunciar-se, tem que se valer precisamente daquilo que está sendo posto sob crítica e sob
censura. Vale dizer: a crítica da razão não pode ser feita senão pela própria razão. E para que
ela possa se pôr a si mesmo sob crítica tem que fazer uso exatamente daquilo que ela está
criticando. Essa é a aporia, esse é o dilema do qual a filosofia do Nietzsche, na verdade, não
pode sair; e é exatamente lá onde Nietzsche reconhece o seu derradeiro limite, que não é o
limite dele, não é o limite da filosofia de Friedrich Nietzsche, é um problema invencível da
razão, é exatamente a dialética da razão. E, para isso, acho que não há outro caminho, aliás,
pode até haver outro, mas acho este caminho, o da desconstituição das evidências assentes
na História da Filosofia, ou seja, a crítica da vontade e verdade, o mais essencial. Que não
somente é o mais essencial em Nietzsche, mas é aquilo que, a partir de Nietzsche, será
repetidamente praticado na História da Filosofia.
Pergunta: Eu fico ruminando sobre isso tudo que você está falando dos filósofos e me deixa, de
certa forma, angustiado, porque nenhum deles apresenta uma resposta completa. Porque, me
parece claro, cada um acaba enveredando por um único caminho, e não percebe o lado
oposto. É uma colocação manifestamente unilateral. Mais: o filósofo se identifica com o lado
que ele escolhe e ele é só aquele caminho, como o alcoólatra que é o própria vinho e não
percebe que ele é o que bebe. Se a filosofia é um espelho da vida ou uma tentativa de criar
consciência da própria vida, essa maneira de pensar não leva a lugar algum, porque sempre
apresenta um caminho capenga. Então, se olharmos Descartes, Kant e Schopenhauer, eles
espelharam um lado só, e não viram o outro.
Professor: Concordo. Agora se você pega Nietzsche, nesse processo todo, o que Nietzsche
pretenderia dizer é, de alguma forma, isso que você está dizendo: "Olha, está vendo o caminho
deles? É unilateral, eles não percebem". Só que tem um complicador aí, a unilateralidade é
inevitável; então, a posição de Nietzsche se torna de extrema ambigüidade, porque ele está
denunciando a unilateralidade da História da Filosofia no seu conjunto, a partir da sua própria
unilateralidade. Compreende? Quer dizer, essa é a questão, a aporia interna. Mas eu proponho
que a gente, primeiro acompanhe aqui o percurso para ver se fica...
Objetivação da Vontade Metafísica
Pergunta: Eu não entendi Schopenhauer. Porque quando discutíamos Descartes e Kant, eu
tinha a impressão que no contato com o mundo o conhecimento estava no sujeito, ou seja, a
consciência conforme a existência etc... Quando você fala de Schopenhauer e fala dessa
vontade e termina com a frase, tudo o que é a objetivação dessa vontade metafísica; e aí eu
pergunto se essa vontade metafísica está dentro do sujeito ou se ela é representação de uma
coisa que está no universo. Daí me lembrou uma discussão de metafísica que já tinha sido feita
por Descartes de que o ser humano está no mesmo universo que os outros, e a vontade está
dentro do ser humano. Para Schopenhauer o ser humano é representação, ou é uma parte, sei
lá, de um todo que está fora, - daí a gente voltaria a pensar em Deus.
Professor: Você está colocando o dedo numa das feridas do pensamento de Schopenhauer;
porque, na verdade, para Schopenhauer, é isso mesmo. Essa vontade é algo que transcende a
esfera dos sujeitos individuais. Ou seja: cada ser existente é apenas uma espécie de
fragmentação dessa vontade única. Essa vontade única - estou usando mal o termo
"fragmentação", mas é apenas para dar uma idéia -, na medida em que se dá no espaço e no
tempo, ao dar-se no espaço e no tempo ela se individua. Por que? Porque espaço e tempo são
princípios de individuação. E, sobretudo, se você entende o princípio de causalidade, causa e
efeito, como uma espécie de ação combinada entre espaço e tempo, tempo e espaço
combinados dão causalidade; então a causalidade enquanto combinação de espaço e de
tempo é o modo como esta vontade fundamentalmente única, essa essência metafísica do
universo, se diferencia em gêneros, espécies e indivíduos.
Então, agora, para você ter uma idéia da profundidade das águas em que você estava
navegando, tudo aquilo que se individua, ou seja, tudo aquilo que se dá como objeto no
universo, vale dizer, portanto, todas as coisas que são, elas são formas de manifestação desta
vontade metafísica. Se você quiser, todas as coisas que são, os diversos gêneros e espécies
de entes, são simples aparência; essencialmente, eles são uma só e mesma coisa, a vontade,
a vontade metafísica. Então, a diferença que os entes, enquanto entes individuais, têm entre si
é uma diferença simplesmente superficial, ou simplesmente aparente; aquilo que eles são
essencialmente, fundamentalmente é a mesma coisa, é vontade.
Compaixão em Schopenhauer
Por isso, para Schopenhauer, o grande sentimento, o único sentimento, que no fundo dá
acesso a identidade entre tudo que é, é a compaixão, é a piedade. O que acontece na
compaixão? Por que é importante, para ele, fazer a análise desse sentimento psicológico em
especial? Porque, para ele, esse é um sentimento muito mais do que psicológico, é um
sentimento metafísico. Por que? Porque na compaixão, em alemão mitleid, quer dizer,
exatamente, como compassio, - você conhece latim, percebe muito bem o que significa isto -,
quer dizer: eu não posso sentir a dor do outro, a dor do outro é dor no outro e não em mim, e
no entanto eu sinto a dor do outro como dor do outro. O grande erro da análise da compaixão,
para Schopenhauer, é que a compaixão seria um sentimento por meio do qual eu sinto a dor do
outro como minha dor; impossível, eu não posso sentir a dor do outro como minha, porque
essa dor não dói em mim. Então, o fenômeno psicológico da compaixão só pode ser
satisfatoriamente explicado, se eu faço uma experiência imediata, vivencial, de algo que
permite estabelecer uma correia de identidade entre o outro e eu mesmo, de tal maneira que a
dor do outro, no outro, é sentida por mim. Um mistério completamente inexplicado, a não ser
que o outro não seja outro a não ser em aparência.
Pergunta: Mas daí ele é radicalmente idêntico à Kant?
Professor: Isso só é compreensível a partir de Kant. O próprio Schopenhauer diz: "Minha
filosofia leva Kant para frente. Aonde Kant errou - claro que isso é Schopenhauer -, aonde a
filosofia kantiana demonstra suas insuficiências, aqui eu começo". Tanto é que o primeiro
passo da filosofia de Schopenhauer, é uma crítica da filosofia de Kant.
Pergunta: Então, mas para ele o ser humano está no mesmo nível de qualquer outro animal.
Tem a mesma importância, faz parte da mesma cadeia...
Professor: Você pode estabelecer uma hierarquia: há seres que são mais ou menos
complexos... No ser humano, por exemplo, essa vontade metafísica fundamental chega a
representar a si mesma.
Pergunta: Então, mas não mais importante, porque no Kant tem um diferenciação do ser
racional do não racional, não tem?
Professor: Sem dúvida. Para Schopenhauer esta vontade é una, é a mesma coisa. Então,
todos os seres que são, se diferenciam apenas do ponto de vista da aparência ou da
representação, substancialmente, metafisicamente, eles são o mesmo, vontade. E qual é o
acesso que eu tenho a isso? Por exemplo, o acesso pela via da compaixão. Há outras formas
de acesso imediato, a vontade; uma delas é a obra de arte, eu não vou entrar por aqui, aqui é
um pouco mais complicado; mas, o fenômeno psicológico da compaixão dá bem a medida de
que maneira eu posso ter, não por uma representação intelectual, mas por um acesso vivencial
direto, intuitivo, a experiência da unidade do universo como vontade.
Schopenhauer, Rousseau e Sartre
Pergunta: Schopenhauer lia Rousseau? Porque toda a teoria da compaixão, no Rousseau, é
assim.
Professor: Sim, Schopenhauer era um sujeito de extraordinária erudição, e talvez tenha sido
um dos filósofos mais eruditos do seu tempo. Aliás, é por via dele que se torna mais conhecido,
na Europa, os textos orientais, especialmente a filosofia dos vedantas e toda a filosofia hindu.
Pergunta: Eu queria fazer uma pergunta e não tem nada ver com isso. Lembrei do Sartre na
hora que você fala da compaixão. A luta existencial do Sartre tem alguma coisa a ver com essa
impossibilidade...
Professor: Claro, tem a ver com a angústia que Schopenhauer desenvolve sobre o conceito de
vontade, mas, para Sartre, essa experiência da compaixão é dificilmente equacionada, em
termo schopenhaueriano, na medida em que, para Sartre, esse passo aquém da individuação
que, para Schopenhauer, é a experiência mística, não existe. Para Schopenhauer, essa
vivência da compaixão é uma experiência, por definição, mística; ela não passa por nenhuma
teorização. Mas ela dá acesso a isso que é pré-individual, tomando a palavra "pré" aqui, no
sentido metafísico; quer dizer, ela é necessariamente anterior a toda e qualquer individuação;
portanto, necessariamente anterior a consciência, ao indivíduo empírico que nós somos...
Comentário: Ao sujeito e objeto.
Professor: Não se põe a relação sujeito e objeto aqui, porque a vontade não é, aqui, objeto
para nenhum intelecto, ela é ela própria, a partir do que se determina a diferença no nível da
representação do sujeito e objeto. Bom, fica mais claro um pouquinho, esse percurso do
Schopenhauer.
A Unidade dos Opostos em Nietzsche e nos Românticos
Pergunta: Posso só fazer uma última pergunta, mas é que eu preciso socorrer meu amigo
Dornelis naquela questão dele, porque, desculpe interferir, eu acho que essa questão da
unidade dos opostos só vai ter reposta, dessa forma que me apraz, pelos românticos;
realmente, aí é uma corrente da filosofia que tenta dar conta disso na idéia de uma unidade
daquilo que é antagônico e que não é preocupação do Nietzsche.
Professor: Pelo contrário, nós vamos ver como ele vai fazer exatamente a denúncia dessa
unidade, dessa pretensa unidade, a partir do seu enraizamento lógico-gramatical. O próprio
problema da crença na oposição dos contrários, é isso que no fundo Nietzsche vai colocar em
questão. Ou seja: por que é que nós pensamos que há contrários? E por que nós pensamos
necessariamente que há oposição entre contrários? Ou seja: por que nós não podemos
prescindir de certas categorias, por meio das quais nós estruturamos aquilo que nós
pensamos? Por que nós temos que pensar dialeticamente na oposição dos contrários? Por que
nós temos que pensar necessariamente em termos de sujeito e predicado? Por que nós temos
que pensar em termos de causa e efeito? Quem é que nos garante que com isso nós
aprendamos alguma coisa assim como a estrutura ontológica da realidade? Quem é que me
garante que a realidade se dá em termos de oposição de contrários? Ou seja: quem é que me
garante que há contrários?
Comentário: Mas essa é a forma de compreensão da consciência.
Professor: Isso. Perfeito.
Comentário: E aí chegamos num ponto que realmente não dá para prescindir disso.
Professor: Eu estou quase convidando vocês a fechar o livro e vamos discutir livremente,
porque é isto, isto é a forma de compreensão da consciência. Mas é muito mais do que simples
forma de compreensão da consciência: isto é a forma de estruturação do pensamento no
discurso.
Comentário: Do homem ocidental.
Comentário: Acontece que para os românticos essa oposição dos contrários, e mesmo a
unidade, não se dá com a consciência. Quer dizer, a fórmula deles é o além da própria
consciência.
Professor: Sim, mas a questão do Nietzsche é: de onde eu falo, para poder sustentar
legitimamente essa pretensão? Qual é o estatuto do discurso pelo qual eu postulo esse caráter
ontológico, que os românticos pretendem, para oposição dos contrários? Senão daquilo que
constitui, por assim dizer, a espinha dorsal do meu próprio pensamento. Ou seja: o que é que
me garante, em última instância, que tudo aquilo que eu penso, que tudo aquilo que eu digo,
não seja uma espécie de antropomortização do universo? E mais ainda, para fazer justiça a tua
pergunta: até que ponto essa antropomortização do universo não é uma condição fundamental
da vida? Até que ponto vida significa necessariamente isso, ao menos para nós?
Comentário: Ou seja, escândalo ptolemaico para que possa existir vida.
Professor: É, pelo menos a nossa.
Comentário: Por isso que a vida é um acaso, é um acidente.
Professor: É isso mesmo. É com isso que eu gostaria de terminar o curso. Você não pode
explicar, porque para você explicar, você tem que lançar mão de todas essas estruturas cuja
gênese você está fazendo aqui. Explicar significaria a possibilidade de dar um passo para fora
dessa camisa de força, que é o discurso e o pensamento, dizer: "Olha, isso surgiu assim,
assim, assim ..." Mas para que eu possa fazer um discurso sobre isto é preciso que eu tivesse
algum outro instrumento que não fosse isso, o que eu não tenho. Entende?
Comentário: É pesada...
Professor: Pesada, é muito pesada. Eu tinha avisado antes. É muito pesado.
Pergunta: Como é esse acidente que eu perdi?
Pergunta: Ela diz: "Bom, então, nós existimos por acidente, por acaso; se a nossa vida
depende dessa espécie de antropomortização do real. Em última instância, sim; e este acidente
é incontornável, porque para que eu pudesse removê-lo, ou seja, para que pudesse explicar
qual é a sua razão de ser, eu teria que ter algum acesso fora desse acidente; quer dizer, eu
teria que poder justificar por outro meio, que não um simples discurso e o simples pensamento,
a existência do pensamento do discurso; coisa que obviamente me é impossível; para que eu
pudesse fazer isso, eu precisaria ter um ponto de apoio fora do discurso, fora do pensamento.
Comentário: Nem se fosse um Deus enganador.
Professor: Nem que fosse um Deus enganador.
Comentário: Voltamos a estaca zero.
Pergunta: Mas, por exemplo, os estados de êxtases não seria uma saída?
Professor: Você vai ver que serão, para Nietzsche, mas eles são incomunicáveis.
Comentário: O problema é esse: calar a boca. Eu cheguei a essa conclusão... O grande
achado é ficar quietinho. Porque para os românticos também a unidade dos opostos não pode
ser visível, é um paradoxo.
Professor: Não. Não é calar a boca. É falar, falar, falar... até o fim. Mas com plena consciência
de que eu não estou dizendo o essencial.
Comentário: Eu não consigo, é dramático demais.
Professor: É, é esse o escândalo... Olha, se vocês quiserem uma expressão mais poética
disso...
Comentário: De fato, se chega a um ponto que não dá para falar mais...
Pergunta: O inverso de tudo isto, também não é verdadeiro?
Professor: Como assim?
Comentário: Isso é pesado, isso é trágico, isso é terrível, nós somos um mero acidente, mas se
nós somos um acidente, nós não somos tão responsáveis assim, não precisamos...
Professor: É, isso Nietzsche chama da inocência do devir, inocência do vir a ser.
Comentário: Eu acho que a gente fica um pouco mais humilde diante das coisas...
Professor: Engraçado é que... se você quiser uma imagem poética disso, uma das que eu
conheço que expressa melhor, é do Fernando Pessoa. O filósofo é, mais ou menos, um
fingidor, para Fernando Pessoa; ele chega a fingir que é dor, a dor que efetivamente sente,
entendeu? Quer dizer, você não tem nenhum fundo, todo fundo é um fundo falso. Todo
fundamento a que você chega é necessariamente uma máscara; então, você retira uma
máscara, encontra um fundamento, um rosto, por detrás da máscara, mas aquele rosto que se
descobre é uma outra máscara, e assim por diante...
Comentário: Você vai chegar a anulação da dor.
Professor: Não, para Nietzsche é o contrário; você vai chegar à afirmação trágica da dor. A
anulação da dor é o que você tem em Schopenhauer, que é a vontade que renega a sua
própria natureza.
Comentário: Nietzsche, na verdade, faz a crítica do pensamento e da razão, é óbvio, mas ele
não coloca nada no lugar... Por exemplo, os românticos, eu vou pegar Rousseau; ele faz a
crítica do pensamento e coloca o sentimento como uma via de acesso a algo mais verdadeiro,
a essência do ser; Schopenhauer coloca a compaixão; existem outras faculdades que me
levariam para algo mais verdadeiro. O que Nietzsche faz é não colocar nada no lugar do
pensamento. Então, ele faz a crítica radical do pensamento, mas não tem uma outra faculdade
que me levaria para essa experiência do ser.
Porque a arte vai transformar essa tragédia...
Professor: Existe, digamos assim, a certeza irrecusável, para quem quer ser honesto consigo
mesmo, de que o pensamento e a razão não me dão o essencial, só me dão superfície, só me
dão máscara, só me dão perspectiva. Mas existe também a consciência incontornável de que
eu não tenho nada que não seja isso. Ou seja: eu tenho que saber que isso é só perspectiva e
que não há nada além da perspectiva.
Por isso, para Nietzsche, a arte aparece como uma experiência fundamental. Por que? Porque
a arte vai transformar essa tragédia, que é a existência absurda, a existência casual, não em
objeção contra a existência, não em denegação da existência, mas em transfiguração artística
dela. Então, no fundo, a arte, especialmente a arte trágica, toma essa experiência fundamental
do absurdo e a transfigura, ao invés de negá-la sob a forma, por exemplo, da denegação
religiosa, da criação do além, do metafísico, da outra vida; ou seja, daquilo que Platão e o
cristianismo fizeram no Ocidente de forma exemplar. Ao contrário disso, a arte glorifica
precisamente o sofrimento, e a tragédia não é senão a mais sublime das tentativas de
transformar o sofrimento de objeção contra a vida em glorificação estética da dor. E aí sim,
Amnéris, aí você vê o que há de visceral em Nietzsche. Nietzsche é aquele que chega ao ponto
de dizer: toda a filosofia não foi senão fuga diante do sofrimento. Era preciso fugir desse
absurdo insuportável. O quê inventaram os filósofos então? Os grandes sistemas de
metafísica. Por que? Porque os grandes sistemas de metafísica são formas de se postular e
acreditar numa espécie de mundo verdadeiro, que não é esse mundo da pura transitoriedade,
do sem sentido, do absurdo...
Comentário: E do corpo...
Professor: Exatamente. Esse mundo da alma, esta entidade substancial permanentemente
idêntica a si mesma, ou das formas de vida eterna, redenção, etc., enquanto que a cultura
artística, especialmente a cultura trágica, é esse mergulho, até as últimas conseqüências,
precisamente na finitude, na transitoriedade, na morte, no absolutamente casual, sem que isso
sirva de objeção contra a existência, mas justamente servindo de transfiguração, como eu
disse, transformação disso em obra de arte. Aceitação, mas não uma aceitação de pura
resignação. Uma aceitação que transforma a finitude, isto é, a dor, a morte, o absurdo, em
objeto de afirmação.
Comentário: Constatação.
Professor: Mais do que isso, não significa simplesmente constatar, significa afirmar, querer...
Comentário: É mais do que aceitar, é afirmar.
Professor: É querer. Querer mesmo. É a única forma de você redimir a existência enquanto
sofrimento, é você querer a existência enquanto sofrimento. Não sofrimento bruto, vai dizer
Nietzsche, mas artisticamente vivenciado; sempre o mais clássico e claro é exatamente o
ápice, o apogeu do desenvolvimento da tragédia. Por isso que, para Nietzsche, os gregos, de
alguma forma, fornecem uma espécie de modelo, onde isso se faz realidade, do ponto de vista
de uma macro experiência, que é a experiência de uma cultura. Veja, nada do que eu disse até
agora tem uma relação direta com essas 3 linhas que eu li; relação direta tem, na verdade,
apenas em função da explicação da vontade como unidade metafísica, onde Schopenhauer
pretende encontrar a essência última do universo. Quer dizer, é lá onde Schopenhauer
pretende ancorar a certeza absoluta a respeito daquilo que é, essa unidade substancial ou
metafísica.
Pergunta: Então, a negação é algo que só o homem pode fazer?
Professor: Sim, e só na ética. Na arte a vontade pode encontrar uma espécie de quietivo; pela
simples contemplação desinteressada do belo, enquanto pura forma, a vontade se aquieta, se
assossega, deixa de ser desejo, passar a ser simplesmente a contemplação sem interesse de
uma forma pura. Essa é a experiência da beleza. Então, na beleza, o puro sujeito contempla a
pura idéia. Mas acontece que a experiência do belo é fugaz; então, a vontade não se nega
completamente, mas se aquieta, por isso a arte, para Schopenhauer, é um quietivo da vontade.
Quando é que a vontade se nega? Na experiência da compaixão. Porque na experiência da
compaixão a vontade toma consciência de si mesma como vontade, ou seja: como impulso
assassino e se auto-renega. Como? Na ascese.
Comentário: Daí vira uma neurose.
Professor: Bom, para Schopenhauer vira santidade. O que é que faz o asceta? O asceta se
nega a si mesmo como corporeidade. Ou seja: ele obstrui as vias, as correntes mais
poderosamente vitais da vontade, que são a sobrevivência e a sexualidade.
Comentário: Volta ao velho problema.
Professor: Claro. Volta a negação da vontade.
Comentário: Mas, por outro lado, poderia se pensar e agir de outra maneira: não é necessário
negar a satisfação da vontade, pode-se aceitá-la sem satisfazer e contê-la. Isso só o ser
humano pode fazer pela consciência.
Professor: Isso é Nietzsche.
Comentário: E é Jung também. Com certeza essa mesma energia, se negada, vai buscar outra
saída. Ela não desiste do seu objetivo.
Professor: Nietzsche diz isso de forma absolutamente explícita em termos teóricos e avança
ainda mais: o fundamental para a cultura não é que a vontade represada encontre qualquer
canal de satisfação, mas que ela encontre um canal de satisfação que seja sublimação, ou
seja: que seja uma transformação qualitativa da sua matéria. No caso da arte, mas também da
ciência, da produção da cultura em geral. O que você pode ter é uma transformação, uma
espécie de derivação dessa corrente de força represada. O que Nietzsche faz, quando faz
crítica da cultura, é denunciar as formas de patologia, por exemplo, o ressentimento, que a
gente vai tentar ver de forma mais clara.
Pergunta: Você chama isso de sublimação?
Transformar os seus Demônios...
Professor: Quem usa a palavra sublimação é especialmente um autor chamado Walter
Kaufman; no caso de Nietzsche, ele próprio usa algumas vezes a palavra sublimieren, mas no
sentido químico da palavra sublimação. O que é que significa a sublimação em química?
Significa transformação de qualidade de uma certa matéria ou composição de elementos.
Isso que eu estou dizendo, que isso é rigorosamente nietzschiano, esse é o programa de
concepção de cultura para Nietzsche, ou seja: ao invés da castração e da repressão no sentido
mais corrente da palavra; reconhecimento não somente da existência, mas da energia, do vigor
dessas correntes, e contenção, domínio, manutenção sob controle, tanto quanto possível. Ou
seja: o programa é tentar transformar os seus demônios em animais domésticos.
Comentário: Depois de animais domésticos em seres humanos.
Professor: É. Mas, veja, a pior coisa, para Nietzsche, é negar que sejam demônios.
Comentário: E aí dá uma teoria da cultura completamente diferente...
Professor: Completamente diferente. Isso aí a gente pode fazer um exame mais detido nisso,
eu posso trazer textos nesse sentido. Para Nietzsche o homem é tanto mais forte, quanto maior
é a quantidade de impulsos que ele consegue acolher, de certa forma unificar, manter sob o
seu próprio domínio. Ou seja: o homem forte não é aquele que renega aquilo que tem de
impulsivo, perigoso, destrutivo, condenável, mas exatamente aquele que consegue acolher isto
como não condenável do ponto de vista moral; mas sem cair no perigo oposto de uma espécie
de libertinagem completa, de total ausência de domínio.
Comentário: E essa concepção ética é específica do Nietzsche, é uma criação original dele.
Professor: Naquele momento sim. E eu queria só não deixar sem observação essa colocação
do Dornelis sobre a diferença fundamental entre Nietzsche aqui e Schopenhauer. Para
Schopenhauer, a questão é como a vontade é um impulso assassino - eu estou usando a
palavra assassino aqui no sentido forçado -, mas como a vontade é essa disputa pela matéria e
portanto ela é necessariamente violentação, para Schopenhauer; esta violentação é um ciclo
infernal que não se esgota, mas necessariamente se reproduz de forma intensificada. Então, a
única possibilidade de romper o inferno desse ciclo é quando a vontade se contempla a si
mesma no espelho, por assim dizer, da consciência. Vale dizer, por conseguinte, é no homem
e, especialmente, no plano da ética, que a vontade se vê a si mesma como violentação e se
auto-renuncia. Ou seja: ela renega a si mesma como violentação. Porque, se ela não se negar
a si mesma, reproduzirá de novo o ciclo infernal. Qualquer forma de auto-aceitação da vontade,
significa reprodução do ciclo infernal de violentação. Qualquer forma de satisfação da vontade
significa reprodução da vontade. Então, só há um meio de você impedir que o ciclo se
reproduza: por meio da auto-negação; é o que faz a ética, especialmente o que faz a ascese.
Eu disse, na arte ela se aquieta, porque a arte é uma contemplação desinteressada, mas a
contemplação artística desinteressada não dura para sempre, enquanto que o asceta ou o
santo consegue isto, precisamente porque ele aniquila as duas correntes mais vigorosas da
vontade, isto é, a sobrevivência e a sexualidade.
Então, isto é Schopenhauer, por um lado. Agora, vejam, e apenas para fazer um pouco mais de
justiça à questão dela: para Schopenhauer esse ciclo infernal da vontade é completamente
absurdo. Por que? Porque eu não posso dar nenhuma explicação da essência do universo
entendida como vontade. Por que? Porque o que é que significa explicar? Explicar significa
remeter um fenômeno qualquer à sua causa ou à algo que possa funcionar como princípio de
razão suficiente para produção desse efeito. Isso significa explicar. Explicar significa dar a
razão de ser. O que significa dar a razão de ser? Precisamente ser capaz de encontrar um
motivo, fundamento, causa, razão, princípio de razão. Ora, o princípio de razão é uma das
formas do princípio de causalidade, que por sua vez só pode subsistir se eu fizer uma profissão
de fé anterior, na combinação de espaço e de tempo. Porque causalidade supõe
necessariamente sucessão, sucessão supõe necessariamente espaço e tempo. Ora, como
espaço e tempo são formas da representação só podem valer para o domínio do fenômeno e
não para o domínio daquilo que não é fenômeno, mas coisa em si. Logo, a vontade pensada
como unidade metafísica ou coisa em si, não está submetida ao espaço e o tempo, e
conseqüentemente não está submetida ao princípio de causalidade, portanto, não pode ser
explicável. Logo ela é o absurdo completo. Então, o que fazer para fugir deste absurdo
infernal? Que a vontade se auto-renegue.
Ora, o que vai acontecer no Nietzsche? Nietzsche vai chegar até onde chegou Schopenhauer e
dizer efetivamente: o mundo é vontade, é vontade de poder; efetivamente o que há é esta
guerra, este inferno da vontade, mas isso não é objeto de negação, e sim de aceitação. E eu
preciso ser suficientemente forte, valoroso, para Nietzsche, íntegro, para perceber que não há
fuga possível diante disso; ou seja: que todas as formas de negação deste dado fundamental
de crueldade, é precisamente uma maneira, velada ou manifesta, de fugir desse real. Ou seja:
criar uma forma qualquer de ilusão, de denegação disso. Schopenhauer por via da mística,
outros por via de outras possibilidades. Agora, como assumir, aceitar, viver isto? Como fazer
com que isto não seja uma objeção contra a vida? Como fazer com que a vida não seja uma
objeção contra ela mesma? Para Nietzsche, vai ser precisamente, transfigurando, ou seja -
neste sentido que eu estou dizendo químico da palavra -, sublimando. Partindo deste dado
como dado fundamental e transformando isso sob a forma da cultura.
Tudo É Perspectiva
Pergunta: Sabe o que me daria paz ao nível intelectual? É uma coisa que eu penso, ao
contrário do Jung - pode ser que a minha leitura seja até equivocada -, mas é a idéia de que há
uma multiplicidade de perspectivas, todas elas válidas, onde eu não tenho condições de falar
para uma pessoa que vive schopenhauerianamente que ela está equivocada, porque o ser dela
expressa essa vontade dessa forma. E eu acho que Nietzsche funda a possibilidade da
multiplicidade das perspectivas, mas, esta convivência light que eu estou querendo, é uma
coisa de Jung, na leitura que ele faz do Nietzsche.
Professor: Sei. Olha, esse é um problema sério, Amnéris. É uma disputa muito grande,
inclusive, dentro das interpretações do Nietzsche. Existem aqueles que defendem a seguinte
posição, mais ou menos, como a sua. Tudo é perspectiva, o universo é perspectiva, e por
conseguinte as perspectivas são, cada uma delas, justas no seu próprio ângulo. Ou vale dizer,
todas elas são injustas. Quer dizer, na medida em que você tem como conceito tradicional de
justiça, sair fora do seu próprio ângulo, para dar a cada um o que é seu em última instância; e
como você não pode sair nunca do seu próprio ângulo, toda perspectiva apreende um campo
de visão, mas jamais o próprio olho, então essa injustiça fundamental de toda perspectiva
constitui cada perspectiva como igualmente justa ou igualmente injusta. Essa é uma visão
possível. Uma ampla, uma grande corrente da interpretação de Nietzsche, diz exatamente isso;
outros dizem o seguinte: bem, Nietzsche diz tudo que há é perspectiva, toda perspectiva é
necessariamente injusta inclusive a minha, mas existe uma certa qualificação da minha
perspectiva em relação as outras, e esta qualificação é a seguinte: eu sou uma perspectiva que
se sabe a si mesma perspectiva, enquanto que os outros são perspectivas que se ignoram a si
próprias como perspectiva. Então, porque eu sei, que sou só perspectiva, e os outros se julgam
mais do que simples perspectiva, então a minha perspectiva é, de certa forma, mais justa do
que a deles. Agora, (já falei anteriormente que nós precisamos ir um pouco além disso), a
minha pergunta é: em que medida uma perspectiva pode se saber a si mesma como
perspectiva?
Resposta: Na medida em que eu conheço as outras.
Professor: Isso...
Comentário: E é a realidade. Porque enquanto você está vendo a sua perspectiva, mas, um
fato acontece que sai da sua perspectiva, é assim uma realidade.
Professor: Mas como você pode dizer que algo está fora da sua perspectiva?
Resposta: Quando algo acontece que não cabe dentro dos parâmetros que vocês está
colocando.
Professor: Não. Pense em um campo de visão: qualquer fato está dentro do campo de visão.
Comentário: E os outros não existem.
Professor: Claro. Agora, o problema é: como um discurso que diz, que tudo é perspectiva, pode
aspirar-se algo mais do que simples perspectiva, e por conseguinte poder dizer que, enquanto
perspectiva ele é superior ao outro.
Comentário: É exatamente o que o Jung fala dele.
Professor: Esse é um dilema nietzschiano, rigorosamente nietzschiano. O que eu acho, que
pode encaminhar uma resposta nessa direção, em termos de Nietzsche, seria o exatamente o
seguinte: só há perspectiva, não existe absolutamente nada que não seja perspectiva, até aqui
eu posso dizer, todo aquele que diz que há algo mais que simples perspectiva, deve exibir o
seu título de crédito. Ou seja: todo e qualquer outro opositor deve me mostrar que há algo mais
do que perspectiva. Enquanto ele não me mostrar que há uma teoria, que não seja perspectiva,
a minha teoria vige. Ou seja, eu não posso dizer, que tudo aquilo que existe é necessariamente
perspectiva e que este discurso não é perspectivo, entende? Ou não?
Comentário: Eu penso que teria, mas pela sua expressão, eu não entendi nada ...
Professor: Veja, se eu disser, que o discurso que diz: tudo que existe é perspectiva, é
potencialmente contraditório. Por que? Porque ele está dizendo que há uma perspectiva que
descobre todas as outras como perspectiva, e que essa perspectiva portanto não é
perspectiva. Então, para Nietzsche escapar desse escândalo ptolemaico terá de fazer
exatamente o trabalho de desconstituição e dizer: eu desconstituo aquilo que se pretendia ser
real, acesso à estrutura da realidade, mostro que isso é perspectiva; daí eu digo: não há senão
perspectiva. Aquele que pretende que haja algo mais do que perspectiva, que desconstitua o
meu discurso, de tal maneira a mostrar que existe a possibilidade de um acesso ao real que
não seja perspectiva.
Comentário: Eu acho que, por exemplo, o fenômeno não é uma forma de você...
Professor: Perspectiva? Claro, o fenômeno, o que aparece. O fato que você se referia é pura
perspectiva.
Comentário: Mas isso já melhora tanto! Já dá um banho de credibilidade, de democracia, tão
grande para o pensamento.
Professor: Para usar uma expressão que ela usou, eu não sei se vocês chegaram a ler em
Nietzsche: é preciso que nós reinventemos a atitude da modéstia. É preciso ser modesto a
ponto de saber que aquilo que você vê, é uma perspectiva de um ângulo. Agora, Nietzsche não
está entendendo aqui perspectiva simplesmente como o nosso campo de visão, que não é
capaz de ver o seu próprio olho, mas está entendendo perspectiva como também macro
perspectiva, isto é, perspectiva de uma cultura, como a gente vai ver aqui nesse texto. Eu
esperava que a gente terminasse de ver isso hoje...
Comentário: Então, e que toda perspectiva tem uma singularidade, tem uma forma de
crescimento...
Professor: Isso.
Comentário: Isso é maravilhoso!
Professor: Isso. Toda perspectiva é de um ângulo, vai dizer Nietzsche.
Comentário: É um filme de Hithcock. Tem muitas perspectivas.
Professor: Tem. Em Hithcock tem. Nietzsche vai dizer: há infinitas perspectivas. Isso ele vai
chamar de o nosso novo infinito; vai dizer: o mundo se tornou infinito outra vez, depois que nós
fizermos a crítica da metafísica. Por que? Porque nós abrimos o espaço para a multiplicidade
infinita das perspectivas. É esse que é o nosso novo infinito, o novo infinito não é o infinito da
metafísica, mas o infinito da perspectividade; infinito não do além, não o infinito transcendente,
mas se você quiser uma construção quase absurda, o infinito da imanência.
Comentário: É como um círculo. São infinitos pontos possíveis.
Professor: É.
Pergunta: Então, como que é que ficaram os opostos, então?
Professor: Pois é, então, é uma outra forma de reflexão, que passa necessariamente por uma
crítica da lógica tradicional; os opostos só têm sentido se você, no caso do Nietzsche, se
mantém sob o círculo de validação da lógica tradicional, que acredita na oposição dos
contrários, se você parte da oposição dos contrários.
Novamente os Românticos
Comentário: Os românticos são espertos, pois quando chegam nesse ponto eles também
abrem mão do pensamento e falam: Bom, mas o que é essa unidade dos contrário, dos
opostos? É o espaço lúdico, diz o Schiller. É a fantasia. Quer dizer, ele saiu do nível da
linguagem, senão eles se tornam prisioneiros.
Professor: É isso que eu estava dizendo agora, há muito elemento de romantismo em
Nietzsche, muito mesmo. Está Schiller, mas outros, por exemplo, Novalis...
Comentário: Mas, então, Nietzsche também chega nesse espaço, nesse além, nesses opostos.
Professor: Isto.
Comentário: Só que os românticos fazem um caminho pela unidade dos opostos, eles
acreditam na unidade dos opostos.
Professor: E Nietzsche desconstitui.
Comentário: Nietzsche desconstitui e desde o começo está fazendo a crítica.
Comentário: Mas ele mesmo trabalha com os opostos, na medida em que...
Professor: Pode não trabalhar, esse é o problema. Aí é que está o escândalo. Se você quer
pensar e se você quer falar, você tem que pensar com essas categorias. Quer dizer, o grande
problema é o seguinte: razão não é alma, princípio substancial, razão é lógica e gramática.
Aliás, é Logos. Então, se a gente pensa, pensa assim; se a gente fala, fala desse jeito. Agora, o
problema é este terrível exercício de auto-reflexão da razão sobre si mesma. No caso do
Nietzsche isso é claríssimo. Agora, vejam, porque eu chamo isso de opostos, senão em virtude
da minha própria perspectiva.
Comentário: Mas também pode ser pensada na perspectiva da vida que tem muitos opostos,
como agrião e cicuta no mesmo canteiro ou vida e morte ou gerar e matar etc...
Circumambulatio
Professor: Mas a vida provavelmente pode ser pensada também como complementariedade.
Comentário: Mas gente, espera um pouco, o inconsciente não compreende as coisas em
termos de opostos, compreende?
Resposta: Sim. Também.
Comentário: Não, mas ele não organiza. É com aquele quadro do Peticov das frutas sobre a
mesa. Não organiza. A consciência, ela compreende essa unilateralidade, em termos de
opostos, ela divide as coisas para compreensão, não é isso? Então, ela percebe que o
inconsciente também está num outro pólo oposto, dual dela.
Comentário: Mas ao mesmo tempo a consciência é parte do inconsciente. Porque, seguindo a
imagem do quadro do Peticov, as mesmas cores que estão no inconsciente estão na
consciência, porém organizadas.
Comentário: Desculpem, para Nietzsche, não há fatos, só há interpretação. Não existe o que
ela chama realidade, não existe o que você está chamando de inconsciente, e o que ele chama
de vida. Isso aí são todas projeções, interpretações. Aí a gente trabalha com isso como se
fosse a realidade, como se fosse o fato, mas isso não existe.
Comentário: Então, mas quem faz esta interpretação e coloca nesses termos é a consciência
ou a razão, é a maneira como você compreende tudo, não é isso? Então, tem uma outra coisa
que é invisível, ela só se torna visível quando passa pela razão.
Professor: Espera um pouquinho, tem uma outra coisa, quando você disse isso, você já usou
de novo todas categorias da consciência.
Comentário: Está vendo? Não tem como escapar.
Professor: O seu discurso foi até exatamente o limiar de onde é possível. Aí você diz: "Tem". O
que é tem? Ser, uma, outra coisa...
Comentário: Então, você só pode dizer isso quando experiencia alguma coisa que não dá para
expressar, como o sonho, por exemplo.
Professor: É isso mesmo. Vejam, portanto, para que nós possamos falar temos que identificar
coisas, seres, substâncias com atributos, propriedades, relações, e nós estamos de novo no
nosso confortável regime doméstico da gramática.
Comentário: Então, isso é uma linguagem da consciência, não é? É a maneira como a
consciência compreende as coisas. A consciência não pode fugir disso, não tem como.
Professor: É exatamente isso. Você mesma disse, é preciso organizar para compreender. É
isso mesmo. Você não pode fechar a janela dessa consciência e dizer: "Bom, agora eu vou ter
acesso a outra coisa". Porque a outra coisa já não é outra, ela continua sendo a mesma coisa.
Pergunta: A experiência com droga não seria uma tentativa de escapar disso?
Professor: Não sei, porque aí precisaria ver como você vai abordar isso. Se você vai tratar isso
através de experiência você já está dentro de uma certa categoria, que é uma categoria da
clínica. Agora, o que é que você efetivamente quer aproveitar da experiência com droga? Se
for absolutamente singular da experiência, de novo você cai no incomunicável. Isso não te leva
absolutamente a nada.
Comentário: Então, mas o que eu coloco seria uma tentativa de sair dessa prisão, desse
mundo da palavra, de máscaras... A droga seria uma busca...
Professor: Porque necessariamente isto tem que ser vivido só como prisão? Esse é o
problema.
Comentário: Bom, mas o que a gente está sentindo aqui é isso.
Professor: Isto é prisão mesmo. Isto é uma camisa de força, isto é uma amarra, isso não é uma
camisa que você pode tirar ou um óculos que você pode trocar...
Comentário: Mas tem o corpo também.
Professor: Mas o corpo não necessariamente tem as mesmas limitações que você tem na
consciência. Isto nós vamos ver nesse texto aqui. A consciência necessariamente supõe uma
unidade, que é uma unidade estática; enquanto que a unidade do corpo é uma unidade
dinâmica. E, sobretudo, uma unidade da pluralidade.
Comentário: Por isso que você tem o Self no corpo.
Professor: Exatamente. Agora, eu queria só dizer uma coisa: é possível fazer a experiência da
camisa de força da linguagem, e mesmo assim brincar com ela. Ou seja: é possível você
ironizar a sua própria linguagem. Vale dizer, é possível você fazer a experiência da máscara
como máscara; e quando você faz uma experiência da máscara como máscara, você não tem
mais a ilusão que tem, necessariamente, de chegar num rosto. E porque você tem a
experiência da máscara como máscara e não da máscara como rosto, você tem uma outra
forma de relação com a máscara, que não é a forma da má consciência, a forma do peso, a
forma ressentida e negativa. Você tem a possibilidade de um relacionamento leve, de
superfície, com a própria máscara. Ou seja: você tem dois lados, de um, a denúncia grave da
máscara como máscara, e de todas as formas de negar o caráter superficial de toda máscara -
e esse é o lado pesado da filosofia de Nietzsche -, quer dizer, da denúncia da tradição como
formas de ilusão e auto-ilusão, formas de mistificação; e por outro, esse trato mais leve com a
máscara, ou se você quiser, essa dança sobre a superfície, que não tem ilusão, que não vai
chegar em fundo nenhum.
Comentário: Seria aceitar a arte.
Professor: A arte como pura superfície. Por isso, para Nietzsche, a arte é mais honesta do que
a ciência. Por que? Porque a arte é a vontade de ilusão, a vontade de aparência confessada. A
arte não quer outra coisa que não a bela aparência, enquanto que a ciência pretende chegar
em alguma coisa que não seja só a aparência. Logo a ciência é menos honesta do que a arte,
porque a ciência continua achando que existe alguma coisa que não seja aparência. Ou seja, a
ciência é pesada.
Comentário: Há uma pintura do Peticov das frutas, que representa muito bem isso. É uma
representação, aparentemente, de uma mesa, que tem frutas organizadas pelo espectro das
cores. Então, Há uma faixa em cima da mesa com as cores organizadas em forma de frutas. E
depois, no resto do quadro, representando o universo, estão as mesmas cores, porém
desorganizadas. São os dois aspectos.
Professor: Isso, sem dúvida, acho que é uma imagem que reproduz maravilhosamente bem o
que a gente está dizendo aqui. Bom, gente, muito obrigado e até a próxima aula.
Introdução
Nós chegamos, então, ao final da seqüência que eu havia programado como conteúdo desses
nossos encontros. Confesso a vocês que, com surpresa da minha parte, embora seja uma
seqüência mínima, e obviamente arbitrária, porque nós temos que deixar de lado muitos outros
aspectos que são igualmente significativos para aquilo que nos interessa, mas eu não tinha
expectativa muito concreta de que nós esgotássemos todo esse percurso; sobretudo, em
função da grande densidade e da grande complexidade de alguns desses textos,
especialmente as passagens da Crítica da Razão Pura que, de fato, eram problemáticas, do
ponto de vista de um acesso, mais ou menos não traumático. Mas, surpreendentemente, acho
que passamos de uma forma, até tranqüila, com todas essas turbulências teóricas; e acho que
não houve nenhum trauma mais duradouro. Então, fico contente porque pude constatar que a
nossa programação acaba sendo inteiramente cumprida, talvez não dê para a gente explorar
um ou outro aspecto em relação aos dois primeiros aforismos desse livro, mas, enfim, sempre
tem que ficar alguma coisa mesmo de fora.
Pretendo, hoje, que nós façamos a leitura, pelo menos, do 19 e do 20, dois aforismos centrais,
no que diz respeito à temática que nos ocupou durante essa nossa série de encontros. Na
verdade, esses aforismos, 19 e 20, da maneira como eu organizei o nosso percurso, seriam um
ponto decisivo, a meta mesmo. E vocês verão porque razões. Antes de fazer propriamente a
análise do 19, eu só queria antecipar algumas linhas, pedindo a vocês que mantenham
presentes na memória a maneira como Nietzsche havia procedido em relação a sua crítica ao
‘eu-penso’ cartesiano, a crítica que ele havia feito à proposição ‘eu-penso’, e à intenção de
Descartes ao empreender a demonstração da existência a partir do pensamento; e lembrem
que Nietzsche havia tomado o ‘eu-penso’ como se ele fosse algo de simples e complexificado
aquilo que, em aparência apenas, era simples; ele havia mostrado que na proposição ‘eu-
penso’ não se tratava de modo nenhum de uma presença imediata do objeto à consciência,
como queria Descartes, com o conceito de certeza imediata, mas que havia uma série de
processos lógicos presentes naquele enunciado; que, na verdade, se tratava muito mais de
inferências ou afirmações sem fundamento do que propriamente de intuição ou de certeza
imediata.
Esse mesmo procedimento ele vai repetir precisamente através da análise de uma outra
proposição que se pretende uma certeza imediata, que é não mais ‘eu-penso’, mas o ‘eu-
quero’. Então, assim como ele desconstituiu a pseudo-simplicidade e pseudo-certeza, ou a
pseudo-evidência do ‘eu-penso’ cartesiano, agora ele vai desconstituir a pseudo-evidência do
‘eu-quero’ schopenhaueriano. Num procedimento que é, na minha opinião, simetricamente
idêntico ao procedimento que ele usou quando fez a desconstituição da evidência da certeza
cartesiana da existência a partir do pensamento. Apenas para que vocês tenham vivo na
memória o aforismo 16 e os Fragmentos Póstumos que nós examinamos; eles traçam
perfeitamente bem o procedimento que Nietzsche emprega para construir o seu próprio
argumento.
Eu pediria que vocês dedicassem, pôr favor, um minuto de atenção a essas linhas do texto do
prefácio Além do Bem e do Mal. Pôr acaso vocês tiveram a oportunidade de ler esse prefácio?
É um prefácio muito interessante, extremamente significativo.
Falando seriamente há boas razões que abonam a esperança de que todo dogmatizar em
filosofia, ainda que se tenha apresentado como algo muito solene, muito definitivo e válido,
talvez não tenha sido mais do que uma nobre infantilidade e coisa de principiantes. Talvez
esteja muito próximo o tempo em que se compreenderá, cada vez mais, o que é que
propriamente bastou para pôr a primeira pedra desses sublimes e incondicionais edifícios de
filósofos, que os dogmáticos vieram levantando até agora.
Apenas para chamar a atenção de vocês a expressão "sublimes e incondicionais edifícios
teóricos", é uma expressão de Kant, que Nietzsche cita aqui sem referência, mas com intenção
evidentemente paródica. Então, essa é uma idéia muito própria de Nietzsche. O que é a
primeira pedra desses sublimes edifícios teóricos? Qual é o seu alicerce?
Uma superstição popular qualquer procedente de uma época imemorial como a superstição da
alma, a qual, enquanto superstição do sujeito e superstição do eu, ainda hoje não deixou de
causar dano, talvez um jogo qualquer de palavras, uma sedução por parte da gramática ou
uma temerária generalização de fatos muito reduzidos, muito pessoais, muito humanos,
demasiado humanos.
A idéia é que é muito provável que na base de toda filosofia, de todo sistema teórico, nós não
encontraremos outra coisa do que uma espécie de superstição popular teoricamente
consagrada. Na maioria das vezes uma espécie de sedução da gramática. Essa sedução, que
a gramática exerce, é uma espécie de direção inconsciente do pensamento pelas categorias
fundamentais da gramática. É exatamente isso que Nietzsche denunciava quando ele fazia
análise do cogito cartesiano; isso que está chamando agora, aqui, ironicamente, de superstição
do eu ou de superstição da alma. Ele vai fazer exatamente isso com o ‘eu-quero’. Vejam, já
começa provocativamente em relação aos filósofos. Para ele os filósofos são, em geral,
dogmáticos.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal
Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida do mundo;
Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única coisa que nos era propriamente
conhecida, conhecida inteiramente, conhecida sem subtração nem acréscimo.
No nosso encontro anterior tentei traçar, em grandes pinceladas, qual era a posição de
Schopenhauer a esse respeito. Para Schopenhauer, portanto, a primeira evidência não era a
evidência do ‘eu-penso’, que era uma evidência apenas ligada à representação, mas a
evidência da vontade, do querer, querer este do qual o meu próprio corpo não é senão uma
objetivação. Então, Schopenhauer dava, por assim dizer, por admitido que todo mundo sabe
imediatamente o que é que significa querer. Todos nós sabemos o que é que significa um ato
de vontade. Nós não somos outra coisa senão atos de vontade, para ele.
Mas a mim, continua me parecendo que também neste caso, Schopenhauer, não fez mais do
que aquilo que os filósofos justamente costumam fazer: tomou um preconceito popular e o
exagerou.
Então, Schopenhauer fez aquilo que é próprio e típico da filosofia. Entendo, aqui, por filosofia
toda a disciplina teórica, toda a disciplina especulativa. Ou seja: os pensadores do século XIX
não conheciam ainda a diferenciação que é nossa, entre filosofia e ciência. Então, todos os
filósofos procedem da mesma maneira, partem de uma superstição popular, que não
reconhecem como superstição, mas que a travestem em teorias. Então: tomou um preconceito
popular que o exagerou.
Para mim a volição me parece antes de tudo algo complicado, algo que só como palavra forma
uma unidade - e justamente na unidade verbal se esconde o preconceito popular que se
assenhorou da sempre exígua cautela dos filósofos.
Então, a vontade é uma palavra que pretensamente indica algo simples, como se a unidade
verbal correspondesse a uma unidade real, isto é, algo de ontologicamente uno. Então, tudo se
passa como se ao termo, à palavra vontade, correspondesse uma coisa ou um objeto vontade,
que se fosse um objeto simples, um objeto identificado. Esse é o pressuposto que está na base
da teoria filosófica da vontade, especialmente da teoria filosófica da vontade de Schopenhauer.
Ou seja, o que Nietzsche está dizendo é que nós admitimos que existe vontade e que vontade
é algo identificável, algo simples; mas precisamente aí já ocorre o primeiro nível de sedução;
sedução significa aqui uma espécie de enfeitiçamento do pensamento... Aliás, é interessante
isso; vocês me desculpem aqui um certo desvio, em alemão as ações de "seduzir" e
"desencaminhar", "tirar do caminho", são expressas pela mesma palavra, pelo verbo Verführen,
que significa tanto führen, conduzir, daí o Führer, etc., o condutor; e Verführen significa
desencaminhar, seduzir. Então, é a mesma palavra que indica um descaminho e uma sedução;
e seduzir aqui significa justamente tirar do caminho certo, quer dizer, desgarrar, fazer errar. E,
precisamente, o primeiro nível de sedução aqui, consiste justamente em acreditar que a
unidade da expressão verbal, corresponde a uma unidade ontológica; ou seja: a unidade da
palavra vontade denota um objeto, ele próprio simples. Então, desencaminhado pela ilusão da
simplicidade real gerada pela simplicidade terminológica, a simplicidade verbal, o pensamento
admite, compra, toma como dado, algo que está muito longe de ser demonstrado.
Sejamos, pois, mais cautelosos, sejamos afilosóficos (ou seja: não filosóficos) - digamos, em
toda volição há, em primeiro lugar, uma pluralidade de sentimentos,
Então, antes de qualquer outra coisa, qualquer ato de vontade, em qualquer volição, você não
tem nenhuma unidade, você tem uma pluralidade; e aqui uma primeira pluralidade é uma
multiplicidade de sentimentos.
a saber, do sentimento, do estado de que nos afastamos, o sentimento do estado ao qual nós
tendemos, o sentimento desse mesmo "afastar-se" e "tender", e além disso um sentimento
muscular concomitante que, para uma espécie de hábito entra em jogo, tão logo quanto "nós
realizamos qualquer volição", ainda que não ponhamos em movimento "braços e pernas".
Comentário: Eu estou com a tradução, aqui, para o português, de Portugal. E aqui em vez de
sentimento, ele usa "na pluralidade de sensações"...
Professor: Não. Eu vou verificar... Não, Gefühl é sentimento. Então, uma pluralidade de
sentimentos, ou seja: o sentimento do estado do qual nós nos afastamos, o sentimento do
estado ao qual nós tendemos, o sentimento do afastar-se e do tender, e esse misterioso
sentimento muscular que acompanha qualquer volição, ainda que a gente não se movimente
do ponto de vista corporal.
Pergunta: Aí sim não seria mais cabido sensação, por se tratar de muscular?
Professor: A palavra que o Nietzsche usa é Gefühl, que é sentimento. Porque a palavra
sensação, ela é muito carregada do ponto de vista semântico em relação a tradição da teoria
do conhecimento. Ela está ligada à psicologia associonista, está ligada ao empirismo, e muito
provavelmente Nietzsche não está querendo aqui correr o risco de incorrer numa espécie de
identificação, nem com o sensualismo, por exemplo; nem com a psicologia associonista. Por
isso ele usa o termo Gefühl, que é sentimento, e aí fica claro que você não está se referindo
apenas à sensação, no sentido da sensação tal como ela é entendida na tradição da teoria do
conhecimento.
Mas percebam que vocês têm, então, um primeiro nível de complexificação daquilo que
aparentemente é simples; quando você tem um ato volitivo qualquer, em qualquer ato volitivo
você já tem, de saída, esta multiplicidade de sentimento. Quer dizer, em qualquer ato de
vontade, em qualquer desejo se encontra aspiração à uma meta, à um alvo que se põe como
objeto da volição, como objeto de desejo. Todo desejo - se nós pudéssemos utilizar uma
palavra contemporânea -, na sua própria estrutura implica este alvo para o qual o sujeito
desejante tende, implica esse estado do qual ele parte neste movimento de tender e implica
também esse movimento que o impulsiona na direção do seu objeto. Então, existe não
somente o sentimento do estado de onde se parte, como sentimento do estado para o qual se
tende, como existe o sentimento precisamente deste "de onde se parte" e desse "tender";
assim como essa espécie de movimento muscular, que é mais imaginário do que efetivamente
real, que seria esse deslocamento no espaço e no tempo, que acompanha toda e qualquer
volição, todo e qualquer desejo, mesmo que você não mova o músculo. Há, na verdade, esse
primeiro grau de complexificação.
E assim como temos que admitir que o sentir e, desde logo, um sentir múltiplo (e aqui de novo
é Gefühl, sentir mesmo), é o ingrediente da vontade, assim devemos admitir também, em
segundo lugar, o pensar.
Pergunta: Tenho uma outra pergunta, também de tradução. Aqui na nossa tradução está
"ingrediente do querer". E o hábito de querer é a mesma coisa que um ato de volição, e é aí é
eqüivalente?
Professor: Pode ser ingrediente do querer. O querer é pensado aqui como faculdade da
volição, em geral. Enquanto que os atos particulares são os nossos desejos concretos, os
nossos desejos particulares. O querer é pensado aqui como a faculdade de desejar. Então,
querer não é somente uma multiplicidade de sentimentos, ao querer pertence, além da
multiplicidade de sentimentos, também o pensamento.
Em todo ato de vontade há um pensamento que manda, e não se creia que seja possível
separar esse pensamento da volição como se então já só restasse vontade.
Ou seja: a isso que nós chamamos vontade pertence essencialmente todo esse complexo de
sentimentos, a que nós nos referimos, e pertence também um pensar. Então, querer não exclui
o pensar, mas querer tem o pensar como um dos seus momentos constitutivos. No ato volitivo
há um pensamento que manda. A idéia é: todo ato volitivo é, no fundo, um jogo de forças. Se
nós quisermos usar uma expressão nossa, contemporânea, é a expressão de uma correlação
de força entre tendências ou moções de forças.
Em terceiro lugar, a vontade não é só um complexo de sentir e pensar, senão, sobretudo, além
disso, um afeto.
Então, o aspecto afetivo da vontade é um dos seus elementos, aliás, é o seu elemento nuclear.
Por isso Nietzsche diz: Em terceiro lugar, a vontade não é só um complexo de sentir e pensar,
mas sobretudo, além disso, um afeto. Aliás, a palavra "afeto", Nietzsche escreve Affekt, ele usa
o termo latino para mostrar justamente esse lado da afecção, ser afetado por.
Pergunta: E é só um? Não é múltiplo?
Professor: O elemento afetivo ainda é um ingrediente a mais da vontade, e o que ele está
falando aqui é de um afeto particular. E é esse que vai nos interessar aqui fundamentalmente.
O que caracteriza a vontade fundamentalmente, para Nietzsche, a sua característica mais
importante, é este afeto, não que não haja outros, mas o afeto do comando. Percebam, por
conseguinte, que se trata manifestamente de uma relação de mando, de obediência, portanto,
uma relação de força entre uma diversidade de afetos. Então, trata-se desse múltiplo de
sentimentos e de pensamentos, comandado, na verdade, por um tônus afetivo fundamental,
que é o comando. Isso vai ser fundamentalmente importante, do ponto de vista de Nietzsche,
porque ele vai desconstituir, precisamente por aí, a teoria tradicional do livre arbítrio. Ou seja: a
idéia de uma liberdade da vontade. A vontade não é livre como se a liberdade fosse uma
espécie de propriedade inata da vontade, mas o sentimento de liberdade da vontade é
precisamente a tradução metafísica desse afeto do comando. Ou seja: o que acontece com a
teoria do livre-arbítrio é um erro de tradução. Nós traduzimos para a linguagem do arbítrio livre
essa imensa complexidade e, sobretudo, essa relação tensa entre impulsos que obedecem ao
comando de um impulso mais forte; então nós julgamos a liberdade da vontade como uma
propriedade simples da vontade, ela própria pensada como simples, quando, na verdade, nós
simplesmente perdemos de vista toda essa multiplicidade e, sobretudo, essa multiplicidade
complexa que estabelece ajustamentos hierárquicos entre energias intra-psíquicas.
O que se chama "liberdade da vontade" é essencialmente o afeto de superioridade com
respeito aquele que tem que obedecer: "eu sou livre, ‘ele’ tem que obedecer" - em toda vontade
se esconde essa consciência e da mesma maneira aquela tensão da atenção, aquela olhada
reta que se fixa exclusivamente numa só coisa, aquela valoração incondicional, "agora se
necessita disto e não de outra coisa", aquela certeza interna de que se nos obedecerá e tudo
de mais que forma parte do estado próprio de quem manda.
Então, vejam: o que nós vemos num ato volitivo é esta multiplicidade, uma multiplicidade que
diferencia tanto sentimentos, quanto pensamento, quanto afetos em geral; mas você tem um
afeto, entre essa multiplicidade toda, tem um ou alguns afetos que são aqueles que
comandam. Ou seja: aqueles que, na posição da relação entre as diversas forças, implicadas
num ato volitivo, são aqueles que exercem a posição do mais forte.
Pergunta: Mas existe algum movimento?
Professor: Sim, o tempo todo é um movimento. É precisamente sobre isso que eu gostaria de
chamar a atenção. Então, o mais aparentemente elementar ato volitivo já porta nele toda essa
multiplicidade. E este equilíbrio do afeto que comanda é sempre instável, é sempre mutável,
porque este afeto que, num determinado momento é posto como meta, como alvo desse afeto,
não é desde sempre e nem para sempre fixado como superior; é numa determinada correlação
e aparece como um alvo principal, mas que, em instantes seguintes, justamente em função
deste jogo de tensão entre aquele que domina e aquele que é dominado, pode ocorrer uma
subversão.
Pergunta: Agora, o que é que determina? Ele fala alguma coisa sobre o que é que determina
ou quem determina que em um certo momento seja assim, e depois em outro seja diferente?
Professor: Ele não está falando neste ponto, mas o que determina é precisamente a vida. A
consecução ou a obtenção dos alvos do desejo, na verdade.
Pergunta: Isso não poderia ser livre-arbítrio? Um aspecto do livre-arbítrio?
Professor: Mas é muito curioso esse livre-arbítrio, porque trata-se aqui, na verdade, de um
livre-arbítrio muito sui generis. Porque, em geral, quando você pensa na propriedade da
vontade como livre, no livre-arbítrio, você pensa, em última instância, pelo menos tal como
sempre pensou a tradição, a possibilidade absolutamente essencial para a vontade de, em
virtude das suas próprias convicções internas, dar ou não o seu consentimento a alguma coisa.
Ou seja: escolher A ou B. A teoria do livre-arbítrio supõe necessariamente a escolha.
Pergunta: Mas sob o comando de um afeto não tem essa escolha?
Professor: Aí é que está: o problema é que esta escolha, que caracteriza a teoria tradicional do
livre-arbítrio, supõe uma espécie de neutralidade, de desinteresse fundamental da vontade, que
pode ser inclinada para um ou para outro dos membros possíveis de uma disjunção, por razões
que são absolutamente próprias da pessoa. A pessoa pode ser levada pelas suas paixões,
pelas suas inclinações, pelos seus apetites, ou pode ser conduzida para o outro extremo da
decisão a ser tomada por uma convicção intelectual. Veja: você pode ter o maior interesse, por
exemplo, em perseguir uma meta qualquer, um desejo qualquer, mas você pode exercer sobre
você mesma um certo controle e, portanto, renunciar ao alvo do seu desejo por alguma razão
que você se convence ser justa, ou adequada, ou correta. Então, a liberdade da vontade supõe
aqui, nesse caso, esta capacidade de decidir por A ou por B, por motivos, pura e simplesmente,
internos.
Pergunta: Está ligada a consciência?
Professor: Está ligada a consciência, necessariamente ligada a consciência. Agora, o que
Nietzsche está tentando mostrar aqui é que em cada ato volitivo existe uma multiplicidade de
instâncias psíquicas, que estão em permanente disputa pelo comando.
Comentário: E não numa unidade contida...
Professor: E não numa unidade plácida, calma, tranqüila.
Comentário: É a mesma coisa que ele faz com o pensamento.
Professor: Justo. Então, você não tem uma espécie de dimensão psíquica intelectual, que seria
inteiramente objetiva e neutra em relação ao pólo do desejo, do apetite, da paixão, do impulso,
da inclinação. Você não tem mais o conflito tradicional entre sensibilidade e intelecto. Você tem
uma série muito grande de instâncias psicológicas que estão numa relação de oposição entre
si e de combate pela supremacia, pela predominância; complexidade esta de que cada
elemento representa um certo ponto de vista. Então, exagerando um pouco as coisas, qualquer
uma dessas instâncias e qualquer um dos seus impulsos é igualmente interessado. Então, não
há, de um lado, um intelecto puro, que seria neutro e imparcial, com relação aos seus objetos
e, de outro, um desejo, uma paixão, um interesse completamente cego e unicamente fixado
naquilo que representa a sua unilateralidade. Ao contrário, todos os pontos são igualmente
interessados e todos os pontos representam precisamente um, uma perspectiva, um certo
ângulo de visão. Então, nesse sentido aquele afeto que comanda é da mesma natureza do que
os outros; e o fato dele ter obtido o comando depende exatamente da intensidade da sua
energia. Ele não é fundamentalmente diferente dos outros; você não tem, de um lado, por
exemplo, a pura racionalidade e, de outro, as emoções ou o plano do desejo. A gente poderia,
parodiando um pouco Deleuze, dizer: tudo se passa em um cenário onde os elementos são da
mesma natureza, todos eles são desejantes. Apenas que, se é o componente intelectual quem
obtém, num determinado momento, o predomínio, esse predomínio é devido unicamente a sua
qualidade de ser, nesse momento, o mais forte e mais nada.
Quer dizer então: é sempre essa idéia de superioridade em relação àquele que obedece que
caracteriza a liberdade da vontade. A liberdade da vontade significa aqui, em última instância,
de novo um afeto, o sentimento de ser livre, sentimento esse que acompanha precisamente
esse estado em que uma instância comanda e outras obedecem. Ou, determinados arranjos,
organizações, configurações de relação de poder, entre as diferentes instâncias psíquicas
envolvidas no ato da vontade, segundo o que algumas se subordinam a uma ou a algumas, de
tal maneira que se torna possível fixar uma meta exclusiva; ou seja: aquele alvo que se põe
como alvo dominante, como alvo exclusivo. Aquela valoração de que agora se tem
necessidade, e não de outra coisa. Ou seja: o predomínio de uma certa perspectiva.
Obviamente que o predomínio de uma certa perspectiva, significa o predomínio de uma
perspectiva de valor, de valoração; e de valoração determinada a partir da instância também
psiquicamente dominante. Então, quando uma volição se completa quando algo é, enfim,
querido e posto como sendo o mais importante a ser alcançado, isso significa que o ponto de
vista valorativo da instância psíquica para a qual aquele objeto se revela como fundamental, é
o ponto de vista valorativo triunfante, isto é, o mais forte. Por conseguinte, todos os outros
elementos, todas as outras instâncias, têm que obedecer ao comando daquele afeto. Querer
significa precisamente querer algo em especial, significa precisamente a expressão do domínio
de uma determinada instância psíquica atualmente dominante. Então, quando se quer alguma
coisa, se conquista com isso a certeza de que, nessa multiplicidade inesgotável que nós
somos, uma determina configuração de relação de forças se estabeleceu, se consolidou, a tal
ponto que se tornou possível, então, o predomínio e a determinação de uma certa perspectiva
de valor; e com isso, de um certo objeto do desejo.
Comentário: Mas isso não quer dizer que não tenham outras que tenham ficado contra, só que
não venceram.
Professor: Com certeza absoluta. Aí é que está todo problema: sempre que algo se define
como objeto da volição, necessariamente vários outros impulsos se apresentam
concomitantemente como dominados e que, portanto, se determinam em relação ao impulso
dominante de várias maneiras, como simples oposição ou como cumplicidade. De tal forma
que, nesse momento, definiu-se algo como efetivamente desejado, querido, o que significa
dizer que, com inteira necessidade, há uma infinidade de outros objetos, que foram preteridos
em função da determinação deste ato de volição. O que mostra, por conseguinte, que todo ato
de volição, que todo objeto do desejo, é necessariamente precário, porque ele representa o
triunfo de um ponto de vista, isto é, de uma perspectiva necessariamente parcial. Ou seja: o
triunfo de uma perspectiva cujo domínio se deve a uma complexa configuração de forças,
portanto, a um jogo de pactos, alianças, resistências e oposições.
Vocês percebam como é frágil o equilíbrio que existe em cada volição. E é precisamente por
isso que em cada volição você tem não apenas a unilateralidade de uma direção sozinha,
autárquica, mas a unilateralidade de uma direção, isto é, um ponto de vista valorativo, que se
faz justamente a partir de uma imensa rede de resistências e oposições. Daí toda a
ambivalência, ambigüidade do querer.
Comentário: Então, uma direção posterga o seu oposto.
Professor: Isso. Mas veja, ela posterga, mas não anula. Aquilo convive e, como em toda
relação de dominação, convive a tensão entre o dominante e o dominado. Como neste caso se
trata de ordens complexas, de uma multiplicidade de diversas ordens, que vai desde o sentir
até o pensar, então a todo momento em que se estabelece uma certa hierarquia e que,
portanto, se define algo como objeto do querer, necessariamente, essa definição supõe a
acomodação, de alguma forma, dessa multiplicidade, sob a forma dos pactos de cumplicidade,
das alianças, das satisfações parciais; por conseguinte, ao buscarmos satisfazer um desejo
dominante, com toda certeza, há satisfações parciais de outros desejos que não estão
claramente manifestados aqui. Mas há resistências também. Há resistência precisamente
daquilo que deve obedecer. Ou seja, daquilo que não pode se expressar plenamente, não pode
ainda alcançar a sua expressão a nível de afeto dominante.
Pergunta: Posso divagar um pouquinho? Será que isso tem alguma coisa a ver com questões
mais amplas de dominação?
Professor: Mas é lógico. O que Nietzsche, no fundo, está querendo dizer aqui é que, para você
poder explicar o que é que significa a vontade, você não pode partir de uma entidade simples;
que a vontade talvez encontre o seu espelhamento mais claro justamente no ato político. Ou
seja: que aquele que quer, ao querer tem de estabelecer o mesmo tipo de relações de
cumplicidade, aliança e oposição, que se estabelece na determinação da vontade política de
uma comunidade.
Então, o que Nietzsche está querendo dizer aqui, é que a alma que tradicionalmente sempre se
pensou como uma entidade simples, é na verdade melhor expressa se você a pensa sob o
ponto de vista - usando uma metáfora -, das relações políticas.
Pergunta: O que Nietzsche está fazendo não é legitimando as estruturas de poder com esse
pensamento?
Professor: Não necessariamente as estruturas de poder. O que Nietzsche está dizendo é que
não existe nada que não seja relação de poder. Não são determinadas estruturas que se
consolidam desta ou daquela maneira; é que a relação de poder é a relação mais fundamental
com a qual você pode esbarrar, mesmo a nível das instâncias psíquicas, mesmo a nível daquilo
que você pode chamar de psiquismo ou eu; eu, na verdade, é fundamentalmente um nós, e
principalmente um nós que se estabelece a partir de relações de força e dominação. E não
somente o eu, pensado como sujeito, mas cada ato específico de cada uma das suas
faculdades. Ou seja: sem relação de poder não se determina absolutamente nada, em qualquer
uma das nossas dimensões psíquicas.
Comentário: Sim, então ele está dizendo que não só tem que existir um dominado e um
dominador, como isso é correto e inevitável, porque é a vida e a natureza.
Professor: É isso mesmo. Ou seja: o último elemento ao qual você pode chegar, o último dado
de realidade, são relações de dominação, são relações de poder. Isso que você observa,
portanto, no plano macro-político da relação entre os homens, você observa também no plano
microscópico da sua própria individualidade.
Comentário: Mas aí dá para pensar que, por essa multiplicidade interna, o ser humano
desenvolveu multiplicidade social.
Professor: Ou vice-versa... Você pode pensar nas duas direções. Você pode pensar que é
justamente em função dessa multiplicidade interna que você tem a organização política das
relações entre os homens, o estado, ou seja: que o estado, na verdade, não é senão uma
espécie de sucedâneo da hierarquia das funções psíquicas. Ou você pode pensar o contrário:
que a hierarquia das funções psíquicas é uma espécie de introjeção das relações sociais de
mando e de obediências, das relações políticas. As duas coisas, as duas vias são
perfeitamente trilháveis. Tanto a estrutura das nossas faculdades psíquicas, isto é, a
diferenciação dos nossos estados e das nossas faculdades anímicas, pode servir de base para
organização hierárquica das relações sociais sob a forma do Estado, quanto você pode
perfeitamente pensar que a complexidade das funções psíquicas e a sua organização
hierárquica é, na verdade, resultado de um trabalho de introjeção da organização política das
formas sociais de dominação.
Agora o fundamental, para Nietzsche, é renunciar de vez essa idéia de uma unidade
substancial. Ou seja: como se sujeito ou subjetividade fosse algo simples e pudesse se
identificar, por exemplo, com a consciência. Ou seja: a subjetividade e qualquer uma das suas
manifestações é complexa, e não somente o pensamento é complexo; a vontade é igualmente
complexa; e você não encontra simplicidade em nenhuma instância da psique. Ao contrário, o
que você encontra, é em cada manifestação de qualquer dimensão da subjetividade, a
pluralidade das relações de poder.
Comentário: Posso falar só uma coisinha? Esse trecho, aqui, da vontade, ele é ultra
hobbesiano; quando o Hobbes enfrenta Descartes, desconstitui a noção de livre-arbítrio do
mesmo jeito.
Professor: Muito hobbesiano. Aliás, a relação de Nietzsche e Hobbes, é uma relação muito
próxima.
Comentário: Mas é demais. Estou cada vez mais convencida de que Hobbes e o Nietzsche
estão próximos. Porque se pensarmos a guerra "de todos contra todos" podemos pensar
através das paixões e isso aproxima do Nietzsche.
Professor: Sem dúvida. É a questão do power after power, do Hobbes; é exatamente isso aqui,
é a essa relação "poder sobre poder", é a isso que você chega, se você quiser analisar
qualquer dado da personalidade. No fundo, para Nietzsche, qualquer dado do real. Percebam a
primeira frase desse texto é, na verdade, uma aplicação da teoria do Prefácio desta mesma
obra de que o que os filósofos são, na verdade, uns míopes, eles tomam um preconceito
popular e o consagram teoricamente. Descartes consagrou, metafisicamente, o preconceito
popular da unidade do eu como substância pensante. Schopenhauer consagrou o preconceito
popular da unidade do eu como vontade. Dos dois lados a mesma cegueira, o mesmo feitiço da
categoria de unidade, que ele está justamente aqui se encarregando de desfazer. Quer dizer, a
unidade gera esse feitiço, essa sedução do simples, que a crítica nietzschiana se encarrega de
dissipar.
Mas observe-se agora o que é mais assombroso na vontade - esta coisa tão complexa para
designar a qual o povo não tem mais do que uma única palavra: na medida em que, em um
caso dado, nós somos, a uma vez, os que mandam e os que obedecem...
Vejam: nós mesmos, no interior de cada ato volitivo, exercemos essa função paradoxal de
sermos tanto os que mandam como os que obedecem. Agora vem a questão que você coloca.
Mas, então, quem é esse nós? Percebe que o eu pensado como algo simples, como a
consciência ou o núcleo da personalidade, simplesmente desapareceu. Nós somos os afetos
que comandam, mas nós somos também os afetos que obedecem; nós somos essa
multiplicidade em permanente oposição, em permanente tensão. E, por conseguinte, quando
dizemos "nós", nós nos identificamos com um ou alguns partidos e não com outros. E quando
nós dizemos que a nossa vontade é livre é porque nós nos identificamos com o partido que
governa e não com o governado. Ou seja: nós nos identificamos com o dominante. E é por isso
que o afeto do domínio é nosso. Quer dizer, nós assimilamos como identidade nossa
precisamente o afeto que predomina.
Comentário: E chamamos de livre-arbítrio... Temos a sensação de livre arbítrio.
Professor: Quer dizer, nós somos aquele dominante, mas igualmente o dominado. E,
sobretudo, num jogo de alternância entre dominante e dominado que é perpétuo. Isso significa
que nós não somos permanentemente iguais a nós mesmos. Porque aquilo com que nós nos
identificamos hoje pode não ser mais aquilo com que nos identificaremos amanhã. Logo, a
idéia de uma subsistência do eu, de um eu invariável, desapareceu. Ou seja: você tem a
consciência como identidade do eu, mas uma identidade puramente ilusória, porque a
consciência não é senão a percepção dos estados dominantes. E necessariamente a
ignorância desta multiplicidade de dominados, que são justamente a base da organização.
Pergunta: O que seria, talvez, o inconsciente?
Professor: Isso também seria o inconsciente, cujos reflexos aparecem na consciência, mas
apenas parciais, necessariamente parciais. Aquilo a que a consciência tem acesso é limitado.
Por que? Porque a consciência é precisamente o afeto dominante. Logo ela é ciente, mas
apenas no seu próprio ponto de vista perspectivo.
Pergunta: Sobre o que ela comanda apenas?
Professor: Claro. Mas ela é também inconsciente quanto aos demais, ela não sabe das
condições sobre as quais repousa o seu domínio, isto é, do conjunto, do complexo jogo das
alianças e de resistências que tornam possível a expressão do domínio da consciência, ou
seja: que tornam possível a identificação entre o eu e a consciência. Portanto, este eu que a
consciência diz que "eu sou", é o eu do ponto de vista da consciência. Mas ela exclui
necessariamente de si tudo aquilo ao qual ela não tem acesso. Este outro eu que é
infinitamente maior do que o eu consciente.
Pergunta: Quando Freud diz que o trabalho e ser feito é expandir a consciência para dentro do
inconsciente, ou seja: tornando o material inconsciente cada vez mais consciente, isso,
segundo Nietzsche, seria possível?
Professor: Sem dúvida. Porque na medida em que você recebe indícios na consciência,
reflexos na consciência dessa base sobre a qual a consciência repousa, é obviamente possível
estabelecer um certo tipo de contato, de comércio, vamos dizer assim, entre governante e
governado. Mas, por outro lado, é preciso ver que a consciência é necessariamente
perspectiva e que, portanto, todos os sinais que ela recebe são traduzidos na sua linguagem e,
por conseguinte, inseridos na ótica própria da consciência. E, a partir daí, eles escapam, ou
algo deles necessariamente escapa, à consciência e jamais será capturado inteiramente por
ela.
Comentário: Isso que é importante saber, que não vai ter conhecimento integral...
Professor: Integral não. Porque a condição da consciência, inclusive a condição desta
diferenciação entre funções psíquicas superiores e inferiores, a condição de que essa ordem
hierárquica se estabeleça, é exatamente que a consciência não seja capaz de saber
integralmente sobre o que ela repousa.
Comentário: Ou seja: é uma ilusão necessária. Mas o objetivo, talvez, seja para o consciente
chegar a essa transparência, para Nietzsche.
Professor: Mas, para Nietzsche, não se chega a isso. Não tem outro caminho, a não ser tentar
estabelecer o máximo possível de comunicação entre o dirigente, no caso, a consciência, as
funções psíquicas superiores, e aquilo sobre o que ela repousa, a base pulsional sobre a qual
ela se constrói.
Comentário: Mas isso traz uma sensação de busca de transparência, essa última fala, eu acho
que saber-se perspectivo, ainda que sobre uma base na qual eu não alcanço, ainda mais a
perspectiva da subjetividade nietzschiana.
Professor: Sem dúvida. A idéia de transparência, Amnéris, a meu ver, para Nietzsche, é
necessariamente uma ilusão porque aquilo que ela supõe é irrealizável. O máximo que a
consciência pode fazer é alargar um pouco mais a sua perspectiva, sem deixar de ser
perspectiva.
Comentário: Mas tem uma hora que ela pode explodir sem se saber perspectiva.
Professor: Tem, mas nesse momento ela tem de renunciar ao seu ideal de onisciência.
Comentário: E de transparência.
Professor: E de transparência, é claro. Ela tem de chegar à consciência da sua própria, não
propriamente opacidade, mas da sua própria impossibilidade de ver tudo.
Eu gostaria de saber se ficou claro essa idéia do eu como necessariamente se decompondo
em uma complexidade de um grau infinito.
Comentário: A consciência, eu acho, que tem essa limitação, exatamente para poder existir,
porque sem a limitação, não dá para existir.
Professor: Exatamente. Não somente para existir como consciência, mas a própria existência
desta multiplicidade sob o comando aparente da consciência, que a consciência exerça esta
aparente autarquia, liderança, é uma condição de possibilidade para que esse todo que nós
somos viva, que exista.
Comentário: É como a história do marido que pensa que manda em casa...
Professor: É isso mesmo. Na verdade você pensa que quer algo, e que esse algo expressa
integralmente aquilo que é o mais ardente objeto do teu querer. Mas ao afirmar aquele algo,
necessariamente estão postergados infinitos outros algo, que poderiam ser igualmente objeto
de um ato de volição. E que o predomínio daquele objeto não significa negação dos outros.
Significa negação provisória. Eu não sei se vocês prestaram atenção para os ecos, ao mesmo
tempo paródicos e provocativos, da expressão "só uma coisa é necessária". Inclusive, se o
tradutor, Paulo César, tomou o cuidado deveria ter grifado esta frase. E da mesma maneira
aquela tensão da atenção, aquele olhar reto que se fixa exclusivamente em uma só coisa.
Professor: Como é que ele pôs?
Resposta: "Isso e apenas isso é necessário agora". E está entre aspas.
Professor: Agora isto é necessário e nenhuma outra coisa. Vocês identificaram esse texto ou
não? O que é que Nietzsche provavelmente está se referindo? É a famosa passagem do
evangelho, em especial do Evangelho de Lucas (10:38,42). É aquela famosa passagem de
Marta e Maria, em que o Cristo diz: ela escolheu a melhor parte e você está preocupada com
muitas coisas, mas uma só coisa é necessária. Essa é uma frase que marcou Nietzsche
profundamente, por razões inclusive biográficas, porque o pai dele era pastor, e sob o púlpito
de onde o pai dele pregava, havia exatamente a inscrição dessa frase: "Uma só coisa é
necessária".
Então, aqui, ele tenta mostrar como este "uma só coisa é necessária", profundamente
arraigado na nossa tradição judaico-cristã, esse "uma só coisa" encobre uma relação de força e
de dominação. E aquilo que é essa "uma só coisa que é necessária", é um alvo de um certo
tipo de vida. Ou seja: ela expressa uma valoração de um certo tipo de vida. Então...
na medida em que, em um caso dado, nós somos, a uma vez, os que mandam e os que
obedecem, e além disso conhecemos enquanto somos os que obedecem, os sentimentos do
coagir, urgir, oprimir, resistir, morrer, os quais costumam começar imediatamente depois do ato
da vontade; na medida em que, por outro lado, nós temos o hábito de passar por alto, de
esquecer enganosamente essa dualidade, graças ao conceito sintético "eu", ocorre que da
volição se enganchou, além disso, toda uma cadeia de conclusões errôneas e, portanto, de
valorações falsas da própria vontade, de modo que aquele que quer crer de boa-fé, que a
volição basta para a ação.
Então, na medida mesma em que, como aqueles que mandam, nós nos identificamos com os
sentimentos próprios do que manda e que, por conseguinte, coage, urge, oprime, e nós nos
esquecemos que a todo coagir, urgir e oprimir existe um resistir contraposto, nós esquecemos
a dualidade necessariamente pensada em toda coação, e pensamos apenas sobre a falsa
impressão de uma unidade do eu. É isto que Nietzsche está chamando de conceito sintético.
Ou seja: nós estabelecemos uma síntese do múltiplo na unidade do eu, e nós temos então a
ilusão de uma simplicidade lá onde existe, na verdade, um jogo de resistência e de oposição. E
por isso nós pensamos, por exemplo, que a vontade basta para a ação. Ou seja: para que nós
sejamos levados a uma ação basta queremos; daí a liberdade da nossa vontade. É como se
nós tivéssemos uma cadeia causal tal que a vontade fosse motivo suficiente para o agir.
Dado que na maioria dos casos realizamos uma volição unicamente quando resultava lícito,
esperar também o efeito do comando, quer dizer a obediência, quer dizer a ação -, ocorre que
a aparência se traduziu no sentimento de que existe uma necessidade do efeito;
Ou seja: na medida em que, na maioria das vezes, nós queremos ou desejamos aquilo que nos
é possível, aquilo que nós podemos licitamente esperar o efeito, a volição realizada é uma
volição que nos é possível, então na maioria das vezes nós queremos aquilo que nós podemos
fazer, gera-se a partir daí a impressão de que basta que eu queira para que eu o faça, basta
que eu queira para que eu o realize. E, portanto, nós passamos por cima, precisamente, desta
dualidade, desta oposição e desse jogo de resistências. Mas basta que, apenas em um ou
alguns casos, nós não tenhamos o direito de esperar o efeito da volição, ou seja, basta que em
um ou alguns casos o efeito das resistências seja mais forte do que o efeito do comando, para
que nós saibamos exatamente quanto de complexidade existe em cada ato do querer. Está
claro isso?
em suma, aquele que quer crê com elevado grau de segurança, que vontade e ação são de
algum modo uma única coisa - ele atribui o bom resultado a execução da volição, à própria
vontade, e com isto desfruta de um aumento daquele sentimento de poder, que todo bom
resultado leva consigo.
Quer dizer: como na grande maioria das vezes nós queremos aquilo que nós podemos realizar,
então geramos em nós mesmos a ilusão de que basta que queiramos para que o realizemos. E
extraímos daí a idéia de uma necessidade do efeito; ou seja: ele acredita, de boa consciência,
que basta a vontade como causa do seu agir; ou seja, que existe uma relação causal e
necessária entre a vontade e a ação.
Comentário: Agora está ficando muito clara a história da loucura, porque Foucault mexe tanto
na questão da vontade cartesiana.
Professor: A vontade cartesiana também se encontra criticada nesse mesmo movimento.
Comentário: Então, é exatamente por isso, porque a complexidade da noção de vontade não
era absolutamente vista por Pinel, como para a psiquiatria.
Professor: Justamente. E principalmente, vai dizer Nietzsche, pelo seu grande teórico:
Schopenhauer, que escreve um livro sobre o mundo como vontade, não percebe que a vontade
é exatamente um complexo desta ordem. Então, aquele que quer, na verdade, além de todo
esse complexo de sentimentos e de pensamentos e de afetos, ele goza de uma espécie de
aumento de sentimento do poder, que todo bom resultado leva consigo. Ou seja: todo resultado
bem sucedido provoca um incremento do sentimento de poder. Então, a cada ação realizada e
pensada como conseqüência da vontade junta-se a esse emaranhado complexo de
pensamento, sentimento, afeto, etc., além disso, junta-se o sentimento de poder. O sentimento
de poder que brota, necessariamente, da experiência de gratificação, chamemos assim, do
triunfo.
"Liberdade da vontade", essa é a expressão para designar aquele complexo estado prazeroso
daquele que quer, o qual manda, e ao mesmo tempo se identifica como executor - e desfruta
também enquanto tal o triunfo sobre as resistências, mas dentro de si mesmo julga que é a sua
vontade a que propriamente vence as resistências.
O sujeito que quer se identifica com o afeto que comanda, por conseguinte, se identifica com
as instâncias que exercem o comando, e participa precisamente do tipo de prazer ou de gozo
envolvido no comando obedecido. Está certo? E se identifica como executor e desfruta
também, enquanto tal, o triunfo sobre as resistências.
Comentário: E se sente sujeito.
Professor: Exato. É isso que significa sentir-se sujeito. Sentir-se sujeito significa esta
identificação entre a consciência e uma certa acomodação dos mecanismos psíquicos; significa
esta identificação precisamente entre a consciência e um certo tipo de relação entre as forças
psíquicas, que é o triunfo sobre as resistências; tem-se a impressão de que é a vontade quem
propriamente vence as resistências. Quando é exatamente o contrário disso. A vontade é
precisamente um efeito do jogo das relações de poder, isto é, do jogo entre mando e
obediência. Então, não é a vontade quem triunfa sobre as resistências, o ato volitivo, qualquer
ato volitivo, é simplesmente uma expressão de uma acomodação de instâncias em conflito.
Então, não existe propriamente liberdade da vontade, não existe propriamente vontade, o que
existe é um jogo de força entre as instâncias psíquicas, cuja acomodação necessariamente
precária, necessariamente instável, determina qualquer ato de vontade. Vejam: a inversão
completa da perspectiva. Nós partimos da idéia de que existe uma vontade e de que a vontade
é uma faculdade expressa pelo termo vontade. Vontade como uma espécie de faculdade de
desejar. E agora nós vimos que essa faculdade não existe, e que cada ato volitivo concreto
expressa simplesmente um certo tipo de acomodação entre alvos psíquicos, entre forças
psíquicas, entre forças ou disposições.
Pergunta: Não existe liberdade, então?
Professor: É exatamente isso. A não ser o seu próprio poder... Ou seja: tirou todo o poder da
consciência. Tirar todo o poder da consciência significa: destitui-la da sua onipotência ilusória.
Mas você mantém em poder da consciência aquilo que é próprio dela, isto é, o cumprimento
das suas próprias funções.
Pergunta: Onde fica o corpo em tudo isso?
Professor: Pois é, é isso que é o eu, o eu é corpo, o eu não é mais o núcleo da consciência, ou
a consciência não é mais o núcleo do eu. Para você poder pensar o eu, você tem que pensar
justamente nessa pluralidade de forças em relação, com ponto, constelações ou hierarquias
entre forças. Você tem que pensar o eu como se fosse uma sociedade, uma sociedade que
funciona a partir de pactos, de aliança e de resistência. Portanto, este eu que você fala é
necessariamente ficcional, é uma ficção, é uma ficção lingüística; ao falar "eu" você opera uma
síntese, então o famoso conceito sintético, que gera a ilusão de uma unidade, lá onde
nenhuma unidade existe. A unidade é apenas o efeito a nível da consciência desta
acomodação.
Comentário: Hobbes vai entender que o sábio tem liberdade; e a liberdade dele é de conhecer
as determinações corporais; esse mecanismo é exatamente da vontade.
Professor: Isso é bem do Nietzsche, porque a sabedoria consiste justamente em conhecer
tanto quanto possível as suas próprias determinações. Não como uma faculdade livre.
Comentário: Não é livre-arbítrio, mas a liberdade de conhecer esse mecanismo mesmo que é o
ato volitivo.
Professor: Tanto quanto possível, ou seja: jamais conhecer integralmente. É exatamente isso;
em resposta a Camila eu disse: do que a consciência está privada é da sua ilusão de
onipotência, ou de onisciência, ou de transparência, se quiser. Significa dizer que a consciência
é um nada, significa...
Bom, eu quero ver se eu consigo, pelo menos, entrar um pouquinho no 20, gente, senão eu
vou ficar com a minha consciência muito pesada...
Sei que o nº 19 é um texto muito complexo e é muitíssimo rico, mas eu acho que, toda essa
idéia da ilusão gerada a partir da lógica da linguagem, vai se explicitar no nº 20. Então, esta
unidade, este algo, este eu ampliado que é o corpo, justamente por causa da sedução da
linguagem vai se transformar num eu simples, vai se transformar num eu sujeito, e exatamente
como sujeito de qualquer proposição, suporte de predicados, a gramática atuando a nível da
organização mesma das nossas impressões; nós percebemos em última instância segundo as
sugestões às quais nós somos, de alguma forma, induzidos pela lógica da nossa gramática.
Então, nós falamos de coisas, de atributos de coisas...
A grande originalidade de Nietzsche é que estas categorias da gramática e da lógica não são,
como para Kant, princípios e conceitos transcendentais, mas eles são históricos, são culturais,
são etimológicos, na verdade.
Ao seu sentimento prazeroso de ser o que manda, aquele que quer ajunta, assim os
sentimentos de prazer dos instrumentos que executam, que têm êxito, das serviçais
"subvontades" ou sub-almas. Nosso corpo, com efeito, não é mais do que uma estrutura social
de muitas almas. O efeito sou eu.
Vejam que inversão incrível. Na verdade, o nosso corpo não é senão a estrutura social de
muitas almas. Vale dizer, cada uma das nossas células é ao mesmo tempo alma. E que cada
uma de nossas células é ela própria volição. Todo o nosso corpo é um tecido de volições. Vale
dizer, todo o nosso corpo é esta correlação de força, que se expressa em cada um dos nossos
atos volitivos conscientes.
Comentário: É a mesma história das perspectivas, então?
Professor: É exatamente isso. É a mesma coisa. Para que o nosso corpo se configure como
unidade, é preciso que uma ou algumas perspectivas se apresentem como dominantes. Então,
aquilo que faz do nosso corpo uma unidade organizada, é o mesmo princípio que faz da nossa
alma ou da nossa psiquê uma unidade organizada. Veja, Amnéris, que precisamente o
pressuposto dualista que distingue psíquico e corporal, que distingue, por conseguinte,
espiritual/intelectual e corporal, é precisamente isso que está sendo colocado em questão. Ou
seja: o eu psíquico é exatamente o efeito de todos esses ajustamentos entre as diferentes
instâncias, que ocorre tanto a nível da psiquê quanto a nível do corpo. Aliás, a organização da
psiquê não é senão uma extensão desta mesma organização, que é o corpo. A psiquê é, na
verdade, um sistema ou subsistema dentro desse sistema geral que é o corpo. Então, isso que
está sendo chamado aqui de sub-alma ou subvontades, são exatamente estas instâncias
dentro do psíquico, essas instâncias diferentes dentro do psíquico, que se colocam em relação
de hierarquia, de mando e de obediência; a em relação de poder entre os diferentes órgãos e
os diferentes tecidos.
Comentário: Então, alguns órgãos e alguns tecidos que têm uma ascendência sobre os outros.
Professor: Isso, como o cérebro, por exemplo.
Pergunta: E quando há células que não querem obedecer, que se revoltam e geram um câncer,
por exemplo.
Professor: Isto. É perfeitamente compreensível em termos de Nietzsche. É exatamente isso
que acontece. Não somente uma revolta como qualquer tipo de subversão de uma relação de
poder estabelecido.
Comentário: É exatamente o que Humbeto Eco falar no Pêndulo de Foucault. É exatamente
esse conceito.
Professor: É verdade. Agora, veja, o mais importante na minha opinião, é que o eu não é
colocado como unidade substancial, mas justamente como efeito; o eu é efeito das relações de
poder. Isso aqui é uma antecipação, a meu ver, absolutamente explícita de toda a obra de
Michel Foucault. Aliás Foucault é absolutamente consciente disso. Quer dizer, o sujeito é uma
criação do poder.
O que Nietzsche faz é dar a ela uma forma absolutamente clara, e sobretudo em estreita
oposição a toda tradição da metafísica. E aqui, vocês percebem, que ele escolhe o adversário
a dedo: Descartes, Kant e Schopenhauer. Nós fizemos todo esse percurso para chegar
exatamente até aqui.
Ocorre aqui o que ocorre em toda coletividade bem estruturada e feliz, que a classe governante
se identifica com os êxitos da coletividade.
Então, aqui está claro o paradigma da relação de poder por excelência, isto é, a relação
política. A classe dominante, a consciência, se identifica com o quê? Com os êxitos da
coletividade. A consciência é justamente um efeito de relações de poder. Na medida mesmo
em que a comunidade, isto é, esta multiplicidade organizada como um, na medida mesmo em
que esta coletividade bem estruturada tem êxito, a consciência se identifica com esse êxito, e
se dá a si mesma o nome de eu. Então, ela identifica a si a própria coletividade, a própria
organização social. Então, a consciência empresta a isso o seu nome, chama de eu; ela
identifica como si mesmo, na verdade, o resultado bem sucedido desta organização.
Toda a volição consiste simplesmente em mandar e obedecer sobre a base, como dissemos,
de uma estrutura social de muitas "almas":
Portanto, nós não somos uma psique, nós somos várias psiques. E nós somos uma psique
estruturada socialmente, ou seja, disposta sob a forma da hierarquia, da estrutura.
por isso um filósofo deveria se arrogar o direito de considerar a volição em si, desde um ângulo
moral - entendida a moral, desde logo, como doutrina das relações de domínio em que surge o
fenômeno "vida". -
Porque todo ato volitivo já expressa uma relação de poder, a vontade está imediatamente
colocada sob o domínio da moral; moral entendida aqui, exatamente, como doutrina do poder.
E o que expressa a moral? Expressa as relações que tornam possível o fenômeno vida, ou
seja: a moral é uma expressão de condições de vida.