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J R R Tolkien A Carta 131
J R R Tolkien A Carta 131
Você solicitou um breve esboço de meu material, em conexão com meu mundo
imaginário. É difícil dizer qualquer coisa sem dizer demais: a tentativa de dizer algumas poucas
palavras abre uma represa de entusiasmo, o egoísta e artista deseja imediatamente dizer como o
material cresceu, com que se parece, e o que (ele pensa que) quer significar ou está tentando
representar com tudo isso. Vou impingir-lhe um pouco disso; mas vou anexar um mero resumo
do seu conteúdo: o que é (pode ser) tudo que você quer ou terá oportunidade ou tempo de usar.
Em ordem de tempo, crescimento e composição, este material começou comigo - apesar
de eu não supor que isso seja de grande interesse a alguém que não eu mesmo. Quero dizer que
não me lembro de uma época quando eu não o estava construindo. Muitas crianças inventam, ou
começam a inventar, línguas imaginárias. Tenho me ocupado com isso desde que aprendi a
escrever. Mas nunca parei, e é claro que, como filólogo profissional (interessado especialmente
na estética lingüística), mudei meus gostos, melhorei minha teoria e provavelmente minha
habilidade. Por detrás de minhas histórias existe agora um nexo de idiomas (na sua maioria
esboçadas apenas estruturalmente). Mas com aquelas criaturas que, em inglês, eu enganosamente
chamo de Elves [elfos] foram associadas duas línguas aparentadas bastante completas, cuja
história está escrita, e cujas formas (representando duas facetas diversas do meu próprio gosto
lingüístico) são cientificamente deduzidas a partir de uma origem comum. A partir dessas línguas
formaram-se quase todos os nomes que aparecem em minhas lendas. Isso confere um certo
caráter (uma coesão, uma consistência de estilo lingüístico e uma ilusão de historicidade) à
nomenclatura, ou assim creio, que está notavelmente ausente de outras coisas comparáveis. Nem
todos considerarão isto tão importante quanto eu, visto que sou amaldiçoado com uma aguda
sensibilidade nesse assunto.
Mas ab initio tive uma paixão igualmente básica pelos mitos (não alegorias!) e pelos
contos de fadas, e acima de tudo pelas lendas heróicas no limiar dos contos de fadas e da história,
de que existe muito pouco no mundo (acessível a mim) para meu apetite. Tornei-me universitário
antes que a reflexão e a experiência me revelassem que tais interesses não eram divergentes –
pólos opostos de ciência e romance - e sim integralmente relacionados. Não sou porém "erudito"
em termos de mitos e contos de fadas, pois em tais coisas (até onde sei) sempre estive à busca de
material, de coisas que possuíssem um certo tom e um certo ar, e não apenas conhecimento.
Também – e espero não soar absurdo - desde tempos remotos entristecia-me a pobreza de meu
próprio país amado: não possuía suas próprias histórias (ligadas à sua língua e ao seu solo), não
da qualidade que eu buscava, e que se acham (como ingredientes) nas lendas de outras terras.
Havia o grego, e o celta, e o romance, o germânico, o escandinavo e o finlandês (que me afetou
consideravelmente); mas nada inglês, a não ser materiais empobrecidos de literatura de cordel. É
claro que existia e existe todo o mundo arturiano, mas este, por muito poderoso que seja, foi
naturalizado de forma imperfeita, associado com o solo britânico mas não com a língua inglesa; e
não substitui o que eu sentia estar faltando. Por um lado sua "faerie" [terra encantada] é
demasiado opulenta, e fantástica, incoerente e repetitiva. Por outro lado, mais importante: está
envolta, e explicitamente contém, a religião cristã.
Por razões que não elaborarei, isso me parece fatal. Mitos e contos de fadas, como toda
arte, precisam refletir e conter em solução elementos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas
não explicitamente, não na forma conhecida do mundo primário e "real". (Refiro-me, é claro, à
nossa situação presente, não aos antigos dias pagãos, pré-cristãos. E não repetirei o que tentei
dizer em meu ensaio, que você leu.)
Não ria! Mas certa vez (há muito tempo minha crista caiu) tive a intenção de produzir um
corpo de lendas mais ou menos interligadas, que abrangesse desde o amplo e o cosmogônico até
o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor
sorvendo esplendor do vasto pano de fundo – cuja dedicatória pudesse ser simplesmente: à
Inglaterra; ao meu país. Deveria possuir o tom e a qualidade que eu desejava, sereno e claro, com
a fragrância do nosso “ar” (o clima e o solo do Noroeste, isto é, da Grã-Bretanha e das regiões
européias mais próximas: não a Itália ou o Egeu, muito menos o Oriente); possuiria (se eu
conseguisse) a beleza graciosa e fugidia que alguns chamam céltica (apesar de raramente
encontrada nas antigüidades célticas genuínas), mas deveria, ao mesmo tempo, ser “elevado”,
purgado do tosco, digno de uma mente mais adulta, de uma terra há muito impregnada de poesia.
Eu delinearia alguns dos grandes contos na sua plenitude, e deixaria muitos apenas situados no
esquema, apenas esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso, e ainda assim
deixar espaço para outras mentes e mãos, munidas de tinta, música, drama. Absurdo.
É claro que um tal propósito dominante não se desenvolveu de uma só vez. O importante
eram as próprias histórias. Surgiram em minha mente como coisas "dadas", e à medida que
chegavam, separadamente, cresciam também as conexões. Um labor absorvente, apesar de
continuamente interrompido (especialmente visto que, mesmo à parte das necessidades da vida, a
mente esvoaçava para o pólo oposto e se consumia na lingüística): porém sempre tive a sensação
de estar registrando o que já estava "lá", em algum lugar: não de estar "inventando".
É claro que inventei e até escrevi muitas outras coisas (especialmente para meus filhos).
Algumas escaparam às garras daquele tema ganancioso que se ramificava, pois afinal eram
radicalmente sem relação: Leaf by Niggle e Farmer Giles, por exemplo, as duas únicas que foram
publicadas. O Hobbit, que contém muito mais vida essencial, foi concebido de modo totalmente
independente: ao iniciá-lo eu não sabia que ele fazia parte. Mas ele demonstrou ser a descoberta
de como completar o ciclo, do seu modo de descida à terra, e de como encaixá-lo na "história".
Assim como as altas Lendas do começo pretendem enxergar tudo através das mentes élficas, o
relato mediano do Hobbit assume um ponto de vista virtualmente humano – e o último conto os
conjuga.
Os ciclos começam com um mito cosmogônico: a Música dos Ainur. Deus e os Valar (ou
poderes: vertidos por deuses) revelam-se. Estes últimos são, como diríamos nós, poderes
angélicos, cuja função é exercer a autoridade delegada em suas esferas (de domínio e governo,
não criação, fazer ou refazer). São "divinos", isto é, originalmente estavam "fora" e existiam
"antes" de ser feito o mundo. Seu poder e sua sabedoria derivam-se do seu Conhecimento do
drama cosmogônico, que perceberam primeiro como drama (ou seja, de certo modo como nós
percebemos uma história composta por outrem), e mais tarde como "realidade". Pelo aspecto da
mera estratégia narrativa, é claro que isto foi feito para proporcionar seres da mesma ordem de
beleza, poder e majestade que os "deuses" da alta mitologia, que ainda assim podem ser aceitos –
bem, digamos apenas aceitos, por uma mente que creia na Sagrada Trindade.
Assim, prosseguindo, os elfos sofrem uma queda, antes que sua "história" possa tornar-se
histórica. (A primeira queda do Homem, por razões explicadas, não aparece em nenhum lugar –
os Homens só entram em cena quando tudo isso está no passado remoto, e há apenas um rumor
de que por algum tempo sucumbiram ao domínio do Inimigo, e de que alguns se arrependeram.)
O corpo principal do relato, o Silmarillion propriamente dito, trata da queda da mais talentosa
linhagem dos elfos, do seu exílio de Valinor (uma espécie de Paraíso, o lar dos Deuses) no mais
remoto Ocidente, da sua reentrada na Terra-média, sua região natal, mas há muito sob o domínio
do Inimigo, e do seu combate contra ele, o poder do Mal ainda visivelmente encarnado. Tem esse
nome porque todos os eventos se interligam com o destino e o significado das Silmarilli
("radiância de pura luz"), ou Jóias Primevas. Na feitura das jóias está principalmente simbolizada
a função subcriativa dos elfos, mas as Silmarilli eram mais do que apenas coisas belas em si.
Havia a Luz. Havia a Luz de Valinor tornada visível nas Duas Árvores de Prata e Ouro. Foram
mortas pelo Inimigo por malevolência, e Valinor escureceu-se, porém a partir delas, antes de
morrerem por completo, derivaram as luzes do Sol e da Lua. (Há aqui uma diferença notável
entre estas lendas e a maioria das demais, em que o Sol não é um símbolo divino, e sim um
objeto de segunda categoria, e a "luz do Sol" (o mundo sob o sol) torna-se um termo que denota
um mundo decaído, e uma visão imperfeita e deslocada.)
Mas o principal artífice dos elfos (Fëanor) havia aprisionado a Luz de Valinor nas três
jóias supremas, as Silmarilli, antes que as Árvores fossem conspurcadas ou mortas. Assim,
depois disso essa Luz sobreviveu apenas nas jóias. A queda dos elfos ocorre como conseqüência
da atitude possessiva de Fëanor e seus sete filhos em relação a essas jóias. São capturadas pelo
Inimigo, engastadas em sua Coroa de Ferro e vigiadas em sue fortaleza impenetrável. Os filhos
de Fëanor fazem um terrível e blasfemo juramento de inimizade e vingança contra todos e cada
um, mesmo dentre os deuses, que ouse reivindicar parte ou direito às Silmarilli. Pervertem a
maior parte da sua linhagem, que se rebela contra os deuses, abandona o paraíso a vai mover
guerra sem esperança contra o Inimigo. O primeiro fruto da sua queda é a guerra no Paraíso, o
assassinato de elfos por elfos, e esse fato e seu juramento malévolo corrompem todo o seu
heroísmo subseqüente, gerando traições e desfazendo todas as vitórias. O Silmarillion é a história
da Guerra dos Elfos Exilados contra o Inimigo, que se passa toda ela no noroeste do mundo
(Terra-média). Vários contos de vitória e tragédia misturam-se a ela; mas ela termina em
catástrofe, e com o fim do Mundo Antigo, o mundo da longa Primeira Era. As jóias são
recuperadas (pela intervenção final dos deuses) apenas para se perderem dos elfos eternamente,
uma no mar, uma nas profundezas da terra e uma como estrela do firmamento. Este legendário
termina com uma visão do fim do mundo, sua ruptura e reconstrução, e a recuperação das
Silmarilli e da "luz antes do Sol" - após uma batalha final que, suponho, deve mais à visão
nórdica de Ragnarök que a qualquer outra coisa, apesar de não se parecer muito com ela.
Como tal, a história é um romance de fadas heróico (belo e poderoso, na minha opinião),
receptível por si só, mesmo que se tenha um conhecimento vago, muito geral, do pano de fundo.
Mas é também um elo fundamental do ciclo, destituído de seu pleno significado se for deslocado
do lugar que ali ocupa. Pois a captura da Silmaril, uma vitória suprema, conduz ao desastre. O
juramento dos filhos de Fëanor torna-se operante, e o desejo da Silmaril leva à ruína todos os
reinos dos elfos.
O próximo ciclo trata (ou trataria) da Segunda Era. Mas essa é uma era obscura na Terra,
e conta-se (ou precisa-se contar) pouca coisa da sua história. Nas grandes batalhas contra o
Primeiro Inimigo as terras foram rompidas e arruinadas, e o oeste da Terra-média tornou-se
desolado. Ficamos sabendo que os Elfos Exilados foram, se não comandados, ao menos
severamente aconselhados a retornarem ao Ocidente, e lá ficarem em paz. Não deveriam habitar
permanentemente em Valinor outra vez, e sim na Ilha Solitária de Eressëa, à vista do Reino
Abençoado. Os Homens das Três Casas foram recompensados por seu valor e pela aliança fiel, e
foi-lhes permitido habitar como "mais ocidentais de todos os mortais" na grande ilha "Atlântida"
de Númenóre. O destino ou presente de Deus, a mortalidade, evidentemente não pode ser abolido
pelos deuses, mas os númenorianos possuem uma vida de longa duração. Fazem-se ao mar e
deixam a Terra-média, e estabelecem um grande reino de marinheiros no mais longínquo limite
da vista de Eressëa (porém não de Valinor). A maioria dos Altos-Elfos também parte de volta
para o Ocidente. Nem todos. Alguns homens aparentados com os númenorianos permanecem nas
terras próximas à beira do Mar.
Alguns dos Exilados não querem retornar, ou atrasam seu retorno (pois o caminho para o
oeste está sempre aberto aos imortais, e nos Portos Cinzentos os navios estão sempre prontos a
zarparem e partirem até nunca mais). Tampouco os orcs e outros monstros produzidos pelo
Primeiro Inimigo foram destruídos totalmente. E há Sauron. No Silmarillion e nos Contos da
Primeira Era Sauron era um ser de Valinor pervertido ao serviço do Inimigo, tendo-se tornado
seu principal capitão e servidor. Ele se arrepende de medo quando o Primeiro Inimigo é derrotado
por completo, mas acaba não fazendo o que lhe tinha sido ordenado, que é voltar para ser julgado
pelos deuses. Fica na Terra-média. Muito lentamente, começando com motivos razoáveis: a
reorganização e reabilitação da ruína da Terra-média, "negligenciada pelos deuses", ele se
transforma numa reencarnação do Mal e em um ser que anseia pelo Poder Completo - portanto
consumido ainda mais ferozmente pelo ódio (especialmente dos deuses e dos elfos). Através de
todo o crepúsculo da Segunda Era a Sombra cresce no leste da Terra-média, espalhando cada vez
mais seu domínio sobre os homens – que se multiplicam à medida que os elfos começam a
desvanecer-se. Assim, os três temas principais são: os Elfos Retardatários que se demoraram na
Terra-média; o crescimento de Sauron, tornando-se um novo senhor da Escuridão, mestre e deus
dos homens; e Númenor-Atlântida. São tratados através de anais, e em dois Contos ou Relatos,
Os Anéis de Poder e a Queda de Númenor. Ambos são o pano de fundo essencial d'O Hobbit e de
sua continuação.
No primeiro vemos uma espécie de segunda queda, ou pelo menos "erro", dos elfos.
Essencialmente nada havia de errado em demorarem-se a despeito dos conselhos, ainda
tristemente com as terras mortais de seus antigos feitos heróicos. Mas queriam ter o bolo sem
precisarem comê-lo. Queriam a paz, a felicidade e a lembrança perfeita d'"O Ocidente", e ainda
assim permanecer na terra comum, onde seu prestígio como o mais elevado dos povos, acima dos
elfos selvagens, dos anões e dos homens, era maior do que na base da hierarquia de Valinor.
Tornaram-se assim obcecados com "desvanecer-se", o modo pelo qual as mudanças do tempo (a
lei do mundo sob o sol) eram percebidas por eles. Tornaram-se tristes, e sua arte (digamos)
antiquária, e todos os seus esforços na verdade uma espécie de embalsamamento - apesar de
também reterem o antigo motivo da sua espécie, o adorno da terra e a cura de suas feridas.
Ouvimos falar de um reino tardante, no extremo noroeste, mais ou menos onde ficavam os
remanescentes da antigas terras d'O Silmarillion, sob Gilgalad; e de outros povoados, tais como
Imladris (Valfenda) junto a Elrond; e de um grande em Eregion, nos contrafortes ocidentais das
Montanhas da Névoa, adjacente às Minas de Moria, o importante reino dos anões na Segunda
Era. Lá surgiu uma amizade entre gente normalmente hostil (elfos e anões) pela primeira e única
vez, e o trabalho dos metais atingiu seu desenvolvimento mais alto. Mas muitos dos elfos deram
ouvidos a Sauron. Naquela época primitiva ele ainda era belo, e seus motivos e os dos elfos
pareciam coincidir em parte: a cura das terras desoladas. Sauron encontrou o ponto fraco deles ao
sugerir que, auxiliando-se entre si, poderiam tornar a Terra-média tão bela quanto Valinor. Era
realmente um ataque velado aos deuses, uma incitação para tentar estabelecer um paraíso
independente em separado. Gil-galad rechaçou todas essas abordagens, bem assim como Elrond.
Mas em Eregion iniciou-se uma grande obra – e os elfos chegaram o mais perto possível de
sucumbirem à "magia" e ao maquinário. Com a ajuda do saber de Sauron, fizeram Anéis de
Poder ("poder" é uma palavra agourenta e sinistra em todos estes contos, exceto quando se aplica
aos deuses).
Os elfos de Eregion fizeram Três anéis supremamente belos e poderosos, quase que
unicamente da sua própria imaginação, e dirigiram-nos à preservação da beleza: não conferiam
invisibilidade. Mas secretamente, no Fogo subterrâneo, em sua própria Terra Negra, Sauron fez
Um Anel, o Anel Governante que continha os poderes de todos os demais, e os controlava, de
modo que quem o usasse pudesse ver os pensamentos de todos os que usavam os anéis menores,
governar tudo o que faziam, e no final escravizá-los por completo. Não contou, porém, com a
sabedoria e as sutis percepções dos elfos. No momento em que assumiu o Um, eles se deram
conta disso, e de seu propósito secreto, e tiveram medo. Esconderam os Três Anéis, de forma que
nem mesmo Sauron jamais descobriu onde estavam, e permaneceram imaculados. Os outros eles
tentaram destruir.
Na guerra que resultou entre Sauron e os elfos, a Terra-média, especialmente no oeste, foi
arruinada ainda mais. Eregion foi capturada e destruída, e Sauron apossou-se de muitos Anéis de
Poder. Estes ele deu, para sua total corrupção e escravização, aos que os aceitaram (por ambição
ou cobiça). Vem daí a “antiga rima” que aparece como Leitmotiv d’O Senhor dos Anéis,
Mas para realizar isto ele fora obrigado a deixar passar para o Um Anel grande parte do
seu próprio poder inerente (um motivo freqüente e muito significativo nos mitos e contos de
fadas). Enquanto o usava, seu poder na terra era de fato amplificado. Mas mesmo quando não o
usava esse poder existia e estava em "concordância" com ele: ele não era "diminuído". A não ser
que alguém mais o tomasse e fosse possuído por ele. Se isso acontecesse, o novo possuidor
poderia (caso fosse por natureza forte e heróico o bastante) desafiar Sauron, assenhorear-se de
tudo o que ele aprendera ou fizera desde a feitura do Um Anel, e assim derrotá-lo e usurpar seu
lugar. Esta era a fraqueza essencial que ele introduzira em sua situação, no esforço (em grande
parte infrutífero) de escravizar os elfos, e em seu desejo de estabelecer controle sobre as mentes e
as vontades de seus servos. Havia outra fraqueza: se o Um Anel fosse efetivamente desfeito,
aniquilado, então seu poder seria dissolvido, o próprio ser de Sauron seria diminuído a ponto de
desaparecer, e ele se reduziria a uma sombra, uma mera lembrança de vontade malévola. Mas tal
coisa ele jamais contemplou nem temeu. O Anel era inquebrável por qualquer arte de ourives
menor que a sua própria. Era indissolúvel em qualquer fogo, exceto pelo imortal fogo subterrâneo
onde fora feito - e este estava inatingível, em Mordor. Também era tão grande o poder de avidez
do Anel que qualquer pessoa que o usasse ficava dominado por ele; estava além da força de
qualquer vontade (mesmo da sua própria) danificá-lo, jogá-lo fora ou deixá-lo de lado. Assim ele
pensava. De qualquer maneira, estava em seu dedo.
Assim, à medida que a Segunda Era avança, temos um grande Reino e teocracia do mal
(pois Sauron é também o deus dos seus escravos) crescendo na Terra-média. No oeste – na
verdade o noroeste é a única região claramente focalizada nestes contos – ficam os precários
refúgios dos elfos, enquanto que os homens daquelas terras permanecem mais ou menos
incorruptos, se bem que ignorantes. De fato, os melhores e mais nobres filhos dos homens são
aparentados com aqueles que haviam partido para Númenor, mas permanecem num simples
estado "homérico" de vida patriarcal e tribal.
Enquanto isso Númenor cresceu em riqueza, sabedoria e glória sob sua linhagem de
grandes reis de vida longa, descendentes diretos de Elros, filho de Earendil, irmão de Elrond. A
Queda de Númenor, a Segunda Queda dos Homens (ou dos homens reabilitados, mas ainda
mortais) precipita o fim catastrófico, não apenas da Segunda Era, mas do Mundo Antigo, do
mundo primevo das lendas (visto como plano e limitado). Depois disso começou a Terceira Era,
uma Era de Crepúsculo, um Medium Aevum, a primeira do mundo rompido e mudado; a última
do domínio remanescente de elfos visíveis e completamente encarnados, e também a última em
que o Mal assume uma única forma encarnada dominante.
Há três fases em sua queda da graça. Primeiro a aquiescência, a obediência que é livre e
voluntária, porém sem compreensão completa. Depois por muito tempo obedecem contra a
vontade, murmurando cada vez mais abertamente. Por fim rebelam-se – e um cisma surge entre
os homens do Rei e rebeldes, e a pequena minoria dos Fiéis perseguidos.
Na primeira etapa, visto que são homens de paz, sua coragem dedica-se às viagens
marítimas. Como descendentes de Earendil, tornam-se os marinheiros supremos, e já que o
Ocidente lhes está interdito navegam até o extremo norte, e sul, e leste. Chegam, mormente, às
costas ocidentais da Terra-média, onde auxiliam os elfos e os homens contra Sauron, e incorrem
no ódio imorredouro deste. Naqueles dias surgiam entre os Homens Selvagens como benfeitores
quase divinos, trazendo presentes de arte e conhecimento, e partindo outra vez – deixando para
trás muitas lendas de reis e deuses vindos do poente.
Esta etapa terminou e a última começou com a ascensão ao trono do décimo terceiro rei
da linhagem de Elros, Tar-Calion, o Dourado, o mais poderoso e orgulhoso de todos os reis.
Quando soube que Sauron assumira o título de Rei dos Reis e Senhor do Mundo, resolveu
rebaixar o "pretendente". Dirige-se à Terra-média com potência e majestade, e tão vasto é o seu
armamento, e tão terríveis são os númenorianos nos dias de sua glória que os servos de Sauron
não os enfrentam. Sauron humilha-se, presta homenagem a Tar-Calion, e é levado para Númenor
como refém e prisioneiro. Lá, porém, graças à sua astúcia e seu conhecimento, depressa se ergue
de servo a principal conselheiro do rei, e seduz o rei e a maioria dos senhores e do povo com suas
mentiras. Nega a existência de Deus, dizendo que o Único é uma mera invenção dos invejosos
Valar do Ocidente, o oráculo dos próprios desejos deles. O principal dentre os deuses é aquele
que habita no Nada, que triunfará no final, e no nada construirá infinitos reinos para seus servos.
A Interdição é apenas um mentiroso estratagema de medo para impedir os Reis dos Homens de se
apossarem da vida eterna e rivalizarem com os Valar.
Surge uma nova religião, e adoração das Trevas, com seu templo subordinado a Sauron.
Os Fiéis são perseguidos e sacrificados. Os númenorianos também levam seu mal à Terra-média,
e lá se transformam em cruéis e malvados senhores da necromancia, matando e atormentando os
homens, e às antigas lendas se sobrepõem obscuros relatos de horror. Isto, porém, não ocorre no
noroeste; pois para lá, por causa dos elfos, só vão os Fiéis que continuam amigos-dos-Elfos. O
principal porto dos bons númenorianos fica próximo à foz do grande rio Anduin. De lá, a
influência ainda benéfica de Númenor se espalha Rio acima e ao longo das costas, avançando
para o norte até o reino de Gil-galad, à medida que se desenvolve uma Língua Geral.
Assim o fim da Segunda Era avança numa enorme catástrofe; mas ela ainda não está
totalmente concluída. Há sobreviventes do cataclisma: Elendil, o Belo, chefe dos Fiéis (seu nome
significa Amigo-dos-Elfos), e seus filhos Isildur e Anarion. Elendil, uma figura semelhante a
Noé, que se afastou da rebelião e manteve navios tripulados e abastecidos ao largo da costa leste
de Númenor, foge diante da tempestade avassaladora do furor do Ocidente, e é carregado no topo
das ondas imensas que levam a ruína ao oeste da Terra-média. Ele e sua gente são lançados na
costa como exilados. Lá estabelecem os reinos númenorianos de Arnor, no norte, perto do reino
de Gil-galad, e Gondor, em torno da foz do Anduin mais ao sul. Sauron, visto que é imortal,
escapa por pouco da ruína de Númenor e retorna a Mordor, onde após algum tempo se fortaleceu
o bastante para desafiar os exilados de Númenor.
A Segunda Era termina com a Última Aliança (de elfos e homens), e o grande cerco de
Mordor. Termina com a derrota de Sauron e a destruição da segunda encarnação visível do mal.
Mas com custo, e com um erro desastroso. Gil-galad e Elendil são mortos enquanto matam
Sauron. Isildur, filho de Elendil, corta o anel da mão de Sauron, e seu poder se afasta, e seu
espírito foge para as sombras. Mas o mal começa a agir. Isildur reivindica o Anel para si, como
"indenização pela morte de seu pai", e recusa-se a lançá-lo no Fogo próximo. Põe-se em marcha,
mas morre afogado no Grande Rio, e o Anel se perde, desaparecendo de todo conhecimento. Mas
não é desfeito, e a Torre Escura construída com sua ajuda continua de pé, vazia, porém não
destruída. Assim termina a Segunda Era com a vinda dos reinos númenorianos e o
desaparecimento do último reinado dos Altos-Elfos.
A Terceira Era ocupa-se principalmente do Anel. O Senhor da Escuridão não está mais
sobre seu trono, mas seus monstros não foram totalmente destruídos, e seus terríveis servos,
escravos do Anel, permanecem como sombras entre as sombras. Mordor está vazia e a Torre
Escura desocupada, e mantém-se vigia sobre as fronteiras da terra do mal. Os elfos ainda
possuem refúgios ocultos: nos Portos Cinzentos de seus navios, na Casa de Elrond e em outras
partes. No norte está o Reino de Arnor governado pelos descendentes de Isildur. Ao sul, de lado a
lado do Grande Rio Anduin, ficam as cidades e os fortes do reino númenoriano de Gondor, com
reis da linhagem de Anárion. Longe dali, no leste e no sul inexplorados (do ponto de vista destes
contos), estão os países e os reinos de homens selvagens ou maus, semelhantes somente no seu
ódio do Ocidente, derivado de seu mestre Sauron; mas Gondor e seu poder bloqueiam o caminho.
O Anel está perdido, espera-se que para sempre; e os Três Anéis dos Elfos, empunhados por
guardiões secretos, operam preservando a lembrança da beleza de outrora, mantendo pacíficos
enclaves encantados onde o Tempo parece estacionar e o declínio é refreado, uma imagem da
felicidade do Verdadeiro Ocidente.
No meio desta Era surgem os hobbits. Sua origem é desconhecida (até mesmo deles
próprios), pois escaparam à atenção dos grandes, ou dos povos civilizados que têm registros, e
eles próprios não mantiveram registros exceto por vagas tradições orais, até terem migrado desde
as bordas da Floresta das Trevas, fugidos da Sombra, e errado para o oeste, tomando contato com
os últimos remanescentes do Reino de Arnor.
Seu principal povoado, onde todos os habitantes são hobbits e onde se mantém uma vida
ordenada e civilizada, apesar de simples e rural, é o Condado, originariamente fazendas e
florestas do domínio real de Arnor, concedido como feudo: mas o "Rei", autor das leis, há muito
tempo desapareceu, a não ser da lembrança, antes que ouçamos falar mais d'o Condado. Foi no
ano de 1341 do Condado (ou 2941 da Terceira Era: ou seja, no seu último século) que Bilbo – O
Hobbit, herói daquele relato – partiu para sua "aventura".
Naquele conto, que não necessita ser retomado, os hobbits e sua situação não são
explicados, mas tomados por coisa conhecida, e o pouco que se conta de sua história está na
forma de alusões informais a algo que se sabe. Toda a "política mundial" delineada acima
naturalmente está presente, e também se fazem referências ocasionais a ela, como a coisas que
em outra parte estão registradas na sua totalidade. Elrond é um personagem importante, apesar de
sua reverência, seus grandes poderes e sua linhagem serem abrandados e não se revelarem
completamente. Existem alusões à história dos elfos, e à queda de Gondolin, e assim por diante.
As sombras e o mal da Floresta das Trevas proporcionam, num modo reduzido de "conto de
fadas", uma das mais importantes partes da aventura. Apenas em um ponto aquela "política
mundial" age como parte do mecanismo do conto. Gandalf, o Mago, é chamado para tratar de
altos assuntos, uma tentativa de lidar com a ameaça do Necromante, e assim deixa o hobbit sem
ajuda nem conselho em meio à sua "aventura", forçando-o a andar com suas próprias pernas e
tornar-se heróico a seu modo.
O tom e o estilo d'O Hobbit, em geral diversos, devem-se em termos de gênese ao fato de
que o considerei um tema do grande ciclo suscetível de ser tratado como "conto de fadas" para
crianças. Alguns dos detalhes do tom e tratamento foram enganos, creio agora, mesmo nessa
base. Mas eu não gostaria de alterar muita coisa. Pois este é com efeito um estudo do homem
simples e comum, nem artístico nem nobre ou heróico (porém não sem as sementes
subdesenvolvidas dessas coisas) frente a um cenário elevado - e de fato (como um crítico
percebeu) o tom e o estilo mudam com o desenvolvimento do hobbit, passando do conto de fadas
ao nobre e elevado, e recaindo por ocasião do retorno.
Não é possível, nem mesmo em muito espaço, "enlatar" O Senhor dos Anéis em um ou
dois parágrafos. [...] Foi iniciado em 1936, e cada parte foi escrita muitas vezes. Quase nenhuma
entre suas 600.000 ou mais palavras deixou de ser considerada. E a colocação, o tamanho, o
estilo e a contribuição ao total de cada característica, incidente ou capítulo foi ponderada
laboriosamente. Não digo isto como recomendação. Sinto que é extremamente provável que eu
esteja enganado, perdido numa teia de vã imaginação sem grande valor para outrem - a despeito
do fato de que alguns leitores o consideraram bom, em geral. O que pretendo dizer é isto: não
posso alterar essa coisa substancialmente. Eu a concluí, "saiu das minhas costas": o trabalho foi
colossal; e ela precisa ficar de pé ou cair, praticamente como está.