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TOLKIEN EXPLICA SUA OBRA

Esta carta foi extraída de The Letters of J. R. R.


Tolkien (Humphrey Carpenter e Christopher
Tolkien, eds.). Nela, Tolkien explica com muitos
detalhes o significado que pretendeu conferir à
sua obra. Então é um texto que merece ser
estudado por todos os pesquisadores e
apreciadores do autor.

CARTA 131 - A MILTON WALDMAN

[Depois que a Allen & Unwin, sofrendo pressão de Tolkien


para que se decidisse, havia relutantemente declinado a publicação
d'O Senhor dos Anéis juntamente com O Silmarillion, Tolkien
estava confiante em que Milton Waldman da Collins logo publicaria
ambos os livros sob a égide de sua empresa. Na primavera de 1950,
Waldman disse a Tolkien que esperava iniciar a tipografia no
outono seguinte. Mas ocorreram atrasos, causados mormente pelas
freqüentes ausências de Waldman na Itália e por seus problemas de
saúde. Ao final de 1951 ainda não tinha sido feito nenhum arranjo
definido para a publicação, e a Collins estava ficando ansiosa a
respeito do tamanho total dos dois livros. Foi aparentemente por
sugestão de Waldman que Tolkien escreveu a carta seguinte - cujo
texto integral contém cerca de dez mil palavras - com a intenção de
demonstrar que O Senhor dos Anéis e O Silmarillion eram
interdependentes e indivisíveis. A carta, que tanto interesse
provocou em Waldman que ele mandou copiá-la à máquina (vide o
final da carta nº 137), não está datada, mas provavelmente foi
escrita no final de 1951.]

Meu caro Milton,

Você solicitou um breve esboço de meu material, em conexão com meu mundo
imaginário. É difícil dizer qualquer coisa sem dizer demais: a tentativa de dizer algumas poucas
palavras abre uma represa de entusiasmo, o egoísta e artista deseja imediatamente dizer como o
material cresceu, com que se parece, e o que (ele pensa que) quer significar ou está tentando
representar com tudo isso. Vou impingir-lhe um pouco disso; mas vou anexar um mero resumo
do seu conteúdo: o que é (pode ser) tudo que você quer ou terá oportunidade ou tempo de usar.
Em ordem de tempo, crescimento e composição, este material começou comigo - apesar
de eu não supor que isso seja de grande interesse a alguém que não eu mesmo. Quero dizer que
não me lembro de uma época quando eu não o estava construindo. Muitas crianças inventam, ou
começam a inventar, línguas imaginárias. Tenho me ocupado com isso desde que aprendi a
escrever. Mas nunca parei, e é claro que, como filólogo profissional (interessado especialmente
na estética lingüística), mudei meus gostos, melhorei minha teoria e provavelmente minha
habilidade. Por detrás de minhas histórias existe agora um nexo de idiomas (na sua maioria
esboçadas apenas estruturalmente). Mas com aquelas criaturas que, em inglês, eu enganosamente
chamo de Elves [elfos] foram associadas duas línguas aparentadas bastante completas, cuja
história está escrita, e cujas formas (representando duas facetas diversas do meu próprio gosto
lingüístico) são cientificamente deduzidas a partir de uma origem comum. A partir dessas línguas
formaram-se quase todos os nomes que aparecem em minhas lendas. Isso confere um certo
caráter (uma coesão, uma consistência de estilo lingüístico e uma ilusão de historicidade) à
nomenclatura, ou assim creio, que está notavelmente ausente de outras coisas comparáveis. Nem
todos considerarão isto tão importante quanto eu, visto que sou amaldiçoado com uma aguda
sensibilidade nesse assunto.

Mas ab initio tive uma paixão igualmente básica pelos mitos (não alegorias!) e pelos
contos de fadas, e acima de tudo pelas lendas heróicas no limiar dos contos de fadas e da história,
de que existe muito pouco no mundo (acessível a mim) para meu apetite. Tornei-me universitário
antes que a reflexão e a experiência me revelassem que tais interesses não eram divergentes –
pólos opostos de ciência e romance - e sim integralmente relacionados. Não sou porém "erudito"
em termos de mitos e contos de fadas, pois em tais coisas (até onde sei) sempre estive à busca de
material, de coisas que possuíssem um certo tom e um certo ar, e não apenas conhecimento.
Também – e espero não soar absurdo - desde tempos remotos entristecia-me a pobreza de meu
próprio país amado: não possuía suas próprias histórias (ligadas à sua língua e ao seu solo), não
da qualidade que eu buscava, e que se acham (como ingredientes) nas lendas de outras terras.
Havia o grego, e o celta, e o romance, o germânico, o escandinavo e o finlandês (que me afetou
consideravelmente); mas nada inglês, a não ser materiais empobrecidos de literatura de cordel. É
claro que existia e existe todo o mundo arturiano, mas este, por muito poderoso que seja, foi
naturalizado de forma imperfeita, associado com o solo britânico mas não com a língua inglesa; e
não substitui o que eu sentia estar faltando. Por um lado sua "faerie" [terra encantada] é
demasiado opulenta, e fantástica, incoerente e repetitiva. Por outro lado, mais importante: está
envolta, e explicitamente contém, a religião cristã.

Por razões que não elaborarei, isso me parece fatal. Mitos e contos de fadas, como toda
arte, precisam refletir e conter em solução elementos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas
não explicitamente, não na forma conhecida do mundo primário e "real". (Refiro-me, é claro, à
nossa situação presente, não aos antigos dias pagãos, pré-cristãos. E não repetirei o que tentei
dizer em meu ensaio, que você leu.)

Não ria! Mas certa vez (há muito tempo minha crista caiu) tive a intenção de produzir um
corpo de lendas mais ou menos interligadas, que abrangesse desde o amplo e o cosmogônico até
o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor
sorvendo esplendor do vasto pano de fundo – cuja dedicatória pudesse ser simplesmente: à
Inglaterra; ao meu país. Deveria possuir o tom e a qualidade que eu desejava, sereno e claro, com
a fragrância do nosso “ar” (o clima e o solo do Noroeste, isto é, da Grã-Bretanha e das regiões
européias mais próximas: não a Itália ou o Egeu, muito menos o Oriente); possuiria (se eu
conseguisse) a beleza graciosa e fugidia que alguns chamam céltica (apesar de raramente
encontrada nas antigüidades célticas genuínas), mas deveria, ao mesmo tempo, ser “elevado”,
purgado do tosco, digno de uma mente mais adulta, de uma terra há muito impregnada de poesia.
Eu delinearia alguns dos grandes contos na sua plenitude, e deixaria muitos apenas situados no
esquema, apenas esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso, e ainda assim
deixar espaço para outras mentes e mãos, munidas de tinta, música, drama. Absurdo.

É claro que um tal propósito dominante não se desenvolveu de uma só vez. O importante
eram as próprias histórias. Surgiram em minha mente como coisas "dadas", e à medida que
chegavam, separadamente, cresciam também as conexões. Um labor absorvente, apesar de
continuamente interrompido (especialmente visto que, mesmo à parte das necessidades da vida, a
mente esvoaçava para o pólo oposto e se consumia na lingüística): porém sempre tive a sensação
de estar registrando o que já estava "lá", em algum lugar: não de estar "inventando".

É claro que inventei e até escrevi muitas outras coisas (especialmente para meus filhos).
Algumas escaparam às garras daquele tema ganancioso que se ramificava, pois afinal eram
radicalmente sem relação: Leaf by Niggle e Farmer Giles, por exemplo, as duas únicas que foram
publicadas. O Hobbit, que contém muito mais vida essencial, foi concebido de modo totalmente
independente: ao iniciá-lo eu não sabia que ele fazia parte. Mas ele demonstrou ser a descoberta
de como completar o ciclo, do seu modo de descida à terra, e de como encaixá-lo na "história".
Assim como as altas Lendas do começo pretendem enxergar tudo através das mentes élficas, o
relato mediano do Hobbit assume um ponto de vista virtualmente humano – e o último conto os
conjuga.

Desagrada-me a Alegoria – a alegoria consciente e intencional – e no entanto qualquer


tentativa de explicar o sentido dos mitos ou dos contos de fadas deve empregar uma linguagem
alegórica. (E, é claro, quanto mais "vida" uma história contém, mais prontamente ela será
suscetível a interpretações alegóricas: enquanto que, quanto mais bem feita uma alegoria
deliberada, mais depressa será aceitável como simples história.) Seja como for, todo este material
<c> ocupa-se principalmente da Queda, da Mortalidade e da Máquina. Inevitavelmente com a
Queda, e esse motivo ocorre em diversos modos. Com a Mortalidade, especialmente na medida
em que esta afeta a arte e o desejo criativo (ou, como eu diria, subcriativo) que parece não ter
função biológica, e ser algo distinto das satisfações da simples e ordinária vida biológica, com
que de fato costuma competir em nosso mundo. Esse desejo está ao mesmo tempo associado com
um amor apaixonado pelo mundo real e primário, e portanto repleto do senso de mortalidade, e
no entanto insatisfeito por ele. Possui diversas oportunidades para "Queda". Pode tornar-se
possessivo, agarrando-se às coisas feitas como sendo "suas próprias", o subcriador deseja ser o
Senhor e Deus de sua criação particular. Rebela-se contra as leis do Criador - em especial contra
a mortalidade. Essas duas coisas (isoladas ou juntas) conduzem ao desejo do Poder, para mais
depressa tornar a vontade eficaz – e desse modo à Máquina (ou Magia). Com este último termo
quero expressar todos os usos de planos ou estratagemas (aparelhos) externos ao invés do
desenvolvimento dos poderes ou talentos interiores inerentes – ou mesmo do uso de tais poderes
com o motivo corrupto da dominação: atropelar o mundo real ou constranger outras vontades. A
Máquina é nossa forma moderna mais óbvia, apesar de estar relacionada mais intimamente com a
Magia do que se costuma reconhecer.
Não usei "magia" consistentemente, e de fato a rainha élfica Galadriel é obrigada a
censurar os hobbits pelo seu uso confuso dessa palavra, tanto para os estratagemas e as operações
do Inimigo quanto para aqueles dos elfos. Não usei aquele termo porque não existe palavra para
estas últimas (visto que todas as histórias humanas sofreram a mesma confusão). Mas os elfos
existem (em meus contos) para demonstrar a diferença. A "magia" deles é Arte, purificada de
muitas das suas limitações humanas: com menos esforço, mais rápida, mais completa (produto e
visão em correspondência sem vício). E seu objeto é Arte, não Poder; subcriação, não dominação
e reforma tirânica da Criação. Os "elfos" são "imortais", pelo menos na medida deste mundo: e
portanto ocupam-se mais dos pesares e fardos da imortalidade no tempo e na mudança do que da
morte. O Inimigo, em formas sucessivas, sempre se ocupa "naturalmente" da mera Dominação,
sendo o Senhor da magia e das máquinas; mas o problema de que esse terrível mal pode surgir, e
surge, de uma raiz aparentemente boa, do desejo de fazer o bem ao mundo e aos demais –
rapidamente e de acordo com os planos do próprio benfeitor - é um motivo recorrente.

Os ciclos começam com um mito cosmogônico: a Música dos Ainur. Deus e os Valar (ou
poderes: vertidos por deuses) revelam-se. Estes últimos são, como diríamos nós, poderes
angélicos, cuja função é exercer a autoridade delegada em suas esferas (de domínio e governo,
não criação, fazer ou refazer). São "divinos", isto é, originalmente estavam "fora" e existiam
"antes" de ser feito o mundo. Seu poder e sua sabedoria derivam-se do seu Conhecimento do
drama cosmogônico, que perceberam primeiro como drama (ou seja, de certo modo como nós
percebemos uma história composta por outrem), e mais tarde como "realidade". Pelo aspecto da
mera estratégia narrativa, é claro que isto foi feito para proporcionar seres da mesma ordem de
beleza, poder e majestade que os "deuses" da alta mitologia, que ainda assim podem ser aceitos –
bem, digamos apenas aceitos, por uma mente que creia na Sagrada Trindade.

Depois deslocamo-nos rapidamente para a História dos Elfos, ou o Silmarillion


propriamente dito; para o mundo como o percebemos, mas evidentemente transfigurado em um
modo ainda semi-mítico: isto quer dizer que trata de criaturas encarnadas racionais de estatura
mais ou menos comparável à nossa. O Conhecimento do Drama da Criação estava incompleto:
incompleto em cada "deus" individual, e incompleto se fosse reunido todo o conhecimento do
panteão. Pois (em parte para compensar o mal do rebelde Melkor, em parte para tudo completar
em definitiva fineza de detalhes) o Criador não revelara tudo. A criação e a natureza dos Filhos
de Deus eram os dois principais segredos. Tudo o que os deuses sabiam era que eles viriam, em
épocas pré-determinadas. Assim, os Filhos de Deus são primevamente relacionados e
aparentados, e primevamente diferentes. Visto que são também algo totalmente "diverso" dos
deuses, em cuja criação os deuses não participaram, são objeto do especial desejo e amor dos
deuses. São os Primogênitos, os Elfos, e os Seguidores, os Homens. O destino dos Elfos é serem
imortais, amarem a beleza do mundo, levarem-no ao pleno florescimento com suas dádivas de
delicadeza e perfeição, durarem enquanto ele durar, sem o deixarem jamais mesmo quando são
"mortos", porém retornando – e no entanto, quando chegarem os Seguidores, ensinarem-nos e
abrirem caminho para eles, "desvanecerem-se" enquanto os Seguidores crescem e absorvem a
vida da qual ambos provêm. O Destino (ou a Dádiva) dos Homens é a mortalidade, a liberdade
dos círculos do mundo. Como é élfico o ponto de vista de todo o ciclo, a mortalidade não é
explicada em termos míticos: é um mistério de Deus do qual nada mais se sabe senão que "o que
Deus destinou aos Homens está oculto": pesar e inveja dos Elfos imortais.
Como disse, o lendário Silmarillion é peculiar, e difere de todas as coisas semelhantes que
conheço por não ser antropocêntrico. Seu centro de vista e interesse não são os homens, e sim os
"elfos". Os homens entraram de modo inevitável: afinal de contas o autor é um homem, e se tiver
platéia será de homens, e os homens devem ingressar em nossas histórias como tais, e não
meramente transfigurados ou parcialmente representados como elfos, anões, hobbits etc. Porém
permanecem periféricos – retardatários, e por muito que cresçam em importância não são atores
principais.

Na cosmogonia há uma queda: uma queda de Anjos, diríamos. Apesar de evidentemente


ser bem diversa, na forma, da do mito cristão. Estas histórias são "novas", não derivam
diretamente de outros mitos e lendas, mas precisam inevitavelmente conter uma ampla medida de
motivos ou elementos antigos e difundidos. Afinal, creio que lendas e mitos são compostos
mormente da "verdade", e de fato apresentam aspectos desta que só podem ser recebidos neste
modo; e muito tempo atrás certas verdades e certos modos desta espécie foram descobertos e
devem ressurgir sempre. Não pode existir "história" sem queda - todas as histórias acabam sendo
sobre a queda – pelo menos não para mentes humanas tais como as conhecemos e possuímos.

Assim, prosseguindo, os elfos sofrem uma queda, antes que sua "história" possa tornar-se
histórica. (A primeira queda do Homem, por razões explicadas, não aparece em nenhum lugar –
os Homens só entram em cena quando tudo isso está no passado remoto, e há apenas um rumor
de que por algum tempo sucumbiram ao domínio do Inimigo, e de que alguns se arrependeram.)
O corpo principal do relato, o Silmarillion propriamente dito, trata da queda da mais talentosa
linhagem dos elfos, do seu exílio de Valinor (uma espécie de Paraíso, o lar dos Deuses) no mais
remoto Ocidente, da sua reentrada na Terra-média, sua região natal, mas há muito sob o domínio
do Inimigo, e do seu combate contra ele, o poder do Mal ainda visivelmente encarnado. Tem esse
nome porque todos os eventos se interligam com o destino e o significado das Silmarilli
("radiância de pura luz"), ou Jóias Primevas. Na feitura das jóias está principalmente simbolizada
a função subcriativa dos elfos, mas as Silmarilli eram mais do que apenas coisas belas em si.
Havia a Luz. Havia a Luz de Valinor tornada visível nas Duas Árvores de Prata e Ouro. Foram
mortas pelo Inimigo por malevolência, e Valinor escureceu-se, porém a partir delas, antes de
morrerem por completo, derivaram as luzes do Sol e da Lua. (Há aqui uma diferença notável
entre estas lendas e a maioria das demais, em que o Sol não é um símbolo divino, e sim um
objeto de segunda categoria, e a "luz do Sol" (o mundo sob o sol) torna-se um termo que denota
um mundo decaído, e uma visão imperfeita e deslocada.)

Mas o principal artífice dos elfos (Fëanor) havia aprisionado a Luz de Valinor nas três
jóias supremas, as Silmarilli, antes que as Árvores fossem conspurcadas ou mortas. Assim,
depois disso essa Luz sobreviveu apenas nas jóias. A queda dos elfos ocorre como conseqüência
da atitude possessiva de Fëanor e seus sete filhos em relação a essas jóias. São capturadas pelo
Inimigo, engastadas em sua Coroa de Ferro e vigiadas em sue fortaleza impenetrável. Os filhos
de Fëanor fazem um terrível e blasfemo juramento de inimizade e vingança contra todos e cada
um, mesmo dentre os deuses, que ouse reivindicar parte ou direito às Silmarilli. Pervertem a
maior parte da sua linhagem, que se rebela contra os deuses, abandona o paraíso a vai mover
guerra sem esperança contra o Inimigo. O primeiro fruto da sua queda é a guerra no Paraíso, o
assassinato de elfos por elfos, e esse fato e seu juramento malévolo corrompem todo o seu
heroísmo subseqüente, gerando traições e desfazendo todas as vitórias. O Silmarillion é a história
da Guerra dos Elfos Exilados contra o Inimigo, que se passa toda ela no noroeste do mundo
(Terra-média). Vários contos de vitória e tragédia misturam-se a ela; mas ela termina em
catástrofe, e com o fim do Mundo Antigo, o mundo da longa Primeira Era. As jóias são
recuperadas (pela intervenção final dos deuses) apenas para se perderem dos elfos eternamente,
uma no mar, uma nas profundezas da terra e uma como estrela do firmamento. Este legendário
termina com uma visão do fim do mundo, sua ruptura e reconstrução, e a recuperação das
Silmarilli e da "luz antes do Sol" - após uma batalha final que, suponho, deve mais à visão
nórdica de Ragnarök que a qualquer outra coisa, apesar de não se parecer muito com ela.

À medida que as histórias se tornam menos míticas e mais semelhantes a contos e


romances, os homens entrelaçam-se com elas. Na sua maior parte são "homens bons" – famílias e
seus chefes que, rejeitando o serviço do Mal e ouvindo rumores sobre os Deuses do Ocidente e os
Altos-Elfos, fogem para o oeste e entram em contato com os Elfos Exilados em meio à sua
guerra. Os homens que aparecem são principalmente os das Três Casas dos Pais deles, cujos
líderes se tornam aliados dos senhores élficos. O contato entre homens e elfos já prefigura a
história das Eras posteriores, e um tema recorrente é a idéia de que nos homens (tais como são
agora) existe uma linha de "sangue" e hereditariedade, derivada dos elfos, e de que a arte e poesia
dos homens em grande medida dependem dela, ou são modificadas por ela. Ocorrem, assim, dois
casamentos entre humano e elfo - e ambas mais tarde convergem na linhagem de Earendil,
representada por Elrond, o Meio-Elfo que aparece em todas as histórias, até mesmo n'O Hobbit.
A principal história d'O Silmarillion, a que recebe o tratamento mais pleno, é a História de Beren
e Lúthien, a Donzela Élfica. Ali encontramos, entre outras coisas, o primeiro exemplo do motivo
(que se tornará dominante nos hobbits) de que as grandes políticas da história mundial, "as rodas
do mundo", freqüentemente não são giradas pelos Senhores e Governantes, nem pelos deuses,
mas pelos aparentemente desconhecidos e fracos - devido à vida secreta que há na criação, e ao
papel inescrutável a todo saber exceto Um, que reside nas intrusões dos Filhos de Deus no
Drama. É Beren, o mortal proscrito, quem tem sucesso (com a ajuda de Lúthien, uma simples
donzela, apesar de elfa pertencente à realeza) onde todos os exércitos e guerreiros falharam:
penetra na fortaleza do Inimigo e arranca uma das Silmarilli da Coroa de Ferro. Ganha assim a
mão de Lúthien, e concretiza-se o primeiro casamento entre mortal e imortal.

Como tal, a história é um romance de fadas heróico (belo e poderoso, na minha opinião),
receptível por si só, mesmo que se tenha um conhecimento vago, muito geral, do pano de fundo.
Mas é também um elo fundamental do ciclo, destituído de seu pleno significado se for deslocado
do lugar que ali ocupa. Pois a captura da Silmaril, uma vitória suprema, conduz ao desastre. O
juramento dos filhos de Fëanor torna-se operante, e o desejo da Silmaril leva à ruína todos os
reinos dos elfos.

Há outras histórias tratadas quase com a mesma plenitude, e igualmente independentes, e


no entanto ligadas à história geral. Há os Filhos de Húrin, o conto trágico de Túrin Turambar e
sua irmã Níniel – em que Túrin é o herói: um vulto que pode ser considerado (por quem aprecie
essa tipo de coisa, apesar de não ser muito útil) como derivado de elementos de Sigurd, o
Volsung, de Édipo e do Kullervo finlandês. Há a Queda de Gondolin: a principal fortaleza élfica.
E o conto, ou os contos, de Earendil, o Peregrino. Ele é importante como sendo a pessoa que
conduz o Silmarillion à sua conclusão, e que na sua descendência proporciona os principais elos
com pessoas nas histórias das Eras posteriores. Sua função, como representante de ambas as
Famílias, Elfos e Homens, é encontrar uma passagem marítima que reconduza à Terra dos
Deuses, e persuadi-los, como embaixador, a se preocuparem outra vez com os Exilados, terem
compaixão deles e os salvarem do Inimigo. Sua esposa Elwing descende de Lúthien e ainda
possui a Silmaril. Mas a maldição ainda funciona, e o lar de Earendil é destruído pelos filhos de
Fëanor. Mas surge daí a solução: Elwing, lançando-se ao Mar para salvar a Jóia, chega até
Earendil, e graças ao poder da grande Pedra eles finalmente alcançam Valinor e realizam sua
missão - ao custo de nunca mais lhes ser permitido voltar ou habitar outra vez com os elfos ou os
homens. Então os deuses agem novamente, e um grande poder emerge do Ocidente, e a Fortaleza
do Inimigo é destruída, e ele próprio [é] expulso do Mundo para o Nada, para nunca mais
ressurgir em forma encarnada. As duas Silmarils restantes são recuperadas da Coroa de Ferro –
apenas para serem perdidas. Os dois últimos filhos de Fëanor roubam-nas compelidos pelo
juramento, e são destruídos por elas, lançando-se no mar e nas profundezas da terra. O navio de
Earendil, adornado com a última Silmaril, é colocado no firmamento como a mais brilhante das
estrelas. Assim terminam O Silmarillion e os contos da Primeira Era.

O próximo ciclo trata (ou trataria) da Segunda Era. Mas essa é uma era obscura na Terra,
e conta-se (ou precisa-se contar) pouca coisa da sua história. Nas grandes batalhas contra o
Primeiro Inimigo as terras foram rompidas e arruinadas, e o oeste da Terra-média tornou-se
desolado. Ficamos sabendo que os Elfos Exilados foram, se não comandados, ao menos
severamente aconselhados a retornarem ao Ocidente, e lá ficarem em paz. Não deveriam habitar
permanentemente em Valinor outra vez, e sim na Ilha Solitária de Eressëa, à vista do Reino
Abençoado. Os Homens das Três Casas foram recompensados por seu valor e pela aliança fiel, e
foi-lhes permitido habitar como "mais ocidentais de todos os mortais" na grande ilha "Atlântida"
de Númenóre. O destino ou presente de Deus, a mortalidade, evidentemente não pode ser abolido
pelos deuses, mas os númenorianos possuem uma vida de longa duração. Fazem-se ao mar e
deixam a Terra-média, e estabelecem um grande reino de marinheiros no mais longínquo limite
da vista de Eressëa (porém não de Valinor). A maioria dos Altos-Elfos também parte de volta
para o Ocidente. Nem todos. Alguns homens aparentados com os númenorianos permanecem nas
terras próximas à beira do Mar.

Alguns dos Exilados não querem retornar, ou atrasam seu retorno (pois o caminho para o
oeste está sempre aberto aos imortais, e nos Portos Cinzentos os navios estão sempre prontos a
zarparem e partirem até nunca mais). Tampouco os orcs e outros monstros produzidos pelo
Primeiro Inimigo foram destruídos totalmente. E há Sauron. No Silmarillion e nos Contos da
Primeira Era Sauron era um ser de Valinor pervertido ao serviço do Inimigo, tendo-se tornado
seu principal capitão e servidor. Ele se arrepende de medo quando o Primeiro Inimigo é derrotado
por completo, mas acaba não fazendo o que lhe tinha sido ordenado, que é voltar para ser julgado
pelos deuses. Fica na Terra-média. Muito lentamente, começando com motivos razoáveis: a
reorganização e reabilitação da ruína da Terra-média, "negligenciada pelos deuses", ele se
transforma numa reencarnação do Mal e em um ser que anseia pelo Poder Completo - portanto
consumido ainda mais ferozmente pelo ódio (especialmente dos deuses e dos elfos). Através de
todo o crepúsculo da Segunda Era a Sombra cresce no leste da Terra-média, espalhando cada vez
mais seu domínio sobre os homens – que se multiplicam à medida que os elfos começam a
desvanecer-se. Assim, os três temas principais são: os Elfos Retardatários que se demoraram na
Terra-média; o crescimento de Sauron, tornando-se um novo senhor da Escuridão, mestre e deus
dos homens; e Númenor-Atlântida. São tratados através de anais, e em dois Contos ou Relatos,
Os Anéis de Poder e a Queda de Númenor. Ambos são o pano de fundo essencial d'O Hobbit e de
sua continuação.
No primeiro vemos uma espécie de segunda queda, ou pelo menos "erro", dos elfos.
Essencialmente nada havia de errado em demorarem-se a despeito dos conselhos, ainda
tristemente com as terras mortais de seus antigos feitos heróicos. Mas queriam ter o bolo sem
precisarem comê-lo. Queriam a paz, a felicidade e a lembrança perfeita d'"O Ocidente", e ainda
assim permanecer na terra comum, onde seu prestígio como o mais elevado dos povos, acima dos
elfos selvagens, dos anões e dos homens, era maior do que na base da hierarquia de Valinor.
Tornaram-se assim obcecados com "desvanecer-se", o modo pelo qual as mudanças do tempo (a
lei do mundo sob o sol) eram percebidas por eles. Tornaram-se tristes, e sua arte (digamos)
antiquária, e todos os seus esforços na verdade uma espécie de embalsamamento - apesar de
também reterem o antigo motivo da sua espécie, o adorno da terra e a cura de suas feridas.
Ouvimos falar de um reino tardante, no extremo noroeste, mais ou menos onde ficavam os
remanescentes da antigas terras d'O Silmarillion, sob Gilgalad; e de outros povoados, tais como
Imladris (Valfenda) junto a Elrond; e de um grande em Eregion, nos contrafortes ocidentais das
Montanhas da Névoa, adjacente às Minas de Moria, o importante reino dos anões na Segunda
Era. Lá surgiu uma amizade entre gente normalmente hostil (elfos e anões) pela primeira e única
vez, e o trabalho dos metais atingiu seu desenvolvimento mais alto. Mas muitos dos elfos deram
ouvidos a Sauron. Naquela época primitiva ele ainda era belo, e seus motivos e os dos elfos
pareciam coincidir em parte: a cura das terras desoladas. Sauron encontrou o ponto fraco deles ao
sugerir que, auxiliando-se entre si, poderiam tornar a Terra-média tão bela quanto Valinor. Era
realmente um ataque velado aos deuses, uma incitação para tentar estabelecer um paraíso
independente em separado. Gil-galad rechaçou todas essas abordagens, bem assim como Elrond.
Mas em Eregion iniciou-se uma grande obra – e os elfos chegaram o mais perto possível de
sucumbirem à "magia" e ao maquinário. Com a ajuda do saber de Sauron, fizeram Anéis de
Poder ("poder" é uma palavra agourenta e sinistra em todos estes contos, exceto quando se aplica
aos deuses).

O principal poder (de todos ao anéis igualmente) era a prevenção ou o retardamento da


deterioração (isto é, da “mudança” vista como coisa lamentável), a preservação do que se deseja
ou ama, ou de sua aparência – este é mais ou menos um motivo élfico. Mas também reforçavam
os poderes naturais do possuidor – aproximando-se assim da “magia”, um motivo facilmente
corruptível ao mal, uma ânsia de dominação. E tinham por fim outros poderes, derivados mais
diretamente de Sauron (“o Necromante”: assim é chamado enquanto lança uma sombra e um
presságio fugidios nas páginas d’O Hobbit): tais como tornar invisível o corpo material, e tornar
visíveis objetos do mundo invisível.

Os elfos de Eregion fizeram Três anéis supremamente belos e poderosos, quase que
unicamente da sua própria imaginação, e dirigiram-nos à preservação da beleza: não conferiam
invisibilidade. Mas secretamente, no Fogo subterrâneo, em sua própria Terra Negra, Sauron fez
Um Anel, o Anel Governante que continha os poderes de todos os demais, e os controlava, de
modo que quem o usasse pudesse ver os pensamentos de todos os que usavam os anéis menores,
governar tudo o que faziam, e no final escravizá-los por completo. Não contou, porém, com a
sabedoria e as sutis percepções dos elfos. No momento em que assumiu o Um, eles se deram
conta disso, e de seu propósito secreto, e tiveram medo. Esconderam os Três Anéis, de forma que
nem mesmo Sauron jamais descobriu onde estavam, e permaneceram imaculados. Os outros eles
tentaram destruir.

Na guerra que resultou entre Sauron e os elfos, a Terra-média, especialmente no oeste, foi
arruinada ainda mais. Eregion foi capturada e destruída, e Sauron apossou-se de muitos Anéis de
Poder. Estes ele deu, para sua total corrupção e escravização, aos que os aceitaram (por ambição
ou cobiça). Vem daí a “antiga rima” que aparece como Leitmotiv d’O Senhor dos Anéis,

Três Anéis para os Reis Elfos sob este céu,


Sete para os Senhores Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.

Assim Sauron tornou-se quase supremo na Terra-média. Os elfos subsistiam em lugares


secretos (ainda não revelados). O último Reino Élfico de Gil-galad é mantido precariamente nas
costas do extremo oeste, onde ficam os portos dos Navios. Elrond, o Meio-Elfo, filho de
Earendil, mantém uma espécie de refúgio encantado em Imladris (em inglês Rivendell
[Valfenda]) na extrema margem leste das terras ocidentais. Mas Sauron domina todas as hordas
dos homens, que se multiplicam e não tiveram contato com os elfos, nem portanto indiretamente
com os verdadeiros Valar e deuses não-decaídos. Governa um império crescente desde a grande
torre negra de Barad-dûr em Mordor, perto da Montanha de Fogo, empunhando o Um Anel.

Mas para realizar isto ele fora obrigado a deixar passar para o Um Anel grande parte do
seu próprio poder inerente (um motivo freqüente e muito significativo nos mitos e contos de
fadas). Enquanto o usava, seu poder na terra era de fato amplificado. Mas mesmo quando não o
usava esse poder existia e estava em "concordância" com ele: ele não era "diminuído". A não ser
que alguém mais o tomasse e fosse possuído por ele. Se isso acontecesse, o novo possuidor
poderia (caso fosse por natureza forte e heróico o bastante) desafiar Sauron, assenhorear-se de
tudo o que ele aprendera ou fizera desde a feitura do Um Anel, e assim derrotá-lo e usurpar seu
lugar. Esta era a fraqueza essencial que ele introduzira em sua situação, no esforço (em grande
parte infrutífero) de escravizar os elfos, e em seu desejo de estabelecer controle sobre as mentes e
as vontades de seus servos. Havia outra fraqueza: se o Um Anel fosse efetivamente desfeito,
aniquilado, então seu poder seria dissolvido, o próprio ser de Sauron seria diminuído a ponto de
desaparecer, e ele se reduziria a uma sombra, uma mera lembrança de vontade malévola. Mas tal
coisa ele jamais contemplou nem temeu. O Anel era inquebrável por qualquer arte de ourives
menor que a sua própria. Era indissolúvel em qualquer fogo, exceto pelo imortal fogo subterrâneo
onde fora feito - e este estava inatingível, em Mordor. Também era tão grande o poder de avidez
do Anel que qualquer pessoa que o usasse ficava dominado por ele; estava além da força de
qualquer vontade (mesmo da sua própria) danificá-lo, jogá-lo fora ou deixá-lo de lado. Assim ele
pensava. De qualquer maneira, estava em seu dedo.

Assim, à medida que a Segunda Era avança, temos um grande Reino e teocracia do mal
(pois Sauron é também o deus dos seus escravos) crescendo na Terra-média. No oeste – na
verdade o noroeste é a única região claramente focalizada nestes contos – ficam os precários
refúgios dos elfos, enquanto que os homens daquelas terras permanecem mais ou menos
incorruptos, se bem que ignorantes. De fato, os melhores e mais nobres filhos dos homens são
aparentados com aqueles que haviam partido para Númenor, mas permanecem num simples
estado "homérico" de vida patriarcal e tribal.

Enquanto isso Númenor cresceu em riqueza, sabedoria e glória sob sua linhagem de
grandes reis de vida longa, descendentes diretos de Elros, filho de Earendil, irmão de Elrond. A
Queda de Númenor, a Segunda Queda dos Homens (ou dos homens reabilitados, mas ainda
mortais) precipita o fim catastrófico, não apenas da Segunda Era, mas do Mundo Antigo, do
mundo primevo das lendas (visto como plano e limitado). Depois disso começou a Terceira Era,
uma Era de Crepúsculo, um Medium Aevum, a primeira do mundo rompido e mudado; a última
do domínio remanescente de elfos visíveis e completamente encarnados, e também a última em
que o Mal assume uma única forma encarnada dominante.

A Queda é em parte resultado de uma fraqueza interior dos homens – conseqüência, se


assim quisermos, da primeira Queda (não registrada nestes contos), arrependidos, mas não
curados definitivamente. A recompensa na terra é mais perigosa para os homens que a punição!
A Queda ocorre devido à astúcia de Sauron ao explorar esta fraqueza. Seu tema central é
(inevitavelmente, penso eu, numa história sobre homens) uma Interdição ou Proibição.

Os númenorianos habitam à vista remota da mais oriental terra "imortal", Eressea; e,


como únicos homens a falarem uma língua élfica (aprendida nos dias da sua Aliança), estão em
constante comunicação com seus antigos amigos e aliados, seja na felicidade de Eressea, seja no
reino de Gil-galad nas costas da Terra-média. Assim, tornaram-se na aparência, e mesmo nos
poderes da mente, quase indiferençáveis dos elfos – mas permaneceram mortais, apesar de
recompensados com uma duração de vida tripla, ou mais do que tripla. Sua recompensa é sua
ruína – ou o meio da sua tentação. Sua vida longa favorece suas realizações na arte e na
sabedoria, mas cria uma atitude possessiva em relação a essas coisas, e desperta o desejo de mais
tempo para desfrutá-las. Antevendo isto parcialmente, os deuses desde o início impuseram aos
númenorianos uma Interdição: jamais deviam navegar até Eressëa, nem para o oeste até perderem
de vista sua própria terra. Em todas as outras direções podiam ir aonde quisessem. Não deviam
pôr os pés em terras "imortais", enamorando-se assim por uma imortalidade (dentro do mundo)
que era contra sua lei, o destino ou presente de Ilúvatar (Deus), e que sua natureza não podia
suportar de fato.

Há três fases em sua queda da graça. Primeiro a aquiescência, a obediência que é livre e
voluntária, porém sem compreensão completa. Depois por muito tempo obedecem contra a
vontade, murmurando cada vez mais abertamente. Por fim rebelam-se – e um cisma surge entre
os homens do Rei e rebeldes, e a pequena minoria dos Fiéis perseguidos.

Na primeira etapa, visto que são homens de paz, sua coragem dedica-se às viagens
marítimas. Como descendentes de Earendil, tornam-se os marinheiros supremos, e já que o
Ocidente lhes está interdito navegam até o extremo norte, e sul, e leste. Chegam, mormente, às
costas ocidentais da Terra-média, onde auxiliam os elfos e os homens contra Sauron, e incorrem
no ódio imorredouro deste. Naqueles dias surgiam entre os Homens Selvagens como benfeitores
quase divinos, trazendo presentes de arte e conhecimento, e partindo outra vez – deixando para
trás muitas lendas de reis e deuses vindos do poente.

Na segunda etapa, nos dias de Orgulho e Glória e ressentimento da Interdição, começam a


buscar riqueza em lugar de felicidade. O desejo de escapar à morte produziu um culto aos
falecidos, e despenderam fortuna e arte em túmulos e memoriais. Estabeleciam agora povoados
nas costas ocidentais, mas estes se tornaram antes fortalezas e "feitorias" de senhores em busca
de fortuna, e os númenorianos transformaram-se em coletores de impostos que levavam por sobre
o mar cada vez mais e mais bens em seus grandes navios. Os númenorianos começaram a forjar
armas e máquinas.

Esta etapa terminou e a última começou com a ascensão ao trono do décimo terceiro rei
da linhagem de Elros, Tar-Calion, o Dourado, o mais poderoso e orgulhoso de todos os reis.
Quando soube que Sauron assumira o título de Rei dos Reis e Senhor do Mundo, resolveu
rebaixar o "pretendente". Dirige-se à Terra-média com potência e majestade, e tão vasto é o seu
armamento, e tão terríveis são os númenorianos nos dias de sua glória que os servos de Sauron
não os enfrentam. Sauron humilha-se, presta homenagem a Tar-Calion, e é levado para Númenor
como refém e prisioneiro. Lá, porém, graças à sua astúcia e seu conhecimento, depressa se ergue
de servo a principal conselheiro do rei, e seduz o rei e a maioria dos senhores e do povo com suas
mentiras. Nega a existência de Deus, dizendo que o Único é uma mera invenção dos invejosos
Valar do Ocidente, o oráculo dos próprios desejos deles. O principal dentre os deuses é aquele
que habita no Nada, que triunfará no final, e no nada construirá infinitos reinos para seus servos.
A Interdição é apenas um mentiroso estratagema de medo para impedir os Reis dos Homens de se
apossarem da vida eterna e rivalizarem com os Valar.

Surge uma nova religião, e adoração das Trevas, com seu templo subordinado a Sauron.
Os Fiéis são perseguidos e sacrificados. Os númenorianos também levam seu mal à Terra-média,
e lá se transformam em cruéis e malvados senhores da necromancia, matando e atormentando os
homens, e às antigas lendas se sobrepõem obscuros relatos de horror. Isto, porém, não ocorre no
noroeste; pois para lá, por causa dos elfos, só vão os Fiéis que continuam amigos-dos-Elfos. O
principal porto dos bons númenorianos fica próximo à foz do grande rio Anduin. De lá, a
influência ainda benéfica de Númenor se espalha Rio acima e ao longo das costas, avançando
para o norte até o reino de Gil-galad, à medida que se desenvolve uma Língua Geral.

Mas por fim o complô de Sauron se concretiza. Tar-Calion sente a aproximação da


velhice e da morte, e dá ouvidos ao último incentivo de Sauron, e, tendo construído a maior das
armadas, zarpa para o Ocidente, rompendo a Interdição e levando a guerra para arrancar dos
deuses "a vida eterna dentro dos círculos do mundo". Confrontados com esta rebelião, de
espantosa loucura e blasfêmia, e também perigo real (visto que os númenorianos dirigidos por
Sauron poderiam causar ruína na própria Valinor), os Valar depõem seu poder delegado e apelam
para Deus, e recebem o poder e a permissão de lidarem com a situação; o mundo antigo é
rompido e mudado. Um precipício abre-se no mar, e Tar-Calion e sua armada submergem. A
própria Númenor, à beira da fenda, desaba e com toda a sua glória desaparece para sempre no
abismo. Depois disso não existe habitação visível do divino ou imortal na terra. Valinor (ou o
Paraíso) e até mesmo Eressëa são removidos, permanecendo apenas na lembrança da terra. Os
homens podem agora navegar para o oeste, se quiserem, até onde conseguirem, sem se
aproximarem de Valinor nem do Reino Abençoado, mas apenas retornando ao leste e de volta
outra vez; pois o mundo é redondo, e finito, e um círculo inescapável – exceto pela morte.
Somente os "imortais", os elfos remanescentes, se quiserem ainda podem, cansando-se do círculo
do mundo, tomar um navio e encontrar o "caminho reto", e chegar ao antigo ou Verdadeiro
Ocidente, e estar em paz.

Assim o fim da Segunda Era avança numa enorme catástrofe; mas ela ainda não está
totalmente concluída. Há sobreviventes do cataclisma: Elendil, o Belo, chefe dos Fiéis (seu nome
significa Amigo-dos-Elfos), e seus filhos Isildur e Anarion. Elendil, uma figura semelhante a
Noé, que se afastou da rebelião e manteve navios tripulados e abastecidos ao largo da costa leste
de Númenor, foge diante da tempestade avassaladora do furor do Ocidente, e é carregado no topo
das ondas imensas que levam a ruína ao oeste da Terra-média. Ele e sua gente são lançados na
costa como exilados. Lá estabelecem os reinos númenorianos de Arnor, no norte, perto do reino
de Gil-galad, e Gondor, em torno da foz do Anduin mais ao sul. Sauron, visto que é imortal,
escapa por pouco da ruína de Númenor e retorna a Mordor, onde após algum tempo se fortaleceu
o bastante para desafiar os exilados de Númenor.

A Segunda Era termina com a Última Aliança (de elfos e homens), e o grande cerco de
Mordor. Termina com a derrota de Sauron e a destruição da segunda encarnação visível do mal.
Mas com custo, e com um erro desastroso. Gil-galad e Elendil são mortos enquanto matam
Sauron. Isildur, filho de Elendil, corta o anel da mão de Sauron, e seu poder se afasta, e seu
espírito foge para as sombras. Mas o mal começa a agir. Isildur reivindica o Anel para si, como
"indenização pela morte de seu pai", e recusa-se a lançá-lo no Fogo próximo. Põe-se em marcha,
mas morre afogado no Grande Rio, e o Anel se perde, desaparecendo de todo conhecimento. Mas
não é desfeito, e a Torre Escura construída com sua ajuda continua de pé, vazia, porém não
destruída. Assim termina a Segunda Era com a vinda dos reinos númenorianos e o
desaparecimento do último reinado dos Altos-Elfos.

A Terceira Era ocupa-se principalmente do Anel. O Senhor da Escuridão não está mais
sobre seu trono, mas seus monstros não foram totalmente destruídos, e seus terríveis servos,
escravos do Anel, permanecem como sombras entre as sombras. Mordor está vazia e a Torre
Escura desocupada, e mantém-se vigia sobre as fronteiras da terra do mal. Os elfos ainda
possuem refúgios ocultos: nos Portos Cinzentos de seus navios, na Casa de Elrond e em outras
partes. No norte está o Reino de Arnor governado pelos descendentes de Isildur. Ao sul, de lado a
lado do Grande Rio Anduin, ficam as cidades e os fortes do reino númenoriano de Gondor, com
reis da linhagem de Anárion. Longe dali, no leste e no sul inexplorados (do ponto de vista destes
contos), estão os países e os reinos de homens selvagens ou maus, semelhantes somente no seu
ódio do Ocidente, derivado de seu mestre Sauron; mas Gondor e seu poder bloqueiam o caminho.
O Anel está perdido, espera-se que para sempre; e os Três Anéis dos Elfos, empunhados por
guardiões secretos, operam preservando a lembrança da beleza de outrora, mantendo pacíficos
enclaves encantados onde o Tempo parece estacionar e o declínio é refreado, uma imagem da
felicidade do Verdadeiro Ocidente.

Porém no norte Arnor definha, desfaz-se em principados menores, e finalmente


desaparece. O remanescente dos númenorianos se transforma em uma gente oculta e errante, e
apesar de jamais se interromper sua linhagem verdadeira dos Reis, herdeiros de Isildur, isso só se
sabe na Casa de Elrond. No sul Gondor ascende a um píncaro de poder, quase refletindo
Númenor, e depois desvanece-se lentamente para uma Idade Média decadente, uma espécie de
Bizâncio orgulhosa, venerável, porém cada vez mais impotente. A guarda sobre Mordor é
relaxada. A pressão dos Orientais e dos Sulistas aumenta. A linhagem dos Reis se interrompe, e a
última cidade de Gondor, Minas Tirith ("Torre de Vigilância"), é governada por Regentes
hereditários. Os Cavaleiros do norte, os Rohirrim ou Cavaleiros de Rohan, admitidos em aliança
perpétua, estabelecem-se nas verdes planícies, agora despovoadas, que foram outrora a região
norte do reino de Gondor. Sobre a grande mata primeva, a Grande Floresta Verde a leste das
águas superiores do Grande Rio, uma sombra cai, e cresce, e a mata se torna a Floresta das
Trevas. Os Sábios descobrem que isso provém de um Feiticeiro ("O Necromante" d'O Hobbit),
que possui um castelo secreto no sul da Grande Floresta.

No meio desta Era surgem os hobbits. Sua origem é desconhecida (até mesmo deles
próprios), pois escaparam à atenção dos grandes, ou dos povos civilizados que têm registros, e
eles próprios não mantiveram registros exceto por vagas tradições orais, até terem migrado desde
as bordas da Floresta das Trevas, fugidos da Sombra, e errado para o oeste, tomando contato com
os últimos remanescentes do Reino de Arnor.

Seu principal povoado, onde todos os habitantes são hobbits e onde se mantém uma vida
ordenada e civilizada, apesar de simples e rural, é o Condado, originariamente fazendas e
florestas do domínio real de Arnor, concedido como feudo: mas o "Rei", autor das leis, há muito
tempo desapareceu, a não ser da lembrança, antes que ouçamos falar mais d'o Condado. Foi no
ano de 1341 do Condado (ou 2941 da Terceira Era: ou seja, no seu último século) que Bilbo – O
Hobbit, herói daquele relato – partiu para sua "aventura".

Naquele conto, que não necessita ser retomado, os hobbits e sua situação não são
explicados, mas tomados por coisa conhecida, e o pouco que se conta de sua história está na
forma de alusões informais a algo que se sabe. Toda a "política mundial" delineada acima
naturalmente está presente, e também se fazem referências ocasionais a ela, como a coisas que
em outra parte estão registradas na sua totalidade. Elrond é um personagem importante, apesar de
sua reverência, seus grandes poderes e sua linhagem serem abrandados e não se revelarem
completamente. Existem alusões à história dos elfos, e à queda de Gondolin, e assim por diante.
As sombras e o mal da Floresta das Trevas proporcionam, num modo reduzido de "conto de
fadas", uma das mais importantes partes da aventura. Apenas em um ponto aquela "política
mundial" age como parte do mecanismo do conto. Gandalf, o Mago, é chamado para tratar de
altos assuntos, uma tentativa de lidar com a ameaça do Necromante, e assim deixa o hobbit sem
ajuda nem conselho em meio à sua "aventura", forçando-o a andar com suas próprias pernas e
tornar-se heróico a seu modo.

(Muitos leitores observaram este ponto e adivinharam que o Necromante teria de


desempenhar um papel importante em qualquer continuação ou em relatos adicionais sobre
aquela época.)

O tom e o estilo d'O Hobbit, em geral diversos, devem-se em termos de gênese ao fato de
que o considerei um tema do grande ciclo suscetível de ser tratado como "conto de fadas" para
crianças. Alguns dos detalhes do tom e tratamento foram enganos, creio agora, mesmo nessa
base. Mas eu não gostaria de alterar muita coisa. Pois este é com efeito um estudo do homem
simples e comum, nem artístico nem nobre ou heróico (porém não sem as sementes
subdesenvolvidas dessas coisas) frente a um cenário elevado - e de fato (como um crítico
percebeu) o tom e o estilo mudam com o desenvolvimento do hobbit, passando do conto de fadas
ao nobre e elevado, e recaindo por ocasião do retorno.

A Demanda do Ouro do Dragão, o tema principal da história mesma d'O Hobbit, é


bastante periférica e incidental no ciclo geral – conectada a este mormente pela história dos
anões, que em nenhuma parte ocupa posição central nestes relatos, apesar de muitas vezes ser
importante. Mas no decorrer da Demanda o hobbit, por aparente "acidente", adquire a posse de
um "anel mágico", cujo principal poder, o único imediatamente óbvio, é tornar invisível quem o
usa. Isto, apesar de ser nesta história um acidente, imprevisto e sem lugar em qualquer plano de
demanda, demonstra ser essencial para o sucesso. Ao retornar, o hobbit, crescido em visão e
sabedoria, apesar de inalterado na linguagem, guarda o anel como um segredo pessoal.

A continuação, O Senhor dos Anéis, de longe a maior, e espero que em proporção


também a melhor parte de todo o ciclo, conclui todo o tema – é feita uma tentativa para nela
incluir e concluir todos os elementos e motivos do que precedeu: elfos, anões, os reis dos
Homens, heróicos cavaleiros "homéricos", orcs e demônios, os terrores dos servos do Anel e da
Necromancia, e o vasto horror do Trono das Trevas, até mesmo no estilo deve incluir o
coloquialismo e a vulgaridade dos hobbits, a poesia e o mais elevado estilo de prosa. São-nos
mostradas a derrota da última encarnação do Mal, a destruição do Anel, a partida final dos elfos e
a volta em majestade do verdadeiro Rei, para assumir o Domínio dos Homens, herdando tudo o
que pode ser transmitido do mundo élfico pelo seu nobre matrimônio com Arwen, filha de
Elrond, bem como a realeza linear de Númenor. Mas, do mesmo modo como as primeiras
histórias são por assim dizer vistas através de olhos élficos, este último grande Conto, descendo
do mito e da lenda para a terra, é visto mormente através dos olhos dos hobbits: torna-se assim
antropocêntrico de fato. Mas através dos hobbits, não dos chamados homens, porque o último
Conto deve exemplificar muito claramente um tema recorrente: o lugar ocupado na "política
mundial" pelos atos imprevistos e imprevisíveis da vontade, e pelos feitos virtuosos daqueles
aparentemente pequenos, sem grandeza, esquecidos nos lugares dos Sábios e Grandes (tanto bons
quanto maus). Uma moral de tudo isso (depois do simbolismo primário do Anel, como vontade
de mero poder, buscando tornar-se objetivo por força e mecanismo físicos, e portanto,
inevitavelmente, por mentiras) é aquela óbvia de que, sem o elevado e o nobre, o simples e vulgar
é totalmente medíocre; e sem o simples e ordinário o nobre e heróico é destituído de significado.

Não é possível, nem mesmo em muito espaço, "enlatar" O Senhor dos Anéis em um ou
dois parágrafos. [...] Foi iniciado em 1936, e cada parte foi escrita muitas vezes. Quase nenhuma
entre suas 600.000 ou mais palavras deixou de ser considerada. E a colocação, o tamanho, o
estilo e a contribuição ao total de cada característica, incidente ou capítulo foi ponderada
laboriosamente. Não digo isto como recomendação. Sinto que é extremamente provável que eu
esteja enganado, perdido numa teia de vã imaginação sem grande valor para outrem - a despeito
do fato de que alguns leitores o consideraram bom, em geral. O que pretendo dizer é isto: não
posso alterar essa coisa substancialmente. Eu a concluí, "saiu das minhas costas": o trabalho foi
colossal; e ela precisa ficar de pé ou cair, praticamente como está.

[A carta prossegue com um resumo (sem


comentários) da história d'O Senhor dos Anéis,
depois do que Tolkien escreve:]

Este é um resumo longo e no entanto árido. Muitos personagens importantes para a


história nem são mencionados. Até algumas invenções plenas, como os admiráveis Ents, as mais
antigas criaturas racionais viventes, Pastores das Árvores, foram omitidas. Como agora tentamos
lidar com a "vida comum", que ressurge sempre inextinguível sob o pisotear das políticas e dos
eventos mundiais, há histórias de amor inseridas, ou amor em diferentes modos, totalmente
ausente d'O Hobbit. Porém a mais elevada história de amor, a de Aragorn e Arwen, filha de
Elrond, é apenas mencionada como coisa conhecida. É contada como curto relato em outro lugar,
De Aragorn e Arwen Undómiel. Creio que o amor simples e "rústico" de Sam e sua Rosinha (que
não está detalhado em nenhuma parte) é absolutamente essencial ao estudo do seu caráter (do
principal herói), e ao tema da relação entre a vida ordinária (respirar, comer, trabalhar, gerar) e as
demandas, o sacrifício, as causas, e o "ansiar pelos elfos", e a beleza absoluta. Mas não direi
mais, nem defenderei o tema do amor iludido visto em Éowyn e seu primeiro amor por Aragorn.
Não acho que agora muita coisa possa ser feita para curar os defeitos deste conto, volumoso e
abrangente – ou para torná-lo "publicável", se já não o é. Uma breve revisão (agora concluída) de
um ponto crucial d'O Hobbit, esclarecendo o caráter de Gollum e sua relação com o Anel,
permitir-me-á reduzir o Livro I, capítulo II, "A Sombra do Passado", simplificá-lo e acelerá-lo – e
também simplificar um pouco a discutível abertura do Livro II. Se o outro material, "O
Silmarillion" e alguns outros contos ou elos, tais como A Queda de Númenor, forem publicados
ou estiverem em processo de publicação, então muitas explicações de fundo, especialmente as
que se encontram no Conselho de Elrond (Lv II), poderão ser dispensadas. Mas no geral isso não
chegaria a equivaler à exclusão de um único capítulo longo (de um total de cerca de 72).

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