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o CONTEXTO

FILOSÓFICO53

plices, assim como dois são os nossos olhos, duas as mãos, duas as orelhas
e, finalmente, todos os órgãos de nossos sentidos externos são dúplices. E,
dado que pensamos apenas um único pensamento acerca de uma determi-
nada coisa num determinado momento, deve necessariamente haver um lu-
gar onde as duas imagens que se nos apresentam através de nossos dois
olhos, onde as duas outras impressões procedentes de um único objeto,
através dos órgãos duplos dos sentidos, possam unir-se antes de chegar à
alma, a fim de não lhe representar dois objetos, em vez de um só. (p. 346)

Vale a pena observar que Descartes não defendia essa função especial
da glãndula pineal porque essa fosse apenas encontrada no cérebro huma-
no - ele estava ciente, com base nas dissecações que realizara, que ou-
tros animais eram dotados da estrutura (Finger, 2000). O que ele argu-
mentava era que a glãndula tinha, nos seres humanos, uma função que
não era encontrada entre os animais: a de sede da interação mente-corpo.
Descartes não estava afirmando que a mente estava na glãndula pineal,
mas sim que esta era o local em que a mente e o corpo influenciavam um
ao outro. Assim, as sensações produzem um alongamento dos pequenos
filamentos que abrem os poros do cérebro, provocando assim a moção dos
espíritos animais. Esses movimentos são percebidos pela glândula pineal
e promovem o evento mental da "sensação". Os espíritos animais conti-
nuam seu movimento, através das fibras nervosas, de volta aos músculos,
produzindo movimento. O movimento também pode ser criado pela ação
direta da vontade. A decisão de se mover leva a glândula pineal a mover-
se, o que, por sua vez, produz os movimentos dos espíritos que, por fim,
movem os músculos.
Descartes usou seu modelo do sistema nervoso para explicar outros
processos mentais e emocionais. Propõs, por exemplo, que a memória re-
sultava do movimento dos espíritos animais ao longo de trilhas que a ex-
periência tornava mais acessíveis:
Assim, quando a alma deseja lembrar alguma coisa, esse desejo faz a glân-
dula lpineall, mediante sucessivas inclinações para diferentes lados, lançar
os espíritos rumo a diversas partes do cérebro, até que alcancem a parte on-
de se encontram as pistas deixadas pelo objeto que desejamos lembrar.
Pois essas pistas outra coisa não são senão o fato de que os poros do cére-
bro, através dos quais os espíritos anteriormente seguiram seu curso devi-
do à_ presença desse objeto, por esse meio atingiram maior facilidade que
os outros para abrir-se mais uma vez pelos espíritos animais que Ihes che-
gam do mesmo modo. Assim, ao entrar em contato com esses poros, os es-
píritos penetram-nos com mais facilidade que a outros, e por força disso
excitam um movimento especial da glândula que representa o mesmo obje-
to diante da alma e a faz saber que é isso que ela queria recordar. (p. 350)

Contudo, a despeito do nobre esforço, Descartes estava errado no que


concerne à fisiologia. Por exemplo, a glândula pineal, que secreta o hor-
mõnio melatonina e ainda hoje permanece pOUCOconhecida (ao menos
nos mamíferos) não é uma "estação central" mente-corpo. Um problema
mais importante - apontado quase que imediatamente por críticos de
sua época - é que a proposta da glândula pineal como ponto da intera-
ção mente-corpo na verdade nâo explicava nada, mas simplesmente fazia
o estudo da questão retroceder um passo. Do mesmo modo que não está
54 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA.

claro como a mente não-éxtensível pode influenciar e ser influenciada pe-


lo corpo extensível, não está claro como a mente não-extensível pode in-
fluenciar e ser influenciada pelos movimentos de uma pequena parte ex-
tensível do cérebro (Cottingham, 1986). Para a psicologia, a importância
da obra de Descartes não está no seu esforço rigoroso, porém falho, de
solucionar o problema mente-corpo. Mas,·ao ernpreendê-lo, ele criou o
conceito do ato reflexo, com sua distinção explícita entre estímulo sen-
sório e reação motora, e tentou explicar conceitos psicológicos (como o
da memória) usando um modelo fisiológico. Ele foi o primeiro psicólo-
go fisiologista.

Logo depois da publicação de The Pas- porém, surgiu uma outra tradição mais ou
sions of the Soul em 1649, Descartes foi con- menos na mesma época em que a influência
vencido pela Rainha Cristina da Suécia a deste se difundia. A tradição britãnica é forte-
mudar-se para Estocolmo, a fim de ser seu mente empirista, baseada na idéia de que o
professor particular. Cristina enquadrava-se nosso conhecimento de mundo é construído
muito pouco no estereótipo da realeza femi- a partir das experiências que neh vivemos.
nina - diz-se, inclusive, que "faltavam-lhe Como esse conhecimento é tecido pelas asso-
praticamente todos os encantos femininos" ciações entre nossas idéias, o empirismo_bri-
(Vroornan, 1970, p. 212). o entanto, pos- tânico está estreitamente vinculado às doutri-
suía uma mente aguda, falava fluentemente nas do associacionismo. Boa parte da história
cinco idiomas e estava determinada a trans- da filosofia britânica a partir do século XVII
formar Estocolmo no centro de aprendiza- interessou-se pelas questões etímológicas de
gem da Europa. Para tanto, construiu uma como a experiência cria o conhecimento e de
biblioteca de categoria internacional e co- como as regras da associação funcionam pa-
meçou a convidar especialistas a fazer parte ra organizar esse conhecimento.
de sua corte, tendo sido Descartes um dos O empirismo britânico tem suas raízes
primeiros. Ele aceitou com certo receio, mas no pensamento científico indutivo de Sir
em pouco tempo estava convivendo com Francis Bacon e nas teorias sociais de Tho-
Cristina, dando-lhe três aulas semanais de mas Hobbes, contemporâneo de Bacon e
cinco horas, que começavam às cinco da Descartes. Mas talvez para nós seja mais
manhã num inverno que foi considerado se- conveniente começar por John Locke, ge-
vero até mesmo para os padrões suecos. Pa- ralmente considerado o fundador desse mo-
ra alguém que costumava ficar na cama até vimento. Em seguida, analisaremos a obra
tarde, refletindo sobre as grandes questões de outros dos principais empiristas e asso-
da época, esse horário foi fatal. Com efeito, ciacionistas britânicos, terminando com o
Descartes contraiu pneumonia em 1 de fe-
2 mais eminente filósofo britânico do século
vereiro de 1650 e morreu dez dias depois, XIX, john Stuart Mill.
pouco antes de completar 54 anos.
John Locke (1603-17041:
As Origens do Empirismo Britânico
o ARGUMENTO DOS
EMPIRISTAS BRITÂNICOS john Locke foi um homem sensato que vi-
E OS ASSOCIACIONISTAS veu numa época insensata. Passou a maior
parte da vida adulta no racional ambiente
O espírito da filosofia, no continente euro- acadêmico de Oxford como professor e tu-
peu, tem sido muitas vezes racionalista, espe- tor, mas entremeou a vida contemplativa de
cialmente depois de Descartes. N<!Jnglaterra, filósofo com a carreira político-diplomática.
60 ISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

materialismo subsume o acima menciona- (1709) e Treatise Conceming the PrincipIes of


do atomismo, a idéia de qu~ entidades Human Knowledge!Iratado acerca dos princí-
complexas podem ser entendidas mediante pios do conhecimento humano (1710). Am-
a redução às suas partes cojgponenjes. O bos são bastante empiristas e concentram-se
materialismo também constitui uma...amea- numa análise dos processos sensórios. Se-
ça ao conceito de livre-arbítrio por implicar gundo a lenda, o interesse de Berkeley pela
o determinismo, a crença de que todos os sensação provém de um enforcamento que
acontecimentos possuem causas prévias. Se testemunhou quando era estudante. Curioso
não tivermos liberdade de opção, então tal- acerca das sensações que acompanham o en-
vez não possamos ser responsabilizados pe- forcamento, ele teria se enforcado na compa-
los nossos atos. nhia de amigos instruídos a soltá-lo após al-
Essa visão de mundo materialista e de- guns minutos! Evidentemente, Berkeley
terminista não exclui necessariamente a re- perdeu a consciência e quase morreu nesse
ligião (Boyle, por exemplo, afirmava que fa- incidente, que contribuiu para a sua fama de
zer ciência era descobrir o desígnio de excêntrico (Klein, 1970).'
Deus), mas põe em risco os conceitos de li- A obra de Berkeley sobre a visão foi o
vre-arbítrio e responsabilidade moral e, por primeiro exemplo sistemático de aplicação
isso, alguns a viram como um perigo. Um do pensamento empirista ao estudo da per-
pensador especialmente preocupado com cepção. E foi muito oportuna, pois surgiu
as implicações materialistas da ciência sete- quando os avanços da ótica já permitiam te-
centista foi George Berkeley, bispo da igreja lescópios, microscópios e óculos novos e
anglicana na Irlanda. aperfeiçoados, mas o conhecimento do sis-
Berkeley foi um menino-prodígio que tema visual era rudimentar. o livro, Berke-
começou os estudos universitários aos 15 ley procurou mostrar que nossas idéias de
anos e concluiu sua obra filosófica mais im- distãncia, tempo e local dos objetos são jul-
portante antes de completar 30. Nascido na gamentos que dependem inteiramente da
Irlanda e educado no Trinity College de Du- experiência. Ao julgar a distãncia, por exem-
blin, Berkeley tornou-se diácono da igreja plo, Berkeley utilizou aquilo que seu livro
anglicana em 1709, aos 24 anos de idade. de psicologia geral chama de pistas mono-
Foi professor de várias cadeiras e, por fim, culares (que exigem só um olho) de super-
foi nomeado, em 1734, Bispo de Cloyne, na posição, clareza e tamanho relativos:
Irlanda. Ao atingir a meia-idade, deixou-se
fascinar pela possibilidade de ser missioná- [A] nossa estimativa da distância de objetos
rio no Novo Mundo. Ele acreditava que a consideravelmenteremotos é mais um ato de
América era a grande esperança da civiliza- julgamento baseado na experiência que na
ção e refletiu sobre isso em um poema inti- sensaçâo. Por exemplo, quando percebo um
rulado "Destiny of America"/O destino da grande número de objetos intermediários -
mérica, o qual contém o famoso verso "ru- como casas, campos, rios e coisasque tais -
mo ao oeste segue o curso do império". Ber- que, por experiência, sei que ocupam espaço
elev viveu algum tempo em ewport, considerável, a partir daí formo o julgamen-
Rh de Island, e tentou - sem sucesso - to ou conclusão de que o objeto que vejo
ndar uma universidade nas Bermudas. além deles está a uma grande distância. Da
dade de Berkeley, na Califórnia, situada mesma maneira, quando um objeto que, por
e.ltremo oeste dos Estados Unidos, ga-
u eu nome.
Ber "ele" é importante para a psicologia 4. Essa fama aumentou quando Berkeleymorreu.
Ele achavaque a decomposiçãovisívelera o único
por dois tino que publicou aos vinte e tan- sinal inequívocoda morte e, por isso, deixou ins-
to ano: An Essay Towards a New Theory of truçõespara só ser enterradodepoisque seu corpo
Vision/Ensaio por uma nova teoria da visão começassea exalarmau odor.
o CONTEXTO FILOSÓFICO 61

experiência, sei que é grande e nítido parece mundo. Especificamente, aprendemos a re-
pequeno e quase imperceptível, concluo lacionar aquilo que vemos com o que expe-
imediatamente que ele está muito longe. rimentamos usando os outros sentidos, em
(Berkeley, 1709/1948, p. 171) especial o tato e os sentidos associados ao
movimento físico. Desenvolvemos concei-
Berkeley analisou também a questão do tos como acima e abaixo por meio do senti-
julgamento da profundidade de objetos que do do tato, segundo Berkeley, aprendendo
estão relativamente próximos, descrevendo que "acima" está mais longe da terra que
minuciosamente fenômenos hoje conheci- "abaixo". Quando atingimos a parte supe-
dos como convergência, acomodação e pis- rior e a parte inferior da cruz da Figura 2.3,
ta binocular (que exige dois olhos). Na con- aprendemos a fazer a conexão entre a por-
vergência, quando os objetos se aproximam çâo inferior da imagem retinal e a parte su-
ou se afastam de nós, "alteramos a disposi- perior da cruz, e passamos a "vê-Ia" como
ção de nossos olhos, reduzindo ou amplian- mais distante da terra (ou seja, mais alta)
do a distância entre as pupilas" (Berkeley, que a parte inferior. Mais uma vez, tudo de-
1709/1948, p. 174). Esses movimentos dos pende da experiência.
olhos são resultantes de movimentos mus- Um tema importante na teoria da visão
culares que, por sua vez, criam as sensaçôes de Berkeley, evidenciado na frase de abertu-
que associamos a várias distâncias. Do mes- ra da citação referente às pistas monocu-
mo modo, a percepção nítida dos objetos dá- lares, é que não vemos os objetos direta-
se pela acomodação, na qual mudanças na mente. Em vez disso, fazemos julgamentos
forma da lente mantêm os objetos em foco sobre eles com base em informaçôes visuais
na retina. Os objetos mais próximos promo- e nas nossas experiências. Esse tema foi le-
vem na lente um aumento maior que os mais vado para sua principal obra, Treatise Con-
distantes. Mais uma vez, essas mudanças são ceming the PrincipIes of Human KnowIedge
acompanhadas de ação muscular e de sensa- (Berkeley, 1710/1957), e forneceu a base
çôes que se associam a diferentes distâncias. para o seu ataque ao materialismo. Assim
Os princípios básicos da ótica já eram como não vemos a "distância" diretamente,
conbecídos havia algum tempo, e desde não vemos os "objetos materiais" direta-
Descartes o fato de a imagem retinal ser in- mente. Em ambos os casos, eles são "julga-
vertida (conforme mostra a Figura 2.3, ex- dos" com base na erc~ ão. Desse~odo,
traída do livro de Berkeley) era de domínio não podemos ter plena certezada realidade
público. A questão era como conseguíamos dos objetos materiais; a única c eza.é que
ver o mundo "de cabeça para cima". Para estamos percebendo. Essa~sição de Ber-
Berkeley, a noção de que o cérebro simples- keley é conhecida como idealismo subjeti-
mente opera uma correção era demasiado vo (ou, às vezes "ímateríalismo"). Ela se
simplista e, assim, propôs que, mais uma situa na tradição empirista porque a expe-
vez, a chave estava na nossa experiência do riência é a fonte de todo conhecimento.jnas

...

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FIGURA 2.3 A imagem retinal invertida (ilustração extraída de Berkeley, 1709/1948).

- ~~~ --
62 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

destrói a distinção, qlle J ocke traçou entre o Associacionismo Britânico


as qualidades Erimárias e as u r se-
cundárias da matéria. Para l:krkeley,.....tudo Como John Locke, Berkeley tinha pouco a
era quali a e s~ndária. Se a cor depende dizer sobre a maneira como nossas expe-
da pessoa que a percebe o mesmo se.aplica riências sensoriais e nossas reflexões se
à extensão. A única coisa real para nó é a aliam para criar formas mais complexas de
nossa própria percepção. conhecimento. Isto é, embora ambos te-
Isso implica que jamais podemos ter cer- nham abordado a questão da associação de
teza da realidade do mundo? A árvore que idéias, nenhum examinou atentamente o
cai na floresta só existe se a ouvirmos cair? fenômeno. A associação, no entanto, logo
Não. A realidade de fato existe, segundo viria a ocupar o centro do palco para os fi-
Berkeley, porque os objetos, inclusive_a ár- lósofos britânicos, sendo vista como uma
vore da floresta, sempre são percebidos por força que controlava os eventos mentais. O
Deus, por ele chamado de Perceptor Per- associacionismo é a dou trina segundo a
manente. Podemos ter certeza da perma- qual a mente pode ser entendida como um
nência da realidade, mas só pela fé em Deus. complexo de idéias relacionadas entre si
Desse modo, Berkeley procurou atacar o por força das associações que existem ent~
que via como materialismo ímpio, sugerin- elas. As coisas são associadas na nossa men-
do que a fé em Deus era essencial para a te em virtude da nossa experiência de
nossa compreensão do mundo. mundo; portanto, o associacionismo se
Berkeley não conseguiu neutralizar a baseia no empirismo. Os filósofos britâ-
tendência ao materialismo, como se verá no nicos David Hume e David Hartley deram
próxímo capítulo. E, apesar da complexida- importantes contribuições para a com-
de de sua obra sobre a visão, ele não fazia preensão do funcionamento da associação.
experimentos e, por isso, não pode ser co-
locado entre os primeiros psicólogos expe- David Hume (1711-1776):
rimentais. Frisando a importância da per- As Regras da Associação
cepção na compreensão da realidade e Hume nasceu perto de Edimburgo, na Escó-
atacando a questão do real funcionamento cia, mais ou menos na época em que Berke-
da percepção visual, porém, ele fortaleceu a ley publicou os dois livros acima citados.
causa do empirismo britânico, ao mesmo Ele entrou para a University of Edinburgh
tempo que contribuiu para que o problema aos 12 anos de idade, apaixonou-se pela li-
de como o conhecimento é adquirido se tor- teratura e pela filosofia, mas três anos de-
na se menos filosófico e mais psicológico. pois abandonou o curso sem obter o diplo-
Como afirma o historiador da psicologia ma. Tentou estudar direito, mas detestou a
Daniel Robinson Berkele "tornou a episte- matéria e decidiu então dedicar-se ao co-
molozia um ramo da psicologia e desde en- mércio, que detestou igualmente. Determi-
tão elas não se divorciaram" (1981, p. 228). nado a tornar-se um erudito, refugiou-se
ma vez que o pro ema do conhecimento por três anos no interior da França,' onde
u ano e tornou um problema psícologí- escreveu seu primeiro livro, A Treatise of
pe oas começaram a azer outras Human ature [Tratado sobre a natureza
oersuntas. Em vez de uma pergunta Iilosó- humana] (1739-1740/1969). Assim, como
"Quanto sepode conhecer acerca Berkeley, Hume publicou um tratado de pe-
reza da realidade?", os pensadores so antes de chegar aos 30 anos. Infelizmen-
fazer perguntas como "De que te, o livro não vendeu bem, decepcionando
m ente. a percepção visual con-
tribui arfei oar aquilo quesabe-
mo r Es mudan a eria responsável pelo 5. Hume escolheu a tranqüila La Fleche, conhecida
surgimento de uma p icolo ia científica. pela escola jesuíta onde Descartes havia estudado.
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o CONTEXTO FILOSÓFICO 63

O ambicioso Hume, que depois diria: "Ele rimentadas diretamen~. Assim, mesmo que
caiu natimorto da prensa, sem provocar se- nunca tenhamos encontrado um trevo de
quer um murmúrio entre os fanáticos" (ci- quatro [olhas, podemos ter dele uma idéia
tado por Klein, 1970, p. 552). Posterior- complexa, criada pela combinação de idéias
mente, escreveu versões reduzidas do simples (isto é, "quatro", "trevo" e "verde")
Treatise com diferentes títulos, mas não fo- que, com efeito, podem ter suas origens
ram seus escritos filosóficos que o tornaram descobertas em impressões.
mais conhecido, e sim uma monumental Observe que a análise que Hume faz de
história, em cinco volumes, da Inglaterra. impressões e idéias se insere na corrente do-
Ainda hoje respeitada, ela foi além da usual minante do empirismo britânico. Se todas
história militar e política, incorporando à as idéias são cópias vagas das impressões,
narrativa a história social e literária. então todas as idéias derivam das impres-
unca modesto, Hume estava convenci- sões que experimentamos na vida. Por con-
do de que o seu Treatise faria pela filosofia o seguinte, não existem idéias inatas. Além
que ewton fizera pela física. Com efeito, o dis~ Hume incluiu a distinção de Locke
subtítulo do tratado é "Being an Attempt to entre idéias simples e.complexas. Mas como
Introduce the Experimental Method ofRea- as impressões se conectam às idéias e mo
soning into Moral Subjects"!Uma tentativa se formam as idéias complexas? Como uma
de introduzir o método expenmental da ló- idéia leva à outra? Para resumir, por meio
gica nas disciplinas morais. Co~'mét do de um processo de associaç~o, cuja análise
experimental", Hume não se referia ao uso Hume considerava a sua maior "realização.
de experimentos, como entendemos a ex- Hume propôs três leis da assoçia ão: s -
pressão hoje, mas a observação cuidadosa e melhança, contigüidade e causa/efeito. Às
. sistemática do raciocínio e do comporta- vezes um objeto nos lembra outro Qor ser pa-
mento humanos, principalmente os seus recido ou ter com ele uma relação.de.seme-
próprios, seguida de uma análise lógica do lhança. Assim, a foto da meia-abóbada do
processo a fim de descobrir as leis básicas parque Yosemite lembra a formação real de
da mente. granito e traz à mente recordações (idéias),
Em boa tradição empirista britânica, talvez de uma visita ao vale. A contigüidade
Hume criou seu sistema com base no prin- diz respeito à vivência simultânea de duas ou
cípio de que toda a nossa compreensão tem I!l.aiscoisas. Assim, como o purista só come
origem na experiência. Para dissecar a ex- lagosta no Maine, pensar em lagosta evoca
periência humana, Hume primeiro tentou na mente o litoral desse estado. A terceira lei
descobrir os elementos básicos da mente, da associação de Hume refere-se à relação
análogos aos átomos do físico. Depçis de re- entre ca.!.lsaLefeito. Se um evento acompa-
fletir, Hume concluiu que esses elementos nha outro com certa regularidade, desênvol-
eram em número de dois: impressões e veremos uma associação entre os dois. O
idéias. As impressões são sensações bási- exemplo dado por Hume foi o da ferida cica-
cas, os dados não processados da experiên- trizada. A ferida original nos "fez" sentir dor;
cia. Sentimos prazer, vemos o vermelho, assim, quando agora vemos a antiga ferida,
provamos o' doce e assim por diante. As lembramo-nos da dor e das circunstâncias
idéias, por sua vez, são "cópias vagas" das que a produziram. Mas o que determina cau-
impressões. Ou seja, embora semelhantes a sas e efeitos? A resposta de Hume o tornou
impressões e delas provenientes, as idéias uma figura controvertida em sua época, mas
não são tão vívidas. Para apoiar seu argu- talvez sbja a sua mais importante contribui-
mento de que as idéias provinham das im- ção parga psicologia moderna.
pressões, Hume observou que é possível re- Hume achava que nunca podemos ter
duzir todas as nossas idéi~ im ressões, absoluta certeza acerca das causas dos even-
inclusive as idéias cornplzxgs, jamais expe- tos; que tudo o que podemos saber é que
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64 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

eles acontecem juntos com alguma regula- cido como pensador original, mas o seu Ob-
ridade e previsibilidade. Segundo ele, para servations on Man, His Frame, His Duty, and
concluir que A causa B, é necessário saber His Expectations/Observações sobre o ho-
que (a) quando A acontece, B regularmente mem, sua estrutura, seu dever e suas expec-
acontece também, (b) A acontece antes de tativas (1749/1971) resumiu com grande
B e (c) B não acontece se A não acontecer. clareza o essencial do pensamento ernpiris-
Recorrendo ao ernpirísmo e ciente do pro- ta britânico, além de fornecer uma descri-
blema básico da indução, Hume observou ção contundente de como a associação po-
que só sabemos dessas regularidades por deria ser o princípio-guia de uma teoria da
causa da experiência. Além disso, como a estrutura e do funcionamento da mente hu-
experiência é limitada, jamais podemos ter mana. Como também tentava descrever os
certeza das causas dos eventos. A conclusão correla tos neurológicos da atividade men-
dêHume de que a certeza absoluta era im- tal, o livro marcou também um passo im-
possível valeu-lhe o rótulo de "cético" e o portante no desenvolvimento da psicologia
colocou em conflito com autoridades como fisiológica. Publicado exatos cem anos de-
a igreja, que naturalmente se sentiram ofen- pois de The Passions of the Soul, de Descar-
didas pela implicação de que a existência de tes, ele constitui um digno sucessor.
Deus poderia ser questionada. Hartley nasceu em Yorkshire, no norte
Entretanto, é importante observar que da Inglaterra, formou-se em Cambridge e
Hume não negou a existência da realidade, preparava-se para abraçar uma carreira de
de Deus nem da possibilidade de os eventos ministro religioso, como o pai, quando sur-
terem causas absolutas. Seu argumento era a giram conflitos de ordem doutrinária. Ele
impossibilidade de ter certeza dessas causas. descobriu que era incapaz de acreditar na
Do ponto de vista prático e cotidiano, o que idéia da danação eterna, um dos assim cha-
ele achava importante era a capacidade de mados 39 artigos de fé que os ministros da
acumular experiência suficiente para poder Igreja Anglicana tinham de aceitar. Optou
fazer as melhores previsões possíveis. Se há então pela medicina e exerceu a profissão
sisternaticidade na ocorrência conjunta de com sucesso. Em seu tempo livre, fundou o
determinados eventos no passado, tudo leva associacionismo britânico.
a crer que eles co-ocorrerão no futuro. As- Hartley era contemporâneo de Hume,
sim, Hume não estava negando a causalida- mas não sofreu sua influência. Seus pri-
de; ele simplesmente a deslocou da busca de meiros rascunhos de Observations datam do
causas absolutas para a busca de regularida- início da década de 1630, sendo portanto an-
des maiores que o acaso. Os psicólogos de teriores ao Treatise de Hume (1639). Aparen-
hoje que buscam as "causas" dos comporta- temente, Hartley não conheceu a obra de seu
mentos são essencialmente seguidores de contemporâneo (o que não é de admirar, dá-
Hume nesse aspecto. Eles reconhecem que do o fracasso de vendas do livro de Hume).
vários fatores contribuem para todo com- Três anos antes da publicação final de Obser-
portamento, e que o máximo que se pode vations, ele publicou uma versão do livro co-
e perar é a identificação dos fatores que pre- mo apêndice a uma obra médica sobre cálcu-
nunciam os comportamentos com probabi- los nos rins e na bexiga. Esse apêndice foi
lidades maiores que o acaso. escrito em latim, sob um título que sugere
um caráter incipiente: Conjecturae. Aparen-
David Hartley (7705-7757): temente, Hartley queria submeter suas idéias
Um Associacionista Fisiológico à avaliação prévia de um grupo restrito de.es-
Hume certamente deu atenção ao processo pecialistas antes de publicá-Ias.
da as ocia ão, mas o tema interessou ainda Hartley deixa claro, na frase que abre o li-
mais a David Hartley. Ele não promoveu vro, que era dualista no que concerne à q\les-
a anço revolucionários nem ficou conhe- tão mente-corpo: "O ser humano consiste

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