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saberemos lê-la, traduzi-la.

Aqui encontro a função deste pequeno volume


sobre Semiótica: juntos perseguirmos as questões
desde seus começos, para que, por fim, cheguemos a
um patamar que torne possível ao meu leitor
prosseguir, caso queira, livre no seu próprio caminho
de investigação e de descoberta.

Uma definição ou um
convite?
Alguns anos atrás, em um seminário sobre
Semiótica, realizado em uma das cidades do Brasil,
um aluno que permanecia ainda muito curioso,
apesar de já ter assistido a algumas palestras,
subitamente me perguntou: — "Mas, afinal, o que é
Semiótica?".
Assim, de chofre, tomada de surpresa no
corredor de passagem de uma sala a outra, devo ter
respondido algo parecido com isto: — "Quando
alguma coisa se apresenta em estado nascente, ela
costuma ser frágil e delicada, campo aberto a muitas
possibilidades ainda não inteiramente consumadas e
consumidas. Esse é justamente o caso da Semiótica:
algo nascendo e em processo de crescimento. Esse
algo é uma ciência, um território do saber e do
conhecimento ainda não sedimentado, indagações e
investigações em progresso.
Primeiro passos para a Um processo como tal não pode ser traduzido
Semiótica................... ....................... 01 em uma única definição cabal, sob pena de se perder
O legado de C. S. justo aquilo que nele vale a pena, isto é, o
Peirce......................................................... 03 engajamento vivo, concreto e real no caminho da
Para se ler o mundo como instigação e do conhecimento. Toda definição
linguagem..................................... 05 acabada é uma espécie de morte, porque, sendo
Abrir as janelas: olhar para o fechada, mata justo a inquietação e curiosidade que
mundo...................................... 07 nos impulsionam para as coisas que, vivas, palpitam
Para se tecer a malha dos e pulsam".
signos ........................................ 11 Sei que, em vez de dar uma resposta direta e
Outras fontes e positiva (função que provavelmente me cabia na
caminhos....................................................... 15 ocasião), estava tentando armar uma estratégia de
Indicações para sedução. Em lugar de saciar ã sua curiosidade, só
leitura ........................................................... 18 queria aumentá-la. Contudo, o peso das certezas ó
sempre mais forte que o das dúvidas. Recebi, por
PRIMEIROS PASSOS PARA A isso, uma segunda pergunta que, aliás, não era mais
uma pergunta, mas uma crítica só levemente velada:
SEMIÓTICA — "Que importância pode ter isso para nós? Nós que
temos a resolver um problema muito mais. prioritário
Semi-ótica — ótica pela metade? ou Simiótica — e urgente, o da miséria e da fome?".
estudo dos símios? Acenei, então, mais uma vez com uma
Essas são, via de regra, as primeiras traduções, a sugestão de resposta: — "Há duas espécies de fome:
nível de brincadeira, que sempre surgem na abordagem a da miséria do corpo, esta, mais fundamental e
da Semiótica. Aí, a gente tenta ser sério e diz: — "O determinante, visto que interceptadora de quaisquer
nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer outras funções, necessidades e realizações humanas;
dizer signo. Semiótica é a ciência dos signos.". Contudo, mas há também a carência de conhecimento, este,
pensando esclarecer, confundimos mais as coisas, pois outro tipo de fome. Nossa luta tem de ser travada
nosso interlocutor, com olhar de surpresa, compreende sempre simultaneamente em ambas as direções. A
que se está querendo apenas dar um novo nome para a Semiótica está rapidamente se desenvolvendo em
Astrologia. todas as partes do mundo. Por que haveremos nós de
Confusão instalada, tentamos desenredar, cruzar os braços, ficando à espera dos restos de sopa
dizendo: — "Não são os signos do zodíaco, mas signo, científica que os outros poderão, porventura, nos
linguagem. A Semiótica é a ciência geral de todas as deixar de sobra?"
linguagens". Mas, assim, ao invés de melhorar, as
coisas só pioram, pois que, então, o interlocutor, desta
vez com olhar de cumplicidade — segredo desvendado
—, replica: — "Ah! Agora compreendi. Não se estuda só Linguagens verbais e não-
o português, mas todas as línguas".
Nesse momento, nós nos damos conta desse verbais
primordial, enorme equívoco que, de saída, já ronda a
Semiótica: a confusão entre língua e linguagem. E para Antes de tudo, cumpre alertar para uma
deslindá-la, sabemos que temos de começar as coisas distinção necessária: o século XX viu nascer e está
de seus começos, agarrá-las pela raiz, caso contrário, testemunhando o crescimento de duas ciências da
tornamo-nos presas de uma rede em cuja tessitura não linguagem. Uma delas é a Lingüística, ciência da
nos enredamos e, por não nos termos enredado, não linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de
toda e qualquer linguagem. As principais relações representação do mundo.
fundamentais de semelhança e oposição entre ambas Portanto, quando dizemos linguagem,
são problemas que tentaremos ir focalizando queremos nos referir a uma gama incrivelmente
oportunamente no decorrer do percurso que iremos intrincada de formas sociais de comunicação e de
efetuar neste livro. significação quê inclui a linguagem verbal articulada,
Como ponto de partida, porém, que tentemos mas absorve também, inclusive, a linguagem dos
desatar o nó de um equívoco de base: a diferença entre surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da
língua e lingua-gem em conexão com a diferença, que culinária e tantos outros. Enfim: todos os sistemas de
buscaremos discriminar, entre linguagens verbais e produção de sentido aos quais o desenvolvimento
não-verbais. dos meios de reprodução de linguagem propiciam
Tão natural e evidente, tão profundamente hoje uma enorme difusão.
integrado ao nosso próprio ser é o uso da língua que De dois séculos para cá (pós-revolução
falamos, e da qual fazemos uso para escrever — língua industrial), as invenções de máquinas capazes de
nativa, materna ou pátria, como costuma ser chamada produzir, armazenar e difundir linguagens {a
—, que tendemos a nos desaperceber de que esta não é fotografia, o cinema, os meios de impressão gráfica,
a única e exclusiva forma de linguagem que somos o rádio, a TV, as fitas magnéticas etc.) povoaram
capazes de produzir, criar, reproduzir, transformar e nosso cotidiano com mensagens e informações que
consumir, ou seja, ver-ouvir-ler para que possamos nos nos espreitam e nos esperam. Para termos uma idéia
comunicar uns com os outros. das transmutações que estão se operando no mundo
É tal a distração que a aparente dominância da da linguagem, basta lembrar que, ao simples apertar
língua provoca em nós que, na maior parte das vezes, de botões, imagens, sons, palavras (a novela das 8,
não chegamos a tomar consciência de que o nosso um jogo de futebol, um debate político...) invadem
estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é nossa casa e a ela chegam mais ou menos do mesmo
mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, modo que chegam a água, o gás ou a luz.
isto é, que nos comunicamos também através da leitura E claro que no sistema social em que vivemos
e/ou produção de formas, volumes, massas, interações estamos fadados a apenas receber linguagens que
de forças, movimentos; que somos também leitores não ajudamos a produzir, que somos bombardeados
e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, por mensagens que servem à inculcação de valores
traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos que se prestam ao jogo de interesses dos
orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, proprietários dos meios de produção de lingua-gem e
números, luzes...Através de objetos, sons musicais, não aos usuários. Contudo, a discussão dessas
gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do contradições seria assunto para um outro livro que,
sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão aliás, já consta desta coleção Primeiros Passos (cf. O
complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que é Indústria Cultural).
que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres Assim, que passemos aqui para a observação
de linguagem. mais cuidadosa da extensão que um conceito lato de
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da linguagem pode cobrir. Considerando-se que todo
língua, como forma de linguagem e meio de fenômeno de cultura só funciona culturalmente
comunicação privilegiados, é muito intensamente porque é também um fenômeno de comunicação, e
devida a um condicionamento histórico que nos levou à considerando-se que esses fenômenos só comunicam
crença de que as únicas formas de conhecimento, de porque se estruturam como linguagem, pode-se
saber e de interpretação do mundo são aquelas concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e
veiculadas pela língua, na sua manifestação como qualquer atividade ou prática social constituem-se
linguagem verbal oral ou escrita. O saber analítico, que como práticas significantes, isto é, práticas de
essa linguagem permite, conduziu à legitimação produção de linguagem e de sentido.
consensual e institucional de que esse é o saber de Iremos, contudo, mais além; de todas as
primeira ordem, em detrimento e relegando para uma aparências sensíveis, o homem — na sua inquieta
segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, indagação para a compreensão dos fenômenos —
que as outras linguagens, as não-verbais, possibilitam. desvela significações. E no homem e pelo homem
No entanto, em todos os tempos, grupos que se opera o processo de alteração dos sinais
humanos constituídos sempre recorreram a modos de (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo)
expressão, de manifestação de sentido e de em signos ou linguagens {produtos da consciência).
comunicação sociais outros e diversos da linguagem Nessa medida, o termo linguagem se estende aos
verbal, desde os desenhos nas grutas de Lascaux, os sistemas aparentemente mais inumanos como as
rituais de tribos "primitivas", danças, músicas, linguagens binárias de que as máquinas se utilizam
cerimoniais e jogos, até as produções de arquitetura e para se comunicar entre si e com
de objetos, além das formas de criação de linguagem o homem (a linguagem do computador, por
que viemos a chamar de arte: desenhos, pinturas, exemplo}, até tudo aquilo que, na natureza, fala ao
esculturas, poética, cenografia etc. E, quando homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim,
consideramos a linguagem verbal escrita, esta também a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos
não conheceu apenas o modo de codificação alfabética sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até
criado e estabelecido no Ocidente a partir dos gregos. mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem falar
Há outras formas de codificação escrita, diferentes da do sonho que, desde Freud, já sabemos que também
linguagem alfabeticamente articulada, tais como se estrutura como linguagem.
hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que
se limitam com o desenho.
Em síntese: existe uma linguagem verbal, Até onde vai a Semiótica
linguagem de sons que veiculam conceitos e que se
articulam no aparelho fonador, sons estes que, no Aqui tocamos um ponto que nos permite
Ocidente, receberam uma tradução visual alfabética retornar à questão de onde partimos. As linguagens
(linguagem escrita), mas existe simultaneamente uma estão no mundo e nós estamos na linguagem, A
enorme variedade de outras linguagens que também se Semiótica é a ciência que tem por objeto de
constituem em sistemas sociais e históricos de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja,
que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todo e qualquer fenômeno como de lingua-gem tendem a se comportar como sistemas
fenômeno de produção de significação e de sentido. vivos, ou seja, eles reproduzem, se readaptam, se
Seu campo de indagação é tão vasto que chega a transformam e se regeneram como as coisas vivas.
cobrir Caracterizado o campo de abrangência da
o que chamamos de vida, visto que, desde a descoberta Semiótica, podemos repetir que ele é vasto, mas não
da estrutura química do código genético, nos anos 50, indefinido. O que se busca descrever e analisar nos
aquilo que chamamos de vida não é senão uma espécie fenômenos é sua constituição como linguagem. Neste
de linguagem, isto é, a própria noção de vida depende sentido, embora a Semiótica se constitua num campo
da existência de informação no sistema biológico. Sem intrincado e heteróclito de estudos e indagações que
informação não há mensagem, não há planejamento, vão desde, a culinária até a psicanálise, que se
não há reprodução, não há processo e mecanismo de intrometem não só na meteorologia como também
controle e comando. No caso da vida, estes são na anatomia, que dão palpites tanto ao cientista
necessariamente ligados a uma linguagem, a uma político quanto ao músico, que imprevistamente
ordenação obtida a partir de um compartimento invadem territórios que se querem bem protegidos
armazenador da informação como a DNA (substância pelas bem demarcadas fronteiras entre as ciências,
universal portadora do código genético). Portanto, os isso não significa que a Semiótica esteja
dois ingredientes fundamentais da vida são: energia sorrateiramente chegando para roubar ou pilhar o
(que torna possíveis os processos dinâmicos) e campo do saber e da investigação específica de
informação (que comanda, controla, coordena, reproduz outras ciências. Nos fenômenos, sejam eles quais
e, eventualmente, modifica e adapta o uso da energia). forem — uma nesga de luz ou um teorema
Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo menos matemático, um lamento de dor ou uma idéia
como a conceituamos agora: algo que se reproduz, que abstrata da ciência —, a Semiótica busca divisar e
tem um comportamento esperado e certas propensões. deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua ação de
Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito.
de linguagem, mas também todos os sistemas e formas

C. S. Peirce (1839-1914) era, antes de tudo,


um cientista. Seu pai (Benjamim Peirce) foi, na
época, o mais importante matemático de Harvard,
sendo sua casa uma espécie de centro de reuniões
para onde naturalmente convergiam os mais
O LEGADO DE C. S. PEIRCE renomados artistas e cientistas. Portanto, desde
criança, o pequeno Charles já conduzia sua
existêncianum ambiente de acentuada respiração
A Semiótica, a mais jovem ciência a despontar no
intelectual. É por isso que químico ele já era, desde
horizonte das chamadas ciências humanas, teve um
os seis anos de idade. Aos 11 anos escreveu uma
peculiar nascimento, assim como apresenta, na atual
História da Química; e em Química se bacharelou na
fase do seu desenvolvimento histórico, uma aparência
Universidade de Harvard.
não menos singular. A primeira peculiaridade reside no
Mas Peirce era também matemático, físico,
fato de ter tido, na realidade, três origens ou sementes
astrônomo, além de ter realizado contribuições
lançadas quase simultaneamente no tempo, mas
importantes no campo da Geodésia, Metrologia e
distintas no espaço e na paternidade: uma nos EUA,
Espectroscopia. Era ainda um estudioso dos mais
outra na União Soviética e a terceira na Europa
sérios tanto da Biologia quanto da Geologia, assim
Ocidental.
como fez, quando jovem, estudos intensivos de
Esse surgimento em lugares diferentes, mas
classificação zoológica sob a direção de Agassiz.
temporalmente quase sincronizados, só vem confirmar
Em nenhum momento de sua vida, contudo,
uma hipótese de que os fatos concretos — isto é, a
Peirce se confinou estritamente às ciências exatas e
proliferação histórica crescente das linguagens e
naturais. No campo das ciências culturais, ele se
códigos, dos meios de reprodução e difusão de
devotou particularmente à Lingüística, Filologia e
informações e mensagens, proliferação esta que se
História. Isso sem mencionarmos suas enormes
iniciou a partir da Revolução Industrial
contribuições à Psicologia que fizeram dele o
— vieram gradativamente inseminando e fazendo
primeiro psicólogo experimental dos EUA.
emergir uma "consciência semiótica"
Como se isso não bastasse, conhecia ainda
Não foi senão essa consciência de linguagem em
mais de uma dezena de línguas, além deter
sentido amplo que gerou a necessidade do
realizado estudos em Arquitetura e cultivado a
aparecimento de uma ciência capaz de criar
amizade de pintores. Conhecedor profundo de
dispositivos de indagação e instrumentos
Literatura (especialmente Shakespeare e Edgar Allan
metodológicos aptos a desvendar o universo multiforme
Poe), fez elaborados estudos de dicção poética e
e diversificado dos fenômenos de linguagem.
chegou a escrever um longo conto (A Tale of
São três, conforme já disse, as fontes nas quais a
Thessaly) para o qual não encontrou editor. Mais
ciência Semiótica encontrou seu nascimento e através
para o fim de sua vida, estava escrevendo uma peça
das quais veio teoricamente se desenvolvendo.
de teatro. Praticava ainda a "arte quirográfica", além
Dedicarei, no entanto, a quase totalidade deste
de ser um grande experimentador de vinhos, tendo
pequeno livro a uma dessas fontes, a norte-americana,
desenvolvido essa aprendizagem numa estada de
que germinou nos trabalhos do cientista-lógico-filósofo
seis meses em Voisin.
Charles Sanders Peirce. No último capítulo contudo, o
Como explicar essa quase assombrosa
leitor encontrará um panorama geral das outras duas
diversidade de campos e interesses?
fontes, de modo que possa tomar conhecimento de um
Repetimos: Peirce era, antes de tudo, um
quadro mais complexo dos caminhos da Semiótica.
cientista. E como cientista sobreviveu, trabalhando
para o governo federal a serviço da "Costa e
Um Leonardo das ciências Inspeção Geodésica", durante o dia, de 1861 a 1891,
e simultaneamente, por algum tempo, no Obser-
modernas vatório de Harvard College, durante a noite;
trabalhos que aparentemente o afastaram da Química especulação filosófica que lhe tenha passado
para pesquisas em Astronomia e ciências correlatas. No despercebido: dos pré-socráticos e gregos aos
entanto, ao se aposentar, aos 52 anos de idade, Peirce empiristas ingleses, dos escolásticos a Descartes e
tentou se estabelecer como engenheiro químico, numa todos os alemães...
atividade que hoje chamaríamos de free-lancer. Desde muito cedo, quando ele começou na
Um cientista, portanto, ele jamais deixou de ser, Filosofia, pretendeu trazer para esta uma
tendo produzido contribuições importantes e originais aproximação alternativa que tinha, até então,
na Matemática e outras ciências até poucos dias antes poucos representantes, isto é, a aproximação ao
de sua morte, em 1914. No entanto, por trás de tudo pensamento filosófico através das ciências. Um
isso, existia um fio condutor: sendo um cientista, Peirce filósofo, portanto, que levou para a Filosofia o
era, acima de tudo, um lógico. Essa foi a grande e espírito da investigação científica, que assumiu que
irresistível paixão de toda a sua vida. A quase as disciplinas filosóficas são ou podem se tornar
inacreditável diversidade de campos a que se dedicou também ciências e que, para tal, propôs aplicar na
pode ser explicada, portanto, devido ao fato de que se Filosofia, com as modificações necessárias, os
devotar ao estudo das mais diversas ciências exatas ou métodos de observação, hipóteses e experimentos
naturais, físicas ou psíquicas, era para ele um modo de que são praticados nas ciências.
se dedicar à Lógica. Seu interesse em Lógica era, Não é difícil se perceber, a partir disso, o
primariamente, um interesse na Lógica das ciências. vínculo que se estabeleceu, no seu pensamento,
Ora, entender a Lógica das ciências era, em primeiro entre a Lógica e a Filosofia. Para ele,' o caminho
lugar, entender seus métodos de raciocínio. Os métodos para a Filosofia tinha de se dar através da Lógica,
diferem muito de uma ciência a outra e, de tempos em mais particularmente, através da Lógica da ciência.
tempos, dentro de uma mesma ciência. Os pontos em Este caminho, por seu turno, se bifurcava: de um
comum entre esses métodos só podem ser lado, através da prática das diversas ciências, de
estabelecidos, desse modo, por um estudioso que outro, através da História da ciência.
conheça as diferenças, e que as conheça através da Conclusão: se, até quase o final de sua vida,
prática das diferentes ciências. Peirce não conseguiu ser reconhecido como lógico,
Essa gigantesca empresa foi o que Peirce tomou não é de se estranhar que, através do caminho pelo
para si, durante toda a sua vida. E, pela enormidade qual optou pela Filosofia, tenha atravessado sua
dessa empresa, pagou o preço da solidão, da miséria e existência inteira, sem jamais ser reconhecido como
de uma existência sem qualquer tipo de glória. Durante filósofo. Não é de se estranhar, ainda, por que
60 anos de sua vida, lutou pela consideração da Lógica nenhuma Universidade americana soube lhe dar um
como uma ciência. Mas o dia da Lógica não havia ainda emprego como professor: nem como cientista, nem
soado... como lógico, nem como filósofo. Peirce chegou cedo
Peirce estava perfeitamente consciente (e isso demais para o seu próprio tempo.
ele declarou muitas vezes) de que a deliberada Conforme uma afirmação de Max H. Fisch
diversificação de seu trabalho em múltiplas ciências (filósofo norte-americano, venerável figura humana
impediria que ele atingisse a eminência que ele deveria que tem dedicado praticamente quase 50 anos de
ter atingido, se tivesse concentrado seus esforços em sua existência à recuperação da obra de Peirce e a
apenas uma delas, ou mesmo em algumas ciências cujos artigos devo grande parte das informações
proximamente relacionadas. No entanto, para ele a biográficas que ora exponho), "Peirce era uma
Lógica não era uma opção, mas uma paixão da qual não espécie de filósofo que era, em primeiro lugar um
podia se desviar, mesmo que quisesse. cientista, e uma espécie de cientista que era, em
É por isso que as poucas e temporárias vezes que primeiro lugar, um lógico da ciência. Nenhuma
penetrou, como professor convidado, os umbrais da Universidade, grande ou pequena, do seu tempo,
Universidade do seu tempo, foram para ministrar soube o que fazer com tal filósofo ou com tal
palestrassobre Lógica. É por isso que, ao ser nomeado cientista".
membro da Academia Americana de Ciência e Artes, em Mas aqui chegamos ao ponto de cercar uma
1867, ele não apresentou senão cinco estudos, todos outra questão: o que tem a Semiótica a ver com
sobre Lógica. E, em 1877, ao ser nomeado membro da tudo isso?
Academia Nacional de Ciências (depois de ter sido A resposta, pelo menos em princípio, é
indicado por cinco anos consecutivos), ele assim o foi, simples: desde o começo do despertar do seu
apesar de ter enviado apenas quatro estudos sobre interesse pela Lógica, Peirce a concebeu como
Lógica, pelos quais queria ser julgado um homem da nascendo, na sua completude, dentro do campo de
ciência ou não. Ao responderá Academia pela honra uma teoria geral dos signos ou Semiótica.
concedida, Peirce expressou sua satisfação pelo Primeiramente, ele concebeu a lógica propriamente
reconhecimento implícito da Lógica como ciência, dita (aquilo que conhecemos como Lógica) como
Mesmo assim, foi apenas na edição de 1910 em sendo um ramo.da Semiótica. Mais tarde, ele adotou
Quem é quem na América que compareceu, pela uma concepção muito mais ampla da Lógica que era
primeira vez, uma referência à profissão de Peirce como quase coextensiva a uma teoria geral de todos os
aquela de um lógico. Mas foi só depois de sua morte tipos possíveis de signos. Na última década de sua
que ele passou a ser considerado um filósofo. E aqui vida, estava trabalhando num livro que se chamaria
começa uma outra estória. Um Sistema de Lógica, considerada como Semiótica.
Mas o caminho de Peirce para a Semiótica
começou muito, muito cedo. Diz ele:"... desde o dia
Um só homem dialogando com em que, na idade de 12 ou 13 anos, eu peguei, no
25 séculos de filosofia quarto de meu irmão mais velho, uma cópia da
Lógica de Whateley e perguntei ao meu irmão o que
ocidental era Lógica, ao receber uma resposta simples, joguei-
me no assoalho e me enterrei no livro. Desde então,
Todo o tempo em que Peirce foi um cientista, ele nunca esteve em meus poderes estudar qualquer
foi também um filósofo. Aos 16 anos de idade, começou coisa — matemática, ética, metafísica, anatomia,
a estudar Kant e, alguns anos mais tarde, sabia a Crítica termodinâmica, ótica, gravitação, astronomia,
da Razão Pura de cor. Não há qualquer campo da psicologia, fonética, economia, a história da ciência,
jogo de cartas, homens e mulheres, vinho, metrologia, ele, qualquer todo suficiente é necessariamente
exceto como um estudo de Semiótica". insuficiente.
De tudo isso, cumpre, por enquanto, ser Nessa medida, dentro do conjunto do seu
enfatizado que foi de dentro do diálogo de um só sistema filosófico, a Semiótica é apenas uma parte e,
homem com 25 séculos de tradição filosófica ocidental, como tal, só se toma explicável e definível em
assim como foi de dentro de um gigantesco corpo função desse conjunto. Além disso, o próprio sistema
teórico que veio gradativamente emergindo a sua teoria filosófico por ele criado localiza-se como parte de um
lógica, filosófica e científica da linguagem, isto é, a sistema ainda maior, tal como aparece na sua
Semiótica. Aproximar-se, portanto, dessa Semiótica, gigantesca arquitetura classificatória das diferentes
ignorando suas fundações e seu caráter de diálogo com ciências e das relações que elas mantêm entre si.
a tradição, é "perder 99% de seu potencial instigador e Assim sendo, há que se considerar
enriquecedor para a história da Filosofia. primeiramente três tipos de ciência: 1) ciências da
Trata-se da obra de um pensador solitário e descoberta, 2) ciências da digestão (as que digerem
incansável, figura de uma rara e inimaginável e divulgam essas descobertas, criando a partir delas
envergadura científica, que passou praticamente os uma nova filosofia da ciência) e 3) ciências
últimos 30 anos de sua vida estudando 16 horas por aplicadas. As ciências da descoberta são:
dia, e que deixou para a posteridade nada menos do Matemática, Filosofia e Ideoscopia ou ciências
que 80 000 manuscritos, além de 12 000 páginas especiais. Esta última divide-se em dois ramos:
publicadas em vida. ciências físicas e ciências psíquicas. Entretanto, este
Considerando-se que, décadas depois de sua termo "psíquico" tem, na acepção peirceana, um
morte, apenas perto de 5.000 páginas (fragmentos mais caráter tão vasto que, para evitarmos maiores
ou menos arbitrariamente selecionados por entre essas equívocos, melhor seria tomá-lo aqui como sinônimo
80 000) foram publicadas; considerando-se que só de ciências humanas.
recentemente, graças aos esforços de grupos de Na sua classificação, os dois ramos científicos
estudiosos norte-americanos, esses manuscritos foram (físicos e psíquicos) vão se desmembrando, então,
catalogados; considerando-se que só agora uma edição em uma enorme quantidade de ciências, desde as
cronológica da produção de Peirce está sendo ciências mais gerais às classificatórias, passando
preparada para restaurar, senão a integralidade, pelo pelas descritivas até chegar às ciências aplicadas.
menos a integridade do seu pensamento, pode-se Evidentemente, não vem ao caso entrarmos
concluir que é com muito vagar que sua obra está aqui nos meandros dessas divisões. Cumpre,
sendo posta a público. Com igual vagar está sendo apenas, localizarmos o lugar do seu sistema
decifrada, devido ao seu alto teor de complexibilidade e filosófico nessa arquitetura maior e, dentro do seu
originalidade. sistema, o lugar ocupado pela Semiótica.
Contudo, pelo que me foi dado conhecer por Sua construção filosófica, concebida como
entre essas dezenas de milhares de páginas — inclusive ciência e sob
consultando diretamente os arquivos de Peirce, nos o caráter das ciências da descoberta, localiza-se
Estados Unidos — posso afirmar que a Semiótica entre a Matemática e a Ideoscopia. Apesar de serem
peirceana, longe de ser uma ciência a mais, é, na essas três as mais abstratas de todas as ciências,
realidade, uma Filosofia científica da linguagem, um nível de generalidade tal que as torne capazes
sustentada em bases inovadoras que revolucionam, nos de fornecer princípios para as ciências mais
alicerces, 25 séculos de Filosofia ocidental. Afirmei isso, particulares, tratam-se, no entanto, todas elas,
com alguma timidez, alguns anos atrás. Cada vez mais, inclusive a Matemática, de ciências da observação.
no entanto, sou levada a confirmá-lo com menos A Matemática é observativa na medida em
hesitação. Evidentemente, neste pequeno volume, não que monta construções na imaginação de acordo
poderei senão insinuar certas pistas e aclarar alguns com preceitos abstratos, passando, então, a
conceitos de sua teoria. Faço questão dessas observar esses objetos imaginários para neles
afirmações, no entanto, para que elas aqui compareçam encontrar relações entre partes que não estavam
como uma espécie de sinal de alerta. especificadas no preceito da construção. No entanto,
Resta, entretanto, tocar uma outra questão. Não a Matemática estuda o que é e o que não é
há dúvida de que a tarefa, que assumi levar à frente logicamente possível, sem se fazer responsável pela
neste livro, pode parecer ousada: traduzir para um nível existência atual desse possível. Nesse sentido, é a
de compreensão bem simples a visão geral de um ciência que fornece subsídios e encontra aplicação
pensamento e uma teoria que pulsam em em todas as outras ciências, inclusive a
complexibilidades e desbordam de muito o campo mais Fenomenologia e a Lógica.
estrito de minha própria capacidade. No entanto,
assumo os riscos de minhas possíveis e prováveis A Filosofia, por seu turno, é também uma
lacunas. Se a amplidão de horizontes da Semiótica de ciência positiva, não no sentido que comumente
Peirce veio muito cedo para o seu próprio tempo, que, damos a positivismo, visto que segundo Peirce os
pelo menos, não venha tarde demais para o nosso positivistas são os metafísicos modernos, mas no
próprio tempo. E isso defendo porque, tanto quanto sentido de se descobrir o que ó realmente
posso ver, toda grande descoberta científica, assim verdadeiro. Ela se limita, porém, ao tanto de
como toda grande obra de criação, não deveria, de verdade que pode ser inferido da experiência
direito, pertencer a um grupo, uma classe ou mesmo comum. É uma ciência fundamentalmente
uma nação, mas ao acervo da espécie humana. observativa pois que visa colocar em ordem aquelas
PARA SE LER O MUNDO observações que estão ao aberto para todo homem,
todo dia e hora.
COMO LINGUAGEM A diferença dessas duas primeiras ciências
(Matemática e Filosofia) em relação às ciências
Embora Peirce considerasse toda e qualquer especiais reside no fato de que estas últimas
produção, realização e expressão humana como sendo requerem instrumentos e métodos especiais para
uma questão semiótica, isto não significa que a ciência que suas observações sejam levadas a efeito. Os
semiótica tenha sido por ele concebida como uma métodos de investigação de que elas se utilizam,
ciência onipotente, ou toda suficiente, visto que, para queiram ou não, são sempre importados de
princípios matemáticos e filosóficos, especialmente dos possíveis de signos, ou seja, a Lógica ou Semiótica.
lógicos.
Uma arquitetura filosófica
O universo está em expansão Vejamos, primeiramente, num gráfico a configuração
do edifício filosófico peirceano:
Alertamos neste momento para uma questão.
Peirce era um evolucionista de tipo muito especial, nem I— Fenomenologia
mecanicista tal como Spencer, nem estritamente
materialista, pois, para ele, "materialismo sem II — Ciências Normáticas
idealismo é cego: idealismo sem materialismo é vazio". 1 — Estética
2 — Ética
Isto não significa que professasse, por outro lado, um 3 — Semiótica ou Lógica
evolucionismo idealista. Ele próprio se autodenominou 3.1 — Gramática pura
idealista objetivo. 3.2 — Lógica Crítica 3.3. — Retórica pura
O que Peirce na realidade postulava, como base
do seu pensamento, era a teoria do crescimento III —Metafísica
contínuo no universo e na mente humana. "O universo
está em expansão", dizia ele, "onde mais poderia ele
Embora o termo fenomenologia ou
crescer senão na cabeça dos homens?". Esse
phaneroscopia, con-forme Peirce preferia chamar, só
crescimento contínuo se alicerça, contudo, em bases
tenha sido por ele empregado por volta de 1902,
lógicas radicalmente dialéticas, visto que o pensamento
quando da construção arquitetônica de seu sistema,
humano gera produtos concretos capazes de afetar e
a preocupação fenomenológica constituiu-se na base
transformar materialmente o universo, ao mesmo
fundamental de toda sua filosofia, e já comparecia
tempo que são por ele afetados.
como investigação primordial desde seus escritos
Segundo Peirce, não sendo nem as leis da
em 1867.
natureza absolutas, mas evolutivas, daí o caráter
estatístico dessas leis, os princípios científicos, por seu
Para ele, a primeira instância de um trabalho
turno, não chegam a ser senão fórmulas rigorosas, mas
filosófico é a fenomenológica. A tarefa precípua de
sempre provisórias, no sentido de estarem sujeitas a
um filósofo é a de criar a Doutrina das Categorias,
mudanças contínuas.
que tem por função realizar a mais radical análise de
Não há, portanto, princípios absolutos, nem na
todas as experiências possíveis. Insatisfeito com as
Matemática. Cada investigador individual, por mais
categorias aristotélicas, consideradas como
sistemático e rigoroso que possa ser seu pensamento, é
categorias mais lingüísticas do que lógicas,
essencialmente falível. Daí Peirce ter batizado sua
profundamente influenciado por Kant, mas
teoria de Falibilismo. Isso nos dá uma idéia de sua
considerando suas categorias, extraídas da análise
concepção da ciência e Filosofia como processos que
lógica da proposição, como sendo materiais e
amadurecem gradualmente, produtos da mente
particulares e não formais e universais, Peirce
coletiva que obedecem a leis de desenvolvimento
dedicou grande parte de sua existência à
interno, ao mesmo tempo que respondem a eventos
elaboração, aperfeiçoamento e ampliação do campo
externos (novas idéias, novas experiências, novas
de aplicação das suas categorias universais,
observações), e que dependem, inclusive, do modo de
categorias estas que não brotaram nem de
vida, lugar e tempo nos quais
pressupostos lógicos, nem da língua, mas do exame
o investigador vive.
atento e perscrutante da "experiência" ela mesma.
O próprio sistema peirceano assim cresceu. Todo
Com Hegel, Peirce manteve relações
o passado filosófico e científico era por ele tomado
contraditórias. Desprezava seu idealismo absoluto
como imprescindível material de trabalho. Sua
ao mesmo tempo que o considerava "o mais
arquitetura teórica não foi, desse modo, construída a
grandioso dentre todos os filósofos que já existiram".
priori, mas só chegou a ser divisada depois de mais de
Via as categorias hegelianas como puramente ma-
trinta anos de infatigáveis investigações.
teriais e também particulares mas enxergava, nos
Ouçamos Peirce: "O desenvolvimento das minhas
três estágios do pensamento formulados por Hegel,
idéias tem sido a indústria de trinta anos. Eu não sabia
profundas semelhanças com suas categorias
se um dia chegaria a publicá-las. Seu amadurecimento
fenomenológicas universais.
parecia tão vagaroso. Mas o tempo da colheita chegou,
Isso não pode nos levar a apressadamente
afinal. Em meio a um contrito falibilismo, combinado
afirmar, contudo, que o pensamento peirceano
com uma elevada fé na realidade do conhecimento e
tenha qualquer débito paracom Hegel. É Peirce
um intenso desejo de descobrir as coisas, é que toda a
quem diz: "Embora meu método apresente uma
minha filosofia parece ter crescido".
similaridade muito geral com o de Hegel, seria
Isso foi pronunciado aos 58 anos de idade,
historicamente falso considerá-lo uma modificação
momento em que Peirce se deu conta da importância
do método hegeliano. Ele veio à luz através do
de algumas de suas descobertas para a história da
estudo das categorias kantianas e não das
filosofia. Só então seus extensos trabalhos sobre lógica,
hegelianas".
matemática, teoria do conhecimento, pragmatismo,
Foi só depois de ter elaborado sua própria
doutrina dos signos, metafísica científica etc.
doutrina das categorias é que Peirce veio a se dar
apareceram a ele como constitutivos da construção de
conta de suas semelhanças genéticas com os
um sistema consistente e coerente. Só então passou a
estágios hegelianos, o que, para ele, só servia como
estruturar sua classificação das ciências na qual seu
mais uma comprovação de que suas categorias
sistema se encaixa. Mas também, foi apenas a partir da
estavam no caminho certo.
localização da Semiótica, no conjunto do seu próprio
Delineados esses pressupostos, voltemos à
sistema, isto é, a partir da posição de dependência que
sua arquitetura filosófica. A Fenomenologia, como
esta mantém em relação às ciências que devem
base fundamental para qualquer ciência, meramente
necessariamente antecedê-la, que Peirce passou a pôr
observa os fenômenos e, através da análise, postula
em ordem suas formulações anteriores e a dar
as formas ou propriedades universais desses
prosseguimento a sua doutrina formal de todos os tipos
fenômenos. Devem nascer daí as categorias
universais de toda e qualquer experiência e a partir dos 58 anos, Peirce estava certo de tê-los
pensamento. Numa recusa cabal a qualquer julgamento atingido com as suas categorias.
avaliativo a priori, a Fenomenologia é totalmente Nessa medida, sem uma inteligibilidade
independente das ciências normativas. cuidadosa e acurada das categorias peirceanas,
É, porém, sob a base da Fenomenologia que as assim como de sua phaneros-copia (descrição dos
ciências normativas se desenvolvem obedecendo à Phanerons ou fenômenos), muito pouco pode toda
seqüência seguinte:Estética, Ética e Semiótica ou sua teoria ser compreendida, principalmente a
Lógica. Tendo todas elas por função "distinguir o que Semiótica, que da Fenomenologia extrai todos os
deve e o que não deve ser", a Estética se define como seus princípios.
ciência daquilo que é objetivamente admirávelsem Aproximar-se, assim, da Semiótica peirceana
qualquer razão ulterior. É a base para a Ética ou ciência na ignorância ou desprezo por essa viagem
da ação ou conduta que da Estética recebe seus fenomenológica (longa viagem que exige de nós a
primeiros princípios. Sob ambas, e delas extraindo seus paixão paciente pela decifração dos conceitos)
princípios, estrutura-se em três ramos a ciência redundará, sem escapatória, numa utilização anê-
Semiótica, teoria dos signos e do pensamento mica e tecnicista de suas classificações e definições
deliberado. Por fim, como última ciência desse edifício de signos. Não por acaso estou aqui pondo tanta
aparece a Metafísica ou ciência da realidade. ênfase nas fundações fenomenológicas da
Definindo realidade ou real como sendo Semiótica, único meio de se evitar o uso leviano e
precisamente aquilo que é de modo independente das mecanicista de seus conceitos. Peirce era adepto da
nossas fantasias, pois que "vivemos num mundo de criação de novas palavras para designar significados
forças que atuam sobre nós, sendo essas forças, e não científicos novos. Sua terminologia é, nessa medida,
as transformações lógicas do nosso próprio estranhíssima. Contudo, mais estranha, porque
pensamento, que determinam em que devemos, por vazia, é a apropriação meramente terminológica e
fim, acreditar", fica claro por que a Metafísica redutora dos seus conceitos semióticos, sem o lento
comparece como resultante e não antecedente de toda escrutínio de seus meandros.
sua filosofia. Por outro lado, só a partir da Fenomenologia é
A Semiótica ou Lógica, por outro lado, tem por que se pode extrair a possibilidade por nós
função classificar e descrever todos os tipos de signos enunciada no título deste capítulo (Para se ler o
logicamente possíveis. Isso parece dotá-la de um mundo como linguagem), que não se constitui em
caráter ascendente sobre todas as ciências especiais, mera frase de efeito, mas num fruto efetivo que o
dado que essas ciências são linguagens. Não era assim, estudo fenomenológico está habilitado a nos
contudo, que Peirce a concebia. Para ele, as ciências oferecer.
têm de ser deixadas a cargo de seus praticantes, o que Que passemos, pois, a ele. Sem qualquer
o conduz, como lógico, apenas à elucidação dos pretensão, contudo, de podermos aqui explorar com
métodos e tipos de pensamento utilizados pelas detalhes um campo
diversas ciências. que se desenvolveu por muito mais de mil e
Como filósofo, no entanto, Peirce era muito mais uma páginas dos escritos de Peirce. Daí que nossa
ambicioso. Através de sua fenomenologia, pretendia opção seja, a par da transmissão de alguns
gerar uma fundamentação conceituai para uma filosofia conceitos certos fundamentais, também aquela de
arquitetônica, baseada em uns poucos conceitos distribuir certos semáforos no caminho dos que, no
simples e suficientemente vastos a ponto de dar conta futuro, se dispuserem a percorrer com mais vagar as
do "trabalho inteiro da razão humana". Esses conceitos, veredas da Fenomenologia e Semiótica peirceanas.
universais de todo e qualquer fenômeno, isto é,
levantar os elementos ou características que
ABRIR AS JANELAS: OLHAR PARA O pertencem a todos os fenômenos e participam de
MUNDO todas as experiências.
A tarefa não é fácil. As coisas, quando nos
aparecem, surgem numa miríade de formas,
Não há nada, para nós, mais aberto ã observação
enoveladas numa multiplicação de sensações, além
do que os fenômenos.
de que tendem a se enredar às malhas das
Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que
interpretações que inevitavelmente fazemos das
esteja de algum modo e em qualquer sentido presente
coisas.
à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela
Dizia Peirce: "A fenomenologia ou doutrina das
externa (uma batida na porta, um raio de luz, um cheiro
categorias tem por função desenredar a emaranhada
de jasmim), seja ela interna ou visceral (uma dor no
meada daquilo que, em qualquer sentido, aparece,
estômago, uma lembrança ou reminiscência, uma
ou seja, fazer a análise de todas as experiências é a
expectativa ou desejo), quer pertença a um sonho, ou
primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter.
uma idéia geral e abstrata da ciência, a fenomenologia
Ela é a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes
seria, segundo Peirce, a descrição e análise das
de pensamento muito peculiares, a habilidade de
experiências que estão em aberto para todo homem,
agarrar nuvens, vastas e intangíveis, organizá-las em
cada dia e hora, em cada canto e esquina de nosso
disposição ordenada, recolocá-las em processo".
cotidiano.
Trata-se, portanto, de um estudo que,
A fenomenologia peirceana começa, pois, no
suportado pela observação direta dos fenômenos,
aberto, sem qualquer julgamento de qualquer espécie:
discrimina diferenças nesses fenômenos e generaliza
a partir da experiência ela mesma, livre dos
essas observações a ponto de ser capaz de sinalizar
pressupostos que, de antemão, dividiriam os fenômenos
algumas classes de caracteres muito vastas, as mais
em falsos ou verdadeiros,
universais presentes em todas as coisas que a nós se
apresentam.
reais ou ilusórios, certos ou errados. Ao contrário,
Nessa medida, são três as faculdades que
fenômeno é tudo aquilo que aparece à mente,
devemos desenvolver para essa tarefa: 1) a
corresponda a algo real ou não.
capacidade contemplativa, isto é, abrir as janelas do
Suportada por esse modo de partir em estado de
espírito e ver o que está diante dos olhos; 2) saber
liberdade, a fenomenologia tem por tarefa, contudo, dar
distinguir, discriminar resolutamente diferenças
à luz as categorias mais gerais, simples, elementares e
nessas observações; 3) ser capaz de generalizar as Categorias do pensamento e da
observações em classes ou categorias abrangentes.
A princípio, Peirce tentou estabelecer suas natureza
categorias a partir da análise material dos fenômenos
(por exemplo : como coisas de madeira, de aço, de Dezoito anos mais tarde, Peirce escreveu um
carne e osso etc), mas a diversidade infinita da outro artigo, até hoje parcialmente inédito, com o
materialidade das coisas fê-lo abandonar este ângulo de seguinte título: "1, 2, 3, Categorias do Pensamento e
sua empresa, empreendendo seu caminho pelo lado da Natureza". Com isso, as categorias universais ou
formal ou estrutural dos fenômenos. elementos do pensamento, dezoito anos antes
O que quer isso dizer? Apesar de apresentar uma descobertas pela análise lógica do fenômeno mental,
atitude de retorno à experiência mesma que temos do eram agora estendidas para toda a natureza. Isso
mundo, apesar de partir da observação acurada dos significa que aquelas mesmas categorias, por ele
próprios fenômenos, Peirce chega às suas categorias desmerecidas muitos anos antes, voltavam agora
através da análise e do atento exame do modo como as com maior vigor. Ou Peirce permaneceu fiel à sua
coisas aparecem à consciência. Que razão pode haver obsessão ou sua obsessão lhe permaneceu fiel.
para que um cientista, treinado em laboratório, cuja Entre 1867 e 1885, repetidamente Peirce
aptidão para as ciências positivas era de um raro teor, encontrou, nas ciências da natureza e do
devesse começar pela análise dos fenômenos mentais? pensamento, confirmações independentes que
Foi só através da observação direta dos corroboravam suas três idéias. A tríade estava
fenômenos, nos modos como eles se apresentam à continuamente aparecendo na lógica e nas ciências
mente, que as categorias universais, como elementos especiais, primeiro na psicologia, então na fisiologia e
formais do pensamento, puderam ser divisadas. Pela na teoria das células, finalmente na evolução
acurada e microscópica observação de tudo biológica e no cosmos físico como um todo.
o que aparece, Peirce extrai os caracteres elementares Em 1890, Peirce escreveu: "A importância das
e gerais da experiência que tornam a experiência categorias chegou à minha casa originalmente no
possível. Desse modo, sua pequena lista de categorias estudo da lógica, onde elas são responsáveis por
consiste de concepções simples e universais. partes tão consideráveis que fui levado a procurá-las
Elementares porque são constituintes de toda e na psicologia. Encontrando-as aí, também, não pude
qualquer experiência, universais porque são evitar me perguntar se elas não entravam na
necessárias a todo e qualquer entendimento que fisiologia do sistema nervoso. Orientando-se um
possamos ter das coisas, reais ou fictícias. pouco sobre hipótese, consegui detectá-las lá... Não
A 14 de maio de 1867, depois de três anos que, tive dificuldades em seguir o conduto dentro do
muito mais tarde, Peirce confessou, em várias cartas, domínio da seleção natural; e uma vez atravessado
terem sido os anos de maior esforço intelectual de toda esse ponto, fui irresistivelmente carregado para
sua vida, esforço mal interrompido sequer para o sono, especulações com respeito à física".
vieram à luz, num artigo intitulado "Sobre uma nova Em suma: a aplicação das categorias do
lista de categorias", suas três categorias universais de pensamento à natureza não foi uma determinação
toda experiência e todo pensamento. imposta pela descoberta num campo que passou a
Considerando experiência tudo aquilo que se ser arbitrariamente aplicada a todos os demais, nem
força sobre nós, impondo-se ao nosso reconhecimento, ocorreu gradualmente por imperceptíveis mudanças
e não confundindo pensamento com pensamento de visão. Ao contrário, foi o resultado de uma série
racional (deliberado e auto-controlado), pois este é de saltos relacionados de um campo ao outro,
apenas um dentre os casos possíveis de pensamento, culminando num salto especulativo de caráter
Peirce conclui que tudo que aparece à consciência, cosmológico. No fim de sua vida, Peirce estava se
assim o faz numa gradação de três propriedades que movendo na direção de uma cosmologia
correspondem aos três elementos formais de toda e evolucionista que tinha na mente sua categoria
qualquer experiência. explanatória principal. Chegar a essa lúcida
Em 1867, essas categorias foram denominadas: adivinhação cosmológica foi para Peirce, no entanto,
1) Qualidade,- 2) Relação e 3) Representação. uma longa viagem.
Algum tempo depois, o termo Relação foi substituído Sua precaução natural, reforçada pelo
por Reação e o termo Representação recebeu a temperamento científico, levou-o a trabalhar 30 anos
denominação mais ampla de Mediação. Mas, para fins em busca de verificação empírica para suas
científicos, Peirce preferiu fixar-se na terminologia de categorias nos mais diversos campos. Nessa medida,
Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, por serem seu conjunto de categorias extraídas da análise
palavras inteiramente novas, livres de falsas associa- lógica do pensamento não deveriam, segundo ele,
ções a quaisquer termos já existentes. ser aplicadas a todos os seres, antes que cada
Mais à frente, demonstraremos, através de várias categoria tivesse sido empiricamente verificada. Ou,
exemplificações, o caráter e funcionamento dessas conforme ele diz: "Na minha opinião, cada categoria
categorias na consciência. Antes porém, que alertemos tem de se justificar através de um exame indutivo do
para alguns pontos que nos parecem importantes. que resultará dotar a categoria apenas de uma
O resultado a que Peirce chegou nesse estudo de validade aproximativa".
1867 não foi imediatamente visto com bons olhos nem Só depois de ter comprovado a universalidade
mesmo por seu próprio autor. Parecia-lhe fantasia de aplicação das categorias, Peirce se julgou apto a
absurda e detestável reduzir toda a multiplicidade e erigir seu sistema filosófico, cuja base estaria num
diversidade dos fenômenos ao número três e, livro infelizmente inacabado, Uma Adivinhação para o
sobretudo, a uma gradação de 1, 2, 3. Apesar dos três Enigma (1890), e cujo argumento se desenvolve
anos mal interrompidos para o sono que esse estudo através do exame das três categorias aplicadas de
havia lhe exigido, apesar de seu profundo um campo a outro: da lógica à psicologia, desta à
conhecimento de grande parte da história da filosofia, fisiologia até o protoplasma ele mesmo, então do
apesar de saber a Crítica da Razão Pura de cor, nada domínio da seleção natural até a física.
naquele momento parecia demovê-lo do descrédito em Por curiosidade, passarei a sintetizar os
que ele próprio havia colocado suas categorias. diferentes caracteres ou matizes que suas categorias
adquirem nos diferentes campos a que se aplicam:
1) Na teoria do protoplasma: as propriedades do interdependentes e, a cada campo em que se
protoplasma são como se segue: contração, aplicam, apresentam-se nas modalidades próprias
irritabilidade, automatismo, nutrição, metabolismo, daquele campo. O que se mantém em todos os
respiração e reprodução. Essas propriedades, no campos é o substrato lógico dos caracteres de 1º, 2º
entanto, podem ser condensadas sob três grandes e 3º.
eixos: sensibilidade, movimento e crescimento. Numa Para se ter uma idéia da amplitude e abertura
antevisão monumental das atuais teorias biológicas, máxima dessas categorias, basta lembrarmos que,
sua teoria molecular do protoplasma repousa na em nível mais geral, a 1º corresponde ao acaso,
afirmação de que a consciência pertence a todo originalidade irresponsável e livre, variação
protoplasma e não pode ser explicada mecanicamente. espontânea; a 2º corresponde à ação e reação dos
Com isso, Peirce afirma que a vida se desenvolve fatos concretos, existentes e reais, enquanto a 3º.°
através da interação dialética entre acaso e desígnio, categoria diz respeito à mediação ou processo,
palavras dele que antecedem de quase um século o crescimento contínuo e devir sempre possível pela
título do polêmico livro de Jacques Monod: Acaso e aquisição de novos.hábitos. O 3 pressupõe o 2 e 1º;
o o

Necessidade. o 2º pressupõe o 1P; o 1 é livre. Qualquer relação


o

2) Na teoria da evolução: há três modos de superior a três é uma complexidade de tríades.


evolução operativos de maneira interdependente no Como exemplificação mais detalhada dessas
universo: 1) o que envolve acaso e pura categorias, escolhemos o campo das manifestações
espontaneidade, ligado à teoria darwiniana da evolução psicológicas, isto porque, neste campo, estaremos
por variações acidentais e destruição das espécies cuja nos referindo aos elementos
habilidade de se reproduzir torna-se frágil; 2) evolução
ou categorias de um fenômeno que é o mais
ligada à teoria dos cataclismos, ou seja, devida a
perfeitamente familiar a todas as pessoas, visto que
mudanças súbitas no ambiente externo e à ruptura de
faz parte integrante de nossa vivência cotidiana,
hábitos; 3) associada com a teoria de Lamarck,
assim como das experiências que fazem de nós seres
evolução através do efeito do hábito.
humanos, acordados ou sonhando.
3) Na fisiologia: mais especialmente, na fisiologia
Com isso, qualquer leitor estará apto a julgar e
da atividade cerebral. Esta pode ser sintetizada do
conferir por si mesmo, no cotejo com suas próprias
seguinte modo: a ação nervosa que subjaz ao processo
observações, a validade dessas noções de 1º, 2º e 3º.
do pensamento divide-se em três grandes estágios: 1)
Notemos, contudo, o fato de que essas
excitação nervosa, seja periférica ou visceral, que se
categorias não são psicológicas. Foram, ao contrário,
espalha de gânglio a gânglio; 2) ação reflexa repetitiva
extraídas da análise mais rigorosamente lógica do
ou descarga neuronal, adaptada para remover a
que aparece no mundo. Por outro lado, não estamos
excitação; 3) estabelecimento de passagens neuronais,
também aí lidando com metafísica, mas com lógica
ou a fixação de hábitos ou crenças. Note-se que hábitos
apenas. Ouçamos Peirce: "Não perguntamos o que
ou crenças devem ser entendidos aqui como
realmente existe, apenas o que aparece a cada um
composições neuronais que tendem a se fixar, ou seja,
de nós em todos os momentos de nossa vida. Analiso
entendidos num sentido fisiológico que certamente
a experiência, que é a resultante de nossa vida
produz efeitos psicológicos e comportamentais. Para
passada, e nela encontro três elementos. Denomino-
Peirce, uma crença se alicerça e se aloja
os categorias".
fisiologicamente, como um hábito cerebral que
São, portanto, categorias lógicas que aqui
determinará o que faremos na fantasia assim como na
aplicaremos ao campo das manifestações
ação concreta,
psicológicas não só porque, como tal, as categorias
Desse modo, nosso hábitos estão incorporados na
se nos apresentam como coisas vivas e vividas, mas
fisiologia dos nossos cérebros de modo que eles
também porque, a partir disso, tornar-se-á claro por
estruturam nossos comportamentos de maneira a
que, para nós, o mundo aparece e se traduz como
torná-los não mais espontâneos ou cegos. No entanto, a
linguagem, fundamento de toda a Semiótica.
espontaneidade e o acidental coexistem junto ao hábito
e a sua revelia.
4) Na física: 1) Acaso, 2) Lei e 3) Tendência ou
propensão a assumir hábitos; Note-se que a primeira Qualidade de sentimento...
categoria incorpora a indeterminação do acaso no conflito... interpretação
mundo físico e que, para Peirce, as leis são sempre
contingentes, ou melhor, fatos de observação e, como Exemplificar as categorias como manifestações
tal, contingentes, visto que toda observação contém um psicológicas significa examinar os modos mais gerais
traço de inexatidão. Nessa medida, as leis da natureza conforme os quais se dá a apreensão dos fenômenos
não são vistas como absolutas e invariantes, Há espaço na consciência. Para tal, esclareçamos o que Peirce
para o crescimento contínuo (3º) e para acaso genuíno entende por consciência.
(1°). Consciência não se confunde com razão.
Como se pode ver, as categorias fundamentais, Consciência é como um lago sem fundo no qual as
encontradas no pensamento e descobertas pela análise idéias (partículas materiais da consciência) estão
reflexiva dos fenômenos, estão também presentes na localizadas em diferentes profundidades e em
natureza básica de todas as coisas, sejam elas físicas permanente mobilidade. A razão (pensamento
ou psicológicas. Observe-se, contudo, que essas deliberado) é apenas a camada mais superficial da
categorias são as mais universalmente presentes em consciência. Aquela que está próxima da superfície.
todo e qualquer fenômeno. Como tal, são conceitos Sobre essa camada, porque superficial, podemos
simples aplicáveis a qualquer objeto. Não excluem, exercer autocontrole e também, porque superficial, é
portanto, a variabilidade infinita de outras tantas a ela que nossa autoconsciência está atada. Daí
categorias particulares e materiais, passíveis de serem tendermos a confundir consciência com razão. No
encontradas nos fenômenos. entanto, se bem que a razão seja parte da
Trata-se, pois, de idéias tão amplas que devem ser consciência, ela não compõe, nem de longe, o todo
consideradas mais como tons ou finos esqueletos do da consciência.
pensamento e das coisas do que como noções estáticas Apesar de não restringir consciência à razão, isto
e terminais. Ao contrário, são dinâmicas, não significa que Peirce menosprezasse a razão. Sua
lógica, aliás, se propõe como sendo um método tudo ao mesmo tempo, repito, se fosse possível parar
científico para orientar o raciocínio. Sua lógica se essa consciência no instante presente, ela não seria
estrutura, portanto, como a criação de instrumentos senão presentidade como está presente. Trata-se,
científicos para auxiliar e ampliar o poder da razão. pois, de uma consciência imediata tal qual é.
Contudo, sua noção de consciência é ampla, dinâmica, Nenhuma outra coisa senão pura qualidade de ser e
em alguns aspectos próxima dos estudos da estrutura de sentir. A qualidade da consciência imediata é uma
psíquica em Freud e mais próxima ainda da noção de impressão (sentimento) in totum, indivisível, não
consciência que as atuais pesquisas do cérebro estão analisável, inocente e frágil.
nos dando. Tudo que está imediatamente presente à
Confiramos com Peirce: "Tal era o dictum da velha consciência de alguém é tudo aquilo que está na sua
psicologia que identificava a consciência com o ego, mente no instante presente. Nossa vida inteira está
declarava sua absoluta simplicidade e mantinha que no presente. Mas, quando perguntamos sobre o que
suas faculdades eram meros nomes para divisões está lá, nossa pergunta vem sempre muito tarde. O
lógicas da atividade humana. Isso tudo era a mais pura presente já se foi, e o que permanece dele já está
fantasia. A observação dos fatos agora nos ensinou que grandemente transformado, visto que então nos
o cego é uma mera onda na consciência, um traço encontramos em outro presente, e se pararmos,
pequeno e superficial; ensinou-nos ainda que a outra vez, para pensar nele, ele também já terá
consciência pode conter diversas personalidades e é tão voado, evanescido e se transmutado num outro
complexa quanto o cérebro ele mesmo, e que as presente.
faculdades, embora não absolutamente fixáveis e O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo
definíveis, são tão reais quanto o são as diferentes que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência
circunvoluções do cérebro". imediata, mas é também paradoxalmente justo
Ao levar o rigor científico ao máximo de suas aquilo que se oculta ao nosso pensamento, porque
possibilidades, Peirce acaba encontrando, pelas vias do para pensar precisamos nos deslocar no tempo,
Ocidente, uma concepção de consciência que se deslocamento que nos coloca fora do sentimento
aproxima muito mais da filosofia oriental do que de mesmo que tentamos capturar. A qualidade da
qualquer um dos sistemas filosóficos que o mundo consciência, na sua imediaticidade, é tão tenra que
ocidental produziu. Desse modo, tomando-se não podemos sequer tocá-la sem estragá-la.
consciência como um todo, nada há nela senão estados Por exemplo: aí está você, em algum lugar,
mutáveis. O que chamamos racionalidade sofre, a todo provavelmente sentado, lendo este livro. Tome agora
momento, a influência de interferências fora do nosso o que está em sua consciência em qualquer um dos
controle. seus simples momentos. Há primeiro uma
As interferências são internas, isto é, as que vêm consciência geral da vida. Então, há a reunião de
das profundezas do nosso mundo interior, e externas, pequenas sensações epidérmicas de sua roupa. Há,
as que dizem respeito às forças objetivas que atuam então, o senso da qualidade geral do lugar em que
sobre nós. Essas forças vão desde o nível das você está. Há também a consciência de estar só, se
percepções que, pelo simples fato de estarmos vivos, estiver só. Então, há a luz, uma sensação muito vaga
nos inundam a todo instante, até o nível das relações do cheiro e da temperatura do ambiente e do seu
interpessoais, intersubjetivas, ou seja, as relações de corpo, um certo gosto na boca... Então, as letras
amizade, vizinhança, amor, ódio etc, encontrando ainda impressas neste livro as quais, em qualquer um dos
as forças sociais que atuam sobre nós: as condições instantes, serão a mera apreensão de um simples
reais de nossa existência social, isto é, as relações traço. Há, ainda, um conjunto de noções, o provável
formais de classes sociais que variam de acordo com as sentimento de estar compreendendo o que estou
determinações históricas das sociedades em que se tentando lhe transmitir. Em adição, há centenas de
vive. coisas no fundo de sua consciência: lembranças
A partir disso, podemos nos aproximar de suas vagas, desejos indiscerníveis, sentimentos muito
categorias que são, para ele, os três modos como os gerais de estar mais ou menos bem ou de estar mais
fenômenos aparecem à consciência. Contudo, que não ou menos mal. Sua vida inteira está aí com você em
se entenda essas categorias como entidades mentais, cada lapso de instante em que você está existindo.
mas como modos de operação do pensamento-signo Esse é o melhor modo em que posso descrever o
que se processam na mente. Assim sendo, consciência que está em sua consciência num simples momento.
não é tomada como uma espécie de alma ou espírito Mas levei considerável tempo e usei muitas palavras
etéreo, mas como lugar onde interagem formas de para descrevê-lo.
pensamento. As categorias, portanto, dizem respeito às Impossível, pois, capturar o que está em sua mente
modalidades peculiares com que os pensamentos são tal como está, visto que tento capturar justamente a
enformados e entretecidos. Enfim: camadas consciência In totum de uma presentidade. Pela
interpenetráveis e, na maior parte das vezes, natureza mesma do pensamento e da linguagem, sou
simultâneas, se bem que qualitativamente distintas. obrigada a quebrar sua consciência em pedaços para
Essas três categorias irão para o que poderíamos descrevê-la. Isso requer reflexão e a reflexão ocupa
chamar três modalidades possíveis de apreensão de tempo.
todo e qualquer fenômeno. Certamente há infinitas A consciência de um momento, contudo, como
gradações entre essas modalidades. Elas se constituem, ela está naquele exato momento, não é reflexionada
no entanto, nas modalidades mais universais e mais nem quebrada em pedaços. Como eles estão naquele
gerais, através das quais se opera a apreensão- vero momento, todos os elementos de impressão
tradução dos fenômenos. Senão vejamos: estão juntos e são um único sentimento indivisível e
sem partes. O que foi destilado pela fragmentação
Primeiridade descritiva, como sendo partes do sentimento, não
são realmente partes desse sentimento como ele
Se fosse possível parar, para examinar, num está no exato momento em que está presente; elas
determinado instante, de que consiste o todo de uma são o que aparece como tendo estado lá, quando
consciência, qualquer consciência, a minha ou a sua, refletimos sobre o sentimento, depois que ele
isto é, de que consiste esse labiríntico "lago sem fundo", passou. Como ele é sentido, no momento em que lá
num instante qualquer em que é o que é, por que é está, essas partes não são reconhecidas e, portanto,
essas partes não existem no sentimento ele mesmo. entre nós e os fenômenos. Qualidade de sentir é o
Nessa medida, o primeiro (primeiridade) é presente modo mais imediato, mas já imperceptivelmente
e imediato, de modo a não ser segundo para uma medializado de nosso estar no mundo. Sentimento é,
representação. Ele é fresco e novo, porque, se velho, já pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira
é um segundo em relação ao estado anterior. Ele é forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada
iniciante, original, espontâneo e livre, porque senão de predicação das coisas.
seria um segundo em relação a uma causa. Ele precede Esse estado-quase, aquilo que é ainda
toda síntese e toda diferenciação; ele não tem nenhuma possibilidade de ser, deslancha irremediavelmente
unidade nem partes. Ele não pode ser articuladamente para o que já é, e no seu ir sendo, já foi. Entramos no
pensado; afirme-o e ele já perdeu toda sua inocência universo do segundo.
característica, porque afirmações sempre implicam a
negação de uma outra coisa. Pare para pensar nele e
ele já voou. Secundidade
O que é o mundo para uma criança em idade tenra,
antes que ela tenha estabelecido quaisquer distinções,
ou se tornado consciente de sua própria existência? Isso Há um mundo real, reativo, um mundo sensual,
é primeiro, presente, imediato, fresco, novo, iniciante, independente do pensamento e, no entanto,
original, espontâneo, livre, vivido e evanescente. Mas pensável, que se caracteriza pela secundidade. Esta
não se esqueça: qualquer descrição dele deve é a categoria que a aspereza e o revirar da vida
necessariamente falseá-lo. tornam mais familiarmente proeminente. É a arena
Mas o que quer isso dizer? Que não existe para da existência cotidiana. Estamos continuamente
nós, adultos, senão a nostalgia de uma experiência de esbarrando em fatos que nos são externos,
primeiridade? Estamos para sempre fadados à perda tropeçando em obstáculos, coisas reais, factivas que
irrecuperável desse sabor do viver? Não, em termos. O não cedem ao mero sabor de nossas fantasias. Enfim:
fato de que essa experiência não possa ser descrita não "a pedra no meio do caminho" de que nos fala Carlos
significa, em primeiro lugar, que não possa ser indicada Drummond de Andrade.
ou imaginativamente criada. O simples fato de estarmos vivos, existindo,
Em segundo lugar, e isto é o mais importante, de significa, a todo momento, consciência reagindo em
qualquer coisa que esteja na mente em qualquer relação ao mundo. Existir e sentir a ação de fatos
momento, há necessariamente uma consciência externos resistindo à nossa vontade. É por isso que,
imediata e conseqüentemente um sentimento. proverbialmente, os fatos são denominados brutos:
Qualidades de sentimento estão, a cada instante, lá, fatos brutos e abruptos. Existir ó estar numa relação,
mesmo que imperceptíveis. Essas qualidades não são tomar um lugar na infinita miríade das determinações
nem pensamentos articulados, nem sensações, mas do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e
partes constituintes da sensação e do pensamento, ou espaço particulares, confrontar-se com outros
de qualquer coisa que esteja imediatamente presente corpos...
em nossa consciência. Certamente, onde quer que haja um fenômeno,
Há instantes fugazes, entretanto, e nossa vida está há uma qualidade, isto é, sua primeiridade. Mas a
prenhe da possibilidade desses instantes, em que a qualidade é apenas uma parte do fenômeno, visto
qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada
se nossa consciência e o universo inteiro não fossem, numa matéria. A factualidade do existir
naquele lapso de instante, senão uma pura qualidade (secundidade) está nessa corporificação material.
de sentir. A qualidade de sentimento não é sentida como
Embora qualidade de sentimento só possa se dar resistindo num objeto material. É puro sentir, antes
no instante mesmo de uma impressão não analisável e de ser percebido como existindo num eu. Por isso,
incapturável, ou seja, num simples átimo, esse meras qualidades não resistem. É a matéria que
momento de impressão, dependendo do estado em que resiste. Por conseguinte, qualquer sensação já é
a consciência se encontra, pode ser prolongado. pivô do pensamento, aquilo que move o pensar,
Levantemos, por exemplo, algumas instâncias de retirando-o do círculo vicioso do amortecimento.
qualidades de sentir ao imaginarmos um estado mental Falar em pensamento, no entanto, é falar em
caracterizado por uma simples qualidade positiva: o processo, mediação interpretativa entre nós e os
sabor do vinho, a qualidade de sentir amor, perfume de fenômenos. É sair, portanto, do segundo como aquilo
rosas, uma dor de cabeça infinita que não nos permite que nos impulsiona para o universo do terceiro.
pensar nada, sentir nada, a não ser a qualidade da dor. Antes de penetrarmos no devir incessante do
Um instante eterno, sem partes, indiscernível de prazer pensamento como representação interpretativa do
intenso ou a sutil qualidade de sentir quando vamos mundo, que fique claro que nossas reações à
gentilmente acordando, dóceis, ao som de uma música. realidade, interações vivas e físicas com a
Trata-se de estados de disponibilidade, percepção materialidade das coisas e do outro, já se constituem
cândida, consciência esgarçada, desprendida e porosa, em respostas sígnicas ao mundo, marcas materiais
aberta ao mundo, sem lhe opor resistência, consciência perceptíveis em maior ou menor grau que nosso
passiva, sem eu, liberta dos policiamentos do existir histórico e social, circunstancial e singular vai
autocontrole e de qualquer esforço de comparação, deixando como pegadas, rastros de nossa existência.
interpretação ou análise. Consciência assomada pela Agir, reagir, interagir e fazer são modos
mera qualidade de um sentimento positivo, simples, marcantes, concretos e materiais de dizer o mundo,
intraduzível. interação dialógica, ao nível da ação, do homem com
Note-se, contudo, que Peirce tem aí a precaução de sua historicidade.
não confundir a qualidade de sentimento de uma cor
vermelha, por exemplo, de um som ou de um cheiro,
com os próprios objetos percebidos como vermelhos,
sonantes ou cheirosos. Consciência em primeiridade é Terceiridade
qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira,
ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós
aparecem, já é tradução, finíssima película de mediação as categorias universais do pensamento e da
natureza.
Primeiridade é a categoria que dá à experiência palavra, temos que recorrer a uma outra palavra que,
sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade em alguns traços, possa substituir a anterior. Basta
irrepetível e liberdade. Não a liberdade em relação a folhear um dicionário para que se veja como isto, de
uma determinação física, pois que isso seria uma fato,
proposição metafísica, mas liberdade em relação a é assim.
qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, Eis aí, num mesmo nó, aquilo que funda a
sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que miséria e a grandeza de nossa condição como seres
poderia também estar nos seus olhos, só o azul, é simbólicos. Somos no mundo, estamos no mundo,
aquilo que é tal qual é, independente de qualquer outra mas nosso acesso sensível ao mundo é sempre como
coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um que vedado por essa crosta sígnica que, embora nos
componente do segundo. forneça o meio de compreender, transformar,
Secundidade é aquilo que dá à experiência seu programar o mundo, ao mesmo tempo usurpa de nós
caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda uma existência direta, imediata, palpável, corpo a
em nível de binariedade pura, sem o governo da corpo e sensual com o sensível.
camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei. Contudo, repensemos o problema. Se nossa
Finalmente, terceiridade, que aproxima um condição de tradutores de um pensamento em outro
primeiro e um segundo numa síntese intelectual, pensamento fundar natureza mesma do que
corresponde à camada de inteligibilidade, ou chamamos consciência interpretativa, então as
pensamento em signos, através da qual representamos categorias de primeiridade (sentimento) e de
e interpretamos o mundo. Por exemplo: o azul, simples secundidade (conflito) estariam fadadas ao
e positivo azul, é um primeiro. O céu, como lugar e evanescimento irreversível, sempre embolsadas
tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um dentro da categoria do terceiro ou interpretação?
segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva — o Em primeiro lugar, esses três possíveis estados
azul no céu, ou o azul do céu —, é um terceiro. da mente não podem ser entendidos como dados
Algumas das idéias de terceiridade que, devido à estanques. Disse Peirce: "Nenhuma linha firme de
sua importância na filosofia e na ciência, requerem demarcação pode ser desenhada entre diferentes
estudo atento são: generalidade, infinitude, estados integrais da mente, isto é, entreestados tais
continuidade, difusão, crescimento e inteligência. Mas a como sentimento, vontade e conhecimento. É claro
mais simples idéia de terceiridade é aquela de um signo que estamos ativamente conhecendo em todos os
ou representação. E esta diz respeito ao modo, o mais nossos minutos de vigília e realmente sentindo
proeminente, com que nós, seres simbólicos, estamos também. Se não estamos sempre querendo, estamos
postos no mundo. pelo menos, a todo momento, com a consciência
Diante de qualquer fenômeno, isto é, para reagindo em relação ao mundo externo". Em suma:
conhecer e compreender qualquer coisa, a consciência "o que em mim sente está pensando", diria depois
produz um signo, ou seja, um pensamento como Fernando Pessoa.
mediação irrecusável entre nós e os fenômenos. E isto, Em segundo lugar, a camada do pensamento
já ao nível do que chamamos de percepção. Perceber interpretativo, pensamento sob autocontrole, é
não é senão traduzir um objeto de percepção em um apenas a camada mais superficial, mais à tona da
julgamento de percepção, ou melhor, é interpor uma consciência. Essa camada, no entanto, pode, a
camada interpretativa entre a consciência e o que é qualquer momento, ser quase que fendida,
percebido. subvertida pela pregnância dê uma mera qualidade
Nessa medida, o simples ato de olhar já está de sentir ou pela invasão de um conflito: instâncias
carregado de interpretação, visto que é sempre o de um lampejo ou lapsode-tempo que fissuram a
resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma remessa incessante de signo a Signo da
mediação sígnica que possibilita nossa orientação no racionalidade interpretadora.
espaço por um reconhecimento e assentimento diante Trata-se de instâncias, portanto, em que a
das coisas que só o signo permite. abstração cognitiva é quase fendida e a consciência
O homem só conhece o mundo porque, de alguma encontra um ponto tangencial em que é corpo do
forma, o representa e só interpreta essa representação mundo e no mundo, instante indiscernível e
numa intraduzível de maior proximidade física e viva da
consciência com o fenômeno apreendido.
outra representação, que Peirce denomina interpretante
Nessa medida, para nós tudo é signo, qualquer
da primeira. Daí que o signo seja uma coisa de cujo
coisa que II produz na consciência tem o caráter de
conhecimento depende do signo, isto é, aquilo que é
signo. No entanto, Peirce leva a noção de signo tão
representado pelo signo. Daí que, para nós, o signo seja
longe a ponto de que um signo não tenha
um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um
necessariamente de ser uma representação mental,
terceiro. Para conhecer e se conhecer o homem se faz
mas pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo
signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em
uma mera qualidade de impressão.
outros signos.
O sentimento ou qualidade de impressão é um
Em síntese: compreender, interpretar é traduzir um
quase-signo porque já funciona como um primeiro,
pensamento em outro pensamento num movimento
vago e impreciso predicado das coisas que a nós se
ininterrupto, pois só podemos pensar um pensamento
apresentam. A ação ou experiência também pode
em outro pensamento.É porque o signo está numa
funcionar como signo porque se apresenta como
relação a três termos que sua ação pode ser bilateral:
resposta ou marca que deixamos no mundo, aquilo
de um lado, representa o que está fora dele, seu objeto,
que nossa ação nele inculca. Aí estão enraizadas na
e de outro lado, dirige-se para alguém em cuja mente
fenomenologia as bases para a Semiótica, pois é
se processará sua remessa para um outro signo ou
justo na terceira categoria fenomenológica que
pensamento onde seu sentido se traduz. E esse sentido,
encontramos a noção de signo genuíno ou triádico,
para ser interpretado tem de ser traduzido em outro
assim como é nas segunda e primeira categorias que
signo, e assim ad infinitum.
emergem as formas de signos não genuínos, isto é,
O significado, portanto, é aquilo que se desloca e
as formas quasesígnicas da consciência ou
se esquiva incessantemente. O significado de um
linguagem.
pensamento ou signo é um outro pensamento. Por
exemplo: para esclarecer o significado de qualquer
seu comportamento e propriedades, desde que estas
PARA SE TECER A MALHA DOS não sejam acidentais. A tarefa de suprir essas
SIGNOS necessidades deve ser tomada por algum grupo de
investigadores. Quase tudo que até agora foi
A Semiótica peirceana, concebida como Lógica, não se realizado nessa direção foi trabalho dos lógicos.
confunde com uma ciência aplicada. O esforço de Peirce Nenhum grupo esteve tão bem preparado para tocar
era o de configurar conceitos sígnicos tão gerais que esta tarefa à frente, ou que poderia fazê-la com
pudessem servir de alicerce a qualquer ciência menos desvios de suas preocupações originais".
aplicada. Infelizmente, no entanto, poucos lógicos
Confiramos com suas palavras: "A tarefa que seguiram Peirce na sua insistência sobre os signos.
inauguro é fazer uma filosofia como aquela de Isto continua por mantê-lo solitário na aproximação
Aristóteles, quer dizer, esboçar uma teoria tão do Simbolismo, que ele teria preferido chamar
compreensiva que, por longo tempo, todo o trabalho da Semiosis (ação do signo), pelo lado da Lógica.
razão humana — na filosofia de todas as escolas e Assim sendo, as definições e classificações de
espécies, na matemática, na psicologia, na ciência signo formuladas por Peirce são logicamente gerais,
física, na histórica, na sociologia e em qualquer outro quase matemáticas. O nível de abstração exigido
departamento que possa haver—deve aparecer como para compreendê-las é, sem dúvida, elevado.
preenchimento de seus detalhes. O primeiro passo para Entretanto, uma vez assimilado esse campo de
isso é encontrar conceitos simples aplicáveis a qualquer relações formais, essa assimilação passa a funcionar
assunto". para nós como uma espécie de visor ou lente de
Isso não quer dizer que sua teoria tenha nascido aumento que nos permite perceber uma
para tirar o lugar das outras ciências. Pelo contrário, multiplicidade de pontos e distinguir sutis
para fornecer a elas fundações lógicas para suas diferenciações nas linguagens concretas pelas quais
construções como linguagens que são. estamos perpassados e com as quais convivemos.
Apesar de ter insistido muito na sua definição de
Lógica como Semiótica formal, ou seja, Lógica como
configuração de conceitos abstrato-formais, ao definir
esses conceitos, tinha, na maior parte das vezes, de
Definição de signo
singularizá-los, para torná-los compreensíveis às
mentes empíricas. Numa carta em 1908, Peirce Há uma enorme quantidade de definições de
escreveu: "Minha definição de signo foi tão generalizada signo distribuídas pelos textos de Peirce, umas mais
que, ao fim e ao cabo, desesperei-me ao tentar fazê-la detalhadas, outras mais sintéticas. Dentre elas,
compreensível às pessoas. Assim, para me fazer escolhemos uma que, para os nossos propósitos,
entendido, eu agora a limitei". parece exemplar:
Originalmente, contudo, Peirce tinha em mente o "Um signo intenta representar, em parte pelo
seguinte: "Devemos começar por levantar noções menos, um objeto que é, portanto, num certo
diagramáticas dos signos, das quais nós retiramos, sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo
numa primeira instância, qualquer referência à mente, e se o signo representar seu objeto falsamente. Mas
depois que tivermos feito aquelas noções tão distintas dizer que ele representa seu objeto implica que ele
como o é a nossa noção de número primitivo, ou a de afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira,
uma linha oval, podemos então considerar, se for determine naquela mente algo que é mediatamente
necessário, quais são as características peculiares de devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa
um signo mental e, de fato, podemos dar uma definição imediata ou determinante é o signo, e da qual a
matemática de uma mente, no mesmo sentido que causa mediata é o objeto, pode ser chamada o
podemos dar uma definição matemática de uma linha Interpretante".
reta... Mas não há nada que obrigue o objeto de tal Esclareçamos: o signo é uma coisa que
definição formal a ter o sentimento peculiar da representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode
consciência. Esse sentimento peculiar não tem nada a funcionar como signo se carregar esse poder de
ver com a logicalidade do raciocínio. É bem melhor, representar, substituir uma outra coisa diferente
portanto, deixá-lo fora da jogada". dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no
Num outro trecho, Peirce escreve: "Se um lógico lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar
for falar das operações da mente, ele deve significar por esse objeto de um certo modo e numa certa
mente algo bem diferente do objeto de estudo do capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a pintura
psicólogo. A lógica será aqui definida como Semiótica de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de
formal. Uma definição de signo será dada, sem se uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma
referir ao pensamento humano...". casa, a planta baixa de uma casa, a maquete de uma
Hoje, quase 100 anos transcorridos, essa casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são
insistência de Peirce em generalizar a noção de signo a- todos signos do objeto casa. Não são a própria casa,
ponto de não ter de referi-la à mente humana não mais nem a idéia geral que temos de casa. Substituem-na,
soa como formalismo excêntrico, mas soa mais como apenas, cada um deles de um certo modo que
antecipação, visto que, com o advento da Cibernética, depende da natureza do próprio signo. A natureza de
tal necessidade se patenteou histórica e uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa.
concretamente. Para falarmos dos processos de Ora, o signo só pode representar seu objeto para
comunicação entre máquinas, não temos um intérprete, e porque representa seu objeto,
necessariamente de nos referir às peculiaridades da produz na mente desse intérprete alguma outra coisa
consciência humana. Isso, para não mencionarmos as (um signo ou quase-signo) que também está
descobertas da Biologia que estenderam a noção de relacionada ao objeto não diretamente, mas pela
signo (linguagem e informação) para o campo das mediação do signo.
configurações celulares. Cumpre reter da definição a noção de
Ainda em 1909, Peirce escreveu: "A grande interpretante. Não se refere ao intérprete do signo,
necessidade é a de uma teoria geral de todas as mas a um processo relacionai que se cria na mente
possíveis espécies de signo, seus modos de do intérprete. A partir da relação de representação
significação, de denotação e de informação; e o todo de que o signo mantém com seu objeto, produz-se na
mente interpretadora um outro signo que traduz o energético, isto é, uma ação concreta e real de
significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). obediência, no caso, como resposta ao signo.
Portanto, o significado de um signo é outro signo — seja Se convencional, ou seja, signo de lei, por
este uma imagem mental ou palpável, uma ação ou exemplo, uma palavra ou frase, o interpretante será
mera reação gestual, uma palavra ou um mero um pensamento que traduzirá o signo anterior em
sentimento de alegria, raiva... uma idéia, ou seja lá o outro signo da mesma natureza, e assim ad infinitum.
que for — porque esse seja lá o que for, que é criado na Este outro signo de caráter lógico é o que Peirce
mente pelo signo, é um outro signo (tradução do chama de interpretante em si. Este consiste não
primeiro). Mas, para que a definição de signo fique apenas no modo como sua mente reage ao signo,
melhor divisada, convém esclarecer que o signo tem mas no modo como qualquer mente reagiria, dadas
dois objetos e três interpretantes. Vejamos, primeiro certas condições. Assim, a palavra casa produzirá
num gráfico: como interpretante em si outros signos da mesma
espécie: habitação, moradia, lar, "lar-doce-lar" etc.
SIGNO Percebendo que o signo não é uma coisa
monolítica, mas um complexo de relações, que
retenhamos em nossa rotina mental essa sutis
diferenciações entre as partes do signo, para que
possamos passar para as principais classificações de
signos onde essas relações serão retomadas com
vistas a uma maior elucidação.

Classificação dos signos

A partir dessa divisão lógica e microscópica das


partes que interagem na constituição de todo e
qualquer signo, Peirce estabeleceu uma rede de
classificações sempre triádícas (isto é, três a três)
dos tipos possíveis de signo.
Tomando como base as relações que se
apresentam no signo, por exemplo, de acordo com o
modo de apreensão do signo em si mesmo, ou de
acordo com o modo de apresentação do objeto
imediato, ou de acordo com o modo de ser do objeto
dinâmico etc, foram estabelecidas 10 tricotomias,
O interpretante imediato consiste naquilo que o isto é, 10 divisões triádicas do signo, de cuja
signo está apto a produzir numa mente interpretadora combinatória resultam 64 classes de signos e a
qualquer. Não se trata daquilo que o signo efetivamente possibilidade lógica de 59 049 tipos de signos.
produz na minha ou na sua mente, mas daquilo que, Evidentemente, Peirce não chegou a explorar
dependendo de sua natureza, ele pode produzir. Há todos esses tipos. Aliás, em relação a isso ele assim
signos que são interpretáveis na forma de qualidades se referiu: "Não assumirei o encargo de levar minha
de sentimento; há outros que são interpretáveis através sistemática divisão de signos mais longe, mas
de experiência concreta ou ação; outros são passíveis deixarei isso para futuros exploradores".
de interpretação através de pensamentos numa série As 10 divisões triádicas foram, no entanto,
infinita. elaboradas. Não faz sentido, porém, entrarmos aqui
Daí decorre o interpretante dinâmico, isto é, aquilo em tal nível de detalhamento. Basta apontarmos para
que o signo efetivamente produz na sua, na minha o fato de que um exame mais minucioso dessas
mente, em cada mente singular. E isso ele produzirá classificações pode nos habilitar para a leitura de
dependendo da sua natureza de signo e do seu todo e qualquer processo sígnico, desde a linguagem
potencial como signo. Por exemplo: há signos que só indeterminada das nuvens que passeiam no céu, ou
produzirão sentimentos de qualidade. Ao ouvirmos uma as marcas multiformes e cambiantes que as ondas do
peça de música, se não somos conhecedores dos mar vão deixando na areia, até uma fórmula, a mais
diferentes códigos de composição musical (o que nos abstrata, de uma ciência exata.
levaria também a outros tipos de interpretação), a Dentre todas essas tricotomias, há três, as mais
audição dessa música não produzirá em nós senão uma gerais, às quais Peirce dedicou explorações
série de qualidades de impressão, isto é, sensações minuciosas. São as que ficaram mais conhecidas e
auditivas, viscerais e possivelmente correspondências que têm sido mais divulgadas. Tomando-se a relação
visuais. É claro que podemos traduzir essas sensações do signo consigo mesmo (1º), a relação do signo com
numa pseudo-significação ou interpretante puramente seu objeto dinâmico (2º) e a relação do signo com
emocional: alegria, tristeza, monotonia, mudança... seu interpretante (3º), tem-se:
Assim, aquele signo, dada a limitação do nosso
repertório, não produzira em nós senão um signo 1º em si signo 2º signo 3º com seu
interpretante dinâmico de primeiro nível, isto é, mesmo – seu modo com seu interpretante –
emocional. (Sobre os modos de se ouvir uma música, de ser, as- pecto, objeto – aquilo que o signo
aparência... pode ser classifica-se está apto a produzir
veja-se o capítulo Maneiras de Ouvir, do livro O que é
uma qualidade, uma de acordo numa mente
Música, pois lá o autor, J. Jota de Moraes, indica essas existência ou uma lei com o modo interpretadora
maneiras em correspondência com as categorias como é
peirceanas.) apreendido
Vejamos aqui, porém, o segundo nível do 1.º quali-signo – tela ícone rema – um
interpretante dinâmico. Se você recebe uma ordem de vermelha em Gritos porque sentimen- to vago
alguém que tem autoridade sobre você, por respeito ou e Sussurros de quali- dades e indiscernível uma
temor, essa ordem produzirá um interpretante dinâmico Bergman não conjetura ou
representam hipótese. Sempre
nada, só se no nível do parecer: caráter qualitativo (cores, luminosidade, volumes,
apresentam, imagens, textura, formas...) só pode ser um ícone. E isto
comparamo diagramas, porque esse conjunto de qualidades inseparáveis,
s, somos metáforas. que lá se apresenta in totum, não representa, de
sugestionad
os
fato, nenhuma outra coisa. O objeto do ícone,
2.º sin-signo – índice – dicente – ele portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é,
existente singular, está em constata a relação possibilidade do efeito de impressão que ele está
material, aqui e conexão física entre apto a produzir ao excitar nosso sentido. Daí que,
agora / indica o uni- com o existentes – o quanto mais alguma coisa a nós se apresenta na
verso de que faz univer- índice está proeminência de seu caráter qualitativo, mais ela
parte so de que marcado de ícones. tenderá a esgarçar e roçar nossos sentidos.
faz parte: Por que uma criança é capaz de ficar, talvez
rastros,
pegadas,
dezenas de minutos, na pura absorção contemplativa
resí- duos das qualidades de movimento de um móbile? O que é
3.º legi-signo – é um símbolo – argumento - signos aquela rara faculdade do artista de ver o que está
símbolo em relação a de-nota uma triádicos genuínos, diante dos olhos, as cores aparentes da natureza,
seu objeto – uma es- pécie, pois produzirão como elas se apresentam, sem substituí-las por
con- um ti- como interpretante nenhuma interpretação? É a capacidade de absorver
venção ou um pacto po, é geral. um outro tipo geral ícones, poros abertos à simples e despojada
coletivo é que O objeto de ou interpretante em possibilidade qualitativa das coisas.
determi- uma palavra si que, para ser
No entanto, porque não representam
essa relação – há re- não é uma interpretado,
presentação coisa e- exigirá um outro efetivamente nada, senão formas e sentimentos
xis tente, signo, e assim ad (visuais, sonoros, táteis, viscerais...), os ícones têm
mas uma infinitum – o que um alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,
idéia ab- faz parar são os por isso, condições de ser um substituto de qualquer
strata(em limites ideológicos. coisa que a ele se assemelhe. Daí que, no universo
nossas men- das qualidades, as semelhanças proliferem. Daí que
tes os ícones sejam capazes de produzir em nossa mente
as mais imponderáveis relações de comparação.
Observe-se, antes de tudo, que a indicação dos Quando nos detemos, por exemplo, na
numerais (1, 2, 3), na vertical e na horizontal, não contemplação das oscilantes formas das nuvens, de
funciona aí como simples esclarecimento didático, mas repente nos flagramos comparando aquelas formas
remete diretamente às três categorias. Desse modo, se com imagens de animais, objetos, monstros, seres
formos à leitura dos elementos do gráfico, mantendo na humanos ou.deuses imaginários.
memória aqueles caracteres lógicos de 1.°, 2P, 3?, já Ora, aquelas formas, de fato, não representam
teremos percorrido metade do caminho para essas imagens. Podem, quando muito, sugeri-las. É
entendimento dos signos que ocupam cada uma dessas por isso que o interpretante que o ícone está apto a
casas. produzir é, também ele, uma mera possibilidade
Assim, na relação do signo consigo mesmo, no seu (qualidade de impressão) ou, no máximo, no nível do
modo de ser, aspecto ou aparência (isto é, a maneira raciocínio, um rema, isto é, uma conjectura Ou
como aparece), o signo pode ser uma mera qualidade, hipótese. Daí que, diante de ícones, costumamos
um existente (sin-signo, singular) ou uma lei. dizer: "Parece uma escada..." "Não. Parece uma
Lembremos: se algo aparece como pura qualidade, cachoeira..." "Não. Parece uma montanha..." e assim
este algo é primeiro. É claro que uma qualidade não por diante, sempre no nível do parecer. Aquilo que só
pode aparecer e, portanto, não pode funcionar como aparece, parece.
signo sem estar encarnada em algum objeto. Contudo, Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas
o quali-signo diz respeito tão-só e apenas à pura de criação na arte e as descobertas na ciência têm a
qualidade. Por exemplo: uma tela inteira de cinema ver com ícones, examinemos agora as modalidades
que, durante alguns instantes, não é senão uma cor de hipoícones, ou melhor, dos signos que
vermelha forte e luminosa. Quem assistiu a Gritos e representam seus objetos por semelhança. Assim,
Sussurros, de Bergman, deve se lembrar disso. Era a uma imagem é um hipoícone porque a qualidade de
pura cor, positiva e simples, tão proeminente e sua aparência é semelhante à qualidade da
absorvente que, no caso, nem sequer se podia lembrar aparência do objeto que a imagem representa. Todas
ou perceber que aquela cor estava numa tela. É a as formas de desenhos e pinturas figurativas são
qualidade apenas que funciona como signo, e assim o imagens.
faz porque se dirige para alguém e produzirá na mente Já um diagrama é hipoícone de segundo nível,
desse alguém alguma coisa como um sentimento vago visto que representa as relações entre as parles de
e Indivisível. É esse sentimento indiscernível que seu objeto, utilizandose de relações análogas em
funcionará como objeto do signo, visto que uma suas próprias partes. Assim, algumas páginas atrás,
qualidade, na sua pureza de qualidade, não representa para representar as partes constituintes cio signo,
nenhum objeto. Ao contrário, ela está aberta e apta fizemos um diagrama para evidenciar as relações
para criar um objeto possível. que essas partes mantêm entre si.
É por isso que, se o signo aparece como simples Hipoícone de terceiro nível são as metáforas
qualidade, na sua relação com seu objeto, ele só pode verbais. Estas nascem da justaposição entre duas ou
ser um ícone. Isso porque qualidades não representam mais palavras, justaposição que põe em intersecção
nada. Elas se apresentam. Ora, se não representam, o significado convencional dessas palavras. "Olhos
não podem funcionar como signo. Daí que o ícone seja oceânicos", por exemplo. Quando essas duas
sempre um quase-signo: algo que se dá à palavras são justapostas, o significado de olhos entra
contemplação. em paralelo com o de oceano e vice-versa, fazendo
Uma pintura, chamada abstrata, por exemplo, submergir uma relação de semelhança entre ambos.
desconsiderando o fato de que é um quadro que está lá, Passemos, assim, para as tríades em nível de
o que já faria dela um existente singular e não uma secundidade. Qualquer coisa que se apresente
pura qualidade, mas considerando-a apenas no seu diante de você como um existente singular, material,
aqui e agora, é um sin-signo. Isto porque qualquer independentemente da singularidade de cada mulher
existente concreto e real é infinitamente determinado particular.
como parte do universo a que pertence. Desse modo, É por isso que as frases, que enunciamos, são
uma coisa singular funciona como signo porque indica o todas elas pontilhadas de símbolos indiciais (isto é,
universo do qual faz parte. Daí que todo existente seja palavras que funcionam como índices), caso
um índice, pois, como existente, apresenta uma contrário, as frases não teriam qualquer poder de
conexão de fato com o todo do conjunto de que é parte. referência. Quando digo: "Aquela mulher, que você
Tudo que existe, portanto, é índice ou pode funcionar viu ontem na rua Augusta...", aquela, você, ontem,
como índice. Basta, para tal, que seja constatada a rua Augusta, são palavras-seta que apontam para
relação com o objeto de que o índice é parte e com o tempos e lugares, coisas singulares, a fim de fornecer
qual está existencialmente conectado. aos enunciados um poder de referência.
Isso, em termos amplos e vastos. Concretizando, É evidente também que o símbolo, como lei
porém, em termos particulares, o índice, como seu geral, abstrata, para se manifestar precisa de
próprio nome diz, é um signo que como tal funciona réplicas, ocorrências singulares. Desse modo, cada
porque indica outra coisa com a qual ele está palavra escrita ou falada é uma ocorrência através da
actualmente ligado. Há, entre ambos, uma conexão de qual a lei se manifesta. Confiramos com Peirce: "Um
fato. Assim, o girassol é um índice, isto é, aponta para o símbolo não pode indicar uma coisa particular; ele
lugar do sol no céu, porque se movimenta, gira na denota uma espécie (um tipo de coisa). E não apenas
direção do sol. A posição do sol no céu, por seu turno, isso. Ele mesmo é uma espécie e não uma coisa
indica a hora do dia. Aquela florzinha rosa forte, única. Você pode escrever a palavra estrela, mas isto
chamada "onze-horas", que só se abre às onze horas, não faz de você o criador da palavra — e mesmo que
ao se abrir, indica que são onze horas. você a apague, ela não foi destruída. As palavras
Rastros, pegadas, resíduos, remanências são todos vivem nas mentes daqueles que as usam. Mesmo
índices de alguma coisa que por lá passou deixando que eles estejam todos dormindo, elas vivem nas
suas marcas. Qualquer produto do fazer humano é um suas memórias. As palavras são tipos gerais e não
índice mais explícito ou menos explícito do modo como individuais".
foi produzido. Uma obra arquitetônica como produto de Daí que os símbolos sejam signos triádicos
um fazer, por exemplo, é um índice dos meios genuínos, pois produzirão como interpretante um
materiais, técnicos, construtivos do seu espaçotempo, outro tipo geral ou interpretante em si que, para ser
ou melhor, da sua história e do tipo de força produtiva interpretado, exigirá um outro signo, e assim ad
empregada na sua construção. infinitum. Símbolos crescem e se disseminam, mas
Enfim, o índice como real, concreto, singular é eles trazem, embutidos em si, caracteres icônicos e
sempre um ponto que irradia para múltiplas direções. indicais. O que seria de uma frase, por exemplo, sem
Mas só funciona como signo quando uma mente o diagrama sintático, ordem das palavras, padrão de
interpretadora estabelece a conexão em uma dessas sua estrutura, isto é, justamente seu caráter icônico
direções. Nessa medida, o índice é sempre dual: ligação que nos leva a compreendê-la? O que seria de uma
de uma coisa com outra. O interpretante do índice, frase, sem índices de referências? Esses caracteres,
portanto, não vai além da constatação de uma relação contudo, estão embutidos no símbolo, pois o que lhe
física entre existentes. E ao nível do raciocínio, esse dá o poder de funcionar como signo é o fato
interpretante não irá além de um dicente, isto é, signo proeminente de que ele é portador de uma lei de
de existência concreta. representação.
É claro que todo índice está habitado de ícones, de Concluindo: se o ícone tende a romper a
qualisignos que lhe são peculiares e que nele inerem (a continuidade do processo abstrativo, porque mantém
Secundidade pressupõe a primeiridade). Porém, não é o interpretante em nível de primeiridade, isto é, na
em razão dessas qualidades que o índice funciona como ebulição das conjecturas e na constelação das
signo, mas porque nele o mais proeminente é o seu hipóteses (fonte de todas as descobertas); se o índice
caráter faz parar o processo interpretativo no nível
físico-existencial, apontando para uma outra coisa (seu energético de uma ação como resposta ou de um
objeto) de que ele é parte. pensamento puramente constatativo; o símbolo, por
Quanto às tríades ao nível de terceiridade, elas sua vez, faz deslanchar a remessa de signo a signo,
comparecem quando, em si mesmo, o signo é de lei remessa esta que só não é para nós infinita, porque
(legi-signo). Sendo uma lei, em relação ao seu objeto o nosso pensamento, de uma forma ou de outra, em
signo é um símbolo. Isto porque ele não representa seu maior ou menor grau, está inexoravelmente preso
objeto em virtude do caráter de sua qualidade aos limites da abóbada ideológica, ou seja, das
(hipoícone), nem por manter em relação ao seu objeto representações de mundo que nossa historicidade
uma conexão de fato (índice), mas extrai seu poder de nos impõe.
representação porque é portador de uma lei que, por
convenção ou pacto coletivo, determina que aquele
signo represente seu objeto. Enfim
Note-se que, por isso mesmo, o símbolo não é uma
coisa singular, mas um tipo geral. E aquilo que ele
representa também não é um individual, mas um geral. Aí estão explanadas as três grandes tríades dos
Assim são as palavras. Isto é: signos de lei e gerais. A signos. Como se pode ver, trata-se de uma divisão
palavra mulher, por exemplo, é um geral. O objeto que lógica a mais genérica, espécie de mapeamento
ela designa não é esta mulher, aquela mulher, ou a panorâmico das grandes matrizes sígnicas e das
mulher do meu vizinho, mas toda e qualquer mulher. O fronteiras que as definem. A partir disso, por
objeto representado pelo símbolo é tão genérico quanto combinação lógica entre essas matrizes, Peirce
o próprio símbolo. estabeleceu 10 classes principais de signos que
Desse modo, o objeto de uma palavra não é dizem respeito às misturas entre signos que são
alguma coisa existente, mas uma idéia abstrata, lei logicamente possíveis.
armazenada na programação lingüística de nossos Como matrizes abstratas, as três tríades
cérebros. É por força da mediação dessa lei que a definem campos gerais e elementares que raramente
palavra mulher pode representar qualquer mulher, serão encontrados em estado puro nas linguagens
concretas que estão aí e aqui, conosco e em uso. Na
produção e utilização prática dos signos, apresentam-se literatura, pintura, cinema etc.
amalgamados, misturados, interconectados. A outra fonte encontra-se no Curso de
Por exemplo: todas as linguagens da imagem, Lingüística Geral, proferido pelo lingüista F. de
produzidos através de máquinas (fotografia, cinema, Saussure, na Universidade de Genebra, no final da
televisão...), são signos híbridos: trata-se de hipoícones primeira década deste século. Esse curso foi,
(imagens) e de índices. Não é necessário explicar por posteriormente, transformado em livro e publicado
que são imagens, pois isso é evldente. São, contudo, postumamente a, partir das notas de aulas extraídas
também índices porque essas máquinas são capazes de por alguns alunos.
registrar o objeto do signo por conexão física. A respeito Esse livro mereceu, imediatamente, a mais
da fotografia, Peirce esclarece: "O fato de sabermos que ampla divulgação pela Europa e, pouco mais tarde,
a fotografia é o efeito de radiações partidas do objeto, por quase o mundo todo. Os conceitos lingüísticos
torna-a um índice e altamente informativo". Embora o que ele encerra foram retomados, discutidos e
processo de captação da imagem televisiva seja ampliados por uma série de outros lingüistas,
diferente da fotografia, o caráter inicial de conexão especialmente L. Hjelmslev; e seus princípios
física, existencial e factual nele se mantém. metodológicos foram aplicados a áreas vizinhas,
Poderíamos estender os exemplos de misturas notadamente a Antropologia e Teoria Literária; suas
sígnicas indefinidamente. Não o faremos, porém. O que descobertas, devidamente exploradas, radicalizadas
cumpre reter é que as tríades peirceanas funcionam e levadas às últimas conseqüências pelos novos
como uma espécie de grande mapa, rigorosamente pensadores europeus, particularmente J. Derrida.
lógico, que pode nos prestar enorme auxílio para o A mesma sorte de uma divulgação imediata não
reconhecimento do território dos signos, para acolheu, no entanto, os estudos lingüísticos, poéticos
discriminar as principais diferenças entre signos, para e artísticos — marcados por um vocação semiótica —
aumentar nossa capacidade de apreensão da natureza que os russos nos legaram. A maior parte deles não
de cada tipo de signo. Como teoria científica, a apenas foi retirada de circulação durante os expurgos
Semiótica de Peirce criou conceitos e dispositivos de stalinistas, mas foi também com grande dificuldade
indagação que nos permitem descrever, analisar e que esses estudos puderam ser recolocados em
interpretar linguagens. Como tal, os conceitos são pauta, décadas mais tarde. Nessa medida, a
instrumentos para o pensamento, lentes para o olhar, recuperação dessas investigações pelo Ocidente tem
amplificadores para a escuta. Portanto, não podem, por sido lenta, fragmentária e só nos últimos anos alguns
si mesmos, substituir a atividade de leitura e trabalhos sérios têm conseguido reconstituir esse
desvendamento da realidade. São instrumentos que, legado num quadro mais geral e elucidativo.
quando seriamente decifrados e eficazmente De qualquer modo, tentaremos delinear aqui,
empregados, nos auxiliam nessa atividade. Sozinhos em breves lances, as características mais gerais das
não podem executá-la para nós. fontes e do desenvolvimento mais recente que essas
Desse modo, o que a Semiótica peirceana fontes têm recebido na União Soviética, remetendo,
(Semiótica geral, teoria dos signos em geral) nos trouxe ao final deste volume, o leitor mais interessado num
foram as imprescindíveis fundações fenomenológicas e aprofundamento, para uma pequena bibliografia já
formais para o necessário desenvolvimento de muitas e existente sobre o assunto no Brasil.
variadas Semióticas especiais: Semiótica da linguagem
sonora, da arquitetura, da lingua-gem visual, da dança,
das artes plásticas, da literatura, do teatro, do jornal, As fontes soviéticas
dos gestos, dos ritos, dos jogos...e das linguagens da
natureza... Nessas Semióticas especiais, que têm por
função descrever e analisar a natureza específica e os Começando pelos filólogos citados (Potiebniá e
caracteres peculiares de cada um daqueles campos, Viesselovski) em cujas obras podem ser encontradas,
brotam necessariamente as práticas de aplicação, isto já no século XIX, algumas raízes das descobertas do
é, as atividades de leitura e inteligibilidade dos mais estrufuralismo lingüístico no século XX, chegamos ao
diversos processos e produtos de linguagem: um lingüista N. I. Marr, que, no começo deste nosso
poema, um teorema, uma peça musical, um objeto século, vinha desenvolvendo, segundo nos informa B.
utilitário, uma praça pública, um rito, um discurso Schneiderman, "uma teoria estadial que ligava
político, uma peça de teatro, um filme, um programa de intimamente a fase de desenvolvimento da língua
televisão, um ponto de luz, uma nota musical com os estádios de desenvolvimento da sociedade".
prolongada, o silêncio. Controvérsias com Stalin, contudo, emudeceram
tanto a voz de Marr quanto de seus adeptos por
longo tempo na URSS. Embora publicamente
OUTRAS FONTES E CAMINHOS ensurdecidos, seus estudos tiveram prosseguimento
num trabalho conjunto com o psicólogo L. S. Vigotski
Embora a opção deste livro tenha sido aquela de e o cineasta S. M. Eisenstein. Esses estudos incluíam
fornecer ao leitor uma visão mais rente à teoria relações entre a linguagem e os ritos antigos, assim
peirceana, não poderia estar completo um panorama como entre a linguagem dos gestos e a língua
geral da Semiótica se deixássemos de indicar aqui, articulada.
mesmo que de modo breve, o traçado das outras duas Mencionar o cineasta Eisenstein, no entanto,
fontes de origem e desenvolvimento dessa ciência. significa termos de nos deparar com a mais completa
Senão vejamos. encarnação de um verdadeiro "artista inter-
Uma dessas fontes começou a germinar na União semiótico" surgido na Rússia revolucionária e pós-
Soviética, desde o século passado, nos trabalhos de revolucionária. Essa intersemiose está expressa na
dois grandes filólogos, A. N. Viesselovski e A.A. sua preocupação com a origem dos sistemas de
Potiebniá, vindo explodir de modo efervescente na signos, na presença da literatura em suas reflexões
Rússia revolucionária, época de experimentação sobre o cinema, na sua prática do teatro e nos
científica e artística que deu nascimento ao estudos das diversas artes, notada-mente a pintura
estruturalismo lingüístico soviético, aos estudos de em sua relação com o cinema, assim como nos
Poética formal e histórica e aos movimentos artísticos experimentos, ainda no cinema mudo, com os efeitos
de vanguarda nos mais diversos domínios: teatro, de somimagem e na influência de um instigante
conhecimento do ideograma japonês e chinês sobre
sua técnica de montagem cinematográfica, além do Saussure na Universidade de Genebra, mal podia
conhecimento do teatro Kabuki e estampa japonesa, este investigador pressentir a colossal repercussão
tudo isso culminando numa constante preocupação com que seu trabalho teria pelo mundo afora e a
a síntese entre ciência e arte. aplicabilidade que suas descobertas encontrariam em
A interpenetração das artes e destas com a ciência outras áreas do saber no território das ciências
e técnica que, na obra de Eisenstein, encontrou seu humanas. Que grande salto à frente representa esse
ponto limite, também comparecia, na mesma época, curso na história da Lingüística iniciada, digamos,
nos trabalhos dos poetas cubofuturistas, em desde os trabalhos dos gramáticos gregos?
experimentos teatrais ou em projetos no campo da Alimentando-se em algumas fontes de avanço no
escultura — arquitetura e experiências gráficas que caminho para uma ciência do verbal, já lançadas no
faziam emergir a revolução nas artes em sincronia com século XIX por W. Humboldt, Saussure, na realidade,
a explosão de um espírito revolucionário mais global. compõe, em bases precisas, os princípios científicos e
metodológicos que fundam as descobertas da
Nesse mesmo ambiente efervescente de uma
economia específica da lingua-gem articulada,
prática semiótica e criativa, irromperam os estudos
fazendo aparecer, no horizonte de nossas
científicos de Poética que vieram a ser conhecidos sob o
indagações, esse novo objeto por ele identificado, ou
título de Formalismo Russo, assim como os
seja, a língua como sistema ou estrutura regida por
fundamentos de uma ciência lingüística que nasceram
leis e regras específicas e autônomas. Mas
no Círculo Lingüístico de Praga, além dás inves-
esclareçamos isso melhor, Se por estrutura formos aí
tigações em torno de uma Poética histórica e
entender categorias gramaticais que se organizam
sociológica desenvolvidas pelo chamado Círculo de
hierarquicamente e que se conjugam em padrões
Bakhtin. Esse campo multiforme, ao mesmo tempo
sintáticos definidos, isso é quase tão antigo quanto
prático-criativo e teórico-científico, constitui-se naquilo
os primordiais estudos da linguagem verbal. A grande
que poderíamos considerar como sendo as fontes da
revolução saussuriana instaura-se no centro da noção
Semiótica russa.
mesma de estrutura. Isto quer dizer: a interação dos
Como se pode ver, não se trata aí de uma
elementos que constituem a estrutura da língua é de
construção da ciência semiótica como tal, mas de uma
tal ordem que a alteração de qualquer elemento, por
série de ricas contribuições voltadas para a
mínimo que seja, leva à alteração de todos os demais
problemática dos signos na sua relação com a vida
elementos do sistema como um todo. Nesse sentido,
social, mais acentuadamente os signos lingüísticos e
a lingüística saussuriana não é meramente uma
poéticos, revelando, porém, a maioria desses estudos,
teoria para a descrição de línguas particulares, tais
principalmente os do Círculo de Bakhtin, uma
como a francesa, inglesa ou ameríndia, mas uma
acentuada tendência para uma visão globalizadora da
teoria que tem por objeto os mecanismos lingüísticos
cultura, ou seja, a investigação da linguagem na sua
gerais, quer dizer, o conjunto das regras e dos
relação com a cultura e a sociedade.
princípios de funcionamento que são comuns a todas
A recuperação sistemática dessa rica herança, com
as línguas.
vista ao desenvolvimento de investigações
Para Saussure, portanto, a língua é um sistema de
intencionalmente semióticas, teve início, na União
valores diferenciais, isto é, a língua é uma forma na
Soviética, a partir de fins dos anos 50, por um número
qual cada elemento, desde um simples som
hoje cada vez maior de pesquisadores reunidos quase
elementar (f, por exemplo, na palavra fato, ou g, na
sempre em torno da figura proeminente de luri
palavra gato), só existe e adquire seu valor e função
Lotman. Tirando proveito das fontes mais estritamente
por oposição a todos os outros. Cada elemento,
poéticas e lingüísticas legadas pelo passado, esses
portanto, só é o que é por diferença em relação
estudiosos têm estendido suas indagações para todos
àquilo que todos não são. O valor é, por isso,
os sistemas de signos fundamentando-as em ciências
determinado por suas relações no interior de um
mais recentes tais como a Cibernética e a Teoria da
sistema.
Informação, e mesmo a Matemática, consideradas todas
Nessa medida, a linguagem falada, ou a
elas de grande importância não só para a Semiótica
linguagem articulada, só pode produzir sentido, só
como para todas as demais ciências humanas.
pode significar, sob a condição de dar forma a um
Conforme se pode deduzir, apesar de que a
certo material, segundo regras combinatórias
intenção desses estudos seja, sem dúvida alguma, a de
precisas. A língua é uma bateria combinatória,
abrir o leque semiótico de modo a abraçar a totalidade
estabelecida por convenção ou pacto coletivo,
da produção cultural, o que parece faltar, na base
armazenada no cérebro dos indivíduos falantes de
dessas investigações, é uma fundamentação teórica,
uma dada comunidade. Somente na medida em que
isto é, um corpo científico especial-mente semiótico. Ao
nos submetemos a essas regras,
contrário, as pesquisas lá se desenvolvem a partir de
modelos teóricos emprestados de ciências vizinhas, e
podemos nos integrar numa comunidade
que são adaptados com vistas à construção de um
lingüística e social. Nascer, portanto, não é senão
corpo metodológico aplicável a todo e qualquer
chegar e encontrar a língua pronta. E aprender a
fenômeno de lingua-gem. Cumpre notar que o modelo
língua materna não é senão ser obrigado, desde a
teórico privilegiado e nuclear é aquele das línguas
mais tenra idade, a se inscrever nas estruturas da
naturais, quer dizer, o da linguagem verbal. Tomando-
língua. Pode-se concluir: a língua não está em nós,
se como base os conceitos teóricos criados pela
nós é que estamos na língua.
lingüística estrutural para a descrição da língua
Disso se deduz que a língua é um fenômeno
como sistema, acoplando-se esses conceitos aos pontos
social e é este sistema abstrato formal de regras
de contato que eles apresentam com os da teoria da
arbitrárias socialmente aceitas que se constitui para
informação, esses dispositivos são, então, transferidos
Saussure no objeto da ciência lingüística. Daí decorre
para o campo de qualquer outra manifestação de
sua distinção entre língua e fala (langue eparole).
linguagem que não a linguagem verbal.
A língua é constituída pelo conjunto sistemático
das convenções necessárias à comunicação, é um
A matriz saussuriana produto social de cuja assimilação cada indivíduo
depende para o exercício da faculdade da linguagem.
Durante o curso de Lingüística Geral proferido por A fala, por seu lado, é a parte individual da
linguagem, diz respeito ao uso e desempenho efetivo e teoria peirceana exige e permite.
substancial das regras da língua num ato de fala e Isso é o que para nós tem de ficar bem claro,
comunicação particulares. visto que não é tanto o nome Semiótica ou
Como se vê, língua e fala são inseparáveis, Semiologia o que realmente importa, no caso, mas a
mas.enquanto a fala é circunstancial e mais ou menos nossa capacidade de discriminar as fontes ou
acidental, sempre aqui e agora, a língua é essencial e, instrumentos teóricos que os estudos semióticos
por isso mesmo, constitui-se num princípio de estão tomando como base, para que se possa saber
organização coerente, num sistema autônomo em que terreno se está pisando.
suscetível de aproximação científica específica. Foram,
portanto, conceitos teóricos capazes de descrever e
analisar as leis articulatórias da língua o que Saussure Alguns confrontos
pretendeu desenvolver no seu curso.
Desse modo, a preocupação explícita desse
pensador era a de fundar uma ciência da linguagem A teoria peirceana foi aquela que primeiramente
verbal. Em nenhum momento foi por ele demonstrada brotou no tempo, pois que, desde o século XIX, a
qualquer iniciativa no sentido de formular conceitos doutrina geral dos signos estava sendo formulada por
mais gerais que pudessem servir de base para uma Peirce. A primeira década do século XX, por outro
ciência mais ampla do que a Lingüística. Ao contrário, lado, corresponde ao período em que Saussure
consciente disso, Saussure apenas previu a necessidade ministrou seu curso na Universidade de Genebra,
de existência dessa ciência mais vasta que ele batizou curso este que deu origem à divulgação mais ampla
de Semiologia. de uma ciência Lingüística.
Para Saussure, a Semiologia teria por objeto o No entanto, foi apenas em meados do século XX
estudo de todos os sistemas de signos na vida social. que, tanto na União Soviética quanto na Europa, os
Nessa medida, a Lingüística, ou seja, a ciência que ele estudos mais própria e intencionalmente semióticos
tinha por propósito desenvolver, seria uma parte da começaram a se desenvolver. Não resta a menor
Semiologia que, por sua vez, seria uma parte da dúvida de que foi graças a esse grande influxo de
Psicologia Social. uma preocupação semiótica no mundo que a
Mais de quarenta anos pós-saussureanos doutrina dos signos, formulada por Peirce, começou a
precisaram, no entanto, transcorrer para que a ser recuperada., Não fosse por isso, essa teoria talvez
Lingüística estrutural fosse devidamente absorvida, estivesse até hoje quase totalmente ignorada.
divulgada e ampliada, para que seu método fosse Conforme se pode ver, não são lineares os
aplicado a áreas vizinhas, suas descobertas caminhos deuma ciência. É através de estranhas
devidamente exploradas pelos novos pensadores. Assim espécies de jogos cruzados que o pensamento
sendo, só por volta dos anos 50 é que a proposta humano caminha e responde às necessidades com
saussureana de nascimento da Semiologia passou a ser que a realidade o instiga.
desenvolvida pelos investigadores europeus. Esse Entretanto, a convergência das três fontes da
desenvolvimento pode ser explicado, entre outras Semiótica para a criação de uma ciência única não
coisas, pela pressão ou exigência que a proliferação pode nos levar a esquecer ou ocultar distinções nas
crescente dos meios de comunicação de massa criava bases dessas fontes. Muitas aproximações, por
quanto à necessidade de existência de uma ciência exemplo, entre a teoria de Peirce e a de Saussure
capaz de dar conta da natureza e distinções entre as têm aparecido sem levar em conta as raízes de suas
variadas linguagens veiculadas pelos diferentes meios diferenças. Durante algum tempo, eu mesma fui
(jornal, cinema, revistas, rádio, TV etc.) e que desse levada a estabelecer apressadas relações de
conta, antes de mais nada, de um instrumental teórico comparação entre ambos. Hoje, já vejo mais claro
mais apto a desvendar a complexa natureza que esse tipo de comparação só pode ser feito a
intersemiótica da arte e da literatura modernas. posteriori, depois de elucidadas pelo menos algumas
Contudo, esse instrumental, desde suaorigem, a dentre as abissais diferenças que separam as obras
Semiologia tomou de empréstimo à Lingüística. Nessa de cada um desses pensadores.
medida, a teoria semiológica de extração lingüística A Lingüística saussureana brotou de um primeiro
caracteriza-se pela transferência dos conceitos que corte abrupto e estratégico nas relações que a
presidem à análise da lingua-gem verbal-articulada para linguagem humana mantém com todas as outras
o domínio de todos os outros processos de linguagens áreas do saber sobre o homem (Antropologia,
não-verbais. Assim como ocorre na Semiótica russa, o Psicologia, Sociologia e, sobretudo, a Filosofia). A
modelo lingüístico é, na maior parte das vezes, descoberta da língua, como sistema autônomo e
preenchido com aparatos teóricos advindos de áreas objeto específico de uma ciência que lhe é própria,
vizinhas, tais como teoria da Comunicação e nasceu exatamente desse corte. Com isso, contudo,
Informação, Semântica (ramo da própria Lingüística), foram rompidas, de saída, todas as veias de
Antropologia; estudo dos Mitos, Simbologia, Teoria indagação das relações inseparáveis que a
Literária etc. Fica aí em falta, contudo, uma fundação linguagem mantém com o pensamento, as operações
teórica consistente e homogênea capaz de plantar uma da mente, a ação e com o intrincado problema da
ciência Semiótica a partir de raízes próprias. representação do mundo. Essa carência ou lacuna, a
Dado o fato de que está prevista nesta mesma Semiologia de extração lingüística acabou por
coleção Primeiros Passos a existência de um volume carregar inevitavelmente no seu bojo. Toda a
sobre O que é Semiologia, não pretendemos aqui entrar Semiótica peirceana brotou, ao contrário, de um
nos detalhes dos caracteres através dos quais a infatigável, longo e árduo caminho inverso. Para
Semiologia européia tem se desenvolvido. Faz-se Peirce, todas as realizações humanas (no seu viver,
necessário, porém, esclarecer que essa distinção entre fazer, lutar, na sua apreensão e representação do
Semiótica e Semiologia não é apenas terminológica. mundo) configuram-se no interior da mediação
Apesar de que muito trabalhos façam inalienável da linguagem, entendida esta no seu
indiscriminadamente uso dos dois termos, há que sentido mais vasto. Com isso, aflora o que
diferenciar as árvores da floresta. Os estudos filiados à poderíamos denominar o mais cabal deslocamento
tradição lingüística terão necessariamente, de saída, no pólo e vetor das tradicionais teorias do
postulações profundamente distintas daquelas que a conhecimento, visto que a Semiótica peirceana é,
antes de mais nada, uma teoria sígnica do
conhecimento. estudos realizados pela Lingüística e a Semiologia,
Não há dúvida que a linguagem tem sido, neste acreditamos que, cada vez mais, o debate entre
século, o objeto nuclear das indagações filosóficas. Semiótica e Semiologia tenderá a esmaecer, diante
Entretanto, a posição de Peirce, nesse contexto, é de um outro debate: o da teoria peirceana em
personalíssima, visto que, enquanto a moderna filosofia diálogo de absorção e oposição com 25 séculos de
européia tem buscado questionar o racionalismo tradição filosófica ocidental.
ocidental, utilizando ainda as ferramentas de um Não queremos com isso dizer que os estudos
pensamento verbalista, na filosofia de Peirce essas semiológicos tenderão a desaparecer. Ao contrário,
ferramentas são dinamitadas de saída. tenderão provavelmente a crescer, convertendo-se
Por outro lado, vindo de uma formação nas em casos particulares, isto é, em Semióticas
ciências exatas, Peirce representa a novidade de não especiais para o preenchimento imprescindível dos
separar a filosofia e a construção de seu pensamento detalhes descritivos de uma ciência mais ampla e
dos avanços nas ciências modernas, antevendo, mais abstrata: a teoria geral ou quase formal e
inclusive, muitas descobertas que estas vieram a necessária doutrina dos signos, conforme Peirce a
apresentar no transcorrer do nosso século. batizou.
Nessa medida, sem negarmos a importância dos

INDICAÇÕES PARA LEITURA A bibliografia sobre a Semiologia européia é


bastante extensa no Brasil. Indicarei aqui apenas um
livro: Elementos de Semiologia, de R. Barthes (Ed.-
Fragmentos selecionados da obra de Peirce
Cultrix). Limito-me à indicação dessa obra porque,
encontramse publicados nos Collected Papers (8
tendo sido ela a primeira a surgir, no contexto
volumes), Harvard U. Press. Alguns trechos,
europeu, como proposta de desenvolvimento de uma
selecionados por entre esses oito volumes, foram
Semiologia a partir de uma metodologia lingüística,
traduzidos para o português. Contamos hoje, no Brasil,
acabou por marcar, de modo mais ou menos
com três edições que contêm pequenas partes da obra
absoluto, as tendências subseqüentes no desenrolar
de Peirce. São elas: Semiótica e Filosofia (Ed. Cultrix),
da Semiologia européia de extração saussureana e
Peirce (col. "Os Pensadores", Abril, vol. XXXVI) e
hjelmsleviana.
Semiótica (Ed. Perspectiva).
Além disso, há já vários anos, têm sido publicadas
no Brasil obras traduzidas de autores estrangeiros ou Sobre a autora
obras de autores brasileiros, todas elas relativas à
Semiótica Geral ou aplicada. Nessas obras, o leitor Lúcia Santaella é formada em Letras pela
poderá encontrar sínteses mais ou menos extensas da Universidade Católica de São Paulo. Nessa mesma
teoria dos signos. No livro Pequena Estética, de Max Universidade, defendeu seu doutoramento na área de
Bense (Ed. Perspectiva), por exemplo, há uma
Teoria Literária, em 1973. De lá para cá, tem se
introdução de Haroldo de Campos, assim como notas e
comentários no decorrer do livro, onde conceitos dedicado a pesquisas teóricas e aplicadas de caráter
semióticos são tratados e discutidos. O livro Semiótica e semiótico. Atualmente trabalha no programa de
Literatura (Ed. Perspectiva), de Décio Pignatari, foi a estudos pós-graduados em Comunicação e Semiótica
primeira obra de autor brasileiro a trazer para o nosso da PUC-SP, onde — no contato com alunos advindos
contexto uma aplicação da teoria semiótica à Literatura.
de campos os mais diversos, da arte à matemática,
Na introdução (escrita por Haroldo de Campos) ao livro
Ideograma (Ed. Cultrix), o leitor poderá encontrar da poesia à engenharia, da música à arquitetura —
importantes discussoes sobre os signos peirceanos em mais aprende do que ensina.
correlação com os ideogramas e os anagramas
poéticos. Caro leitor: As opiniões expressas neste livro
Para uma visão geral das diferentes correntes são as do autor,podem não ser as suas. Caso
semióticas, entre elas a teoria de Peirce, poderão ser ache que vale escrever um outro livro sobre o
consultados os seguintes livros: Semiótica, Informação
mesmo tema, estamos dispostos a estudar a
e Comunicação, de J. Teixeira Coelho Netto (Ed.
Perspectiva), e Tratado de Semiótica Geral, de Umberto publicação como "segunda visão".
Eco (Ed. Perspectiva).
Quanto à Semiótica na União Soviética, contamos
hoje, no Brasil, com uma importante obra organizada Livro digitalizado e formatado para:
por Boris Schnaiderman, sob o título Semiótica Russa
(Ed. Perspectiva). Sobre esse mesmo assunto, vale a
pena consultar o artigo "A nova escola semiótica
soviética", de Jasna R Sarhan, na Rev. Polímica n? 1 (Ed.
Moraes).

Versão digital para fins educacionais. Em hipótese


alguma pode ser comercializado. Qualquer tipo de
comercialização constitui crime federal. Distribua-o
livremente!

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