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Relaç ões Internacionais:

teorias e agendas

Antonio Jorge Ramalho da Rocha


Sumário

Introdução ..................................................................................................................................... 2

Testemunho do autor .................................................................................................................. 5

Debate .......................................................................................................................................... 21

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Introdução

“Si come il mangiare sanza voglia fia dannosa allá salute,


cosi lo studio sanza desiderio guasta la memória
e non ritien cosa ch’ella pigli”
Leonardo da Vinci1

A tese: “Relações Internacionais: teorias e agendas” expõe e discute as principais


dimensões do debate teórico no campo das Relações Internacionais nas últimas décadas.
Seu objetivo precípuo é encorajar o leitor a refletir sobre as relações internacionais
contemporâneas e sobre o modo como os pensadores conferem sentido aos fatos,
fenômenos e processos que as constituem. Mais do que informar acerca das teorias,
quer-se, aqui, estimular os leitores a pensar teoricamente a respeito do campo de
estudos das Relações Internacionais.
Não se trata, pois, propriamente, de um manual de Teoria das Relações
Internacionais, onde o leitor possa encontrar algo próximo a uma taxonomia de
conceitos e teorias, “caixas” e rótulos que possa utilizar para simplificar o que dizem os
especialistas a respeito da realidade internacional contemporânea. Trata-se, em verdade,
de um esforço destinado a trazer ao debate acadêmico nacional as discussões
epistemológicas, metodológicas e teóricas atualmente em curso na comunidade dos
analistas das relações internacionais.
O título do texto encerra uma espécie de síntese de seu principal argumento:
Relações Internacionais constitui um campo de estudos em que prevalece uma
pluralidade de teorias, as quais buscam organizar, em agendas de investigação, os temas
que constam nas mais importantes agendas internacionais. Por isso, teorias e agendas,
assim mesmo, no plural. São várias as teorias e é plural o sentido em que aparecem as
agendas: agendas de investigação, para os intelectuais que refletem sobre as Relações
Internacionais; e agendas de ação para os indivíduos e organizações, públicas e
privadas, estatais e não-estatais, que movem as relações internacionais.
Estruturas e agentes constroem-se, pois, em permanente interação, quer pela ótica
racionalista, quer pela construtivista. Pelo primeiro prisma, parte-se da premissa da
racionalidade instrumental dos agentes, que visam a, no âmbito internacional,
conformar e utilizar estruturas institucionais e normativas destinadas a aumentar-lhes a
capacidade de avançar suas preferências, nem sempre com sucesso para os agentes mais
poderosos ou com resultados positivos para a coletividade, em função de problemas de
ação coletiva. Aqui, discutem-se os diferentes – e complementares – níveis de análise,
procurando explicar as decisões tomadas no contexto internacional a partir do ponto de
vista dos indivíduos, dos estados e organizações, e do sistema internacional, para
lembrar a lição de um dos expoentes desta agenda de investigação, Kenneth Waltz.

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Da Vinci, Leonardo. 1991. Scritti letterari. Roma, Rizzoli Del Libri, S.p.A. 4ª Edição.

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Pelo segundo prisma, a ênfase recai nas normas e instituições internacionais, na
extensão com que os valores condicionam não somente as expectativas, mas também a
identidade e as diferentes construções que os agentes produzem da realidade
internacional e, nela, de seu próprio lugar e significado. Nesse contexto, estruturas e
agentes não existem de forma autônoma, ainda que influenciados uns pelos outros.
Aqui, as estruturas, mais ou menos positivadas, e os agentes constituem-se
mutuamente, evoluem dinamicamente, cabendo aos analistas compreender o modo
como eles se transformam e, ao fazê-lo, giram a roda da fortuna, mudam o mundo,
engendram a própria evolução das relações internacionais. Já não se trata, assim, de
explicar fenômenos, mas de entender-lhes a essência, inclusive mantendo presente a
extensão em que tal compreensão resulta do sistema conceitual utilizado para lhes
conferir sentido.
Ao mergulhar nessa discussão, isto é, ao produzir diálogos entre racionalistas e
construtivistas, o texto ressalta, inicialmente, a condição discursiva do campo de estudo
das Relações Internacionais. Apresentam-se as “teorias” como discursos teóricos, a
saber, construções do pensamento humano que possuem características especificas,
necessárias a que sejam consideradas válidas pelos analistas das Relações Internacionais.
Enfatiza-se, portanto, a dimensão social deste processo, por meio do qual se produz um
tipo específico de conhecimento – o científico – acerca das relações internacionais
contemporâneas.
Em seguida, tais diálogos convidam o leitor a atentar para o fato de que a
realidade internacional, propriamente dita, não existe em categorias, mas na forma de
um continuum de fatos e processos, inclusive interpretativos, cuja compreensão
constitui a razão de ser deste campo de estudo. Trabalha-se, pois, com diferentes níveis
de abstração, que são explicitados ao leitor, com vistas a facilitar-lhe o exercício de
reflexão sobre tais fatos e processos e sobre o modo como eles são percebidos pelos
analistas das Relações Internacionais.
Salienta-se, assim, o fato, nem sempre evidente, de que os indivíduos não agem
de acordo com a natureza dos fenômenos e processos em que estão imersos agem de
acordo com sua percepção desses fenômenos e processos. Isso se aplica não apenas ao
comportamento dos agentes tidos como “objeto de estudo” dos analistas, mas também
ao próprio trabalho de reflexão dos analistas, que produzem interpretações divergentes
da mesma realidade, a depender do sistema conceitual utilizado para torná-la
compreensível.
Embora à primeira vista essa discussão pareça algo abstrata, o leitor logo verá
que não é difícil dela participar, e que a boa teoria, aqui estudada, é, no dizer de Olson,
“intensamente prática”. Apresentados em linguagem simples, quase coloquial, os
discursos teóricos mais relevantes no campo das Relações Internacionais são
confrontados, com o fito de evitar a definição que, de forma bem-humorada, o poeta
Mario Quintana atribuía a diálogos: “monólogos intercalados”. Com efeito, procurou-se,
ao máximo, evitar aqui esta super-posição de argumentos, tão comum em discussões
teóricas. Como resultado, analisa-se cada conceito, cada sistema conceitual e cada
“grande debate” entre teorias em seu contexto histórico e discursivo, com vistas a

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facilitar ao leitor o trabalho de construir sua própria visão acerca deste campo de
estudos e da utilidade de cada um dos discursos teóricos que o integram. Afinal, parte-
se do pressuposto de que o estudo das Relações Internacionais requer o
desenvolvimento de habilidades analíticas, o permanente exercício da crítica e da auto-
crítica. Por isso, referimo-nos a essa atividade como inerente a um campo de estudos, e
não a uma “disciplina” cujo paradigma é preciso aprender e aplicar.

Organização do Texto
O texto está organizado em sete capítulos, além desta apresentação. Inicia-se com
uma breve introdução, em que se analisa o surgimento de Relações Internacionais como
campo de estudos e se explicita o conteúdo dos capítulos seguintes. O capítulo 2
convida o leitor a refletir sobre o modo como os discursos científicos organizam, no
plano intelectual, as complexidades inerentes à realidade a que se referem, aplicando
essa discussão à realidade internacional. Em seguida, discutem-se as reflexões
epistemológicas e meta-teóricas comuns entre os analistas das Relações Internacionais,
que constituem o cerne do capítulo 3. No capítulo 4, a atenção recai sobre o surgimento
do campo de estudos, seu lugar na história do pensamento político ocidental e suas
características específicas. Enfatiza-se o surgimento do Estado nacional e o modo como,
nas agendas de investigação racionalista e construtivista (base do atual debate teórico no
campo das Relações Internacionais), fatos e idéias juntam-se, servindo a construir o que
hoje se entende por relações internacionais. O capítulo 5 aprofunda os debates meta-
teóricos presentes nos vários sistemas conceituais aceitos como válidos para interpretar
as relações internacionais contemporâneas, com ênfase para processos tais como as
várias formas de cooperação e conflito e a construção de relações de poder e de
autoridade entre agentes na esfera internacional. O capítulo 6, mais descritivo que
analítico, apresenta e questiona o alcance de conceitos-chave neste campo de estudo,
com o objetivo de esclarecer, nos argumentos dos principais discursos teóricos das
Relações Internacionais, os limites explicativos de conceitos tais como “anarquia” e
“equilíbrio de poder”, de um lado, e, de outro lado, de sistemas conceituais, a exemplo
do Realismo, da Economia Política Internacional ou da Interdependência Complexa. Por
fim, uma breve conclusão resume o argumento do livro, encorajando o leitor, uma vez
mais, a evitar leituras simplificadoras da realidade internacional. Afinal, meu objetivo,
desde o início, era estimular o desenvolvimento do espírito crítico na formação dos
jovens brasileiros que tencionam tornar-se analistas das relações internacionais. Cabe ao
leitor avaliar a extensão em que consegui sucesso nesse empreendimento.

Antonio Jorge Ramalho da Rocha.

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Testemunho do Autor

É muita responsabilidade iniciar essa série de debates acadêmicos, naturalmente


com o receio de decepcionar as pessoas com um tema tão árido: teoria. Mas a idéia é
fazer deste debate algo informal, tranqüilo, uma discussão entre amigos, que podem
criticar-se sem cerimônia. Na verdade, a tese foi escrita em uma linguagem que objetiva,
em alguma medida, isso. Logo será transformada em livro, também com uma
linguagem mais acessível, o mais acessível possível, para tentar “seduzir” as pessoas
não propriamente por conhecer teorias das relações internacionais, mas por pensar
teoricamente o campo de estudos das Relações Internacionais. Então, eu vou procurar
ser bastante informal, na maior medida possível.
Qual que é a idéia da tese? Quais são seus objetivos centrais? Existem objetivos
gerais e específicos na tese. Eu vou procurar expor a vocês, em grandes linhas, os
objetivos principais. Vou iniciar com uma discussão sobre níveis de abstração em que
ocorrem as reflexões teóricas, a produção de discursos científicos e a aplicação desses
discursos científicos ao campo das Relações Internacionais. Essas duas primeiras
sessões, em que se divide a primeira parte da nossa conversa de hoje, são um pouco
mais áridas; vou procurar ser mais breve nelas. Então, comentarei o principal corpo do
argumento da tese, o debate entre “racionalistas e construtivistas”, em cuja apresentação
procurarei fazer uma espécie de provocação a vocês, com vistas a conhecermos melhor o
diálogo real entre duas agendas de investigações em que se pode dividir, hoje, o campo
de estudos das RI.
Há, portanto, uma agenda construtivista e uma agenda racionalista. Estas
agendas baseiam-se em métodos diferentes, sempre métodos científicos, os quais, por
uma série de critérios, são considerados capazes de produzir discursos validados por
uma comunidade de analistas, em nosso caso, analistas das Relações Internacionais. Eu
destaco muito, ao longo do texto, essa dimensão social da produção do conhecimento. A
partir daí, procuro esclarecer um pouco melhor o atual estágio da agenda de debates no
campo das RI. Essencialmente, o que a tese faz é isso. Na verdade, ela vai um pouco
além, mas isso não vai sair na parte que será publicada: ela aplica algumas teorias de
lingüística ao tratamento dos discursos científicos, que intitulo discursos teóricos, no
campo das RI.
Essa é uma das primeiras inovações da tese. Mais do que fazer uma espécie de
taxonomia, como as pessoas normalmente fazem quando vão estudar teoria das RI, o
que eu procuro fazer é revelar o alcance explicativo, ou melhor, o alcance interpretativo
de cada discurso teórico. Então, o meu objeto de estudo não são as relações
internacionais propriamente ditas, ou seja, os eventos, os fenômenos, os processos, os
agentes que movem interesses, que giram o mundo, que fazem acontecer aquilo que nós
chamamos de relações internacionais, mas os discursos teóricos que explicam ou que
procuram interpretar o papel dessas estruturas (estruturas institucionais, normativas ou
ideacionais) e desses agentes, alguns agentes públicos, outros privados; alguns
institucionalizados, outros não tanto. Portanto, em grandes linhas, isso é o que eu
proponho fazer, aqui, com vocês. Na tese, o que eu faço é aplicar, no último capítulo,

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teorias de lingüística, para analisar a dimensão lógica do conteúdo semântico, sintático e
pragmático de cada um desses discursos. Esta é uma parte mais abstrata, menos
interessante para aqueles que não têm muito interesse por temas relacionados a
Lingüística. Na verdade, como eu tinha que trabalhar com um objeto de estudo que não
era um conjunto de eventos, mas de discursos, eu recorri a um ferramental de análise de
discursos e não a um ferramental de análise de fenômenos, a saber, de temas, de
agentes, de instituições e coisas do gênero.
Isto posto, começo a entrar na primeira parte da discussão. Existem três níveis de
abstração com que eu trabalho na tese. O primeiro nível seria o nível meta-teórico, em
que existe aquilo que se chama de meta-ciência, o que está além da ciência propriamente
dita, de que se pode ter conta por meio ou da filosofia ou da lingüística. O que eu faço
aqui é optar não pela filosofia da linguagem, mas por sistemas conceituais da lingüística
que já produzem resultados naquilo que os lingüistas chamam de análises dialógicas, ou
seja, análises de diálogos. Como isso funciona? Eu trato cada sistema conceitual como
um discurso científico, e, ao tratar esse sistema conceitual não como uma revelação de
verdades absolutas, mas como um sistema conceitual, como o que ele é, um conjunto de
conceitos que são logicamente consistentes e que obedecem a determinados critérios
segundo os quais nós reconhecemos como científico um tipo específico de conhecimento
e como válida a sua produção.
Muito bem, eu trabalho, então, nesse nível meta-científico, a fim de analisar as
teorias, que seriam um segundo nível de abstração, um segundo nível discursivo, em
que se podem produzir interpretações acerca de fenômenos da realidade. O meu objeto
de estudo está neste nível: são os sistemas conceituais, são os discursos teóricos. Esses
discursos teóricos, por sua vez, referem-se à realidade propriamente dita. Aqueles que
tiverem a paciência de ler o livro mais adiante verão que, às vezes, eu faço algum
recurso à poesia. Afinal, neste mundo em que vivemos não há salvação sem senso de
humor e sem poesia.
A propósito de poesia, o poeta Mário Quintana costumava definir diálogo como
“dois monólogos intercalados”. Quer dizer, com muita freqüência nós vemos as pessoas
afirmando e reafirmando as mesmas coisas, a sua própria visão de mundo, sem
conseguir entender o que o outro está dizendo. O que eu consigo demonstrar, inclusive
com uma análise da produção de conceitos no campo da ciência, de um modo geral, e no
campo das Relações Internacionais, em particular, é a intersecção dos conteúdos
semânticos dos conceitos utilizados neste campo do saber Em outras palavras,
demonstro que é possível afirmar coisas distintas acerca da realidade utilizando os
mesmos conceitos para conferir sentido àquilo que existe na realidade, a que se referem
os conceitos, que os analistas utilizam em seus discursos, em seus sistemas conceituais.
O que vai diferenciar a produção de conhecimento científico da produção de
outros tipos de conhecimento são os critérios de validação desse conhecimento
científico. Neste ponto, eu recorro a um filósofo da ciência, matemático, chamado Alfred
North Whitehead, que, num livrinho muito interessante, uma série de conferências,
chamado ‘A Função da Razão’ (esse livro foi traduzido nos anos 80 pela Universidade
de Brasília), coloca uma série de critérios bastante abrangentes e, eu diria, úteis, a definir

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o que vem a ser o conhecimento científico. Assim, eu digo que o meu conhecimento é
científico quando: (1) a fim de ser testado, meu discurso, para ser científico, deve
necessariamente ser produzido em um idioma conhecido, além de ser publicado; além
disso, (2) ele é logicamente consistente, ou seja, os conceitos que ali estão não se
contradizem: isso se chama a consistência lógica interna do discurso; (3) ele é
externamente consistente do ponto de vista lógico, ou seja, ele não é negado por outros
discursos, também científicos, acerca desta mesma realidade; (4) ele encontra ampla
conformidade com a observação empírica, isto é, constantemente, repetidamente, ele se
mostra capaz de afirmar coisas sobre a realidade que nos ajudam a lidar melhor com
essa realidade; (5) esse sistema conceitual não é negado pela realidade, não encontra
discordância com as observações empíricas desta realidade. Todos vocês já devem ter
lido Popper, toda aquela discussão sobre os cisnes negros e os cisnes brancos, não é? Se
eu tenho uma teoria que afirma que todos os cisnes são brancos e eu só vejo, mesmo em
um milhão de observações, cisnes brancos, ou seja, minha teoria é amplamente
referendada pela observação empírica, tudo o que tenho é a expectativa de que o
próximo cisne a ser observado será branco. No dia em que eu encontrar um cisne negro,
a minha teoria foi por água abaixo. A rigor, no campo da ciência, esse é o ideal de
produção de conhecimento científico.
Nunca se chega, de fato, a esse ideal, porque sempre se vai ampliando o
horizonte do conhecimento científico, até mesmo pela aplicação e pelo teste dos sistemas
conceituais com que trabalhamos e, ao observarmos elementos discordantes na
realidade, aquilo que, do ponto de vista da discussão de paradigmas, alguns chamariam
de anomalias, se não tivermos outro melhor discurso científico para dar conta desta
realidade, nós conviveremos com os discursos científicos que temos, mesmo sabendo
que eles são insuficientes, incompletos, imperfeitos e assim por diante.
Porque que eu lhes chamo a atenção para isso? Em primeiro lugar, porque
existem outras formas de produção de conhecimento que não devem ser negligenciadas.
Eu posso produzir conhecimentos sobre a realidade por meio da arte, por meio de um
discurso estético, um discurso literário, um discurso religioso. São formas racionais de
se produzir conhecimentos sobre a realidade, que ajudam as pessoas a lidar melhor com
o ambiente em que elas estão inseridas e, principalmente, a lidar melhor umas com as
outras. São genuínas manifestações do espírito humano. Ocorre que o conhecimento
religioso requer a fé, o conhecimento artístico as preferências estéticas das pessoas.
Nenhum desses tipos de conhecimento requer a condição de esquema lógico, uma
sistematização lógica interna, uma consistência lógica interna; nenhum desses discursos
requer uma consistência lógica externa, nenhum desses discursos requer uma ampla
conformidade com a realidade, nenhum desses discursos requer que ele não seja negado
pela realidade propriamente dita. Ou seja, estou apenas querendo ressaltar a dimensão
de humildade característica da produção do conhecimento científico.
Com isso, eu não estou dizendo que este tipo de conhecimento é melhor do que
os outros; ao contrário, opto por me incluir entre aqueles analistas que reconhecem as
limitações da capacidade de produção de conhecimento científico sobre a realidade. São
limitações, mas são limitações que nos dão também um conhecimento muito mais

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rigoroso, mais sustentado, muito mais firme acerca daquilo que acontece na realidade.
Novamente, se vocês quiserem um exemplo coloquial, algo que sempre me ocorre neste
tipo de discussão, pensem na produção de conhecimento sobre a alma humana. Se vocês
quiserem entender a alma humana, tão importante quanto entender os psicólogos, os
psiquiatras, etc., é, em minha opinião, ler gente como Dostoievski, Edgar Poe, Fernando
Pessoa; é ler gente como, ente nós, Machado de Assis, Paulo Bonfim e Manuel de Barros;
são autores que, por outros meios, por meio de um discurso estético, produziram
conhecimentos bastante relevantes sobre a alma humana; isso não pode ser
negligenciado. Eles, apenas não assumem qualquer compromisso com a validação
científica do seu discurso, porque eles não estão fazendo ciência; eles estão fazendo arte,
estão fazendo literatura, eles estão fazendo qualquer outra coisa. Esta distinção é
importante porque alguns dos analistas que se dizem parte da escola construtivista de
análise das relações internacionais, na verdade, optam por essa escola, por assim dizer,
pós-moderna, que confere total autonomia ao discurso. Não é isso que os construtivistas
fazem.
Os construtivistas aceitos pela comunidade dos analistas das Relações
Internacionais, cuja obra foi validada do ponto de vista desses critérios científicos, esses
construtivistas não afirmam o que bem querem sobre a realidade. Eles precisam de um
discurso logicamente consistente, eles precisam de um discurso que não seja negado por
outros, eles precisam de um discurso que encontre respaldo na realidade, e assim por
diante; ou seja, um discurso que atenda a todos aqueles critérios de validação da
produção de conhecimento científico. Então, a tese mergulha muito nessa discussão
mais abstrata a respeito da produção de conhecimento científico, do modo como se
produzem conceitos. Há pelo menos dois modos de produção de conceitos a que recorro
para produzir meu argumento. Recorro à teoria dos conjuntos de Cantor, na
matemática, e recorro a um outro matemático, um filósofo da ciência, estudioso da
linguagem e dos mitos, que produziu amplamente sobre a formação de mitos, o Dr.
Ernst Cassirer. Mas essa é uma discussão mais árida, que talvez não interesse aos
senhores.
Basta lembrar-lhes de que estou trabalhando com teorias como objeto de estudo.
Por conseguinte, utilizo um ferramental meta-teórico, meta-científico, um conjunto de
conceitos que, por assim dizer, está fora da ciência: um conjunto de conceitos de
lingüística, no meu caso. Isso foi uma opção, já que eu poderia ter utilizado um outro
conjunto de conceitos para analisar essas teorias, a partir da Filosofia da Ciência. Notem
que me refiro apenas àquelas teorias que obedecem aos critérios de validação
mencionados, critérios de validação que são aceitos pela comunidade de analistas das
RI. Então não é qualquer discurso que entra nesse campo de estudo, mas apenas aquele
tipo de discurso científico que obedece a determinados critérios de validação e que,
portanto, são reconhecidos como válidos pelos integrantes dessa comunidade de
analistas das relações internacionais. Novamente, observem a dimensão social da
produção de conhecimento, já que é preciso produzir um consenso a respeito dos
discursos aceitos para conferir sentido as relações internacionais contemporâneas.

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Chamo-lhes a atenção para isso por que? Uma das críticas que aparecem ao longo
do texto diz respeito ao fato de que o principal corpo teórico, ou os principais sistemas
conceituais com que nós trabalhamos no campo das RI são sistema conceituais
produzidos nos Estados Unidos, produzidos na Europa, são sistemas conceituais cujo
objetivo principal é responder aos anseios dos analistas americanos, dos analistas
europeus, ou seja, o modo como eles percebem a organização da realidade internacional.
A primeira grande lição que aprendi com meu trabalho, foi a necessidade de abstração
para pensar não apenas as teorias, mas seus pressupostos. Por isso, insisto no que eu
coloquei inicialmente, na idéia de que não cabe fazer uma taxonomia de sistemas
conceituais, mas convidar o leitor a pensar teoricamente. O que eu quero dizer com isso?
Os sistemas conceituais com que nós trabalhamos são sistemas conceituais
desenvolvidos para resolver problemas que não são nossos; nós precisamos ter isso
claro. Não vejam nisso, por favor, qualquer idéia conspiratória; não há nenhuma idéia
de que se manipule a percepção da realidade em países emergentes, nada disso.
A única coisa que eu procuro salientar é o fato de que é preciso conhecer essa
comunidade de analistas das RI, ou seja, os indivíduos que são respeitados no campo e
de cuja aprovação esses sistemas conceituais necessitam para serem considerados parte
do campo de estudos das Relações Internacionais. Essa aprovação dá-se por pessoas que
não vivem os nossos problemas, que não se preocupam com o mundo da mesma forma
que nós, que não organizam o continuum em que a realidade nos é dada da mesma
maneira que nós. Ou seja, a primeira grande lição qual é?
Em minha opinião, é a de que a realidade não vem em categorias; as categorias
são criações do nosso pensamento, criações que podem ser rigorosas do ponto de vista
científico, como é o caso das que estudo aqui, ou criações literárias, religiosas, qualquer
outra coisa. Mas esse continuum é organizado para nós, a agenda do que vêm a ser as
relações internacionais, os fenômenos relevantes, as estruturas que devem ou não ser
modificadas, os agentes cujo comportamento deve ou não ser tomado em consideração,
essa organização da realidade se dá, em primeiro lugar, intelectualmente, e essa
produção intelectual acontece alhures, em um fórum de que nós participamos muito
pouco. A idéia é primeiro conhecermos esse fórum, conhecermos esse processo de
produção e validação de conhecimento científico, para podermos dele participar de uma
maneira mais efetiva, de uma maneira mais capaz de influenciar o modo como alguns
problemas emergem na agenda internacional – ou deixam de emergir nesta agenda. Em
outras palavras, há, também aqui, um conjunto de relações de autoridade, autoridades
que se constituem não institucionalmente, mas que se constituem pela capacidade de
manipular esses sistemas conceituais, de fazer bom uso deles, e de, com isso, produzir
um conhecimento que passará a ser validado como conhecimento científico.
Então, resumindo o que eu coloquei até agora, qual é o cerne do debate?
Primeiro, eu discuto, de uma maneira bastante específica e, quero crer, didática, como se
produzem conceitos, por um lado, e como se produzem sistemas conceituais. Eu faço
uma distinção entre o que são sistemas conceituais que nós consideramos como capazes
de produzir conhecimento científico sobre a realidade internacional, daqueles sistemas,
conceituais também, que não obedecem a esses critérios de validação e que, portanto,

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são alguma coisa diferente da produção de conhecimento científico. Não são melhores
nem piores, mas apenas discursos que não obedecem a esses critérios de validação.
Hoje em dia, quando se observam confrontações, no cenário internacional, entre
pessoas que pensam a realidade internacional a partir de categorias religiosas, a partir
do que julgam ser a vontade de Deus, etc., confrontados com opiniões científicas ou
pseudo-científicas da realidade internacional, esse tipo de debate ganha relevância.
Cabe, pelo menos, ter consciência da necessidade de validação das análises feitas sobre
uma guerra, por exemplo, entre Estados Unidos e... Nomeiem vocês, o leque de opções é
bastante vasto. Em todo caso, é importante você saber como o seu adversário concebe a
realidade, se isso se valida ou não por meio de um discurso científico. No Ocidente, e é
só com o pensamento ocidental que eu trabalho, procura-se sempre aumentar a
autoridade de argumentos e posições por meio de sua validação na forma de
conhecimento científico.
Passo, então, ao segundo tema que gostaria de discutir com vocês. Imaginem
vocês, e aí eu vou tentar tornar a coisa mais clara acerca de como acontece o diálogo
entre duas agendas de investigação: a agenda construtivista e a agenda racionalista no
campo das RI. Imaginem vocês que nós tivéssemos dois extra-terrestres, um marciano
economista e um marciano antropólogo, vindo à Terra para estudar determinadas
relações humanas. Imaginem que eles nos vissem aqui, que, de início, viesse o nosso
marciano economista, olhasse para o que está acontecendo nessa sala e dissesse: “bom,
há uma pessoa falando, há outras pessoas ouvindo; mais adiante, essas pessoas que
estão ouvindo vão falar, a pessoa que está falando vai calar e ouvi-las, e assim por
diante”. Nosso marciano economista vai tomar nota disso e vai passar a outras
observações; digamos que vá a uma igreja aqui ao lado e, lá, observe um padre falando e
um conjunto de pessoas ouvindo. Em seguida, aquelas pessoas que estão ouvindo vão
falar e o padre vai calar-se; e vice-versa. Esse marciano economista vai tomar nota disso.
Nosso marciano economista irá então a uma Corte, a um tribunal, onde verá, também,
algumas pessoas sentadas, ouvindo, e outras pessoas falando, sentadas ou em pé. Ele irá
anotar esses detalhes: se uns estão em pé, se outros estão sentados, como esses papéis se
alternam e procurar imaginar as causas da alteração desses papéis. Ele vai construir um
modelo que explique o comportamento dos seus objetos de estudo, e poderá afirmar,
por exemplo: “esses indivíduos não agem aleatoriamente. Eu assumo que existe alguma
racionalidade no comportamento desses seres humanos, por estranhos que pareçam, e
que essa racionalidade maximiza os seus objetivos, e assim por diante”. Ele vai construir
um modelo sobre o que está acontecendo aqui, sobre o que está acontecendo naquela
igreja, sobre o que está acontecendo naquele tribunal, e assim por diante.
E ele pode chegar à conclusão, como resultado da aplicação de seu modelo, de
que uma única experiência social está sendo vivenciada pelos seres humanos que
observou. Vocês poderão olhar para mim e dizer: “bom, não faz muito sentido”. Nosso
marciano economista dirá, em defesa de seu método: ”se eu fizer teste suficientes do
meu modelo, eu vou conseguir, empiricamente, demonstrar é possível chegar, em
algum momento, à conclusão de que o que acontece numa sala como estas é diferente do

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que acontece numa igreja, e daquilo que acontece num tribunal, e assim por diante”.
Mas, afinal, qual é o método que ele vai utilizar?
Em primeiro lugar, irá assumir a racionalidade daqueles indivíduos, ou seja,
todos os indivíduos são capazes de identificar seus objetivos, hierarquizar seus
objetivos, fazer cálculos de custo e benefício em função destes objetivos, atribuir
preferências aos outros e, só então, ao interagir, maximizar o seu benefício ou minimizar
o seu custo; ou seja, maximizar a sua utilidade. Não é isso? Seja maximizando
benefícios, seja minimizando custos, ou, dependendo da situação, as duas coisas
simultaneamente, supõe-se que o analista irá atribuir preferências aos indivíduos cujo
comportamento quer explicar, preferências que são exógenas a este indivíduo. Se ele
quiser saber quais são as preferências daqueles indivíduos, terá que fazer uma consulta,
terá que perguntar a essas pessoas quais são as suas preferências. É assim que um bom
economista vai agir, ele pode até supor qual é a sua estrutura de preferências dos
indivíduos cujo comportamento quer analisar, mas sabe que, ao atribuir-lhes
preferências, pode equivocar-se na análise, na medida em que essas preferências não
sejam exatamente as destes indivíduos. O que importa, para ele é que, uma vez definida
a estrutura de preferências, há transitividade entre elas e o indivíduo prefere a primeira
à segunda, a segunda à terceira, e assim por diante, em função de sua percepção dos
custos e benefícios associados à consecução de cada objetivo. Assim, assume-se que o
ator racional maximiza sua utilidade. Madre Tereza de Calcutá, por exemplo, tinha lá a
sua estrutura de preferências e era tão “egoísta”, no sentido utilitário do termo, quanto
os gestores dos fundos de derivativos no mercado financeiro, se nós aceitarmos esse
discurso do nosso marciano economista – e também o dos economistas terráqueos...
É óbvio que há grande utilidade, assim como limitações, nesse método de
produção de conhecimento. O que importa, para mim, é começar a instigá-los a refletir
sobre este método de produção de conhecimento. O que faria o nosso marciano
economista? Ele faria o máximo possível de observações e tentaria validar, dessa
maneira, o seu modelo acerca de porque os seres humanos, estranhos como são, se
comportam da maneira como ele observou.
Nosso marciano antropólogo, por outro lado, adotaria um método diferente de
investigação. Ele procuraria misturar-se aos indivíduos dessas comunidades, ele
procuraria desempenhar diferentes papéis sociais, ele procuraria interpretar
comportamentos, ele procuraria compreender como essas pessoas apreendem a
realidade em que elas estão inseridas e por que essas pessoas se comportam como se
comportam. Há estruturas normativas, há estruturas institucionais, há estruturas de
valores, que, juntas, produzem identidades específicas, e essas identidades específicas
condicionam o modo como as pessoas se comportam em sociedade, de uma maneira a
priori, ou seja, nem todos os indivíduos agem como agem porque estão maximizando a
sua utilidade.
Um outro exemplo, recorrendo à literatura, que sempre me ocorre, é a história do
nosso velho adágio popular. Diz-se que “a ocasião faz o ladrão”. A melhor resposta que
eu já ouvi a isso foi a do Machado de Assis, que afirmava que “a ocasião faz o furto, o
ladrão nasce feito”. Afinal, qualquer indivíduo, sabendo o que é certo e sabendo o que é

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errado, pode ter todas as ocasiões do mundo de furtar e não furtar, porque foi formado
dessa maneira, porque a sua identidade, porque os seus valores, porque a sua
constituição, porque o modo como ele se vê naquela sociedade não lhe permite fazer
isso, ainda que saiba que poderia maximizar sua utilidade, do ponto de vista material,
agindo de uma maneira distinta.
Em última instância, o que os construtivistas vão procurar colocar é a necessidade
de se ter em conta, também, esse método de produção de conhecimento no campo das
Relações Internacionais. Afinal, o que eles vão nos dizer? Dirão que não apenas as
estruturas de poder no sistema internacional importam, mas também desempenham
papel relevante as identidades dos países que detêm esses recursos de poder, o modo
como eles percebem a si mesmos e uns aos outros; isso também vai condicionar o seu
comportamento. Se eu quiser ter um bom conjunto de interpretações acerca da realidade
internacional, ou seja, algo que me responda porque os Estados, porque os demais
agentes no contexto internacional agem como agem, não basta apenas adotar o método
racionalista de construção de modelos, mas eu preciso entender como as estruturas
normativas, como as estruturas de valores, como as estruturas institucionais, no campo
das Relações Internacionais, constroem identidades, as quais, por sua vez, condicionam
o comportamento dos agentes.
Os americanos podem ter medo da Coréia do Norte produzir uma bomba
nuclear, por menos que isso pareça provável, dadas as condições do país; no entanto,
eles passam segredos nucleares para a Grã-Bretanha, eles passam segredos nucleares
para o Canadá, sem medo de que esses segredos nucleares sejam usados, no futuro,
contra eles. Se nós aceitássemos o argumento realista tradicional, isso não poderia
acontecer, pois o amigo de hoje pode ser o inimigo de amanhã. No entanto, alguma
coisa faz com que a relação que se criou entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, entre
Estados Unidos e Canadá simplesmente coloque fora do horizonte de percepção dos
indivíduos que tomam decisões em nome desses Estados, a expectativa de uma futura
guerra de um país contra o outro. Porque isso? Para isso não se encontra explicação na
dimensão material de distribuição de recursos de poder no contexto internacional.
A única explicação que eu posso encontrar para isso repousa na dimensão
sociológica da construção de identidades, não apenas entre burocracias, mas entre
sociedades, que, em última instância, se refletem no Estado, tanto nas burocracias do
Executivo, como as do Legislativo, e assim por diante. Isso significa o quê?
Ao longo da tese, o que eu procuro fazer é colocar essas duas agendas de
investigação, esses conjuntos de explicações e de interpretações da realidade.
Explicações no sentido da agenda racionalista, isto é, discursos que partirão do
pressuposto de que, não importa o nível de análise em que eu trabalho, o meu ator é
racional. Isso significa o quê? Eu posso atribuir racionalidade ao Estado nacional, por
mais que eu saiba que ele é feito de um conjunto de organizações, organizações essas
que possuem suas próprias identidades, suas próprias rotinas, que maximizam sua
própria utilidade. Alguns dirão: “a maximização da sua utilidade – os realistas dirão –
implica a preocupação com segurança em primeiro lugar”. Neste caso, são os ganhos
relativos, portanto, que importam. Outros dirão: “a maximização da utilidade desse ator

12
não pressupõe a preocupação com a segurança em primeiro lugar”; aí você tem todo o
argumento neoliberal, dizendo: “há situações em que os ganhos absolutos são mais
relevantes”. Por quê? Porque não existe a percepção de uma ameaça contra a sua
sobrevivência. Nesse sentido eu trabalho com o modelo do ator racional, como Allisson
definiu há cerca de três décadas.
Mas o que eu estou dizendo? Eu estou trabalhando neste nível de análise, o nível
do sistema internacional, e, via de regra, esses autores trabalham com o conceito de
sistema, por oposição aos construtivistas, que trabalham com o conceito de sociedade
internacional. Uns estão dizendo: “são sistemas de forças; é a interação destes agentes
que importa e eu posso atribuir-lhes racionalidade; eu posso observar quais são as
posições relativas e, ao observa-las, inferir quais são os prováveis comportamentos
desses indivíduos; se eu errar na minha previsão, o meu modelo pode estar errado; isso
significa que eu parti das premissas erradas, então eu tenho que rever as minhas
premissas”. Dessa maneira é possível construir conhecimento sobre a realidade
internacional, um conhecimento útil, um conhecimento aplicado, um conhecimento que
nos ajuda a lidar melhor uns com os outros, mas um conhecimento apenas limitado das
relações internacionais contemporâneas.
Posso descer para o segundo nível de análise, trabalhar no plano das
organizações, tanto organizações públicas, como organizações privadas, ou semi-
públicas, se vocês quiserem também. Neste caso, atribuo racionalidade aos ministérios,
atribuo racionalidade às burocracias das organizações internacionais, atribuo
racionalidade às empresas e procuro ver como elas tentam avançar seus interesses nos
Estados, na esfera internacional, definindo regras, coisas dessa natureza. Mas eu ainda
trabalho, aqui, com esse modelo do ator racional. Eu estou dizendo o quê? Cada um
desses meus objetos de estudo pode ser considerado como um agente racional e, como
tal, ele identifica suas preferências, hierarquiza-as, analisa as alternativas de ação,
atribui-lhes pesos em função de seus objetivos, etc., etc.
Desço mais um nível de análise, se vocês quiserem, e trabalho com os tomadores
de decisão como agentes racionais. Cada um de nós, se olhar para a sua própria vida,
verá que, na maioria das vezes, ou pelo menos a maioria das vezes mais importantes,
provavelmente não se comportou como um ator racional. A cada decisão que tomamos,
nós não identificamos os nossos principais objetivos, nós não os hierarquizamos, nós
não fazemos cálculos de custos e benefícios em função de todas as alternativas de ação
possíveis... Entretanto, os economistas, assim como os cientistas políticos que trabalham
com a escola da ação racional, conseguem construir modelos que nos ajudam a explicar,
de uma maneira bastante satisfatória, porque as coisas ocorrem como ocorrem. Fazem-
no ao assumir que, na maioria das vezes, a maioria das pessoas age como se fosse um
ator racional, segundo este modelo. Novamente, o que eu estou fazendo? Descendo um
nível de análise e aumentando a complexidade das explicações que eu produzo acerca
da realidade internacional.
Há quem trabalhe até com um meio termo, isso está começando a voltar agora
com o governo de George W. Bush, não é mesmo? No governo de George Bush,
prevalecia a opinião de que um grupo de pessoas que trabalhava de uma maneira coesa;

13
ou seja, não importava muito o cargo daquelas pessoas, importava que este era o núcleo
de tomada de decisões do governo. A administração Kennedy também marcou-se por
isso. Há toda uma parte da literatura que trabalha com essa noção de group think, ou
seja, grupos pequenos em que se constrói uma certa solidariedade entre seus
integrantes, de modo a fazer prevalecer a opinião daquele grupo. Às vezes, os
indivíduos que os integram estão vendo claramente que a decisão tomada é equivocada,
mas, porque elas querem se manter como parte daquele pequeno grupo, elas acedem,
elas concordam com a opinião da maioria. Então, há quem coloque, aí, um meio termo
entre o nível do indivíduo e o nível das organizações ao trabalhar com esses grupos, se
vocês quiserem, interministeriais, interburocráticos; às vezes são pessoas que não têm
nada que ver com a própria burocracia do Estado. Quem aqui se lembra do governo
Itamar Franco sabe que havia um senhor chamado José de Castro, Presidente da Telerj,
aqui no Rio de Janeiro, que participava de todas as principais decisões do governo
federal.
Quem quisesse estudar o processo decisório da burocracia brasileira com base nos
organogramas teria muita dificuldade de entender porque o presidente de uma estatal,
integrante do então conhecido “grupo do pão de queijo” possuía tanta influência junto
ao governo federal. Ou seja, baseando-me apenas nas estruturas institucionais não vou
conseguir explicar o processo decisório, tanto de política externa como de política
doméstica. Essencialmente, uma vez mais, assume-se que esse grupo responsável pelas
decisões funciona como se fosse um agente racional; suas decisões são supostamente
mais ou menos coerentes com sua visão de mundo, ainda que seja uma visão de mundo
deturpada, mas pressupõe-se uma certa coerência.
Por outro lado, saindo da agenda racionalista, há construtivistas que vão procurar
chamar mais atenção para a extensão em que as estruturas normativas definem a
capacidade de atuação, de intervenção dos indivíduos; ou seja, esses analistas assumem,
de antemão, que não há relações de causalidade direta, ou seja, as estruturas não causam
os agentes dessa maneira, ou os agentes não constroem estruturas daquela maneira, mas
estruturas e agentes constroem-se mutuamente e esta construção de identidades é
influenciada por percepções da realidade. Dessa maneira, define-se um conjunto de
regras de uma sociedade internacional, conjunto esse que vai condicionar a evolução do
comportamento desses agentes, inclusive para transformar essas estruturas
institucionais e normativas.
Nesse caso, o exercício intelectual empreendido é melhor exemplificado pelo
nosso marciano antropólogo, isto é, o analista procura tomar o lugar de cada um
daqueles indivíduos e entender como essas construções de valores, essas construções de
normas, como esses indivíduos internalizam esses tipos de comportamento e passam a
reproduzir, em alguma medida, esses tipos de comportamento; por outra parte, e em
contraste, pode ser que, à medida em que eles começam a se desviar desse tipo de
comportamento, permitam a consecução de mudanças, ainda que marginais, de início,
mas ainda mudanças, nessas estruturas normativas; mudanças essas que podem levar
também a transformações institucionais e assim por diante. Portanto, tem-se, aqui, uma
preocupação muito maior com o uso de regras, não apenas aquelas regras positivadas,

14
não apenas aquelas regras consagradas em tratados internacionais, mas aquilo que, por
consenso da comunidade dos analistas das relações internacionais, se decidiu chamar de
regimes internacionais.
A utilidade de um conceito tal como regime repousa justamente no fato de que,
por um lado, ele se refere às expectativas dos agentes. Quem já leu, aqui, alguma coisa
sobre regimes internacionais, sabe que nós estamos falando de conjuntos de normas,
regras, procedimentos de processo decisório em torno dos quais convergem as
expectativas dos agentes em uma área específica das relações internacionais. Isso quer
dizer o quê? Eu não estou preocupado apenas com a existência, positiva ou apenas
enunciada, dessas normas; estou preocupado com a medida em que o comportamento
dos agentes converge para esse parâmetro de comportamento. Quando os agentes
internacionais, em uma determinada área, começam a se comportar de uma maneira
distinta daquela que preconiza o regime internacional nessa área, então aquele regime
internacional perde eficácia e começa a se esvaziar. É esse, (vai aí um parênteses) o
medo que muitos analistas têm em relação à política externa do atual governo Bush. O
que se vê é uma modificação do comportamento dos Estados Unidos no que diz respeito
a tomar em consideração as instituições e as normas internacionais que, até então,
vinham sendo fortalecidas pelo governo americano.
O que isso significa? Durante um período muito longo, observou-se uma
tentativa de projeção de interesses dos Estados Unidos no cenário internacional por
meio da construção de normas e instituições. A referência aos Estados Unidos é
freqüente porque é a que se encontra na literatura – novamente, lembrando o que eu
disse aos senhores um pouco antes, trata-se de uma literatura produzida para pensar a
inserção internacional dos Estados unidos, para pensar a inserção internacional da
Europa e assim por diante. Nós, até hoje, fomos basicamente consumidores dessa
literatura e utilizamos alguns desses conceitos para conferir sentido a essa realidade
internacional complexa. Felizmente, alguns de nós começam a conhecer suficientemente
esses sistemas conceituais a ponto de discordar de algumas das suas afirmações.
Mas o que eu ia colocando para os senhores, então, era que o conceito de regimes
internacionais encerra essa percepção de que as expectativas de comportamento dos
agentes confere relevância a essas estruturas normativas, concebidas num sentido mais
amplo, não apenas as normas escritas, mas também as axiomáticas. Isso é parte da
capacidade que essa aproximação conceitual nos dá de enxergar não apenas a existência
ou não de parâmetros, mas a vigência e as condições para que se perpetuem tais
parâmetros em algumas áreas específicas do campo das RI. Por aí, a maior parte da
discussão teórica de regimes pôde evoluir, pôde consolidar-se a partir de um conceito
fluido, um conceito frágil, mas um conceito que permitiu uma série de investigações que
aprofundaram empiricamente a validade deste tipo de análise. Por isso, as análises dos
regimes internacionais situam-se, eu diria, na fronteira entre racionalistas e
construtivistas, ou seja, não se nega a racionalidade dos agentes, mas o principal, do
ponto de vista dessa análise de regimes (e é isso que a torna ainda tão relevante nos dias
que correm) não é se os agentes agem de uma maneira racional ou não, mas em que
medida esses regimes internacionais constituem parâmetros que nos conferem alguma

15
capacidade de prever o comportamento dos agentes internacionais em determinadas
áreas.
Como ele está moldado para trabalhar com áreas específicas, é possível isolar
estas áreas e investigar empiricamente o comportamento dos agentes nessas áreas
específicas, áreas tais como Direitos Humanos, Meio-Ambiente, Finanças
Internacionais... São áreas que ganharam muito, inclusive do ponto de vista de diálogo
entre analistas das relações internacionais e economistas, ambientalistas, sociólogos,
antropólogos, etc., com base nessa discussão que repousa, que parte dessa visão de
regimes internacionais.
Em resumo, então, do que eu tinha para colocar para vocês, o principal
argumento da tese dizia respeito a esse diálogo entre construtivistas e racionalistas.
Então, o que eu faço em meu trabalho? Eu tomo alguns temas centrais, como
cooperação e conflito no campo das RI, e demonstro como os sistemas conceituais
racionalistas constroem, por assim dizer, o conceito e as relações de cooperação e de
conflito no plano das RI. Por outro lado, em que medida, por uma abordagem
construtivista, também esses problemas de cooperação e de conflito são analisados no
campo da RI. Pouco a pouco, vou sublinhando o diálogo entre eles.
Parte desse diálogo se produz de uma maneira usual neste campo de estudos, ou
seja, reproduzindo os principais argumentos de cada autor, as nuanças desses
argumentos, fazendo uma avaliação daquilo que se sustenta, daquilo que não se
sustenta. Parte dessa discussão acontece, e essa é uma das novidades da tese (mas
aquela que não vai sair em livro), por meio da formalização desses discursos, via recurso
a conceitos usuais na Lingüística. Nessa parte, eu deixo de lado toda a “carne” que
existe no nosso discurso, no nosso sistema conceitual, e analiso apenas as estruturas
sintáticas, ou seja, a parte formal, lógica, do discurso, e também a parte semântica desses
discursos, ou seja, a correspondência entre cada termo utilizado no discurso e os
elementos da realidade a que se refere esse termo. Também trato da dimensão
pragmática desse diálogo, que é a dimensão de contexto em que ocorre esse debate, e aí
é uma dimensão de contexto colocado, por assim dizer, no âmbito, da própria
comunidade científica dos analistas das relações internacionais. Essa é uma discussão
um pouco menos interessante, imagino, para o público presente, mas que serve a
referendar a análise formal que é feita antes.
Na verdade, ocorreu o contrário. Procurei convencer o leitor da tese pelo modo
tradicional de argumentação, mas a minha análise do diálogo entre racionalistas e
construtivistas, que lhes ressalta as diferenças metodológicas e epistemológicas, resultou
da aplicação de um discurso lingüístico às teorias das Relações Internacionais. Como
resultado, produzi um debate em que temas como anarquia, equilíbrio de poder, etc.,
quer dizer, conceitos como estes, têm a sua circunscrição, ou seja, a sua carga semântica
melhor explicitada não por meio da insistência em um tipo de afirmação sobre a
realidade, mas por meio do diálogo entre construtivistas e racionalistas.
A contribuição principal da tese vai além de trazer isso ao debate acadêmico
brasileiro, porque faz uma leitura da evolução desse debate teórico pelo prisma do
diálogo, e não apenas pela exposição de uma ou mais entre as agendas de investigação.

16
Esse diálogo se mostra mais antigo do que se pode imaginar. Os que acompanham as
discussões sobre teorias das relações internacionais conhecem o que se diz sobre o
primeiro grande debate, o segundo grande debate, etc. O primeiro seria entre realistas e
idealistas; o segundo entre neorealistas e neoliberais. Agora teria lugar o debate entre
construtivistas e racionalistas. O que eu consigo demonstrar, com esse diálogo é que, na
verdade, esse tipo de preocupação se faz presente já nos textos fundadores de análise
das relações internacionais.
No texto, eu procuro recuar ao momento de criação não ao campo de estudos de
RI, mas principalmente da Ciência Política, iniciando a discussão com o período da
Renascença, quando ganha vulto a proposta de análise cartesiana da realidade, que viria
a ser o fundamento da agenda racionalista, ou seja, de toda a argumentação baseada na
lógica dedutiva, em relações do tipo “Se ... Então”. Explicações exclusivamente baseadas
na pressuposição de que os agentes cujo comportamento eu quero explicar são racionais,
isto é, comportam-se de acordo com aquelas características que nós já vimos. Eu
demonstro que houve uma momento em que, ainda no século XVI, deu-se uma reação
humanista a esse tipo de debate. Gente como Erasmo, mais adiante Montaigne,
produziu, também de uma forma sistemática, também de modo a atender aos nossos
critérios de validação do conhecimento científico, (consistência lógica interna,
consistência lógica externa e etc.) explicações bastante satisfatórias acerca da realidade
internacional.
Assim, autores tais como Grocius – na verdade Vattel teria sido um precursor
mais relevante do que Grocius – e Kant, cuja obra aponta mais para essa visão, ou pelo
menos abre espaço maior para o diálogo, podem ser vistos como precursores dessa
escola construtivista. O que se viu no pós-guerra, pós-II Guerra Mundial, no campo das
RI, foi, praticamente, uma tentativa de se tirar da agenda de discussão argumentações
que não obedecessem ao critério de validação estreitamente definido como racionalista.
Houve sempre resistências, mas o que se vê na leitura dos principais periódicos é que a
prevalência de artigos que adotavam a visão racionalista sempre se mostrou bastante
relevante nesse período. Do início da década de 90 para cá, isso começa a se transformar,
sobretudo, segundo alguns autores, pela falência da escola racionalista em explicar
mudanças estruturais, a exemplo do fim da Guerra Fria e coisas dessa natureza.
O que eu procuro fazer, ao analisar o período em que surgiu o Estado nacional, é
demonstrar a existência dessas diferentes visões de mundo desde o inicio da reflexão
sistemática acerca do que hoje se entende por relações internacionais. Este é, na verdade,
um outro tema polêmico na tese, visto que há quem defina Relações Internacionais como
aquele campo de estudos que trata o que é interno vis-a-vis o que é externo. É o que está
dentro do Estado vis-a-vis o que está fora do Estado. O que os construtivistas nos
ensinam é que não existe nada escrito em pedra nessa direção, ou seja, conceitos como
soberania nacional são construídos intelectualmente por pessoas que apreendiam a
realidade segundo uma lógica que lhes permitia enxergar, e que lhes interessava
construir, um sistema de interação entre Estados. Tratava-se de conceber um sistema em
que houvesse essa separação, mas essa separação é construída socialmente, ela se
constrói, de inicio, no plano intelectual, no plano discursivo, e é referendada no plano

17
institucional, no plano legal, por meio de acordos; principalmente, ela é reproduzida
socialmente pelos agentes relevantes nesse campo, os Estados, que só virão a reconhecer
outros Estados na medida em que a sua própria soberania também seja reconhecida.
O que se observa agora, ou, pelo menos, o que se observava até o governo de
George W. Bush, era uma capacidade de estruturas internacionais definirem ou
redefinirem ou obrigarem os Estados a redefinirem aquilo que eles entendem por
soberania nacional, pelo menos em algumas áreas específicas. Isso significa o quê? A
partir do momento em que os Estados adotam, aceitam participar de estruturas
internacionais, eles cedem a sua soberania, não é isso? Se eles aceitam um conjunto de
normas internacionais, eles estão dizendo que: “daqui para frente eu abro mão da minha
capacidade de gerir plenamente essa área específica da minha sociedade”. Isso começa
lá atrás, com temas sem qualquer carga política, como padrões de pesos e medidas. Se
eu tenho um Estado que diz: “adoto um padrão internacional de pesos e medidas”, eu
tenho um Estado que está dizendo, com outras palavras, “eu abro mão da minha
capacidade de regular como serão definidas as relações de pesos e medidas no meu
território para a minha população”. Há ganhos óbvios com isso. Há, nisso, perdas
negligenciáveis. É por esta razão que o Estado toma essa decisão. Quando eu começo a
falar em termos de uma moeda única, por outro lado, os ganhos já não são tão óbvios
para alguns; e os custos muito elevados, para outros. Então, começa a ficar mais difícil
levar adiante acordos deste tipo.
Em outras palavras, o que eu quero salientar? Esse diálogo termina por
evidenciar que parte daquilo que nós assumimos como um dado da realidade
internacional, a exemplo do conceito de anarquia, ou seja, a inexistência de uma
autoridade supranacional, isso, em si, é uma construção social, isso é fruto de uma
percepção da realidade, de uma construção intelectual da realidade, positivada por meio
de comportamentos de agentes relevantes no campo das RI e reproduzida socialmente.
Em outras palavras, com o passar do tempo, dependendo do modo como esses agentes
vão se comportar em relação a esse “regime internacional”, esse regime – e essa
“natureza”, tida como um dado da sociedade internacional – pode se transformar. Esse
vai ser o argumento dos construtivistas, enquanto os racionalistas encontram uma
dificuldade muito grande para explicar esse tipo de transformação da realidade
internacional. E, no entanto, esse diálogo sempre esteve, de alguma maneira, presente
na literatura; era possível levá-lo adiante, o que nem sempre ocorre.
Três últimos pontos, então, para ressaltar as conclusões. A construção de
explicações da realidade, pelo método racionalista, e a de interpretações ou
entendimentos da realidade, pelo método construtivista, não são exclusivas; tais
interpretações são complementares. Uma vez que nós estamos falando de uma atividade
humana, de uma atividade social, é muito comum encontrar analistas dizendo que sua
visão de mundo é a verdade, que aquilo que eles propõem é a forma correta de ver a
realidade, que o seu discurso científico é o único discurso científico válido. O que se
observa é, entretanto, e este é o meu segundo ponto final, uma complementaridade
dessas interpretações, na medida em que prevalece a consistência lógica externa desses
discursos. Em outras palavras, o que eu estou querendo dizer para vocês? Quando se

18
analisa a evolução dos debates teóricos no campo de estudo das RI, observa-se a
persistência de um pluralismo teórico. Por mais que, em determinados momentos, se
tentado impor um determinado método de produção de conhecimento, sempre foi
possível produzir conhecimento, também validado como científico pela comunidade, a
partir de uma perspectiva diferente, neste campo de estudo.
Assim, jamais se observou, no campo das RI, a emergência daquilo que, nas
ciências duras, se diz um paradigma, ou seja, um sistema conceitual consensualmente
aceito por todos os analistas, pelo conjunto dos integrantes daquela comunidade
científica. O que nós temos é uma pluralidade de – eu prefiro chamar de – discursos
teóricos, ou sistemas conceituais; alguns vão dizer uma pluralidade de paradigmas ou
uma pluralidade de escolas. Isso quer dizer o que? A nossa realidade, esse continuum de
fenômenos a que nós nos referimos, é complexa o suficiente para aceitar diferentes
visões dessa realidade, visões que, não obstante, obedecem aos critérios de validação do
conhecimento científico.
Não há, pois, um único paradigma, e dificilmente se imagina que será possível
construir um único paradigma de análise das relações internacionais. A precisão
explicativa, a precisão interpretativa desses nossos discursos teóricos é certamente
menor do que a precisão interpretativa dos discursos teóricos da física, da química, da
matemática, e assim por diante, porque, na Física, na Química e na Matemática, o objeto
de estudo dos físicos, químicos e matemáticos não se constrói socialmente, não muda de
idéia, não pensa, então, quando ele formula a equação dele, aquilo tem que se observar
de alguma maneira: ou aquilo se observa da maneira que foi prevista ou as premissas
utilizadas para construir a explicação estavam erradas. Cabe ao analista rever as suas
premissas, se preciso, exaustivamente, até que chegue a uma explicação satisfatória da
realidade observada.
No campo das ciências sociais, de modo geral, isso não se dá. Pode-se produzir
um discurso científico que seja rigoroso, isto é, que atenda aos critérios de validação
aceitos na comunidade, mas cuja capacidade interpretativa da realidade seja menor do
que a precisão da capacidade interpretativa de discursos científicos produzidos nas
ciências naturais. E essa é uma diferença inerente ao nosso objeto de estudo, a sua
ontologia, aos fenômenos da realidade a que nossos discursos se referem. O campo de
estudo das RI é mais dinâmico, é mais variável, mais sujeito às interpretações humanas e
coisas desta natureza. Mas isso não é exclusivo a este campo; é algo também vivido
pelos antropólogos, pelos cientistas políticos, pelos sociólogos, pelos economistas e
assim por diante. Eis porque, tantas e tão repetidas vezes, os cientistas políticos,
economistas e sociólogos são criticados, já que seus modelos não prevêem com ideal
precisão o que vai acontecer. Tais modelos não podem prever o que virá a acontecer em
parte porque o seu objeto de estudo é algo que transforma continuamente, por
influência de muitos fatores, inclusive a própria produção de conhecimento a seu
respeito.
Por conseguinte, é bastante mais difícil produzir conhecimento, ou, pelo menos,
prever o comportamento desses objetos de estudo, desses agentes, assim como é difícil
prever a evolução de fenômenos tais como as enchentes, as tempestades e outros

19
fenômenos da natureza. Essa é a razão pela qual, concluindo, observa-se uma
complementaridade dos diferentes sistemas conceituais.
A inovação que esta tese traz, no fundo, é a de, em primeiro lugar, tratar como
discursos teóricos as teorias das relações internacionais, ressaltando a dimensão de
humildade necessária à produção do conhecimento científico. Com efeito, aquilo que
nós podemos realmente afirmar com convicção acerca da realidade é pouco, mas este
“pouco” se sustenta, porque ele é produzido de uma maneira rigorosa, embora não tão
precisa como nós gostaríamos. Por meio do diálogo, esta é a segunda inovação, não
apenas por meio de um diálogo regular, mas por meio de um diálogo em um nível de
abstração mais elevado, é possível demonstrar a complementaridade desses sistemas
conceituais. Essencialmente, esta é a mensagem, do começo ao fim, que eu procuro
transmitir. Trata-se de convidar o leitor a criticar, ou seja, a enxergar, a reconstruir a
realidade internacional a partir do prisma de cada um dos sistemas conceituais
debatidos e analisados na tese. Ao reconstruir essa realidade internacional a partir
desses sistemas conceituais é possível reconstruir, no plano intelectual, diferentes
realidades internacionais. Isso abre espaço para recuperar uma dimensão inicial da
Ciência Política, que terminou sendo negligenciada pela escola racionalista, a saber, uma
dimensão normativa da produção de conhecimento científico na área de teoria política e
na área de política internacional.
Originalmente, os cientistas políticos preocupavam-se não apenas com o mundo
como ele é, mas com o mundo como ele deveria ser. E o mundo “como ele deve ser”
pode ser melhor construído se nós tivermos consciência da influência que essas
estruturas institucionais e normativas têm sobre a produção de identidades e sobre a
reprodução de comportamentos que transformam a realidade internacional. Tudo isso
se dá, em alguma medida, por meio da participação da produção científica de
conhecimento sobre esse campo de estudos. E isso é uma responsabilidade da academia
que também tem sido negligenciada em algumas partes do mundo. Nesse trabalho,
procuro recolocar essa dimensão ética da produção do conhecimento nas ciências
sociais. Pelo menos, ressalto a necessidade de se conferir maior atenção à dimensão
normativa, implícita ou explícita, em cada um desses discursos, mesmo quando, a
exemplo do que fazem os racionalistas, se afirma que tal dimensão normativa inexiste
no discurso científico. Em contraste, os construtivistas tenderão a dizer que, “ao afirmar
isso, você já está adotando um determinado tipo de comportamento”. Ao se
confrontarem esses dois discursos, há que se trazer à tona o modo como esse fenômeno
se processa, não apenas no plano do debate intelectual, mas também no plano da
interação de agentes no campo das Relações Internacionais propriamente ditas.

20
Debate

Pergunta:
Eu queria colocar alguns pontos que eu colhi a esmo e eu pediria que você
escolhesse um deles para refletir, porque realmente a sua tese é de um pluralismo
teórico e metateórico; você abarca várias correntes de pensamento na disciplina e ao
mesmo tempo você trabalha com uma série de questões e teses bastante controvertidas.
A primeira coisa é que eu achei bastante interessante, quase uma obviedade, em
algum aspecto, é a idéia da complementaridade do terceiro debate teórico de RI, da
síntese que o racionalismo e o construtivismo estabelecem, mas que, na verdade, essa
síntese – tem até um discurso do próprio John Rawls no Direito dos Povos, que ele fala
que a tendência das relações internacionais contemporâneas é operar uma síntese entre
o racional e o razoável, resgatando o conceito original de razão, no Kant mesmo, que é
impossível se estabelecer, se pensar relações internacionais através de um instrumental
racionalista, quero dizer, pensar a razão de maneira instrumental nas RI, que é o
pressuposto básico dos realistas. Isto está sendo quebrado agora e a grande contribuição
do construtivismo, você colocou isso, então eu acho que foi bastante interessante situar o
terceiro debate nessa idéia de que há um espaço muito maior para a ética, um espaço
muito maior para princípios, para valores, para um agir racional que não seja
instrumental, mas um agir racional com base em princípios e valores, em regras, essa
questão de regimes que você falou.
Apenas mencionando, achei interessante, recuperando alguns diálogos, alguns
pontos que você colocou: o primeiro é a questão da linguagem, você está trabalhando
com um ferramental de análise de discursos, por exemplo. Eu queria só saber se você,
por acaso, pensou em aplicar a teoria da ação comunicativa e ação dialógica
habermasiana às relações entre os Estados. Nós sabemos que a teoria da ação
comunicativa do Habermas estabelece determinadas condições básicas de validade do
discurso, entre agentes racionais, agentes que estão situados em categorias, digamos, de
poder eqüidistante, onde não haja a idéia da instrumentalidade do discurso e se isso,
nas RI, é uma tendência que você possa verificar, metodológica até, se os Estados podem
operar de acordo com essa ação dialógica habermasiana.
A segunda questão: eu fiquei na dúvida se a sua tese tem, no fundo, um
instrumental hermenêutico de análise ou um instrumental analítico, porque quando
você fala, por exemplo, em filosofia da linguagem, o seu foco é claramente analítico, e eu
estou pensando até no livro clássico do John Hospers, Introdução à Análise Filosófica;
por outro lado, como você fala que existe uma pluralidade de discursos – você falou do
discurso religioso, do discurso estético, comunidades de validades da argumentação – se
essa pluralidade, que pressupõe também, por sua vez, uma ação dialógica, ela não situa
o seu argumento mais no nível hermenêutico; então se é um nível analítico ou um nível
hermenêutico. O Habermas fez muito bem. Aliás, o livro Introdução à Filosofia das
Ciências Sociais consegue operar a síntese entre esses instrumentais de fundamentação
filosófica do pensamento. Dá a impressão de que é analítico, mas eu não sei se você
trabalha mais com a linha hermenêutica também.

21
E uma questão mais substantiva agora, descendo do nível metateórico para o
nível teórico, eu achei bastante interessante quando você falou da questão do discurso
científico em RI e os prejuízos que essa importação acrítica de determinadas categorias
analíticas do pensamento em RI dos Estados Unidos trouxeram para a própria América
Latina. E aí eu me refiro ao conceito do realismo periférico do Carlos Escudé, ele vai
direto na veia nesse ponto, dizendo que a importação acrítica do Realismo gerou
determinados comportamentos e lideranças políticas na Argentina, por exemplo, que
redundaram na Guerra das Malvinas. E essa idéia de se consumir uma literatura norte-
americana em RI, se isso abre espaço, por sua vez – aí tem uma discussão de relativismo
epistemológico nas RI – se nós podemos trabalhar com o critério de validade universal
com as RI e aí isso equivale a tentar fazer das RI não uma ciência, porque eu não sei se
tem o estatuto de ciência ainda, mas um discurso, como você diz, que tem alguma
pretensão de universalidade – o Realismo tentou fazer isso, mas não conseguiu – ou se
nós temos que trabalhar sempre com essa perspectiva relativista que descamba também
em um relativismo cultural aplicado ao nível da análise teórica.

Prof. Antonio Jorge:


Deixe-me começar pelo mais abstrato. Eu diria que sim, na verdade eu adoto a
linha habermasiana, via Austin e Searle, a teoria dos atos da fala, o modo como os atos
da fala, como nós podemos construir problemas, construir fenômenos, construir
identidades por meio de discursos. Há determinadas relações humanas que se definem,
em parte, pelas regras do jogo em que as pessoas estão inseridas; na verdade, eu
recupero Wittgenstein. Existe essa interpretação de jogos de linguagem e as relações
humanas são reproduzidas dentro de contextos de jogos de linguagem, mas os jogos de
linguagem que prevalecem, por exemplo, no nosso contexto, são diferentes dos jogos de
linguagem que prevalecem – embora sejam seres humanos realizando aparentemente o
mesmo tipo de interação – em um tribunal ou em uma igreja.
Nessa direção, o que eu quero salientar? Você pergunta se a aplicação desse tipo
de aproximação dialógica no campo das RI seria uma tendência. Eu diria que não. Eu
faço, na verdade, uma tentativa de uma análise dialógica de discursos teóricos que são
relativamente consensuais, ou seja, é uma leitura, por assim dizer, pobre do
construtivismo e uma leitura pobre do racionalismo. O que eu faço? Eu pego essas
agendas de investigação e digo: - o que faz com que os racionalistas sejam, todos eles,
colocados no conjunto dos racionalistas, o que faz com que eu possa olhar para a
produção de Waltz, para a produção de Keohane, para a produção de Vertzberger, para
falar de análise de processo decisório, e dizer que todos eles são racionalistas?
Essencialmente é assumir que o seu objeto de estudo age como se fosse um ator racional,
com todas aquelas características. Então o discurso racionalista que discute, que dialoga
com os construtivistas a respeito de cooperação e conflito é um discurso relativamente
pobre, porque cada um desses autores, por deixar de lado outras dimensões da
realidade, aprofunda bastante a discussão, seguindo pela linha racionalista, sobre os
temas com que estão preocupados, uns com a influência da estrutura do sistema sobre o
comportamento das unidades e vice-versa, outros sobre a percepção, o aspecto cognitivo

22
do tomador de decisão e o modo como isso condiciona a sua ação política e assim por
diante. São agendas de investigação bastante diferentes, mas isso não impede que o seu
discurso seja considerado racionalista. Então o que eu faço é uma reconstrução bastante
superficial do racionalismo e do construtivismo, e não vi isso feito em grandes linhas na
área de teoria das relações internacionais. Esse tipo de análise vem sendo feita na área
de processo decisório.
Uma das maneiras com que eu procuro cativar a atenção do leitor é dizer que, na
verdade, a segunda grande lição que nós temos, ao analisar relações internacionais, é
entender que os indivíduos não agem de acordo com a realidade, os indivíduos agem de
acordo com a sua percepção da realidade; às vezes essa percepção é acurada, às vezes
não, mas todos nós agimos de acordo com as nossas percepções da realidade. No plano
do objeto de estudo, nos sistemas conceituais, eu quero entender o que condiciona a
percepção que o agente que vai tomar a decisão tem sobre a realidade. Essas análises
cognitivas, via de regra, algumas por meio de programas de computador, outras por
meio de análises mais qualitativas, que vão procurar entender qual é a formação do
indivíduo, qual foi a sua experiência profissional e assim por diante, procuram
identificar quais são os constrangimentos cognitivos do indivíduo que vai tomar a
decisão: o grau de dissonância, cognitiva ou não; o que faz com que o indivíduo perceba
a realidade daquela maneira. Por quê? Porque, em essência, os indivíduos não agem de
acordo com a realidade e são muitos os exemplos, sobretudo no plano da política, em
que os indivíduos tendem a simplesmente se fechar a perceber fatos que para outros são
evidentes. Por que esses indivíduos fazem isso é uma outra questão, aí a gente abre mão
da possibilidade de produzir um discurso teórico, que se aplique a um número grande
de indivíduos, e tem que fazer um estudo de caso com os prós e contras associados a
uma decisão como essas. Mas isso tem acontecido, esse tipo de análise dialógica tem
acontecido. Por exemplo, há muita coisa interessante nas relações americano-soviéticas,
sobretudo depois da ascensão de Gorbatchov: mostra como as percepções de mundo
diferentes de Gorbatchov construíam discursos. Em política externa, um discurso é ação;
por meio de discursos ele procurava colocar na agenda possibilidades que, no início,
você tinha um presidente dizendo que era o império do mal; no final, você tinha o
mesmo presidente americano dizendo que era possível conversar com os russos e era
possível construir muita coisa assinando tratados de redução da produção de
armamentos e coisas deste tipo. Como eu explico essa mudança? Alguns construtivistas
explicam por meio de análises dialógicas em que eles pegam as interações do governo
americano e do governo soviético durante a década de 80 e mostram como, por meio de
discursos e por meio de ações e, aí sim, voltando para o ponto inicial.
Por isso eu trabalho com a teoria de atos da fala: se eu sou um tomador de
decisão e digo que não vou atacar, mas movo as minhas tropas, e coloco as minhas
tropas na sua fronteira, eu estou dando um sinal muito claro, como eu vou entender esse
sinal é outra história. Os analistas vão procurar atribuir valores diferentes ao discurso e
vice-versa, aí são várias, tanto na relação entre Egito e Israel, do Oriente Médio de um
modo geral, como no caso do Iraque, houve várias manifestações de discurso em que os
tomadores de decisão diziam que iam fazer alguma coisa e isso era interpretado, do

23
outro lado, como um discurso voltado para o público interno, ou seja, essa dimensão
pragmática, essa dimensão de contexto em que ocorre o discurso é relevante. Por outro
lado, para pegar um exemplo recente também, a própria Guerra do Golfo; os americanos
sabiam da movimentação de tropas, sabiam de tudo o que Sadam Russem estava
fazendo, tinham essa informação da inteligência, mas eles não processavam essa
informação, ou seja, alguém lá na ponta dizia: – ele vai atacar; e lá em cima, na cúpula,
os caras diziam: – ele não é louco o suficiente para isso; embora todas as evidências
apontassem nessa direção e, nesse caso, o discurso propriamente dito era compatível
com as ações. Em última instância, o que eu quero ressaltar? Existe sim alguma coisa
sendo feita na área de análise dialógica, mas a decisões de política externa não aplicadas
à teoria das relações internacionais.
Agora, quando se aplica a decisões de política externa, as melhores análises são
aquelas análises que não se atêm apenas ao conteúdo sintático e semântico dos discursos
do Ministro de Estado e do Presidente da República, mas são aquelas que reproduzem o
contexto e mostram em que momentos, ao agir de uma determinada maneira, ao se
omitir, por exemplo, está sendo dado um sinal, isso é uma mensagem clara que está
sendo enviada de um indivíduo para o outro e que pode ou não ser captada por esse
indivíduo, gerando ou não, por conseguinte, reações. Aí você precisa reconstruir todo o
contexto em que essa interação tem lugar, da mesma forma em que nossas
comunicações usuais e é daí que parte essa visão da lingüística, nas nossas
comunicações o contexto em que nós estamos inseridos faz toda a diferença no que diz
respeito às implicações daquilo que nós dizemos. Se um homem e uma mulher estão
diante de um padre que os considera marido e mulher, ele está proferindo uma
sentença, ele está dizendo: – eu os considero marido e mulher; isso tem uma implicação
naquele contexto social. Se duas pessoas aqui, um homem e uma mulher, chegarem
nessa sala e eu disser: – eu os considero marido e mulher; vocês vão rir de mim, porque
não faz o menor sentido. Eu posso ir à televisão e dizer que eu declaro guerra aos
Estados Unidos, as pessoas vão rir de novo, mas se o Presidente da República disser
isso, dependendo do contexto. Quem viu aquele filme do Exército de Brancaleone, era
por aí, declaravam guerra, ninguém acreditava; os caras iam lá, invadiam, tomavam, um
filme fantástico nessa direção.
Mas, enfim, do ponto de vista da sua primeira questão, em termos da aplicação
dessa ação comunicativa, é o que eu faço e o que aparentemente é novo, pelo menos eu
não conheço outras aplicações desse tipo é que eu faço isso aplicado não a processos
políticos que são observáveis, mas eu faço isso aplicado ao meu contexto, que é o
contexto do debate acadêmico sobre teorias das relações internacionais. Então eu
procuro fazer uma análise dialógica dos discursos dos sistemas conceituais e dos
teóricos do campo das RI. Neste sentido, eu apenas fiz referência à sua segunda questão,
à dimensão hermenêutica e etc. Eu apenas fiz referência à possibilidade de outras
construções que fazem sentido e que conferem sentido à nossa interação, à nossa vida
em sociedade e assim por diante, como uma construção estética, literária, religiosa e
assim por diante. Eu não trato disso, eu não tenho competência para tratar disso;
adoraria, mas não dá para fazer, dá para tratar da parte científica e em relações

24
internacionais. A única coisa que eu procuro ressaltar é uma coisa, aí sim, como desde o
início eu pensei em trazer para o debate acadêmico nacional, a idéia de que isso sirva de
base para discussões e para o ensinamento de novas gerações de analistas das relações
internacionais, a única coisa que eu procuro fazer é deixar muito claro que é preciso ter
essa noção de humildade.
Por muitos anos ensinando teoria das relações internacionais, o que sempre me
chocou na universidade é que os alunos ficam querendo saber, então, qual é a verdade,
porque eu apresento um discurso teórico que se sustenta, que é lógico, que encontra
ampla correspondência com a realidade e as pessoas dizem: – bom, então fica fácil
entender o mundo dessa maneira. Daqui a pouco você vem com um outro sistema
conceitual que também é lógico, que também é consistente, que também se sustenta, que
também encontra respaldo na realidade e as pessoas: – bom, mas aí também faz sentido.
E aí normalmente lá pela metade do curso, o pessoal diz: – mas então o que é a verdade?
E aí, novamente, eu tenho que recorrer à poesia, o Drumon tinha uma poesia que dizia
isso, dizia que a verdade ficava num quarto fechado, escuro, que cada pessoa ia lá, abria
aquela porta, olhava, saía e dizia o que tinha visto. E entrava o próximo, abria a porta,
olhava, saía e dizia o que tinha visto. E, quando você pegava os relatos das pessoas,
nunca eram iguais os relatos. Um dia foram lá, destruíram a porta, botaram abaixo a
parede e viram que a verdade tinha diferentes faces e cada um enxergava a verdade em
função da sua miopia, em função do seu interesse, em função da sua capacidade e assim
por diante, ou seja, aí essa idéia de oferecer uma verdade é uma idéia presente no
discurso religioso, por exemplo, que eu não condeno, não existe sociedade sem religião,
não existe nenhum registro histórico, mas quem está na universidade está preocupado
não com a verdade absoluta, está preocupado, talvez, com o ceticismo, está preocupado,
talvez, com a capacidade de desconfiar daquilo que é apresentado como uma verdade
absoluta.
Eu diria que hoje há mais espaço para pensar em termos de uma
complementaridade, não só em termos desta agenda de investigação, mas isto começa a
acontecer em outros campos da ciência também, a própria física hoje observa uma
necessidade de flexibilizar discursos e entender que talvez a idéia de paradigma não se
aplique, também, pelo menos desde a convivência da relatividade coma física quântica,
as pessoas estão esperando alguém que produza uma síntese, não está claro, e muitos
físicos não sabem se isso deve acontecer de fato, muita gente diz que talvez o que falte
sejam outros discursos que lhes permitam conhecer melhor outras dimensões de uma
realidade mais complexa do que se imaginava antes. Essa tolerância em termos de
percepções da realidade talvez, pelo menos no nosso campo, isso é parte do meu
argumento. Esse campo se marca por um pluralismo teórico e eu posso fazer uma opção
e dizer: – eu vou apenas fazer pesquisas segundo essa linha de investigação, com isso eu
vou produzir mais pesquisa, vou publicar mais, mas eu vou produzir por esse prisma. E
eu posso fazer uma outra opção que é a de tentar entender o mesmo tema a partir de
diferentes ângulos, reconstruindo ou construindo diferentes interpretações sistemáticas,
rigorosas daquele mesmo fenômeno; esta é uma outra opção que eu tenho, então eu vou
me tornar um especialista naquele tema específico e, infelizmente, eu terei que abrir mão

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de outras coisas porque a vida é uma só, a gente não pode estudar tudo. Mas aí são
decisões pragmáticas das pessoas, são decisões muito práticas até, eu diria, dos
investigadores, não é um dado da realidade. Na condição de acadêmico, o objetivo desta
tese é muito mais expor estes diferentes discursos e mostrar que pode haver um diálogo
entre eles e que este diálogo entre eles requer, sim, algum treinamento, porque, se eu
não souber quais são os conceitos, o que eu quero comunicar a vocês com o conceito de
anarquia, por exemplo, se a pessoa que está me lendo não souber o que significa aquele
conceito, ela não entenderá a mensagem que eu estou colocando no papel; então, existe
algum treinamento, mas não é nada inacessível, é algo que faz parte deste tipo de
adesão a uma comunidade de produção de conhecimento científico em uma área
específica do saber humano.

Pergunta:
Eu vou me colocar numa posição de defesa do devil aqui e vou pegar três pontos
nos quais vejo alguma discordância, posso discordar de você. O primeiro é, e os três são
na verdade interligados e todos fazem parte do que eu chamaria o dilema no qual você
se coloca daquele Two Approaches do Keohane de 88, tanto assim que você trabalha com
racionalistas, com construtivistas, ele trabalha racionalistas reflectivistas. Para não ficar
aqui chato para a platéia, vou só falar dos três pontos diretamente. Conhecimento
científico: por que você insiste nessa cientificidade, porque que você quer que o
conhecimento que produzimos em relação aos internacionais seja um conhecimento
necessariamente científico? Eu entendo o valor da pesquisa empírica e apóio totalmente,
mas tem gente, aqueles que você chama de pós-modernos, que se identifica como pós-
moderno, eu falo aqui do Campbell, eu falo aqui das feministas, que se colocam
nitidamente como pós-modernos, ou pós-modernas, e se colocam na perspectiva da
pesquisa empírica, isso sem entrar nesses critérios científicos nos quais, que você quer
ver colocadas na teoria de RI. E isso me leva justamente então ao segundo ponto, que é o
ponto, eh, ao você fazer essa, eh, essa dicotomia de construtivistas versus racionalistas
você acaba fazendo a mesma coisa que o Keohane nos reflectivistas versus racionalistas,
você faz uma reificação do que são os racionalistas, uma reificação do que são os
construtivistas e aí fica, quer dizer, você não vai conseguir com isso perceber o quão
ricos são os construtivistas, o quão ricos são os racionalistas, e os diálogos, essa é uma
ponte para o meu terceiro ponto, e aquele diálogo que você queria estabelecer
justamente se tornaria um pouco mais fácil ao você deixar essa reificação de lado e lidar
com construtivistas precisamente e racionalistas precisamente, para poder estabelecer
estas pontes. Então esse é o segundo ponto.
O terceiro ponto é justamente sobre essa coisa de estabelecer pontes. Estabelecer
pontes é o que o Keohane queria fazer também no Two Approaches, no KKK de 99, então
o problema com o bridge-making é que você acaba fazendo muitas concessões e
normalmente reificando o que você quer falar exatamente. Então, não sei se bridge-
making é realmente o caminho. Não sei se, como você falou na física, não é a elaboração
de uma nova linha de pesquisa com assumptions diferentes, que seria a solução, e não

26
um bridge-making entre racionalistas e construtivistas para criar mais uma amálgama,
algo sem corpo nem alma.

Prof. Antonio Jorge:


Eu diria que o primeiro ponto eu tenho como responder. O segundo, eu tenho
boas razões para fazê-lo. E do terceiro eu discordo. Por quê?
Por que eu insisto no conhecimento científico? Alguma coisa tem que diferenciar
o que nós fazemos na Universidade daquilo que se faz em outros centros. Eu não estou
dizendo que em outros ambientes, em outros contextos, eu não estou dizendo que o que
se faz na Universidade é melhor, é apenas diferente. Há um processo de educação do
pensamento acerca da realidade. Isso quer dizer o quê, eu não posso dizer o que me vem
à cabeça, eu preciso de alguma maneira sustentar aquilo que eu estou dizendo, eu
preciso, porque que faz parte do nosso exercício, por exemplo, a publicação? E isso tem
que ver com o seu segundo ponto, e que tem que ver com a reificação. Eu publico
porque eu preciso ser lido pelos meus pares, não porque eu tenha a vaidade de ser lido
pelos meus pares, embora alguns façam por isso mesmo, a maioria talvez, mas porque
aquilo que eu publico precisa ser submetido a um teste. Isso significa o quê? Eu preciso,
é científico, e daí a relação empírica, a relação com essa dimensão empírica, aquele
conhecimento que eu produzo, porque qualquer pessoa que fale o meu idioma, esse é o
primeiro critério, na verdade, o lado do Whitehead, é preciso estar expresso em
linguagem compreensível, porque tem gente que escreve umas coisas que ninguém
entende, eu pelo menos não consigo entender, então se eu não consigo entender, eu não
consigo aplicar aquilo, eu não consigo saber se aquilo é verdadeiro ou falso.
Quando eu publico, eu estou dizendo o quê? Eu fiz um experimento, entre aspas,
eu produzi uma interpretação acerca de uma complexa relação social, no nosso caso, nós
somos cientistas sociais, e eu entendo que qualquer indivíduo que saiba falar português
seja capaz de ler o que eu escrevi, ele será capaz de se colocar no meu lugar e de me dar
razão ou não. Ele pode me tirar a razão, ele pode dizer, bom, o senhor está enganado
por isso, isso e por aquilo outro, o senhor não observou tais menções então eu vou, se eu
realmente tenho esse espírito de produção de conhecimento, eu vou prestar atenção ao
que ele está dizendo, vou repensar o que eu escrevi e vou procurar melhorar aquilo, vou
deixar de lado aquilo que se mostrou frágil do ponto de vista argumentativo, ou seja,
aquilo que não encontrou uma consistência lógica externa, não é isso, ele foi negado,
meu discurso científico foi negado por outro discurso científico mais robusto, melhor
amparado na observação da realidade e na observação que qualquer indivíduo pode
fazer da realidade, não apenas aquela observação que eu fiz da realidade. Bom, isso é o
que vai definir o conhecimento científico. Isso não faz melhor, nem faz pior do que o
conhecimento religioso, do que o conhecimento literário etc. É interessante ler pós-
modernismo? É interessante ler pós-modernismo, mas eu pelo menos, leio como um
livro de literatura, ou seja, não existe um compromisso de se demonstrar a
correspondência entre aquele discurso e a realidade, esse compromisso não está
colocado. Pode até iluminar, alguns diriam, na linha de Popper muitos diriam, isso pode
até me oferecer algumas hipóteses interessantes que depois eu vou submeter a essa

27
lógica, essa lógica científica, que aí sim a razão pela qual eu discordo do terceiro ponto, é
o que o Keohane faz ao tentar produzir pontes, construir pontes entre discursos
diferentes o que ele procura fazer é, aceito qualquer discurso sobre relações
internacionais desde que vocês assumam que os agentes são racionais, desde que se
produza uma hipótese e a partir dessa hipótese se possa deduzir uma explicação acerca
da realidade internacional. Ele não está construindo uma ponte, ele está dizendo, eu
aceito conversar com quem for racionalista, e fala para os outros fazerem a mesma coisa,
vocês são bem vindos, ele fala, mas muitos vão dizer ‘eu posso produzir de uma
maneira sistemática conhecimento de forma indutiva’, eu posso usar a razão prática e
por meio da razão prática eu posso utilizar o método interpretativo da realidade e
produzir um conhecimento que, este sim, encontra correspondência com aqueles
critérios de validação, ou seja, é um conhecimento expresso claramente no idioma que
todos podem entender, é lógico do ponto de vista interno, encontra correspondência
com a realidade e assim por diante. Ou seja, é possível produzir esse diálogo.
Por que a reificação, no seu segundo ponto? Porque, uma vez que eu publico faz
parte dessa validação, o conhecimento que eu produzo só é válido quando ele é avaliado
pelos demais integrantes dessa comunidade, e esses demais integrantes dessa
comunidade dizem, muito bem, eu aceito a sua contribuição para o pensamento
científico no campo das relações internacionais amplia os horizontes desse campo do
conhecimento. Pode ser que não se aceite, mas por isso eu publico. E na hora que eu
publico, o que eu disse está no papel, pertence ao papel. Eu posso mudar de idéia,
aquilo pode ter sido importante em um momento e daqui a 20 anos não ter qualquer
importância, mas aquilo está consolidado, aquilo está acabado, ou seja, o meu texto é
um texto que tem o seu alcance interpretativo da realidade no que diz respeito à
dimensão semântica, no que diz respeito à dimensão pragmática, o contexto em que ele
foi colocado que se define na publicação do texto.
Quando o texto é bom, este texto será utilizado por gerações futuras para
iluminar aspectos semelhantes da mesma realidade. Isso é algo que também está
discutido aqui na tese, é isso que faz com que nós recorramos a categorias de
pensamento, categorias conceituais criadas por Aristóteles, Maquiavel etc. Ou seja,
aquilo que aqueles homens disseram naquele tempo sobre os problemas do seu tempo
ainda é útil, para que nós possamos entender melhor o que, no nosso tempo, é relevante
acerca de fenômenos próximos ou dos mesmos fenômenos. Porque alguns indivíduos
aceitam submeter-se voluntariamente ao comando de outros é um tema fascinante, um
tema que permanece, em parte porque essa obra científica é uma obra social, nós
recorremos a Hobbes, Locke, Rousseau, Maquiavel, Aristóteles etc porque nós queremos
dizer, veja, isso aqui é algo universal no sentido de que parte do que se disse lá
permanece válido até hoje. Em parte se procura produzir diálogos entre textos que
foram produzidos em momentos muito distintos da experiência humana, e esses
diálogos acontecem. Isso significa o quê, significa que algumas dessas relações
aparentemente são, de fato, duradouras, permanentes, como você quiser. Agora, por
outro lado, novamente porque se trata de uma atividade social, muitos recorrem a isso
como forma de legitimar o seu discurso da realidade. Nem sempre há tanta

28
correspondência entre uma coisa e outra. De um modo ou de outro, uma vez que se
publica, você reificou aquilo que você está dizendo sobre a realidade. Você pode mudar
de idéia, aliás deve, eu acho que todos nós mudamos de idéia, mesmo porque nós
vemos que estamos, na verdade, diminuindo nossa ignorância pouco a pouco. Nunca
vai terminar, mas pelo menos a gente trabalha com esse objetivo. Agora, quando você
define isso, você reifica o seu texto, está ali, está colocado, aquelas categorias estão
criadas e elas podem produzir interpretações razoáveis da realidade apenas quando
compreendidas naquele contexto, e elas podem até perder relevância, como vários dos
discursos científicos criados, e por algum tempo válidos no campo da RI, perderam
relevância. Você pega a versão extremada do racionalismo que coloca em fórmulas
matemáticas toda aquela coisa do chamado behavioralismo do final dos anos 50, anos
60, etc, você tinha lá equações muito bonitas que explicavam muito bem alguns
fenômenos muito pequenos da realidade. Aquilo pertence hoje aos livros de história do
conhecimento das relações internacionais. Ninguém mais estuda aquilo. Porque
ninguém mais estuda aquilo? Perdeu a validade? Alguns dirão que não, não perdeu a
validade. Naquele contexto, é aquilo que, existe um lógico brasileiro, uma dessas
cabeças extraordinárias chamado Newton da Costa, que desenvolveu a lógica
paraconsistente, ele cunhou o conceito de quase-verdade. O que ele está dizendo: tome
o pensamento de Newton.
Todos sabemos que o pensamento de Newton está ultrapassado, no entanto as
crianças continuam aprendendo isso na escola. Por quê? Porque para a maioria dos
fenômenos que ocorrem na realidade, aquilo é suficiente para permitir que nós
possamos lidar com os movimentos dos corpos etc. Não há um físico formado que
utilize isso, que leve a sério aquilo que está dito hoje em dia do ponto de vista da
explicação dos problemas com que lidam os físicos. Mas quem não está nesse ambiente,
quem não está nesse contexto, pode viver com as leis de Newton. Isso quer dizer o quê?
Que naquele contexto de produção de conhecimento, aquilo que em um momento foi
importante, permanece válido enquanto permanecerem válidas as condições a que se
refere aquele conhecimento. Nesse sentido é um conhecimento reificado. É um
conhecimento que pode ser mais ou menos útil, alguns foram abandonados. As leis de
Newton não foram abandonadas, porque são didáticas, porque são suficientes para
permitir que nós possamos organizar nossa vida em sociedade. Nenhum de nós precisa,
felizmente, conhecer a fundo física quântica, teoria da relatividade, etc, para a maioria
das nossas interações.
Então nós continuamos lidando de abstração acerca da interação de fenômenos
físicos que é um nível muito baixo de abstração, porque nós não conhecemos os demais
conceitos necessários para trabalhar no nível em que trabalham os doutores em física.
Isso porque não é necessário para nós. Mas aquele debate ele está reificado ali. Nesse
sentido, eu não diria, para voltar de maneira mais objetiva aos três pontos, há uma
opção deliberada minha no sentido de dizer, eu trabalho com conhecimento científico,
não necessariamente nós precisamos trabalhar apenas com conhecimento científico,
recomendo que as pessoas não trabalhem apenas com conhecimento científico, mas o
que vai distinguir o que se faz em uma Universidade do que se faz na Academia

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Brasileira de Letras é esse conjunto de regras. Na Academia de Letras há um outro
conjunto de regras e infelizmente eu não posso escrever tão bem quanto alguns dos
indivíduos que estão na Academia de Letras, outros nem tanto não é, na nossa pelo
menos há uma certa dúvida. Mas novamente, isso é uma decisão coletiva, uma decisão
desta comunidade de analistas que diz ‘eu considero científico aquilo que atende a esses
critérios. Os critérios de Whitehead também, eu discuto algumas outras possibilidades,
adoto essa possibilidade porque os critérios de Whitehead são abrangentes o suficiente
para açambarcar tanto racionalistas quanto construtivistas. Nesse sentido, com base
nesses critérios eu posso construir pontes. Aí, eu posso produzir diálogos.
O que o Keohane está fazendo no seu terceiro e último ponto é dizendo o quê?
Monólogos intercalados, não é isso? Eu só falo com racionalistas, se você quiser
participar da minha comunidade então aprenda como eu falo. Eu sei como ele fala, só
que para mim não basta. Eu não acho que isso seja construir uma ponte. Ele está
tentando convencer os demais de que aquela maneira de produzir conhecimento é mais
eficaz, é mais eficiente etc, e eu prefiro enxergar várias maneiras de produzir
conhecimento e deixar que cada um faça a sua opção. Se a pessoa quiser, aí sim, ser um
racionalista, o Paul Krugman que dizia isso, economia é muito difícil, tem a ver com essa
capacidade de previsibilidade à qual eu fazia referência. Ele diz que a economia é muito
difícil porque a gente faz previsões que nunca dão certo e etc, mas felizmente a
sociologia é muito mais. Então, você está num grau de formalização mais próximo para
alguns, por isso mesmo seria uma ciência mais nova. Aí vem toda a dimensão social da
interação humana inerente a essa atividade de produção de conhecimento científico que
acontece na academia também. E algumas pessoas estão defendendo posições como esta
não porque de fato acreditem nisso, às vezes sim, mas às vezes elas estão defendendo
porque elas investiram suas vidas inteiras na produção de conhecimento segundo uma
determinada linha e não querem se convencer de que aquela não é a única linha
aceitável ou de que aquela não é a melhor linha. Seria melhor dizer ‘bom, eu prefiro
adotar isso e como eu não posso dar conta de tudo, quem quiser dar conta de tudo que
faça de outra maneira, que é o que faz o Waltz, com todos os problemas que ele tem ele
diz o quê? Eu estou tratando de política internacional, é bem definido, o universo de
fenômeno dos quais eu me ocupo é esse aqui, é bem pequeno, porque eu acho que é o
mais importante. Agora, se vocês acham que há coisas mais importantes, mãos à obra,
podem ir. Nesse sentido é uma opção, sim, a delimitação de critérios, a reificação eu
diria, se dá não numa forma preconceituosa, até porque alguns desses autores mudam e
eles deixam de ser, alguns são difíceis de classificar e colocar rótulos. Felizmente, porque
eles têm um pensamento tão rico que está aberto a uma pluralidade de, inclusive,
métodos na produção de conhecimento. Outros não, mas isso são resultados de opções
profissionais que os indivíduos tem.
No caso dos Estados Unidos, mais do que aqui, vocês sabem melhor do que eu,
isso tem que ver às vezes com o emprego que o sujeito vai conseguir numa determinada
escola e conseguir ou não uma condição estável para produzir conhecimento e assim por
diante. Fato da realidade, o que só ressalta essa dimensão também freqüentemente
ignorada que é a dimensão social, humana, da produção de conhecimento. É limitado,

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mas é uma limitação que, pelo menos no campo da ciência vem se mostrando bastante
produtiva no que diz respeito à capacidade de organizar a realidade segundo diferentes
categorias, e aí sim, o que é novo e fascinante do ponto de vista da razão humana. Você
é capaz não somente de reorganizar os seus discursos sobre a realidade, mas você é
capaz de repensar suas premissas sobre a realidade. Você é capaz de ter consci6encia do
modo como você produz conhecimento sobre a realidade e, ao fazê-lo, questionar o
modo como você produz conhecimento sobre a realidade. Isso sim é fascinante. Agora,
tudo isso, no nosso campo pelo menos, atento a uma necessidade de um mínimo de
critérios que definam aquilo que faz parte de um discurso científico. E definir é isso, é
colocar fim, limites, e dizer que isso faz parte do conhecimento científico e que aquilo
outro não faz parte do conhecimento científico, o que não lhe tira o valor. É importante,
é relevante, eu se um dia for ao psicólogo a primeira pergunta que eu faço é se ele lê
Dostoievski, Machado de Assis. Se o cara não for leitor desses autores, eu prefiro não me
consultar com ele.

Pergunta:
Confesso que discussão é muito interessante porque você disse que para se poder
chegar a um nível de abstração que em princípio seria necessário para que certos
problemas fossem resolvidos no mundo, que o mundo fosse melhor resolvido, você
necessita de parâmetros, regimes, você precisa começar a organizar a forma como você
vê as coisas. Eu acho essa premissa muito importante. Agora, o problema que eu tenho
é, para ser sincero, é se racionalismo e construtivismo, se esses dois parâmetros, por
mais vastos que eles sejam, por mais que eles tenham riqueza e tudo isso, se nesse
momento atual do mundo esses parâmetros seriam suficientes de uma certa forma, se
eles seriam os mais abrangentes possíveis. Porque, sobretudo, quando você leva em
consideração a dicotomia que existe, você mesmo falou nos marcianos economistas, eu
vejo que o mundo tem um grave problema de cacofonia ou total dicotomia entre
discurso político e social que se aproximam, felizmente, e discurso econômico. Isso para
não dizer que o discurso econômico é absolutamente dicotômico também.
Entre, por exemplo, as pessoas financeiras, as pessoas comerciais, a propagação
do desenvolvimento, cepalinos, neoliberais, neo-bobos, neo-tudo. E é isso que eu vejo
com uma certa preocupação, será que esse tipo de análise, estes parâmetros São vastos o
suficiente para que possam incorporar esse tipo de problema, que eu considero também
um problema quase cultural. Eu escutei o que você falou com muito cuidado sobre
como nós importamos esses conceitos econômicos, políticos e sociais. Então, isso já é
preocupante no sentido da importação, ou seja, que não é uma coisa gerada no próprio
país, no próprio local onde o problema existe.
Além disso, que capacidade de síntese nós temos, inclusive não levando em
consideração o tipo de governo que você tem no hegemon hoje em dia que claramente
dificulta mais essa síntese. Mas digamos que fosse um governo razoável na sua visão de
mundo, será que nós poderíamos ser otimistas sobre a capacidade de se chegar a uma
síntese maior com base nesses parâmetros, ou será que teríamos que ter talvez um outro

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parâmetro, que eu já não sei te dizer o que seria, talvez uma espécie de parâmetro
neoeconômico de como ver as relações humanas e a própria condição humana.

Prof. Antonio Jorge:


Do ponto de vista do debate que eu faço aqui, a resposta que eu teria é mais
simples, eu acho. Eu diria que racionalismo e construtivismo podem não ser suficientes,
mas que foi o melhor que se pôde fazer até agora. Na verdade o que vai definir isso
como eu defendo, com duas agendas de investigação no campo das RI é de um lado a
ontologia, ou seja, os fenômenos internacionais, e aí fenômenos internacionais
concebidos de maneira mais ampla, não apenas como aquilo que acontece fora dos
Estados ou entre Estados, mas as relações de poder, de autoridade, entre agentes que
acontecem tanto fora quanto dentro das fronteiras. E aí, cada área do conhecimento, esse
era um debate também muito interessante do final dos anos 60, início dos 70 e que foi
relativamente negligenciado, mas cada área do conhecimento apresenta condições
iniciadas pelo Keohane e ... no primeiro texto deles, apresenta graus mais profundos de
interação, ou seja, de produção de normas comuns, de um arcabouço normativo, de um
arcabouço de valores que oriente uma vida em comunidade global.
Mas essa produção de conhecimento se dá segundo métodos diferentes, ou seja,
porque essas duas agendas de investigação são consideradas parte do campo e
integrantes, constituintes do campo das RI. Quer dizer, de um lado eu tenho esses
sistemas conceituais, que é aquilo que os analistas utilizam para conferir sentido à
realidade, e de outro lado eu tenho uma realidade, um certo consenso entre esses
analistas sobre a que nós nos referimos e como nós nos referimos a esses fenômenos,
porque eu, por exemplo, do ponto de vista de economia internacional, eu me refiro a
fluxos financeiros internacionais, mas o modo como os analistas das relações
internacionais lidam com isso é diferente do modo como os economistas lidam com isso.
É isso que faz com que uns sejam analistas das RI e outros sejam economistas. Isso quer
dizer que o modo como nós nos aproximamos, as teorias, os sistemas conceituais que
nós utilizamos para conferir sentido a esse fenômeno da realidade, esse modo é distinto
do modo como os economistas, os cientistas políticos, os sociólogos, os antropólogos, etc
fazem a mesma coisa, eles também estão se aproximando do mesmo continuum em que
nos é dada a realidade. Ela não vem em categorias, novamente, ela vem no continuum,
nós é que criamos essas categorias. E, na minha opinião, é uma opção pessoal dizer eu
vou fazer isso de forma científica e eu vou fazer isso como um economista ou eu vou
fazer isso como um cientista político, ou como um analista das RI.
O que me leva a fazer isso é outra história. O que importa, do ponto de vista da
comunidade, são os modos como eu faço, aí não é o modo, mas são os modos, é a
produção de conhecimento, é a capacidade de aprender esses conceitos e de produzir
diálogos. No nosso caso, essas duas agendas se referem aos mesmos fenômenos,
utilizando os mesmos conceitos, e significando, ou seja, atribuindo conteúdos
semânticos a esses conceitos, que são os mesmos. Alguns deles inclusive, é o que eu vou
fazer em alguns capítulos, podem ser vistos num plano também metateórico, ou seja, eu

32
vejo racionalistas e construtivistas trabalhando com o problema da autoridade, com o
problema de poder e assim por diante.
Mas as relações de poder na concepção de racionalistas possuem uma dinâmica
diferente das relações de poder no âmbito internacional, percebidas e construídas pelos
construtivistas. Isso porque alguns estão preocupados com os choques ou as interações
materiais de poder ou as percepções de cada um acerca da capacidade do outro e da sua
própria. Outros estão preocupados com a construção de normas e identidades que vão
definir o conteúdo substantivo dessa relação. Porque dependendo do conteúdo
substantivo dessa relação eu posso negligenciar a visão que eu tenho acerca da
capacidade do outro, já que aquilo não vai ser usado contra mim. Não há um canadense
pensando em ser invadido, em ter o seu território invadido pelos americanos. Invadido
militarmente não é. Nós já fomos mais do que invadidos por eles. Por que isso? Há uma
dimensão social nessa relação que a define e que muitos acreditam, essa dimensão vai se
perpetuar num futuro previsível. Eu estou ainda me referindo a uma relação de poder,
mas eu estou me referindo a uma relação de poder que possui características muito
diferentes daquela relação de poder construída pelos racionalistas.
Quando eu confronto essas visões de mundo, eu tenho condições de olhar para a
realidade não com um, mas com dois parâmetros, quer dizer, agora está melhor, eu
tenho condições de fazer melhores análises, melhores previsões e de explicitar as razões
pelas quais, inclusive do ponto de vista lógico, eu imagino que as coisas irão evoluir de
uma determinada maneira e não de outra, e construir cenários razoavelmente
amparados naquilo que se pode apreender da realidade atual. Isso significa que é frágil,
que vai dar errado provavelmente, mas eu tenho uma alternativa a isso. Eu até brinco
sempre com os meus alunos, eu posso telefonar para a fundação cobra coral e perguntar
o que vai acontecer. Não sei se vocês se lembram disso, mas tinha uma fundação cobra
coral que fazia previsões sobre o futuro, mandava por fax, os caras jogavam búzios. Essa
é uma forma, racional, de você justificar a produção de conhecimento, eu vou ao pai de
santo e ele me diz, houve um presidente da república que inclusive quis se perpetuar
com uma outra geração, que alegadamente fazia isso com muita freqüência, toda
decisão importante que ele tivesse que tomar ele consultava seu pai de santo no
Maranhão. É uma forma que, naquele contexto, dependendo dos valores daquele
indivíduo, faz sentido.
Para quem trabalha no campo da ciência, isso não faz sentido, mesmo porque
você não tem como demonstrar que isso vai acontecer. No entanto, há quem creia que as
coisas se dão dessa maneira, e aí você reclama a crença dos indivíduos, você não reclama
o uso disciplinado da razão dos indivíduos. Novamente essa é a razão pela qual eu
deixo de fora os pós-modernistas, pois eles dizem, veja que o meu discurso pode
significar isso, e quando você vai esmiuçar esse discurso, quando você vai procurar a
correspondência entre esses discursos e a realidade e o que o sustenta, o q sustenta essa
correspondência, você não encontra respostas robustas o suficiente. Então, quem
trabalha com ciência se atém a essa visão de ciência e lida com isso. Com relação aos
economistas, ‘;e difícil você colocar o abismo que haveria entre o discurso econômico e o
discurso político e social. Os economistas conseguem fazer bem o seu papel na minha

33
opinião, eles produzem, eles demonstram, o problema são os economistas que terminam
se tornando mais realistas que o rei, por assim dizer. Quer dizer, eles confiam tanto no
seu método que o método se torna mais importante ou confiável que a realidade. Os
melhores economistas são leitores ávidos de sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc.
Eles sabem das limitações do seu método e normalmente eles assumem isso
abertamente. Eles dizem, olha, esse é um método de produção de conhecimento. Nosso
ministro Malan é um que diz isso repetidamente, inclusive citando a mesma fundação
cobra coral. Eu fiquei feliz de ver outro dia uma entrevista dele nesse sentido, dizendo,
olha, é um método, é falível, mas é o que nós temos. É insuficiente, agora, nós sabemos
que algumas coisas repetidamente dão errado porque observa-se a experiência histórica
recente e, qualquer pessoa que entenda de economia observa que determinados
comportamentos levam a resultados que para alguns são ruins para outros nem tanto.
Então é a questão de opções sociais. Você fala, inflação é um tema que vai voltar à tona
no Brasil cada vez mais, é disso, alguns economistas dizem um pouco mais de inflação
não faz mal, outros dizem, um pouco mais de inflação faz mal justamente para os mais
pobres, e eles não tem um consenso a respeito disso e não vão ter tão cedo. Mas, do
ponto de vista da sua comunidade acadêmica, o q importa é q eles estão produzindo
conhecimento de uma sistemática, que é publicada que, uma vez publicada também é
reificada, as pessoas se tornam responsáveis por aquilo, e às vezes inclusive negam,
aquilo fazia sentido naquele momento, foi um papel que eu produzi que já não tem
validade nos dias que correm porque a realidade se transformou. No fundo, o pb que
você coloca não é um pb da ciência, mas da sociedade que deve tomar decisões inclusive
no que diz respeito a como melhor utilizar os diferentes discursos científicos sobre suas
interações econômicas, sociais, políticas e assim por diante.
O que eu acho que possa ser o início de uma contribuição nesse sentido é o fato
de que quando você utiliza, por exemplo, um conceito como hegemon, esse conceito está
claramente circunscrito numa visão específica da realidade internacional em que os
racionalistas predominam e que ele pressupõe um conjunto de outras relações que estão
por trás do papel desse ator no contexto internacional. Se a gente está fazendo referência
aos EUA então muito bem, alguns vão dizer, veja, esse ator hegemônico teve a
capacidade de, durante décadas construir um sistema institucional que permitiu a
expansão das relações internacionais razoavelmente pacífica, houve conflitos, mas estes
foram regulados. Quando se fala de OMC eu sempre me lembro das reformas Meiji. O
Japão teve um outro tipo de comportamento, que a China adota agora, do ponto de vista
da abertura do seu comércio. Ele foi colocado diante de outras opções, há um século e
meio atrás eram essas as opções, eram os navios de guerra com os canhões apontados
dizendo, ou vocês abrem o seu comércio ou é guerra.
Hoje você leva para uma organização internacional e contrata um exército de
advogados, de diplomatas e etc... e os conflitos se dão daquela maneira. Isso é fruto de
uma construção histórica, e que esse ator, durante um determinado período da história
recente, julgou que era de seu interesse. Agora - e esse é o grande questionamento - é o
que todos estão tentando entender. Aparentemente este ator está dizendo que isso já
não é do seu interesse. O questionamento lá é saber se essas instituições, essas normas

34
vão sobreviver à falência do ator hegemônico em concordar com a perpetuação dessas
normas, ou será que os regimes internacionais, já que as expectativas deixarão de
convergir nessa direção, será que esse regime internacional vai se enfraquecer? Tem
muita gente olhando para Kyoto como um estudo de caso fascinante, por isso, surge de
uma proposta americana, nos moldes americanos, compatível com a visão de mundo
americana etc, ...agora, os americanos estão fora e, aparentemente, vai sobreviver este
regime internacional. Isso significa que temos uma sociedade mais ou menos capaz de
dizer não a uma percepção que ela considera equivocada desse ator hegemônico por
mais que seja enorme a disparidade de forças.
Um diálogo entre racionalistas e construtivistas nos ajuda a iluminar esse tipo de
fenômeno. A resposta, eu acho que não tenho, mas há, digamos, condições mais
rigorosas para colocar as perguntas, e esse é o objetivo de um trabalho como esse, é
difundir o modo como essas perguntas podem ser feitas, de forma sistemática, ou, pelo
menos, o modo como elas foram feitas até agora de forma sistemática e cabe a cada um
partir disso e construir a sua própria visão de mundo e adotar suas próprias decisões, e
dizer não!... eu vou ser um partidário do pós-modernismo, eu vou ser um partidário do
feminismo, etc... E essa é minha causa, assim como há outras causas. Eu não estou
contra isso, mas isso não é participar dessa atividade de produção de conhecimento
científico, pelo menos não da maneira como eu entendo. Eu posso estar equivocado... Aí
é outra conversa.

Pergunta:
Eu tenho muito pouca base nisso, exatamente por isso que eu não posso me
definir bem como um construtivista ou como um racionalista, ou nada disso. Então eu
queria saber por que não pode haver uma fusão entre esses dois conhecimentos que são
importantes para uma mesma área a partir do momento em que cada um pode ter seu
intelecto de várias formações? E eu vejo certas questões em que essa união praticamente
existe. Por exemplo, se eu vou analisar uma Franca que está abrindo suas portas para os
estrangeiros, para eles trabalharem, porque está numa época sem emprego. Um tempo
depois acontece o contrário, há uma explosão demográfica, não tem emprego, está todo
mundo revoltado, começa uma coisa nacionalista, ou seja, eu estou usando o que? O
meu pensamento construtivista.
Agora, se eu começo a analisar uma pesquisa política, partido nacionalista cada
vez mais forte no poder dentro da França, eu estou usando o meu lado racional, não é
uma forma de você ver as duas coisas. Então, toda pessoa racionalista não teria uma
parte construtivista dentro de si, como todo construtivista tem um lado racional dentro
de si também?

Prof. Antonio Jorge:


Obrigado pela pergunta, eu diria que é bom ter cuidado com os rótulos, eu diria a
você que todos nós temos pouca base, todos estamos aprendendo, essa é a idéia.
Quando você fala em termos dessas agendas de investigação, você está falando em
termos da utilização de métodos de conhecimento, ou seja, um está pensando por meio

35
da construção de modelos hipotético dedutivos, então, não importa como você
construiu a sua hipótese, importa você estar estabelecendo uma hipótese, você estar
atribuindo racionalidade. Você vai procurar entender o que orienta o comportamento
daqueles agentes que você assume que são racionais.
De outro lado, o que os construtivistas vão procurar fazer é entender as
estruturas valorativas desses indivíduos, é a construção de identidades, é a relação entre
normas concebidas de forma ampla e identidades individuais desses agentes, é a
transformação , uma evolução simultânea da realidade, em que a própria realidade se
redefine em função do modo como os indivíduos se vêem dentro dessa realidade. E os
indivíduos mudam a visão que têm de si mesmos a partir dos constrangimentos que são
colocados por essas estruturas, às vezes institucionais mas, às vezes, apenas valorativas,
e assim por diante. E não é que eles sejam incompatíveis, aliás, eu defendo que eles não
são incompatíveis, são complementares, são apenas formas diferentes de uso da razão,
não quer dizer que uma seja melhor que a outra, a única coisa que eu procuro ressaltar é
o fato que nesse campo de estudo não apenas nós observamos uma pluralidade de
discursos científicos, mas esses vários discursos científicos são produzidos segundo
métodos da razão distintos, e isso é apenas uma evidência da riqueza da razão humana.
A criatividade humana é grande, assim por diante. Agora é preciso ter cuidado quando
você se utiliza... Por isso eu sou contra a preocupação excessiva com rótulos, com
caixinhas, etc. Eu acho que é mais importante você tentar reconstruir na sua mente,
reconstruir intelectualmente o discurso sobre um dado específico têm racionalistas e
construtivistas do que propriamente relacionar a primeira coluna com a segunda, não é?
O racionalista diz isso, o construtivista diz aquilo...ou seja, é mais importante pensar
teoricamente do que identificar o que caracteriza cada um desses sistemas conceituais.
Para retomar o seu ponto, é racional do ponto de vista do governo francês, por exemplo,
a tomar a decisão a ou b....sim, mas o que você entende por racional? Veja aí é parte da
nossa discussão aqui, que retoma o ponto relevante que o Nizar colocou antes. O que se
entende por racional no nosso discurso comum, na nossa linguagem comum, não é
diferente do que se entende por racionalidade instrumental no contexto desse debate
acadêmico que nós estamos tendo. Por que? Porque, no senso comum, eu digo que
racional é uma coisa que aparentemente faz sentido, eu vou ganhar com isso? Não
necessariamente. Precisamente por agir racionalmente, os indivíduos às vezes
produzem resultados piores, para si mesmos. Parte desse exercício de educação do
intelecto para participar de um debate, aquilo a que, novamente, o Mário se referia aqui.
Eu coloquei antes essa idéia, ou seja, quando eu produzo um discurso científico sobre
relações internacionais, significa que eu entendo qual é o significado desse conceito
nesse contexto.
Em um outro contexto, esse conceito será percebido de uma maneira distinta. O
que um construtivista diria para você seria, se ele quisesse entender, vamos lá, por
hipótese, uma decisão do governo francês de proibir a entrada de imigrantes, ele diria o
quê? Ele tentaria se colocar no lugar dessas pessoas que estão tomando essas decisões,
ele identificaria essas estruturas normativas, ele identificaria quais são os valores
prevalecentes nos diferentes grupos da sociedade francesa, como essas pessoas em

36
interação produzem tais ou quais comportamentos, coisas dessa natureza, e ele
procuraria, a exemplo do que faz um antropólogo, que vai para uma tribo indígena e
que conversa com um, conversa com outro, e procura entender como essas pessoas se
sentem naquela comunidade e procura entender como esses indivíduos se comportam,
entender por que os indivíduos se comportam assim, dadas essas normas, e assim por
diante, é isso que um construtivista procuraria fazer. Um racionalista atribuiria
preferências ao governo francês, atribuiria preferências aos grupos A, B e C e construiria
o seu modelo acerca do comportamento desses indivíduos A, B e C, depois ele
observaria, na realidade, se existe correspondência entre o seu modelo e aquilo que ele
está observando na realidade. Você percebe que são métodos diferentes. É apenas isso,
mas isso é muito. Por quê? Porque por muito tempo pessoas muito relevantes na
comunidade, os analistas, como Keohane, de que nós falamos aqui, diziam: fazer isso
que os construtivistas estão fazendo não é fazer ciência, e é fazer ciência, de acordo com
os critérios de validação do conhecimento científico, é fazer ciência. E isso é algo que é
aceito hoje na comunidade com muito menos , eu diria, reservas, do que era aceito, não
precisa ir longe, há dez anos, percebe? Então não é dizer: ah, um pouco de
construtivismo num e noutro. Há, sim, você está se referindo a um continuum dos
elementos que estão na realidade e, nesse contexto que nós estamos debatendo, o
racionalismo e o construtivismo são métodos de investigação, métodos de construção de
discursos sobre a realidade, que, não obstante adequados a esses critérios de validação
do conhecimento científico, são exercícios intelectuais distintos e o que eu defendo aqui
é que nenhum é melhor do que o outro, ambos são necessários para que nós possamos
conhecer melhor a realidade em que nós estamos inseridos.
Uma síntese desses métodos só poderia acontecer em um nível de abstração
ainda maior, que eu não sei se é possível, pode ser que sim, mas eu não vejo por que não
aceitar a coexistência desses métodos e a coexistência desses discursos, já que todos eles,
novamente, por opção, atendem a esse critério de validação da produção de
conhecimento científico, não que não se possa produzir conhecimento de outra maneira,
mas aí voltamos àquele outro debate.

Pergunta:
Eu queria mergulhar no seu debate entre os construtivistas e os racionalistas. Esse
debate é feito analisando como as instituições são capazes de construir identidades e, no
meu entender, esse diálogo entre construtivistas e racionalistas é possível porque ambas
as correntes teóricas trabalham a convergência, em que sentido? Os construtuvistas, eles
interpretam o comportamento dos atores através dessa construção de identidades e os
racionalitas, eles explicam a atuação dos atores através do processo de tomada de
decisão racional. Então, no meu entender, essa convergência permite que você analise,
você sempre vai ter uma convergência entre as atitudes dos atores, seja por uma
abordagem ou por outra, sempre há essa convergência.
A minha pergunta é como seria possível você entender essa construção de
identidade, quer dizer, como as instituições são capazes de construir identidades, se

37
você percebe a relação entre os atores, sejam eles instituições ou os próprios indivíduos,
através de um modelo de política burocrática, por exemplo, do Allison, e não um
modelo como os que você utiliza, que seriam o construtivismo e o racionalismo, já que
esse modelo, por exemplo, ele não trabalha a convergência, mas, pelo contrário, ele
trabalha a disputa entre os atores.
Então, só para quem não tem familiaridade com este tipo de modelo, o modelo da
política burocrática de Allison diz que os atores vão estar numa espécie de disputa, uma
espécie de jogo, pela influência no comportamento, seja do Estado, ou de uma
instituição, ou de um outro ator. Então esses indivíduos ou essas instituições estariam
disputando pela atuação, pela influência que ela teria no comportamento do Estado, por
exemplo. Então, já que não existe essa convergência, pelo contrário, existe uma disputa,
como seria possível a análise da construção de identidades a partir do modelo de
Allison da política burocrática?

Prof. Antonio Jorge:


Em primeiro lugar, o Allison é claramente um racionalista. Ele está dizendo o
quê? Ele está trabalhando os três níveis de análise, está atribuindo racionalidade às
organizações e está dizendo: as agências burocráticas disputam poder, como você bem
colocou, ou seja, a estrutura de utilidade dessas agências é tal. Elas vão maximizar a
utilização dos seus recursos em função das rotinas burocráticas que tenham, etc., o que
ele está dizendo com isso? Há um conflito, sim, há um conflito das agências por
influência, pela melhor utilização dos recursos, e assim por diante, mas veja, o método
de produção – a gente volta para a mesma discussão anterior, e por isso eu digo que é a
parte mais complexa de um argumento como esses – na verdade eu estou trabalhando o
tempo inteiro, quando eu estou confrontando, ou melhor, forçando um diálogo entre
racionalistas e construtivistas, eu não estou trabalhando nesse nível que você coloca a
questão, eu estou trabalhando no nível metateórico.
Isso quer dizer o que? Você está colocando uma disputa que existe entre agentes
e os agentes, neste caso, são os agentes que integram o Estado. Eles estão disputando,
inclusive, o orçamento do Estado. Cada agência burocrática quer dizer que ela produz
mais e melhor porque ela quer um orçamento maior no ano que vem, ela quer mais
dinheiro no orçamento do ano que vem e assim por diante. Mas, ao explicar esse
comportamento, o que o Allison está fazendo? Ele está atribuindo a racionalidade a esse
agente e está dizendo: uma agência burocrática, uma ministério e etc., ele se comporta
como se ele fosse um ator unitário e racional e a maximização dos seus benefícios se
traduz na forma de acesso a um maior volume de recursos, por exemplo, ou maior
influência no processo decisório, bom, aí você vai ter que estudar caso a caso para
verificar como isso funciona.
Eu concordo com você que o debate é possível entre racionalistas e
construtivistas, mas, do ponto de vista do Allison, ele claramente fez a opção de dizer:
eu vou produzir conhecimento segundo o método racionalista, eu atribuo racionalidade
a esses três níveis de análise e eu mostro como a complementaridade, a grande
contribuição dele, entre explicações produzidas no nível do sistema, explicações

38
produzidas no nível das unidades – essas agências burocráticas – e explicações
produzidas no nível dos indivíduos, por quê? Tanto indivíduos como rotinas
burocráticas e interação de agências burocráticas, como interação entre Estados
produzem impactos diferenciados sobre a interação dos Estados, sobre o processo
decisório de política externa. Se eu vou discutir, por exemplo, temas de saúde, ou temas
de telecomunicações, ou etc., eu percebo que há um entendimento muito maior entre as
áreas técnicas dos diferentes países, para trabalhar com essa visão de política
burocrática, do que temas outros como segurança e assim por diante, em que há uma
disputa muito maior entre as agências, há um compartilhamento de informações muito
menor entre essas agências, porque, no caso deles, compartilhar informações significa
perder poder.
Dependendo da área com que eu estou trabalhando, eu terei uma ou outra
dinâmica da interação dessas agências. Por aí, um construtivista poderia procurar
explicitar de que maneira alguns regimes internacionais são criados em áreas específicas
à medida que normas internacionais são internalizadas por agências burocráticas de
diferentes Estados, que, uma vez que venham a interagir, começarão a produzir visões
de mundo que são mais próximas umas das outras do que em outras áreas. Alguma
coisa na linha do que fizeram os teóricos que partiam da visão de comunidades
epistêmicas. O que eles diziam? Comunidades epistêmicas seriam essas comunidades,
por exemplo, essas comunidades acadêmicas, de indivíduos que compartilham as
mesmas visões sobre as relações de causa e efeito entre fenômenos da realidade.
Quando você pega a discussão toda sobre a camada de ozônio, você tem uma clara
demonstração de que, mundo afora, os cientistas ocupados com esse tema convergiam
em suas opiniões. O fato de eles convergirem nas suas opiniões significava que, no
mundo inteiro, esses indivíduos davam conselhos semelhantes aos seus tomadores de
decisão. Não que esses tomadores de decisão tenham agido segundo os conselhos de
seus consultores, porque eles tinham que ver o que era o objetivo de longo prazo da
comunidade internacional, ou seja, diminuir o buraco da camada de ozônio, ele tinham
que confrontar esse interesse de longo prazo com interesses de curto prazo de empresas
que perderiam recursos vultosos, investidos em plantas industriais baseadas na
produção de gases que prejudicavam a camada de ozônio, ou seja, que aumentavam o
buraco na camada de ozônio. O que significa, com isso? Construiu-se uma visão de
mundo em que isso foi gradualmente fazendo convergir as identidades dos órgãos
técnicos, das agências burocráticas de vários países do mundo e, aparentemente, eu não
sou um especialista em política ambiental, mas, pelo que eu vi até agora, nos países em
que isso se consolidou, em que isso se assentou e nos setores específicos, nos regimes
específicos, nos regimes ambientais específicos em que houve uma “compra”, um
convencimento, por parte dos principais grupos econômicos afetados por uma decisão
desse tipo, onde isso aconteceu, se criou essa convergência, se criou uma identidade, por
assim dizer, internacional, se criou um valor associado a essa transformação de um
regime internacional.
Mas veja que eu posso construir tanto uma explicação racionalista, ou seja,
diminuiu-se o custo, por meio do convencimento da indústria, diminuiu-se o custo, por

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meio da adesão dos técnicos, etc., etc., como eu posso construir uma explicação
construtivista para esse fato: gradualmente, emergiram instituições, emergiram regimes
em torno dos quais a identidade desses indivíduos e o comportamento desses
indivíduos passaram a convergir e esses indivíduos se sentiram como responsáveis pela
perpetuação de um regime que fosse menos danoso ao meio ambiente. Eu posso
construir, inclusive, as duas explicações e colocá-las a teste, e submetê-las ao debate e
ver qual dessas explicações sobrevive melhor, ou explica melhor, ou interpreta melhor
esse fenômeno.
Mas é preciso tomar cuidado, novamente, com o nível de abstração com em que
você está trabalhando. A sua pergunta se coloca em um nível de abstração que relaciona
teorias e realidade e ela se reporta a uma preocupação de um nível de abstração
superior, que é o que confronta teorias entre si. Essas coisas se complementam e, nesse
sentido eu concordo com você, o debate é possível, o diálogo é possível, mas o diálogo
só é possível na medida em que racionalistas se disponham a entender como os
construtivistas vão produzir suas explicações e vice-versa. Enquanto eles disserem: se
não for assim não é ciência, ou se não for assado não é ciência, eles não estão
dialogando, são monólogos intercalados.

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O CEBRI Tese é uma publicação baseada
na apresentação e no debate, no CEBRI, de
teses ou dissertações acadêmicas em relações
internacionais e política externa brasileira,
elaboradas por brasileiros e defendidas e
aprovadas em instituições de ensino superior
no Brasil ou no exterior.
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