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Introspecção: método ou objeto de estudo para a análise do comportamento?

Em priscas eras o curso colegial, além de Física, Química, Matemática e História Natural,
também incluía Francês, Inglês, Espanhol e Filosofia! Lembro-me que o professor de
Filosofia, um padre jesuíta baixinho e elétrico, logo na primeira aula, nos prometeu que a
Filosofia nos ajudaria a cumprir a máxima socrática “Nosce te ipsum'. Para Platão, porta-voz
de Sócrates, jamais poderíamos conhecer o mundo real, senão nossas pálidas impressões
dele: as idéias ou imagens que, como sombras, habitavam as cavernas de nosso espírito.
E, para conhecer essas impressões, deveríamos refletir e examinar nossos pensamentos,
desejos e anseios; enfim, nossa alma. Depois, vim a saber que esse também era o objetivo
da Psicologia: examinar e entender a alma e a mente das pessoas... Ora, a Psicologia só
começou a ser cogitada como uma disciplina intelectual (e possivelmente científica)
independente, em meados do século passado. Não obstante, quando isso ocorreu, sua
proposta de trabalho, e portanto justificativa para existir, era a mesma dos gregos clássicos
de 23 séculos atrás. Assim, conclui que a Psicologia tem uma longa tradição em equacionar
o pessoal com o interno, o interno com o privado, e o privado com o psicológico. A
Psicologia tem uma longa tradição em equacionar o pessoal com o interno, o interno com o
privado, e o privado com o psicológico. Por quê? Por que as lembranças de uma pessoa,
suas experiências passadas, seus desejos, são "internos"? Por que as lembranças dos
acontecimentos e experiências pelas quais passou são consideradas suas, particulares,
"privadas" e, portanto, proibidas aos outros? Por que ‘aquilo’ que de uma ação está
disponível a todos não interessa ao psicólogo, só o escondido, o proibido? Creio que isso
decorre basicamente de um conhecimento tosco das leis da natureza, o que leva, por sua
vez, a uma concepção de universo mecanicista e dependente de relações causais
imediatas no tempo e no espaço. * * * “A Psicologia é a ciência que estuda a mente das
pessoas". O que será esta mente, que aliás na Grécia se dizia “espírito", na Idade Média
“alma", no século passado "mente", e hoje “consciência"? Essa sucessão de codinomes é
bem indicativa da dificuldade em circunscrevê-la. Tentemos pela negativa, inconsciência: •
Dizemos "inconsciência" quando uma pessoa tem um nível de ativação muito baixo. Por
exemplo: ‘está desmaiada’. • Dizemos “inconsciência" quando uma pessoa age sob controle
de estímulos inapropriados. Por exemplo: ‘está desatenta, não viu a placa de PARE'. Outro
exemplo: ‘é insensível, não percebe que os outros não estão gostando da brincadeira que
insiste em levar a cabo’. • Dizemos "inconsciência” quando uma pessoa não emite verbais
coerentes e/ou compreensíveis sobre suas ações e sobre as circunstâncias em que essas
ações ocorreram. Por exemplo: ‘não conhece a si mesma, não tem consciência do que faz
ou de suas motivações’. Aceitando uma definição pela negação (o que não é uma boa
prática), isso significaria que consciência seria operante com um nível de ativação alto? Sob
controle discriminativo apropriado às contingências? E contendo um repertório verbal
autodirigido? Não me parece que os psicólogos do Século XIX (e mesmo alguns colegas de
hoje) tenham concordado com isso. Consciência ou mente para eles seria algo que está
dentro da pessoa. (Platão a localizava na cabeça, por ser esta redonda e a circunferência
ser considerada pelos gregos a forma geométrica mais perfeita, e, portanto, a única digna
de alojá-la. A Escolástica a localizam no cérebro, o que é, no mínimo, estranho, pois, sendo
ela de natureza imaterial, como afirmavam, por que necessitaria de uma localização? Ou
como se circunscrevia a um local? E os neurocientistas a localizam no sistema nervoso, o
que, afinal, não revela uma postura muito diferente da dos tomistas.) Seria algo que, por
ocorrer dentro da pessoa, somente dela ela tem acesso ou conhecimento direto. Para os
psicólogos do Século XIX, o caráter psicológico da ação não estaria na ação propriamente
dita (como a pessoa reage e em que circunstâncias), mas sim no conteúdo de sua
experiência dessa ação. Por sua vez, o conteúdo da experiência de uma pessoa estaria na
consciência dessa pessoa. Assim, se a tarefa da Psicologia era estudar o psicológico
(leia-se, ‘o conteúdo da experiência'), isso só poderia ser feito estudando-se essa
consciência. Ocorre que, por ser a consciência pessoal, interna e privada, à qual somente o
próprio sujeito tem acesso, o único método viável de estudo para a Psicologia seria o da
introspecção. Com essa preocupação filosófica e posição metodológica, nasceu a
Psicofísica, a primeira aspiração científica da Psicologia, e que, ao contrário do que o nome
indica, não representou uma junção da Física e da Psicologia, mas, justamente, buscou
defender o paralelismo entre ambas. Experimentar ora sentir, e os conteúdos das
sensações foram considerados como indicadores do conteúdo do mundo físico. Weber,
fisiólogo alemão, entre outras coisas, investigou como os músculos reagem ao peso de
objetos: as pessoas distinguem melhor pesos quando os levantam ou quando estes lhe são
colocados nas mãos? (Distinguir pesos era considerado não uma reação aos pesos, e sim o
conteúdo da experiência de peso.) Além de responder a essa questão, Weber verificou que
não há uma relação de um para-um entre a magnitude da diferença entro dois pesos e a
habilidade do sujeito em distingui-los. Mas, ele descobriu, se o valor absoluto da diferença
entre dois pesos não prediz a resposta do sujeito, a razão entre esses dois valores o faz. A
métrica da mente estava inaugurada, e esta se baseava na inspeção, pelo sujeito, de suas
sensações (isto é, de sua experiência de peso, no caso). O sujeito manuseava pesos, sua
mente analisava as sensações daí decorrentes (o conteúdo de suas experiências), e ele
relatava essa análise. Atentem para o fato que mente ou consciência não é, aqui, a
sensação, mas a consciência da sensação, ou seja, um estado mental. A sensação é,
portanto, destituída de seu caráter de ação e reificada como estado de consciência. E mais,
estudava-se a consciência através da observação (relatada) dos seus estados. Se
pararmos para refletir, contudo, verificaremos que há um solipsismo aqui. Estudamos a
consciência observando seus estados, seus conteúdos; mas essa observação é feita pela
própria consciência que buscamos entender. É essa circularidade que, mais tarde, Watson
vai denunciar em seu célebre "Manifesto". Fechner, físico e filósofo alemão (e por muitos
considerado verdadeiramente o primeiro psicólogo cientista), estendeu o alcance da análise
de Weber para outros sentidos; refinou a matemática envolvida nesses estudos; e,
principalmente, sistematizou os procedimentos de introspecção utilizados, organizando-os
em três métodos psicofísicos canônicos. Fechner foi grandemente louvado por sua
contribuição à Psicologia, e seus métodos vêm sendo ensinados, como sinônimo de
psicologia científica, a estudantes do mundo todo, desde então. Comontando a prática
disseminada desses métodos e seus cuidadosos e complexos procedimentos matemáticos,
William James questiona o que exatamente aprendemos com eles, e conclui, citando
Shakespeare: "E todos louvavam o duque Que vencera esta grande batalha. 'Mas o que de
bom resultou disso?’ Pergunta o pequeno Peterkin. ‘Bem, isso exatamente eu não saberia
dizer', respondem, ‘Mas que (oi uma vitória famosa, isso foi!'." (citado por W. James, 1890,
p. 549) Wundt, médico e fisiólogo, já no Século XX, oficializou estes estudos, denominando
a Psicologia 'a ciência dos estados mentais ou da experiência consciente', e, para evitar o
problema de se estudar pelo estudado, propôs que fosse considerada apenas a experiência
pura, descontaminada de interpretações e reflexões pessoais. Para tanto, o sujeito deveria
ser treinado cuidadosamente a concentrar-se na tarefa e atentar somente para o estímulo
em pauta, não para suas outras dimensões; deveria estar isolado de quaisquer outras
estimulações e distrações; deveria responder imediatamente ao estímulo, sem pensar e
sem se valer de sua história passada; deveria responder não ao objeto, nem a seu
significado, e sim à própria sensação; deveria distinguir entre sua experiência imediata e
sua experiência elaborada, respondendo apenas à primeira; deveria responder não à coisa,
e sim ao conteúdo de sua consciência; e deveria entender estas instruções. Ou, citando
Heidbreder: "Quando uma pessoa observa ingenuamente, como o faz quotidianamente, ela
vê, por exemplo, uma mesa; mas se um introspeccionista vê uma mesa enquanto faz uma
observação científica de sua percepção da mesa, ele comete um erro de estímulo. Ele
atenta ao estimulo ao invés de atentar ao processo consciente que o estímulo ocasiona
nela. Ele está lendo no processo o que elo sabe do estímulo."... ó interpretação, não
observação..." (Heidbreder, 1933, p. 129) Quando Titchener, que havia realizado seus
estudos na Alemanha, levou essa proposta para os Estados Unidos, a importância dada à
introspecção era tanta que, os que a defendiam, chamavam-na Psicologia Introspeccionista
(os que não a defendiam, especialmente os gestaltistas, denominavam-na Psicologia
WASP, isto é, do branco - white-, anglo-saxão, e protestante, numa referência aos limites
impostos pelo método à escolha dos sujeitos de seus estudos).
Watson foi o primeiro a denunciar que a confiabilidade dos dados obtidos com esse tipo de
pesquisa era mínima, e que ela não melhoraria com procedimentos mais rigorosos de
controle ou de medida, nem com mais equipamentos ou maior ou melhor treinamento dos
sujeitos. O caráter inerentemente subjetivo da íntrospecção era o problema: a consciência
observando a si própria é o método de investigação proposto: e a consciência sendo
observada por sl própria é o objeto que se pretende investigar. Pretende-se analisar e
entender a mente, mas recorre-se a ela própria como instrumento para acessá-la, para
selecionar seus conteúdos, e para descrevê-los. Ou, nas palavras do Prof. Richelle: "O que
Watson denuncia em seu manifesto é o fechamento da psicologia em sua circularidade da
consciência como objeto e da consciência (introspectiva) como método." (Richelle, 1995, p.
3) As objeções de Watson eram essencialmente de caráter metodológico. Ao se dirigir aos
que advogavam a Íntrospecção como método da Psicologia, dizia: "Se você nào consegue
reproduzir meu dados... isso se deve ao fato que sua Íntrospecção não foi treinada. A crítica
recai sobre o observador e não sobre o arranjo experimental. "... "Se você não consegue
observar os estados de 3a 9 de clareza na atenção, sua Íntrospecção é ruim. Se, por outro
lado, um sentimento parece razoavelmente claro para você, sua Íntrospecção de novo tem
problemas. Você está vendo demais. Sentimentos nunca são claros." (Watson, 1913, p.
163) Contudo, Watson não rejeita a consciência. A meu ver, Watson era essencialmente um
dualista, por isso rejeita a Íntrospecção como método, mas não rejeita a existência da
consciência. Skinner, por sua vez aceitará a Íntrospecção como comportamento (e,
portanto, como objeto legítimo de estudo), mas não aceitará, por absurda, a mera idéia da
existência da consciência. Watson não refuta a existência da consciência, mas se recusa a
estudá-la, bem como se recusa a estudar o pensamento, as emoções, e as sensações, e
pelas mesmas razões, isto é, por serem pertencentes a um mundo interno inacessível pelo
outro. Embora negando sequer a possibilidade da consciência, Skinner não nega a
possibilidade de estudarmos o introspeccionar-se, e considera tarefa central, marcante
mesmo, do Behaviorismo Radical o estudo do pensar e do sentir. Em 1974, em uma de
suas obras mais marcantes e explicitas, About Behaviorism, diz: "O que está dentro da
pele? E como o conhecemos? A resposta, acredito, é uma questão central para o
Behaviorismo Radical." (Skinner, 1974, p. 212) “O Behaviorismo Radical... não nega a
possibilidade de auto-observaçâo ou autoconhecimento ou sua possível utilidade, mas
questiona a natureza do que é sentido ou observado, e portanto, conhecido. Ele restaura a
íntrospecção, mas não o que os filósofos e psicólogos introspeccionistas acreditavam que
estavam 'inspecionando', e levanta a questão do quanto podemos realmente observar de
nosso corpo."... "Não insiste numa verdade por concordância e pode portanto considerar
eventos que ocorrem no mundo privado dentro da pele. Não denomina esses eventos ‘não
observáveis', e não os desconsidera por subjetivos." (Skinner, 1974, p. 16) (Grifos nossos)
Watson não rejeita a existência da consciência, mas certamente aceitaria que, se uma
árvore caísse na floresta e não houvesse pessoa para observá-la, ainda assim teria caído e
produzido som ao cair. (Já os gestaltistas da ópoca e os cognitivistas de hoje diriam que,
comportamentalmente, a árvore não caíra.) Skinner consideraria a questão irrelevante e
sem sentido. O Behaviorismo Radical não separa observações do observado (assim como
não separa mundo interno de externo). O observado ó o produto definidor da ação de
observar. A posição de Skinner a respeito ó clara, e, do trecho acima, pode-se concluir que
o Behaviorismo Radical: • não nega a possibilidade de auto-observação ou de
autoconhecimento; • restaura a introspecção; • considera eventos que ocorrem no mundo
privado, em vez de eliminá-los por subjetivos. Mas, por outro lado, o Behaviorismo Radical:
• questiona a natureza do que ó sentido ou observado, e portanto, conhecido; • levanta a
questão de quanto podemos realmente observar de nosso corpo. O Behaviorismo Radical:
a) não nega a possibilidade de auto-observação ou de autoconhecimento; b) restaura a
introspecção; c) considera eventos que ocorrem no mundo privado, em vez de eliminálos
por subjetivos. Mas, por outro lado, o Behaviorismo Radical: d) questiona a natureza do que
é sentido ou observado, e portanto, conhecido; e) levanta a questão de quanto podemos
realmente observar de nosso corpo. Quanto à natureza do que é observado na
introspecção, Skinner também ó claro: não observamos nossa consciência nem nossos
estados mentais, e sim nosso corpo. Como ele próprio diz: "... o que é sentido ou
introspectivamente observado não é algum mundo não físico da consciência, mente, ou vida
mental, mas o próprio corpo do observador" ... "nem significa (e isso é central na
argumentação) que o que sentimos ou observamos introspectivamente sejam as causas do
comportamento” ... "O que observamos introspectivamente são certos produtos colaterais
dessas histórias [as histórias genéticas e ambientais de uma pessoa]," (Skinner, 1974, p.
17) Skinner aceita a introspecção do interno, do mundo privado, mas nega o classicamente
proposto objeto da introspecção (consciência como objeto); não nega a existência das
sensações, emoções, sentimentos, pensamentos, etc. (e insiste na importância de
estudarmos essas reações), mas nega que estes eventos tenham status causai em relação
a outros comportamentos. Eventos internos são, de novo, ocorrências da interação
Organismo-Ambiente, não explicações; pelo contrário, são 'mais comportamento’ a ser
explicado. A introspecção, para Skinner, não demonstra a função causai da consciência.
Para Skinner, 'comportamentos conscientes’ ou ‘introspecção’ são comportamentos verbais
de uma pessoa consigo mesma e a respeito de si mesma. Estes comportamentos verbais
(explícitos ou implícitos, palavras ou pensamentos, por exemplo), por sua vez, explicitam as
relações entre aqueles comportamentos e suas circunstâncias, ou como Skinner diz: "...
estendem seu [do comportamento] contato com o ambiente [que controla esse
comportamento] ... "(Skinner, 1957, p. 85) "... exercem um controle discriminativo maior
sobre outro comportamento... Por exemplo, ao classificar corretamente um objeto, o falante
pode reagir mais adequadamente a ele.” (Skinner, 1957, p. 86) São tatos autodirigidos que
se mantêm pela informação que fornecem ao ouvinte, no caso, o próprio falante. Estes tatos
são particularmente úteis quando os comportamentos originais são implícitos (encobertos),
e, portanto, em relação aos quais a comunidade social (o outro), não tendo acesso direto,
não os reforça ou os reforça inadequadamente. Assim, chegamos ao segundo ponto
importante na colocação de Skinner, “a questão do quanto podemos realmente observar de
nosso corpo". A "consciência" ou autodiscriminações teriam,'para Skinner, origem no
contexto social do sujeito, e seriam portanto culturais e históricas (Skinner, 1953,1957).
Aprendemos a falar sobre nossas sensações do mesmo modo que aprendemos a falar
sobre nossos atos explícitos ou sobre eventos do mundo externo. “A comunidade verbal
gera "consciência" quando ensina uma pessoa a descrever seu comportamento passado e
presente, e comportamentos que ela provavelmente exibirá no futuro, bem como as
variáveis das quais todos os três são, supostamente, funções." (Skinner, 1969, p. 159) "Ao
arranjar as condições sob as quais uma pessoa descreve o mundo público ou privado no
qual vive, uma comunidade gera aquele tipo especial de comportamento denominado
'saber'."(Skinner, 1974, p. 30) "Autoconhecimento é de origem social. Apenas quando o
mundo privado de uma pessoa se torna importante para os outros é que ele se torna
importante para ela." (Skinner, 1974, p.31)
Se ser consciente é emitir tatos na presença de eventos internos, então a extensão em que
conhecemos nossa consciência (isto ó, somos sensíveis a nosso mundo privado e reagimos
a ele) depende da habilidade da comunidade verbal em (a) discriminar as circunstâncias em
que um evento privado pode ocorrer e (b) estabelecer relações entre essas circunstâncias e
certos termos lingüísticos (como isso pode ocorrer, é belissimamente descrito em seu artigo
de 1945). Aprendemos sobre nosso corpo na medida em que temos um vocabulário sobre
suas ações (isto é, seus estados, seu funcionamento), e isso depende da comunidade
verbal. Isso significa que sem esse contexto social não poderíamos nos tornar conscientes,
não teríamos subjetividade, nem individualidade. Autoconsciência ou introspecção são
respostas autodirigidas, são afirmações que enunciamos acerca de nossos próprios
comportamentos e das circunstâncias em que esses comportamentos ocorrem (a propósito,
quando incluem projeções sobre a probabilidade futura de certos comportamentos já
emitidos no passado, dizemos self, personalidade ou auto-imagem). Ambientes que
reforçam tatos autodirigidos, como famílias de filho único e tardio, monastórios, cidades
pequenas, certas formas de terapias, etc., são particularmente bem-sucedidos na produção
de indivíduos auto-referenciados, sejam eles narcisistas, introvertidos, 'sensíveis',
subjetivos, ou apenas autodescritivos (o que, em geral, é o oposto do ideal a ser produzido
por comunidades científicas). Blackman (1991), comparando a posição de Skinner e George
Mead a respeito, afirma que ambos mantêm a posição de que "na ausência de interação
social não há consciência", já que esta emerge apenas como subproduto do social.
Podemos então deduzir que animais ou crianças-ferais não poderiam formar
autodiscriminações, não teriam consciência, não fariam introspecções. Vejamos melhor
essa questão, analisando o uso da palavra ‘dor’. Em geral, usamos a expressão "Sinto dor"
quando entramos em contato com estímulos punitivos, do tipo que em geral causa danos
aos tecidos do corpo, ou que implica a perda de reforços. Algumas dessas respostas foram
selecionadas por contingências filogenéticas e as partilhamos com muitos outros animais;
são importantes para nossa sobrevivência como espécie. Essas respostas, em geral,
podem ser observadas em situações nas quais estão presentes contingências de esquiva,
fuga ou agressão. Dizer "Tenho dor” é um verbal autodescritivo indicativo de
autoconsciência, provavelmente mantido por essas contingências, e que pode ocorrer ao
ladç de outras verbalizações como: "Alguém me acuda!", ou "Não me cause maior dano que
não estou pra brincadeira!". Para Rachlin (1985), sentir dor ó emitir comportamentos de dor.
Se eu sinto dor e não choro, não reclamo, não gemo, nem faço caretas, então não posso
dizer que sinto dor. Existem culturas e circunstâncias nas quais as pessoas são ensinadas a
não responder chorando e gemendo a condições em que eu e vocês o faríamos. Quando
estão nessas condições, essas pessoas procedem normalmente sem alterar sua rotina, e
dizem, ‘não sentir dor’. Cães reagem à punição fugindo, evitando, ou agredindo, isto é,
emitindo respostas de correr, ganir, morder, etc., mas não apresentam respostas
autodescritivas; portanto, cães não têm autoconsciência, e, nesse sentido, não sentem dor.
Kasper Hause também não.
E a questão da circularidade da íntrospecção, como fica? Voltemos novamente a nosso
exemplo do sentir dor. Já vimos que ‘dor’ ó um comportamento (já falei uma vez no
comportamento de "dorear", assim como no de imaginar ou pensar). "Vejo João abrir a
porta", ver, no caso, ó um comportamento encoberto meu. Contudo, ele depende e se faz
acompanhar de uma sórie de outros comportamentos, muitos dos quais explícitos:
posicionar-me em direção à porta e/ou João, erguer minha cabeça e virá-la na direção do
João ou da porta, abrir e focalizar os olhos, etc., e é somente na presença deles que sou
reforçada por dizer que vejo João. Sentir dor também implica e/ou se faz acompanhar de
outros comportamentos: ações gestuais, posturais, verbais, faciais, motoras, etc., conforme
nossa análise anterior. Essas várias ações compõem a classe de comportamento "dorear",
porque ocorrem nas mesmas circunstâncias e/ou se fazem acompanhar das mesmas
conseqüências (o mesmo se aplicaria para lembrar, sonhar, resolver problemas, etc.). Na
medida em que executamos outras operações de controle discriminativo e reforçamento
sobre alguns elementos dessa classe (os elementos explícitos), os demais elementos (os
encobertos), através do fenômeno de transferência de funções (Dougher, Augustson,
Markham, Wulfert, & Greenway, 1994; deRose, Mcllvane, Dube, Galpin, & Stoddard, 1988;
Goldiamond, 1962; Lazar, 1977) ou mesclagem de classes (Sidman, 1994), também ficam
sob controle dos estímulos envolvidos nessas novas operações. Outro exemplo: "Eu vejo
Veneza”, ou não tendo dinheiro para a viagem eu vejo fotos sobre Veneza, ou leio sobre
Veneza, ou posso ouvir falar sobre ela por quem já lá foi, ou consulto a Internet. Se eu fui,
posso relembrar, e se não fui, posso imaginar. Para ir, ler ou ouvir, dependo de outros tantos
eventos do mundo externo, bom como de comportamentos explícitos meus e de outros.
Para lembrar ou imaginar, dependo de minha história passada, que, por sua vez, para ter
sido construída, também dependeu desses tipos de eventos: viagem, fotos, etc. E aqui mais
uma vez fica clara a origem dos encobertos no ambiente externo. Para Skinner (1974,
vejam especialmente o brilhante capítulo sobre percepção), esses vários eventos públicos e
privados seriam respostas funcionalmente equivalentes. São comportamentos que ocorrem
diante da mesma classe de variáveis, Veneza, e que produzem os mesmos efeitos sobre
mim (lembrando: os diferentes discriminativos, Veneza vista, ouvida, lida, relembrada, etc.
foram tornados uma classe através de procedimentos do meu grupo social). Este ponto é
importante porque me ajuda a entender porque a crítica de Watson sobre a circularidade e
falta de confiabilidade da Íntrospecção não se aplica à análise de Skinner. "Ver João abrir a
porta", na verdade, é uma classe de eventos que inclui erguer a cabeça, virá-la na direção
da porta e/ou de João, orientar o olhar, etc. "Falar sobre João e a porta", também envolve
comportamentos de especificar e descrever a porta, João, e as circunstâncias em que
ambos se encontram. Portanto, de virar a cabeça na direção de João e da porta, olhá-los,
etc. "Atravessar pela porta que foi aberta", também envolve comportamentos como virar a
cabeça na direção de e olhar para a porta, andar na sua direção, etc. Assim como eu posso
estudar um comportamento explícito através de uma outra instância de sua classe, eu
posso tentar estudar (por inferência) um comportamento encoberto através de
comportamentos explícitos que pertençam à mesma classe. Os três exemplos anteriores,
"ver João...” (comportamento privado), “falar sobre..." (comportamento verbal), e "atravessar
pela porta..." (comportamento motor), incluem outros tantos comportamentos, privados ou
não, motores ou verbais. Considerando que todos são controlados, direta ou indiretamente,
por eventos do ambiente externo (quer na sua aquisição, quer na sua manutenção), eu
posso identificar e manipular alguns desses eventos e assim controlar alguns desses
comportamentos. Pelo que ficou dito anteriormente, se eu consigo controlar alguns
comportamentos de uma classe, eu posso, teoricamente pelo menos, tentar controlar outros
comportamentos dessa classe. Isso ó, eu posso inferir sobre os demais comportamentos
dessa classe, sejam eles explícitos ou encobertos. Pela definição de comportamento como
uma classe de interações, o Behaviorismo Radical podo, de fato, pretender estudar eventos
comportamentais privados. As mesmas contingências que controlam o "dorear" ('sentir
dor’), controlam o gemer, o falar, o reclamar, o gesticular, o passar remédio, o "caretear", o
esquivar, o fugir, etc. Em que circunstâncias digo que alguém tem dor? Ou que eu tenho
dor? Ou que alguém vê João abrir a porta? Ou que eu vi João abrir a porta? Em geral, emito
esses verbais quando tenho acesso a ações de dor ou a ações de ver (caretas, expressões
faciais, sintomas, movimentos, verbalizações). Sentir dor, ver eventos, observar a mim
mesma, ir a Veneza são categorias comportamentais as quais descrevem e/ou incluem
outras ações. Para Ryle (1984), a introspecção seria então desnecessária. Quando você
sente dor de dente, você não sente dor e faz caretas e reclama e vai ao dentista. Todos
esses atos são instâncias da mesma classe, e eu posso tentar inferir sobre aqueles
comportamentos com menor probabilidade de ocorrência e/ou menor grau de
acessibilidade, a partir de outros mais explícitos, tornando, de fato, desnecessária a prática
da introspecção. Creio que ninguém expressou com maior pungência esta abrangência da
classe "sentir dor", que a escritora chilena Isabel Allende em seu último livro, PAULA (Ed.
Plaza y Janés, Barcelona, 1994). Em 1991, ela fora à Espanha lançar um livro e encontrou
a filha gravemente doente. Poucos dias depois, Paula entraria em coma, estado em que
ainda viveria vários meses, definhando lentamente. Isabel permaneceu no hospital com ela,
e, durante esse período, escreveu várias cartas à filha contando as histórias da família, do
país, e delas próprias, entremeadas com descrições de eventos no hospital em que
estavam. A certa altura, diz "Para qué tanta palabra si no puedes oírme? Para quó estas
páginas que tal vez nunca leas? Mi vida se hace al contaria..."

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